Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça | |||
Processo: |
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Nº Convencional: | JSTJ000 | ||
Relator: | LUCAS COELHO | ||
Descritores: | EMPREITADA COMPRA E VENDA COISA DEFEITUOSA INDEMNIZAÇÃO CADUCIDADE DA ACÇÃO | ||
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Nº do Documento: | SJ200509220009562 | ||
Data do Acordão: | 09/22/2005 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Tribunal Recurso: | T REL PORTO | ||
Processo no Tribunal Recurso: | 2162/03 | ||
Data: | 10/20/2003 | ||
Texto Integral: | S | ||
Privacidade: | 1 | ||
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Meio Processual: | REVISTA. | ||
Decisão: | NEGADA A REVISTA. | ||
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Sumário : | I - No caso de compra e venda de coisa defeituosa, o regime de caducidade da acção de anulação por simples erro plasmado no artigo 917.º do Código Civil é aplicável, por interpretação extensiva, à caducidade da presente acção de indemnização pelos prejuízos sofridos em consequência dos vícios da coisa; II - Embora o elemento típico nuclear do contrato de empreitada consista na realização de uma obra (artigo 1207.º), enquanto o objecto essencial da compra e venda reside na transmissão de um direito, de propriedade ou de outra natureza, o acento tónico da distinção entre as duas espécies, maxime nos casos em que os materiais são fornecidos pelo empreiteiro - os Werklieferugsverträge autonomizados na dogmática alemã -, vem sintetizado pela doutrina e jurisprudência comparada nos tópicos seguintes: a) prevalência da obrigação de dare, ou da obrigação de facere, tratando-se naquele caso de compra e venda e neste de empreitada; b) na empreitada, ao invés da venda, a prestação dos materiais constitui um simples meio para a produção da obra, e o trabalho o escopo essencial do negócio; c) além disso, na empreitada o bem produzido representa um quid novi relativamente» à produção originária do empreiteiro, implicando a introdução nesta de modificações substanciais concernentes à forma, à medida, à qualidade do objecto fornecido; III - Acima, porém, de qualquer factor objectivo, o elemento preponderante de distinção é sempre constituído pela vontade dos contraentes, havendo a categorização jurídica do negócio de resultar, em larga medida, do que tiver sido pretendido pelas partes, que não terão deixado em qualquer caso de configurar na sua mente um dos contratos em causa e o seu regime. | ||
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Decisão Texto Integral: | Acordam no Supremo Tribunal de Justiça: I 1. "A" C.ª, Lda., sociedade de produção e venda de calçado com sede em S. João da Madeira, instaurou no tribunal desta comarca, em 6 de Junho de 2002, contra B, Lda., empresa de produção de componentes para a indústria de calçado, nomeadamente saltos, sediada em Oliveira de Azeméis, acção ordinária tendente a fazer valer a responsabilidade civil da ré por defeitos detectados num conjunto de saltos que a autora lhe comprou de fins de Janeiro até Março de 2001, incorporando-os em sandálias que foi exportando para uma cliente em Inglaterra, onde se verificou que os saltos estavam a partir quando usados pelos consumidores finais, com graves riscos para os utilizadores e a correspondente responsabilidade dos vendedores.Para conseguir vingar no seio da concorrência insuportável do sector, a autora sempre apostou na irrepreensível qualidade dos seus produtos, facto do conhecimento da ré, que desde sempre foi advertida para o facto de a demandante não poder correr o risco de fornecer produtos defeituosos ou de menor qualidade. Por isso que, recebida em 21 de Junho de 2001 a comunicação das anomalias verificadas, a autora tenha de imediato alertado a ré, entregando-lhe inclusive alguns pares de sapatos recebidos de Inglaterra para que ela