Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
041302
Nº Convencional: JSTJ00013086
Relator: VAZ DE SEQUEIRA
Descritores: EXTINÇÃO DO PROCEDIMENTO CRIMINAL
MORTE DO AGENTE
Nº do Documento: SJ199111280413023
Data do Acordão: 11/28/1991
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: T J FARO
Processo no Tribunal Recurso: 504/90
Data: 05/15/1990
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REC PENAL.
Decisão: JULGADA EXTINTA A RESPONSABILIDADE CRIMINAL.
Área Temática: DIR CRIM - TEORIA GERAL.
Legislação Nacional: CP82 ARTIGO 125.
Sumário : Só as pessoas singulares são susceptíveis de responsabilidade criminal - artigo 125 do Código Penal - pelo que, tendo um dos arguidos falecido, fica extinto o procedimento criminal contra esse arguido.
Decisão Texto Integral: Acordam na Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça:

Por acórdão do Tribunal Colectivo de Faro, de 15 de Maio de 1990, foram os arguidos:
1 - A, nascido aos 8 de Fevereiro de 1956, casado, gestor de empresas, e residente em Braga.
2 - B, nascido a 4 de Agosto de 1957, divorciado, agente imobiliário, residente em Braga, submetidos a julgamento, sob acusação do Ministério Público, e condenados, respectivamente, na pena única - feito o cumulo das penas parcelares - de quarenta dias de prisão e de noventa dias de multa à taxa diária de dois mil escudos, esta, em alternativa, com sessenta dias de prisão e, o segundo arguido, na pena única - após cumulo operado - de quarenta dias de prisão e de cento e vinte dias de multa à taxa diária de três mil escudos, esta em alternativa, com oitenta dias de prisão.
O primeiro arguido, segundo o acórdão, foi autor material de um crime previsto e punível pelo artigo 156 n. 1 e de outro pelo artigo 177 n. 1, ambos do Código Penal.
O segundo arguido, segundo o mesmo aresto, foi co-autor material de um crime previsto e punível pelo artigo 156 n. 1 e de outro pelo artigo 177 n. 1 e autor material de um crime previsto e punível pelo artigo 142 n. 1, todos do Código Penal.
Inconformado com a decisão, o representante do Ministério Público interpôs recurso para este Supremo Tribunal.
Produziu doutas motivações a que os arguidos responderam, pela forma constante dos autos.
Neste Supremo Tribunal de Justiça o Excelentissimo Procurador Geral Adjunto teve visto dos autos.
Corridos que foram os vistos legais, teve lugar o julgamento com observância de todas as formalidades legais.
Cumpre pois apreciar, analisar e decidir:
O ponto fulcral do recurso reside na qualificação diversa que o Colectivo deu à factualidade provada que no entender do recorrente mostraria estar-se face a um crime de extorsão, na forma tentada, e não ao ilícito de coacção que o Tribunal deu como verificado.
Analisemos a matéria de facto dada como provada:
Em Braga, no dia 27 de Junho de 1989, os arguidos na companhia de outros dois indivíduos, dirigiram-se para o Algarve transportando-se no veículo de matrícula RO, de marca BMW, modelo 733, de cor verde, pertença do arguido B.
O arguido A pretendia obter o pagamento, junto de C, de comissões, decorrentes da actividade de mediação levada a cabo por Sul & Minho Limitada de que é sócio gerente.
Chegados a Faro da parte da manhã do dia 27 de Junho de 1989, os arguidos seguem então, no mesmo veículo, para Montegordo onde, segundo convicção do arguido A, C tinha escritório.
Como este não se encontrava ali, dirigiram-se para Quarteira, porquanto era do seu conhecimento que o C ali residia.
Nessa localidade, identificaram o veículo de C e, estacionando a viatura em que se transportavam, junto daquele, pernoitaram no interior daquela, afim de com o C contactarem.
Já na manhã do dia 28 de Julho de 1989 e porque quando os arguidos acordaram já o veículo de C ali se não encontrava, aqueles dirigiram-se novamente ao escritório de Montegordo.
Em Montegordo conseguiram contactar um filho de C, D, que se encontrava na esplanada de uma pastelaria naquela localidade.
Aí o arguido A, após entabular conversa com D, perguntou-lhe onde podia encontrar o seu pai.
D recusou-se a fornecer a informação e recolheu ao interior da pastelaria, no que foi seguido pelo arguido B, que insistiu com aquele para que lhe respondesse.
O arguido B desferiu então uma estalada no rosto de D que não necessitou de tratamento médico.
De seguida os arguidos dirigiram-se a Faro e, posterioremente, para Quarteira onde chegaram cerca das 12 horas.
Em Quarteira aguardaram pelo C.
Cerca das 20 horas o C chegou a casa, transportando-se de carro juntamente com a sua companheira, E.
Como o C abriu a porta da garagem colectiva do edifício para aí aparcar o seu veículo e ali se introduziu com ele, os arguidos A e B seguiram no seu encalce para o interior da garagem.
