Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
02A756
Nº Convencional: JSTJ000
Relator: RIBEIRO COELHO
Nº do Documento: SJ200204300007561
Data do Acordão: 04/30/2002
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: T REL LISBOA
Processo no Tribunal Recurso: 2941/01
Data: 10/18/2001
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: AGRAVO.
Sumário :
Decisão Texto Integral: Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:

No 2º Juízo do Tribunal de Família e Menores de Lisboa A pediu contra B, ao abrigo dos arts. 31º e segs. da Convenção de Bruxelas de 27/9/68, a declaração de executoriedade de uma sentença proferida em 30/11/95 pelo Tribunal de Première Instance de Bruxelas e de um acórdão proferido em 30/1/96 pela Cour d'Appel da mesma cidade, decisões nas quais, na sequência de outra decisão, já revista e confirmada em Portugal, que decretou o divórcio entre ambos, o requerido foi condenado a pagar-lhe pensões de alimentos.
Foi proferido despacho reconhecendo a força executiva, em Portugal, das mencionadas decisões sobre alimentos.
Uma vez notificado deste despacho, o requerido interpôs recurso de agravo, que improcedeu ao ser julgado na Relação de Lisboa.
Do acórdão aí proferido interpôs o requerido o presente agravo em 2ª instância em cujas alegações pede que se declare que é aplicável, não aquela Convenção, mas a Convenção da Haia de 2/10/73 sobre o Reconhecimento e Execução de Decisões Relativas a Obrigações Alimentares ou, se assim não for, as disposições do Código de Processo Civil sobre revisão e confirmação de sentenças estrangeiras.
Defende, em conclusões, que:
- A Convenção de Bruxelas não se aplica ao estado e capacidade das pessoas, pelo que se não aplica às sentenças sobre obrigações alimentares;
- Vale nesta matéria a Convenção da Haia de 2/10/73 sobre o Reconhecimento e Execução de Decisões Relativas a Obrigações Alimentares;
- As normas do CPC sobre revisão de sentenças estrangeiras são aplicáveis, seja por força desta Convenção, seja directamente, caso ela não seja aplicável;
- À luz do direito processual português o agravante poderia opor-se, seja com fundamento em fraude à lei, seja invocando o princípio do tratamento mais favorável;
- Foram violadas as disposições da Convenção de Bruxelas, os arts. 65º e 1094º e segs. do CPC e os arts. 52º e 57º do CC.
Defendeu a agravada o acerto do acórdão recorrido.
Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.
Em 27/9/68 os Estados que então constituíam a Comunidade Económica Europeia concluíram em Bruxelas uma Convenção Relativa à Competência Judiciária e à Execução de Decisões em Matérias Civil e Comercial.
No seu art. 63º os mesmos Estados reconheceram que qualquer outro Estado que viesse a integrar a Comunidade assumiria a obrigação de aceitar a Convenção, na sequência do que foi celebrada, nomeadamente, a Convenção de 26/5/89 relativa à adesão de Espanha e de Portugal, que vigora entre nós desde 1/7/92 - cfr. aviso nº 95/92 publicado no DRep, I-A série, de 10/7/92.
Nesta Convenção contêm-se, como se lê em Miguel Teixeira de Sousa e Dário Moura Vicente, Comentário à Convenção de Bruxelas, Lex, 1994, pg. 17, regras de competência directa e regras de competência indirecta, aquelas definindo o Estado competente para regular os casos a submeter a tribunal, estas regendo o reconhecimento e execução das decisões judiciais já proferidas num Estado e que se pretende que sejam eficazes em outro.
Enquanto que o reconhecimento de tais decisões judiciais é automático, por força do art. 26º da Convenção - embora podendo esse reconhecimento ser recusado nos casos previstos nos seus arts. 27º e 28º -, já a sua exequibilidade está dependente de uma declaração de executoriedade a proferir no Estado onde se pretenda dá-las à execução; esta declaração apenas poderá ser negada nos casos previstos nos mesmos arts. 27º e 28º, mas sendo claro e imperativo o comando no sentido de que em caso algum as decisões estrangeiras poderão ser objecto de revisão de mérito - cfr. os seus arts. 31º e 34º -, isto sem prejuízo de a declaração de executoriedade ser recusada nos casos em que a execução contrarie a ordem pública do Estado requerido.