própria pudesse analisar e comprovar o defeito. O teste de fadiga do salto já realizado naquele país falhou sempre, a um número de pancadas muito inferior ao da capacidade de resistência exigida pelas normas do comércio de calçado, e os testes efectuados no Centro Tecnológico do Calçado, de S. João da Madeira, foram todos também no sentido de os saltos fornecidos pela ré não estarem conformes às normas aplicáveis. Perante a evidência, a ré assumiu a total responsabilidade pelos prejuízos causados, e a autora desenvolveu contactos com a cliente inglesa no sentido da concretização das formas de ressarcimento, ficando além do mais acertada uma certa forma de pagamento, que a autora para já efectuou, e que o calçado com defeito seria reenviado para Portugal, estando depositado numa empresa transitária de Matosinhos à disposição da ré desde 12 de Julho de 2001, sendo, porém, a autora que perante a total omissão daquela está a suportar os custos da armazenagem. Numa palavra. A demandante sofreu diversas espécies de danos consequência do defeito dos saltos fornecidos pela ré, incluindo significativamente uma quebra acentuada nas exportações para a cliente britânica logo detectada no mês de Dezembro de 2001. Pede, em resumo, a condenação da demandada: a solver-lhe a quantia de 229.512,01 € (46.013.026$80), a título de indemnização pelos prejuízos resultantes do fornecimento dos saltos defeituosos; os juros moratórios legais vencidos e liquidados até 20 de Junho de 2002 no montante de 7.649,01 € (1.533.488$80), sobre as quantias reembolsadas pela autora ao cliente inglês desde a data do reembolso; o custo da armazenagem do calçado devolvido ao preço cobrado pelo depositário, desde aquela data até ao levantamento; e os juros vincendos à taxa legal sobre todo o capital pedido até integral pagamento. 2. Contestou a ré, arguindo a caducidade do direito invocado pela autora. Em dois planos. Primeiro, porque, celebrado entre ambas um contrato de compra e venda comercial, mercê do qual entregou à autora, entre 27 de Outubro de 2000 e 16 de Março de 2001, a mercadoria transaccionada, a autora reclamou contra a qualidade da mesma tão-somente após 21 de Junho de 2001 e, portanto, fora do prazo de 8 dias previsto no artigo 471.º do Código Comercial. Por outro lado, a presente acção está sujeita, conforme o artigo 917.º, ao prazo de caducidade de 6 meses a contar da denúncia do defeito, tendo por conseguinte caducado, uma vez que a denúncia dos defeitos teve lugar a 21 de Junho de 2001 e a acção só foi instaurada em 6 de Junho de 2002. A autora respondeu na réplica à excepção contrapondo não estar em causa um contrato de compra e venda, mas de fornecimento. E alegando ademais não ser aplicável o prazo do citado artigo 471.º quando seja necessário proceder a testes para descobrir o vício da coisa, como no caso sub iudicio. A excepção peremptória veio justamente a proceder no saneador, proferido em 8 de Novembro de 2002, que absolveu a ré do pedido. Pelo menos desde 29 de Junho de 2001, por meio de fax a fls. 10, que a autora denunciara à ré o defeito nos saltos. E, contudo, só em 6 de Junho de 2002, cerca de um ano após a denúncia do defeito, intentou a presente acção, ultrapassado já manifestamente o prazo de caducidade de 6 meses estipulado no artigo 917.º 3. Apelou a autora, sem sucesso, tendo o Ex.mo Relator na Relação do Porto proferido despacho nos termos do artigo 705.º do Código de Processo Civil, que confirmou a decisão apelada e a caducidade da acção conforme o artigo 917.º. Reclamou a apelante ao abrigo dos n.os 3 e 4 do artigo 700.º, alegando em resumo, além da omissão de pronúncia do despacho reclamado, uma diversa qualificação do contrato ajuizado, como empreitada, requerendo que sobre toda a matéria do recurso recaísse acórdão. A conferência confirmou, porém, o despacho liminar, e o reconhecimento da caducidade tipificada no artigo 917.