No exterior permaneceram os dois acompanhantes dos arguidos e E que saira do veículo antes deste ter entrado na garagem, e dirigiram-se posteriormente para o interior do mesmo, após o fecho da porta da garagem.
O arguido Almerindo A dirigiu-se então a C, a quem exigiu o pagamento da pretensa dívida, no montante de 13500000 escudos.
Como C dissesse não possuir ali, e naquele momento, cheques, e após envolvimento físico deste com os arguidos, E sugeriu que fossem ao escritório daquele em Faro, onde C afirmou ter cheques.
Para tanto, C entrou para a parte central do banco traseiro do seu próprio veículo, tendo-se sentado o A a seu lado, um dos outros dois indivíduos do outro lado do C, o segundo ao volante do veículo e a Julieta no lugar ao lado do condutor.
Por sua vez, o arguido B dirigiu-se ao seu veículo que ficara estacionado no exterior do edifício.
Ambos os veículos se dirigiram então para Faro.
Chegados ao escritório de C nesta cidade, o arguido B, o condutor do veículo e E entraram no edifício, cuja porta esta abriu.
De seguida entraram o arguido A e o outro acompanhante e C.
No escritório e na presença de todos os que aí haviam penetrado C preencheu o documento de folha 28, epigrafado de declaração de dívida, cujos dizeres foram ditados pelo arguido A.
Igualmente, a mando do arguido A preencheu C três cheques, no montante de Escudos 3500000, cada, constante de folha 25, que assinou, bem como apos a sua assinatura no verso de quatro cheques, de que era portador, todos entregues, bem como um outro de Escudos 500000, ao arguido A (constantes de folhas 24 a 26).
De seguida os arguidos e os seus acompanhantes C e E sairam do escritório e dirigiram-se, os primeiros e os segundos para o veículo do arguido B, tendo todos abandonado o local.
Os arguidos, que agiram livre, consciente e voluntariamente, introduziram-se na garagem contra a vontade de C, bem como constrangeram este a preencher e assinar os documentos supra referidos, o que quiseram, bem sabendo que a Lei lho vedava.
O arguido B quis ainda agredir D, bem sabendo que a Lei lho vedava.
Esta a matéria factual, ao que interessa de momento, provado.
Quid juris?
Dispõe o artigo 317 do Código Penal:
"1 - Quem com a intenção de conseguir para si ou para terceiros um enriquecimento ilegítimo, constranger outra pessoa, com violências ou ameaças, ou pondo-a na impossibilidade de resistir, a uma disposição patrimonial que acarrete, para ele ou para outrem, um prejuízo, será punido com a pena de prisão ..."
Está-se perante um crime contra o património em geral.
Embora haja uma grande afinidade entre o roubo e a extorsão, o certo é que a destrinça reside no seguinte: no roubo o agente subtrai, na extorsão é a própria vítima que coagida, se despoja em favor do agente.
Ou, como opina Nelson Hungria no Volume VII do seu Tratado, a propósito refere, é que no roubo o agente toma por si mesmo, enquanto na extorsão faz com que lhe seja entregue, ou se ponha à sua disposição, ou se renuncie a seu favor.
Como elementos de extorsão temos assim:
1) o emprego de violências ou ameaças ou a colocação de outra pessoa na impossibilidade de resistir.
2) constrangimento, daí resultante, a uma disposição patrimonial que acarrete prejuízo para alguém.
3) intenção de conseguir para si ou para terceiro um enriquecimento ilegítimo.
Vejamos se estes elementos se verificam ou não na hipótese concreta do caso que nos ocupa.
Temos que, da matéria factual provada constata-se que os arguidos A e B seguiram no encalce do C para o interior da garagem onde aparcara o seu veículo, tendo os dois acompanhantes se dirigido também para o interior da garagem, fechando a porta desta.
Dentro da garagem existe um envolvimento físico entre os arguidos e o C, no sentido deste satisfazer uma possivel dívida para com o arguido A.
Debaixo dessa violência com agressão - outra coisa não é o envolvimento físico - por sugestão da companheira do ofendido dirigem-se ao escritorio de Faro no veículo do próprio ofendido, mas este, ao contrário do que sucedia se não fossem a violência e o constrangimento, não conduz a viatura, indo antes sentado ao centro do banco de trás ladeado pelo arguido A e um outro companheiro.
E uma vez no escritório de Faro, só por virtude do constrangimento a que se viu submetido é que o ofendido C subscreve e escreve a declaração de dívida e assina cheques, tal como vem provado, sendo certo que os dizeres da dita declaração foram ditados pelo arguido A.
No condicionalismo circundante não podia o C resistir nem tomar outra atitude.
Acomodou-se perante a violência e o constrangimento a que foi submetido e desapossou-se - felizmente temporariamente, pois a Polícia, em momento ulterior apreendeu os documentos obtidos por esta forma - de milhares de contos, em seu próprio e manifesto prejuízo, como é bom de vêr.