Foi este regime, assim sumariamente descrito, o aplicado nestes autos ao serem declaradas executórias em Portugal as mencionadas decisões que condenaram o requerido, ora agravante, a prestar alimentos à requerente, ora agravada, interessando saber, visto tal ser discutido e negado pelo agravante, se o foi com propriedade.
A argumentação do agravante assenta em que a Convenção de Bruxelas não é aplicável por ter verificação uma das excepções nela expressamente previstas e que reduzem o âmbito das questões em matéria civil e comercial que constituem o seu campo natural de aplicação.
E, para tanto, vale-se do § 2º do seu art. 1º, onde se preceitua o seguinte:"São excluídos da sua aplicação: 1) O estado e a capacidade das pessoas singulares, os regimes matrimoniais, os testamentos e as sucessões ...".
Defende a este propósito, e invocando em seu favor a lição de Antunes Varela em Direito da Família, pg. 523, que a prestação de alimentos entre ex-cônjuges envolve uma permanência, após o casamento, do dever conjugal de assistência, por isso estando ligada ao estado e capacidade das pessoas.
Levanta-se, deste modo, uma questão de interpretação da Convenção.
Os Estados subscritores desta procuraram garantir a unidade da interpretação e aplicação a fazer das suas disposições, para o que, nos termos de um Protocolo por eles assinado em 3/6/71, acordaram, designadamente, em estender às normas da Convenção a aplicação do sistema, constante já do Tratado que instituiu a Comunidade Económica Europeia e do Protocolo Relativo ao Estatuto do Tribunal de Justiça, de acordo com o qual este podia ser chamado a pronunciar-se a título prejudicial sobre questões de interpretação.
E, para o efeito, conferiram aí genericamente aos tribunais do Estados Contratantes, quando decidam um recurso, o poder de pedir ao Tribunal de Justiça que se pronuncie a título prejudicial sobre uma questão de interpretação e, especificamente, deram também esse poder - no que respeita a tribunais portugueses - ao Supremo Tribunal de Justiça e ao Supremo Tribunal Administrativo, mas registando-se quanto a ambas estas estatuições a diferença de que tal poder, significando na primeira uma simples faculdade, é já uma obrigação quanto às causas pendentes nestes Supremos Tribunais se aí se considerar que uma determinada questão de interpretação da Convenção é necessária para o seu julgamento - tudo nos termos dos arts. 1º, 2º e 3º deste Protocolo.
E, no presente caso, é manifesta a necessidade de interpretar aquela alínea do § 2º do art. 1º da Convenção.
No entanto, entendeu já o Tribunal de Justiça - cfr. acórdão de 27/3/63, processos apensos nº 28 a 30/62, Da Costa c. Administração Fiscal Neerlandesa, CJTJ, 1963, pgs. 82 e segs. - que a autoridade da interpretação por ele dada anteriormente ao decidir a título prejudicial uma questão materialmente idêntica em caso análogo pode tornar infundada e esvaziada de conteúdo aquela obrigação de consulta se a jurisdição nacional se propuser seguir essa orientação, sem prejuízo de a esta consulta se poder proceder novamente se o juiz nacional entender ser oportuno solicitar nova intervenção do Tribunal de Justiça sobre essa mesma questão.
Em acórdão proferido em 6/3/80 no processo nº 120/79 - L. Cavel c. J. Cavel, CJTJ, 1980, pgs. 731 e segs. -, o Tribunal de Justiça entendeu também, agora a respeito das obrigações alimentares, que esta matéria entra na noção de"matéria civil" usada no art. 1º da Convenção, não estando compreendida nas excepções aí previstas. Esta afirmação foi feita num processo em que se tratava, como aqui, da execução de uma decisão judicial de um outro Estado, a qual, no caso, ordenara provisoriamente o pagamento de uma prestação alimentar mensal por um dos cônjuges ao outro no decurso de um processo de divórcio. E disse-se, expressamente, que esta solução era confirmada pelo disposto no art. 5º, al. 2) da Convenção, que rege sobre a competência em matéria de obrigação alimentar.
Também a aplicabilidade da Convenção foi abordada pelo Tribunal de Justiça num outro acórdão proferido em 27/2/97 - processo nº C-220/95, Boogaard c. Laumen, CJTJ, 1997, pg. 1147 - que versou igualmente um caso em que estava em causa um pedido de"exequatur" de uma decisão que arbitrara, após o decretamento do divórcio entre as partes, uma quantia a pagar pelo primeiro à segunda e sobre a qual se discutia se tinha, ou não, a natureza de obrigação alimentar; e aí se decidiu afirmativamente quanto a esta questão, daí se extraindo igualmente ser aplicável a Convenção de Bruxelas.