º Explicitou ademais não se verificar a omissão de pronúncia, atendendo a que a qualificação compra e venda prejudica o conhecimento das questões postuladas pela qualificação empreitada, alegadamente não decididas. Do acórdão nesse sentido emitido, em 26 de Maio de 2003, a autora interpôs agravo, recebido como revista, o que originou impugnação da espécie, liminarmente decidida no segundo sentido. 4. A respectiva alegação remata com as conclusões que seguem, das quais se encontram prejudicadas as respeitantes às vicissitudes processuais acabadas de relatar: 4.1. «Fundando-se a reclamação objecto de recurso na violação da lei do processo (errada aplicação do artigo 705.º) e na arguição de uma das nulidades do artigo 668.º [omissão de pronúncia; alínea d) do n.º 1] e tendo o acórdão que a decidiu mantido a decisão reclamada, o recurso próprio é o de agravo e não o de revista. Mostra-se violado o n.º 1 do artigo 721.º do Código de Processo Civil, o qual, porque o acórdão não decidiu do mérito da causa, impunha a espécie de recurso supra referida; 4.2. «Num contrato em que uma das partes assume a obrigação de entregar a outrem uma coisa nova, ainda sem existência e que terá de fabricar, contra a entrega do preço, revela-se sempre difícil e controversa a sua qualificação, enquanto contrato de empreitada ou de venda de coisa futura. Em tal caso, que só pode ser decidido perante cada situação em concreto, com atenção e ponderação, é inaplicável a 1.ª parte do artigo 705.º do Código de Processo Civil, sob pena de se cometer uma nulidade (artigo 201.º, n.º 1) e inconstitucionalidade (artigo 20.º, n.º 1, da Constituição), por denegação do direito ao recurso. O acórdão recorrido, ao louvar, mantendo-a nos seus precisos termos, a decisão reclamada, acabou por comungar dos seus vícios e logo, violado o artigo 705.º do Código de Processo Civil, tendo cometido a nulidade e a inconstitucionalidade supra referidas. A correcta interpretação daquele artigo 705.º impunha o seu afastamento, este sim, liminar, devendo a questão a apreciar ser objecto de um recurso formal, nos termos dos artigos 707.º e segs. e o acórdão subsequente, lavrado nos termos do artigo 713.º, ambos do Código de Processo Civil; 4.3. «As questões postas no recurso de apelação vão muito para além da classificação do contrato ou de ‘fazer tábua rasa’ do artigo 917.º do Código Civil, antes tendo contrariado, com argumentação jurídica e fundamentação doutrinária e jurisprudencial, ponto por ponto, a decisão da 1.ª instância, conforme as conclusões n.os 8 a 11, infra reproduzidas para o caso de se não julgar procedente qualquer das anteriores conclusões e logo, este Alto Tribunal entender dever ir decidir do mérito do recurso. A não se ter debruçado e pronunciado sobre qualquer destas questões, o acórdão recorrido cometeu a nulidade cominada na 1.ª parte da alínea d) do n.º 1 do artigo 668 do Código de Processo Civil. Mostra-se violada a 1.a parte do n.º 2 do artigo 660 do Código de Processo Civil, o qual impunha a apreciação e decisão sobre todas aquelas questões, porque pertinentes e correctamente submetidas à apreciação do Tribunal; 4.4. «Ao refutar a argumentação da recorrente dizendo "parecer" que determinado regime legal, por cuja aplicação se pugna, com fundamentação doutrinária e jurisprudencial, não excluiria a aplicação daquele a que o caso foi submetido, sem mais, bem como, ao indeferir uma reclamação com três frases exclusivamente conclusivas, sem aduzir qualquer fundamentação, o acórdão recorrido violou o disposto nos artigos 158 e 659, n.º 2, do Código de Processo Civil, tendo cometido a nulidade cominada na alínea b) do n.º 1 do artigo 668.º, e a inconstitucionalidade consistente no incumprimento do disposto no n.º 1 do artigo 205.