Que os primeiros dois elementos se verificam é inquestionável.
E que dizer do terceiro elemento, ou seja, do enriquecimento ilegítimo?
É dito que o C estaria em dívida para com o arguido A de importâncias relativas a comissões devidas à Sul e Minho Limitada de que o arguido é gerente.
Damos de barato que assim é.
Mas mesmo assim não teria sido querido um enriquecimento ilegítimo, ou ilegal?
Como ensina Nelson Hungria, obra citada, o fim do agente deve ser uma "indevida vantagem económica" em seu benefício ou de terceiro. Indevida quer dizer contrária ao direito.
Ora se o arguido A era detentor de um crédito sobre o ofendido C, pela via legal devia procurar obter o necessário título para converter em legítimo o seu crédito.
A abstenção de acção judicial por parte do titular do direito, não legitimo o direito e as acções pessoais de violência o constrangimento passam a configurar nitidamente de um enriquecimento ilegítimo, por ilegal e não merecedor da tutela do direito.
Desta sorte, não hesitamos de qualquer jeito a entender que o terceiro elemento do ilícito - enriquecimento ilegítimo - também se verifica.
Agindo sob coacção a vítima não é mais que uma longa manus do extorsionário e assim não haverá até despropósito algum em se reconhecer o efeito imediato da coacção como momento consumativo.
Mas, in casu, não chegou a existir e advir prejuízo para o ofendido pela recuperação dos documentos extorquidos.
Tal circunstância nos coloca face à tentativa, também possivel neste crime, embora formal, pois não se perfaz único acto apresentando um iter a ser percorrido.
O que deriva, para o reconhecimento da tentativa, em qualquer caso, é a idoneidade do meio coactivo empregado e diz-se idoneo, a priori, o meio executivo da extorsão quando seja capaz de intimidar o homo medius, o homem comum (apud Nelson Hungria).
Daí que, tudo visto, os arguidos praticaram em co-autoria um crime do artigo 317 ns. 1 e 5, na forma tentada, com referência ao artigo 23 todos do Código Penal.
A recorrente opina que deveria ser decretado perdido a favor do Estado, o veículo propriedade do arguido B.
Não tem, porém, razão neste ponto.
A viatura do arguido B não foi instrumento scalevis, não tendo sido essencial para a prática do crime.
Basta pensar-se que o ofendido C não foi nele conduzido nem teve interferência no ilícito, salvo no trajecto de Braga ao Algarve, o que poderia ter sido feito num simples táxi.
E decerto só o trajecto realizado não levaria a apreensão e perda a favor do Estado do dito táxi.
Este entendimento flui naturalmente do dispositivo do artigo 107 do Código Penal.
No que toca ao pedido cível de folhas 402 e seguintes, o certo é que a materialidade factual articulada não se mostrou provada em julgamento, certo que era ao impetrante que cabia tal ónus.
Por outro lado, até em sede de danos não patrimoniais não se mostram articulados senão factos ligados às lesões que se não viram provadas.
Bem andou o Colectivo ao tal decidir como decidiu.
O que tudo visto, acentua-se:
- o grau elevado de ilicitude do 1 crime e moderado nos outros dois, em razão do modo de execução destes e suas consequências.
- O dolo intenso.
- A condição socio-cultural e económica dos arguidos.
- A confissão parcial.
- O arguido A é "primário".
- O arguido B já com relativo passado criminal e o mais que na decisão recorrida se diz, a proposito, e aqui se aceita, sem reservas.
Termos em que se acorda em conceder parcial provimento ao recurso, e, em consequência, condenar-se:
1 - O arguido A, - como co-autor material de um crime do artigo 317 n. 1 alínea a) e n. 5, com referência ao artigo 23, na pena de dois anos de prisão, - como co-autor material de um crime do artigo 177 n. 1, ambos do Código Penal, na pena de noventa dias de multa à razão de 2000 escudos dia, em alternativa com sessenta dias de prisão,
- a final, na pena única de dois anos de prisão e noventa dias de multa à razão de 2000 escudos dia, em alternativa com sessenta dias de prisão.
Após o julgamento realizado na primeira instância, mas antes do dia designado para o do presente recurso, faleceu o arguido B.
Foi assim , em conferência, julgado extinto o procedimento criminal contra este, já falecido, arguido
- confere folha 557.
Importava porém referir-se-lhe para se descrever a factualidade material ocorrida e não tendo em vista, como é obvio, a sua condenação ou não, certo que mors omnis solvit.
Está assim extinto o procedimento criminal contra este arguido, como aliás, já foi decidido.
Relega-se para a primeira instância a aplicação da Lei 23/91 de 4 de Julho.
Em tudo o mais se mantem a decisão da primeira instância.
Sem custas.
Lisboa, 20 de Fevereiro de 1992.
Vaz de Sequeira,
Lopes de Melo,
Cerqueira Vahia,
Pereira dos Santos.
Decisão impugnada:
I - Acórdão de 90.05.15 do Tribunal Colectivo de Faro.