Esta orientação é referida entre nós por Miguel Teixeira de Sousa e Dario Moura Vicente, obra citada, pg. 24, e por Eduardo dos Santos, Convenção de Bruxelas, 2ª edição, pgs. 33-34, sem que lhe dirijam qualquer crítica, citando ainda este último autor a opinião de Georges Droz - cfr. Compétence judiciaire et effets des jugements dans le Marché Commun, pg. 36 - ao dizer que"a fortiori se tirará a consequência de que as decisões proferidas em tal matéria caem no domínio convencional."
A natureza pacífica deste entendimento aponta para que se não reconheça haver motivos para suscitar uma nova intervenção do Tribunal de Justiça, acatando-se a orientação por ele já seguida quanto a decisões proferidas, quer no decurso de um processo de divórcio, quer depois de este ter sido já decretado.
Assim, a tese do agravante no sentido da inaplicabilidade, no presente caso, da Convenção de Bruxelas não merece acolhimento - sendo de referir que o Regulamento (CE) nº 44/2001 do Conselho, de 22/12/00, relativo à competência judiciária, ao reconhecimento e à execução de decisões em matéria civil e comercial, publicado no Jornal Oficial nº L 012 de 16/1/01 e cuja entrada em vigor se deu, de acordo com o seu art. 76º, em 1/3/02, continua a conter nestas matérias soluções idênticas às da Convenção de Bruxelas; no entanto, neste caso é ainda aplicável a Convenção de Bruxelas, e não esse Regulamento, que, nos termos do seu art. 66º, apenas deverá ser invocado no âmbito de acções judiciais intentadas após a sua entrada em vigor.
O agravante invocou ainda a aplicabilidade, no caso, da Convenção da Haia de 2/10/73 sobre o Reconhecimento e Execução de Decisões Relativas a Obrigações Alimentares, que foi ratificada por Portugal e que, embora o não tivesse sido pela Bélgica, recebera, segundo disse, neste país aplicação em diversas decisões judiciais, do que fluiria achar-se a Bélgica por ela vinculada; e daí resultaria a aplicação, por remissão feita pelo art. 13º desta última Convenção, do direito interno português quanto à revisão de sentenças estrangeiras.
Sem necessidade de averiguar se na Bélgica houve essa aplicação judicial da Convenção da Haia e se tal, a ter efectivamente ocorrido, importou a consequência afirmada, dir-se-á que, se dois Estados que sejam partes na Convenção de Bruxelas forem também partes em outra Convenção relativa a uma matéria especial e onde se estabeleceram as condições para o reconhecimento e execução de decisões, deverão ser respeitadas tais condições, mas sem prejuízo da possibilidade de, em qualquer caso, ser aplicado o regime constante da Convenção de Bruxelas quanto a semelhantes reconhecimento e execução - cfr. o seu art. 57º, nº 2, al. b), do qual não diverge o teor do correspondente art. 71º do Regulamento acima referido.
Ou seja, ambos os regimes poderão ser aplicados em recíproca alternativa - cfr. Miguel Teixeira de Sousa e Dario Moura Vicente, obra citada, pgs. 58 e 192 -, o que significa que a opção feita pela agravada no sentido da aplicação da Convenção de Bruxelas foi bem fundada.
Deste modo, conclui-se que o direito processual civil português não tem aqui aplicação por remissão feita por aquela Convenção da Haia, nem será também aplicável directamente, já que tal é excluído pela sua incompatibilidade face ao regime estatuído na Convenção de Bruxelas.
Irreleva, portanto, a possibilidade, que à luz dos arts. 1094º e segs. do CPC o ora agravante teria, de se opor à revisão invocando fraude à lei ou o tratamento mais favorável que lhe teria sido dispensado se as decisões a executar houvessem sido proferidas em tribunais portugueses.
Improcedendo assim as conclusões formuladas pelo agravante, nega-se provimento ao agravo.
Custas pelo agravante.
Lisboa, 30 de Abril de 2002
Ribeiro Coelho
Garcia Marques
Ferreira Ramos