º da Constituição. Mostram-se violados aqueles normativos, sendo que a sua correcta aplicação e o cumprimento dos comandos que neles se contêm, desde logo na Lei Fundamental, impunham uma especificação dos fundamentos de facto e de direito que justificassem, de forma, ainda que sucinta, compreensível, a decisão; 4.5. «Se consideramos o artigo 918.º aplicável à venda de coisa genérica, sem qualquer dúvida, de forma alguma podemos arredar a sua aplicação à venda de coisa futura que, no texto legal, até a antecede, enquanto condição da sua aplicação; o pugnar pela aplicação de determinada norma, não implica nunca o fazer tábua rasa de outra, sobretudo quando, como é o caso entre os artigos 917 e 918 do Código Civil, entre elas intercede uma relação de especialidade. Mostram-se violados quer o artigo 917.º, quer o artigo 918.º do Código Civil, o primeiro porque inaplicável ao caso sub judice (venda de coisa futura) - e o segundo, porque o devia ter sido e não foi; 4.6. «É de empreitada e não de compra e venda, o contrato mediante o qual a autora acordou com a ré o fornecimento, por esta, de um número indeterminado de saltos para sandálias, que produziria na sua fábrica, com materiais por ela adquiridos e transformados, com o desenho e a forma de um modelo entregue pela primeira. In casu, não são aplicáveis os artigos 470.º e 471.º do Código Comercial, nem os artigos 913.º a 917.º do Código Civil, os quais só ao contrato de compra e venda respeitam, mas antes os artigos 1207 e segs. do Código Civil que a matéria expressamente regulam; 4.7. «O contrato sub judice foi celebrado pelas partes no momento em que a recorrente entregou à recorrida um modelo de salto, para que esta o fabricasse com aquelas forma e desenho, para si, em tantas unidades quantas as que encomendasse, o que a recorrida aceitou fazer, tendo-se dedicado à obra. É pois muito anterior à entrega das solas e percepção do preço, não podendo este acto translativo impor-se ao contrato anteriormente celebrado, no qual a obra assume uma preponderância cronológica e material (quer para a recorrente, quer para a materialização daquele acto) se não para qualificar o contrato como empreitada, ao menos como contrato misto, de empreitada e compra e venda. Neste caso, também não são aplicáveis as normas que fundaram a decisão de 1.ª instância, mas antes e concretamente no que refere aos defeitos da obra, sua denúncia e caducidade, os artigos 1218 e segs. do Código Civil; 4.8. «A existência ou não de escolha não é um critério definitivo, diferenciador das obrigações genéricas e específicas, sendo que à escolha se contrapõe a especificação, a qual pode constar de uma simples operação de contagem, pesagem ou medição. Verifica-se, na decisão de 1ª instância, uma incorrecta interpretação dos artigos 539 e 918 do Código Civil, neles cabendo as obrigações que não necessitem de escolha, mas apenas de especificação; 4.9. «O facto de a coisa a prestar pelo devedor incluir o fabrico, por ele, do objecto da prestação, não implica a inexistência de escolha, muito menos por natureza. Bem ao contrário, neste caso a liberdade do vendedor de conformar o objecto da prestação ao contratado é muito maior do que em qualquer outro caso de prestação genérica, já que a escolha, aqui, não tem que se limitar ao que, dentro do género, existe no mercado ou na natureza, cabendo-lhe escolher, entro das regras de arte e do princípio geral de boa fé a que está adstrito, os materiais a utilizar, a forma de os combinar e de os produzir. Terá, também aqui, sido feita uma incorrecta interpretação do artigo 539.º do Código Civil, mas principalmente, como se verá na conclusão seguinte, dos artigos 211.º, 399.º e 880.º do Código Civil; 4.10. «E é precisamente nesta liberdade de o vendedor conformar o objecto da sua prestação ao contratado que reside a especialidade do artigo 918.º do Código Civil, no que refere à venda de coisa futura ou de coisa genérica, justificando-se amplamente, atentos, quer o teor literal desta norma, quer a ’ratio legis’, a sua aplicação ao caso sub judice, o qual, a não ser considerado contrato de empreitada, terá, obrigatoriamente, de ser considerado misto, de empreitada e de venda de coisa futura, ou, pelo menos, de venda de coisa futura, já que a prestação respeita a um acto in fieri. Mostram-se violados, por errada interpretação, os artigos 539.º, 211.º, 399.º, 880.º e 918.º do Código Civil, os quais impunham a consideração da venda em causa como venda de coisa futura e logo, subsumível ao regime do artigo 918.º e por ele, ao dos artigos 798.º e segs. do mesmo Código; 4.11. «Em conformidade, porque vem alegado e implicitamente admitido que as qualidades da coisa integraram o conteúdo do contrato; que essa qualidade consistia na idoneidade da prestação para o fim a que se encontrava objectiva e contratualmente destinada, fim esse que a recorrida conhecia, tendo os conhecimentos e a possibilidade de conformar a prestação realizada à efectivamente devida, o cumprimento defeituoso desta obrigação e as consequências que dele se vieram a provar, estão sujeitas ao regime geral do não cumprimento das obrigações. Verifica-se, pois, uma errada interpretação do artigo 917 do Código Civil, inaplicável ao caso, sendo aplicável o artigo 309, sempre por via da remissão operada pelo artigo 918, com a única limitação, relativamente ao prazo, do abuso de direito, decorrente de eventual ‘venire contra factum proprium’.» «Termos em que: - Deve este Supremo Tribunal, na procedência das primeiras conclusões e nos termos do n.º 2 do artigo 731.º, ex vi do n.º 3 do artigo 762.º, no caso de se entender ser o agravo o recurso próprio, ambos do Código de Processo Civil, mandar baixar o processo, a fim de se fazer a reforma da decisão anulada; se assim não for entendido, - Deve revogar-se a decisão da Relação, e, conhecendo do objecto do recurso, julgar-se improcedente a alegada excepção da caducidade e ordenando a prossecução do processo na 1.ª instância, por assim o imporem o ’Direito e a Justiça’.» 5. Não houve contra-alegação. E o objecto da revista, considerando a respectiva alegação e suas conclusões, à luz da fundamentação da decisão em recurso, consiste estritamente na questão de saber se a presente acção se encontra ferida de caducidade nos termos do artigo 917.º do Código Civil. II A Relação considerou assente a matéria de facto dada como provada na 1.ª instância, para a qual se remete nos termos do n.º 6 do artigo 713.º do Código de Processo Civil, sem prejuízo de alusões pertinentes.1. A partir dessa factualidade, considerando o direito aplicável, o acórdão recorrido confirmou o saneador/sentença, que julgara como sabemos procedente a excepção peremptória de caducidade da acção, absolvendo a ré do pedido. E fê-lo de forma a suscitar inteira concordância, seja no plano decisório propriamente dito, seja no tocante à fundamentação, para que se remete. Na verdade, o contrato celebrado entre as partes foi qualificado, a nosso ver correctamente atentos os dados disponíveis, como compra e venda - de coisa defeituosa -, concitando o regime de caducidade da acção tendente a fazer valer os inerentes direitos definidos no artigo 917 do Código Civil. Não deixaremos efectivamente de observar entre parêntesis, para que não restem dúvidas, que este regime, gizado explicitamente no referido normativo para a hipótese da acção de anulação por simples erro, torna-se igualmente aplicável, por interpretação extensiva, à caducidade da presente acção de indemnização pelos defeitos das coisas vendidas. Assim decidiu o saneador/sentença, e neste sentido é, de resto, a jurisprudência deste Supremo Tribunal, designadamente após o acórdão de uniformização n.º 2/97, de 4 de Dezembro de 1997 (1) . 2. Da aludida classificação jurídico-categorial do contrato dissente, todavia, a autora recorrente, propugnando numa palavra a qualificação do mesmo negócio como empreitada, com a consequente aplicação do regime de caducidade previsto no artigo 1224 do mesmo corpo legislativo. 2.1. Consideramos, todavia, por nossa parte, não assistirem a esta qualificação melhores razões - bem pelo contrário - do que à categorização como compra e venda. Na verdade, o elemento típico nuclear da empreitada consiste na realização de uma obra (artigo 1207.º), enquanto o objecto essencial da compra e venda reside na transmissão de um direito, de propriedade ou de outra natureza (2) . A distinção pode não ser fácil em concreto, maxime naqueles casos em que os materiais são fornecidos pelo empreiteiro (3) O acento tónico da distinção, num plano objectivo, entre as duas espécies contratuais é sintetizado na doutrina e jurisprudência comparada pela prevalência da obrigação de dare, ou da obrigação de facere, tratando-se naquele caso de compra e venda e neste de empreitada (4) .. Na empreitada, ao invés da venda, «a prestação dos materiais constitui um simples meio para a produção da obra, e o trabalho constitui o escopo essencial do negócio». Além disso, na empreitada o bem produzido representa «um quid novi relativamente à produção ordinária do empreiteiro», implicando a introdução nesta de «modificações substanciais relativas à forma, à medida, à qualidade do objecto fornecido» (5) . Acima, porém, de quaisquer factores objectivos - observa-se entre nós (6) - o elemento fundamental a considerar é sempre constituído pela «vontade dos contraentes». «A qualificação jurídica do negócio há-de resultar, em larga medida, do que tiver sido pretendido pelas partes, que não terão deixado em qualquer caso de configurar na sua mente um dos contratos em causa e o seu regime.» Assim, por exemplo, se uma das partes compra um motor e o vendedor se obriga a montá-lo, «o adquirente cuidará muitas vezes apenas da aquisição como fim do contrato». 2.2. Pois bem. Quanto ao elemento objectivo da distinção, vem provado que «o modelo de salto aqui em discussão era um modelo desenhado pelo autora, para que a ré o fabricasse para ela autora, em tantas unidades quantas as encomendadas». Mas não se provou que esses saltos implicassem aquela novidade na produção ordinária da ré B, Lda. - uma especialista decerto na produção de componentes para a indústria de calçado, nomeadamente saltos - e a introdução nesta produção de modificações substanciais, de forma, de medida e qualidade dos saltos, que possibilitariam qualificar o contrato como empreitada. Nesse sentido se escreve judiciosamente no acórdão sub iudicio: «O esforço argumentativo da recorrente é sem dúvida meritório mas não logra convencer. Na verdade, um contrato de fornecimento de componentes para uma obra industrial não é uma empreitada mas uma compra e venda prolongada como em certo passo da sentença recorrida se defende com abono jurisprudencial. E a circunstância da singularização da mercadoria, nem assim retira as características fundamentais de compra e venda ao negócio em causa. Enfim, o fenómeno industrial da produção em série, malgrado certos ajustamentos, diz respeito apenas, e verdadeiramente, à categoria mercantil da mercadoria... e esta, naquilo que tem de standard, afasta-se do conceito de obra-nova-para-alguém que caracteriza o objecto da empreitada, do domínio manufactureiro, digamos assim. «O certo é que as litigantes estão inseridas pelo objecto societário que prosseguem no processo de produção industrial mais comum, submetidas à eficiência económica do mercado, procurando margens de benefício através do jogo dos custos e dos preços, com uma pequena margem de inovação (pelo menos, este aspecto da inovação não foi concretamente alegado pela autora e seria através dele que a qualidade negocial de empreitada poderia vir a firmar-se no contexto do debate da causa). «Daí que tenhamos de atender à hegemonia dos mecanismos económicos próprios ao sistema, os quais solicitam ao ordenamento jurídico a ferramenta da compra e venda, justamente no âmbito e alcance das preocupações da mobilidade mercantil em segurança trazidas à colação na sentença recorrida: não merece crítica.» Os elementos aludidos interessavam realmente à qualificação do contrato de que a autora se pretende prevalecer, e cuja falta não pode, por conseguinte, redundar em seu favor. O mesmo se diga em quanto concerne à vontade negocial que presidiu à celebração do contrato, inexistindo igualmente neste outro plano elementos que apontem no sentido de classificação diferente da compra e venda. Bem ao invés, antes de enveredar, perante a arguição da caducidade da acção, pela qualificação de contrato de fornecimento e, em derradeiro termo, pela de empreitada, alegara a autora com naturalidade no artigo 3.º da petição ter comprado à ré os questionados saltos. Não será, pois, ilegítimo concluir nesse conspecto, parafraseando os anotadores do Código Civil citados há instantes, que a autora haverá fundamentalmente cuidado da aquisição dos saltos como fim do contrato. 3. Resta apenas observar, quanto às conclusões 3.ª e 4.ª da alegação da revista que não se afiguram subsistentes as nulidades do acórdão recorrido aí objecto de arguição. Quanto à de omissão de pronúncia (conclusão 3.ª), pelas razões sumariadas na própria decisão. A questão fundamental da caducidade, resolvida mercê da qualificação do contrato como de compra e venda, prejudica a necessidade de conhecimento dos demais motivos - que elucidativamente se enunciam na nota 11 do acórdão -, os quais postulam nuclearmente a qualificação empreitada. No tocante à falta de fundamentação (conclusão 4.ª), porquanto, como se sabe, constitui entendimento uniforme que a respectiva nulidade, tipificada na alínea b) do n.º 1 do artigo 668.º do Código de Processo Civil, postula uma falta de fundamentação total. Relativamente às demais proposições conclusivas da mesma peça processual, ou contêm alusões verdadeiramente desviadas do cerne do litígio, como as relativas a operações de determinação da prestação que não está em causa (conclusão 8.ª), e a vectores de escolha e liberdade no cumprimento da obrigação cuja pertinência não se vislumbra (conclusão 9.ª). Ou equacionam eventualidades salvo o devido respeito sem qualquer apoio nos factos assentes, tal como a hipótese nuclearmente delineada no artigo 918.º de defeito superveniente, quando o caso dos autos aponta para a existência do defeito já anteriormente ao momento em que se verificou a transmissão da propriedade mercê da compra e venda (conclusão 10.ª). III Nos termos expostos, acordam no Supremo Tribunal de Justiça em negar a revista, confirmando o acórdão recorrido, com custas pela autora recorrente (artigo 446.º do Código de Processo Civil).Lisboa, 22 de Setembro de 2005 Lucas Coelho, (Relator) Bettencourt de Faria, Moitinho de Almeida. ---------------------------------------- (1) «Diário da República», n.º 25/97, I Série-A, de 30 de Janeiro de 1997, págs. 503 e segs., e «Boletim do Ministério da Justiça», n.º 462, págs. 94 e seguintes. Cfr. na mesma orientação o acórdão de 31 de Maio de 2005, revista n.º 2372/03, 2.ª Secção. (2) Pires de Lima/Antunes Varela, Código Civil Anotado, vol. II, 2.ª edição revista e actualizada, Coimbra Editora, Lda., Coimbra, 1981, págs. 146 e 704. (3) Autonomizados pela doutrina alemã sob a denominação de Werklieferunsverträge - cfr. Karl Larenz, Lehrbuch des Schuldrechts, B. II, Besonderer Teil, 1. Halbb., 13. völl. neubearb. Auf., C. H. Beck, München, 1986, págs. 342/343 e 375 e seguintes. (4) Alberto Trabucchi, Instituzioni di Diritto Civile, 41.ª edizione, a cura di Giuseppe Trabucchi, CEDAM, Padova, 2004, pág. 764 e nota 1. (5) Trabucchi, op. cit., págs. 809 e nota 2, 810 e nota 1. (6) Pires de Lima/Antunes Varela, op. cit., p |