Acordam os Juízes que integram a Secção de Contencioso do Supremo Tribunal de Justiça
1- AA, Juiz ...., notificado da deliberação do Conselho Plenário do Conselho Superior da Magistratura (CSM), de 11 de Novembro de 2014, que decidiu aplicar-lhe a pena disciplinar de advertência registada, veio dela interpor recurso contencioso com os seguintes fundamentos:
- Pela deliberação impugnada foi decidido aplicar ao Recorrente a pena de advertência registada, pela violação dos deveres de obediência e correcção.
- A decisão consubstanciou-se nos factos já constantes da Acusação.
- O Recorrente, embora a respeite, discorda da apreciação feita pela douta deliberação impugnada, na medida em que considera não se verificar o tipo objectivo do ilícito, designadamente por se tratar de questão jurisdicional da competência reservada aos tribunais.
2 - Para tanto e em síntese alegou que
- Vem o Recorrente condenado por “violação (…) dos deveres de obediência e correcção, p. e p. pelos artigos 82º, 85º, nº 1 a) e nº 4, parte final e 91º do EMJ, artigos 3º, nº 2, alíneas f) e h) e nºs 8 e 10º do EDTEFP, aprovado pela Lei 58/2008 de 09/09”.
- Considera, assim, a Acusação que o Recorrente violou, ao actuar como actuou, o princípio da independência dos juízes (artigo 4º do Estatuto dos Magistrados Judiciais – EMJ), o dever de prossecução do interesse público [artigo 3º, nº 2, alínea a), do Estatuto Disciplinar dos Trabalhadores que exercem Funções Públicas - EDTFP], o dever de obediência [artigo 3º, nº 2, alínea f), do EDTFP] e o dever de correcção [artigo 3º, nº 2, alínea h), do EDTFP].
- Salvo o devido respeito, porém, nenhuma das apontadas violações se verifica.
- Quanto à alegada violação do princípio da independência dos juízes, o Recorrente agiu, precisamente, sob a sua égide, de acordo com a interpretação que fez das normas e princípios mencionados no seu despacho proferido no âmbito do processo nº 384/12.8PATVD, transcrito no ponto 16 da douta Acusação.
- Na verdade, tendo em conta que o artigo 4º do EMJ define o princípio da independência como o princípio segundo o qual os magistrados julgam “apenas segundo a Constituição e a lei, não estando sujeitos a ordens ou instruções, salvo o dever de acatamento pelos tribunais inferiores das decisões proferidas, em via de recurso pelos tribunais superiores”, não poderá considerar-se que o (suposto) incumprimento da douta deliberação do Conselho Superior da Magistratura (CSM) de 23.04.2012 violou esse dever.
- Por outro lado, é este mesmo princípio que não admite que os magistrados estejam vinculados pelo dever de obediência, previsto no artigo 3º, nº 2, alínea f), do EDTFP, para os trabalhadores que exercem funções públicas.
- Nesse sentido, diz o douto Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 21.12.2012, proferido no âmbito do processo nº 75/12.0YFLSB, disponível em www.dgsi.pt, que “como reverso da independência dos juízes, não há relação de hierarquia por parte do CSM em relação à actividade jurisdicional dos juízes, não estando estes subordinados ao poder de direcção do CSM em matéria jurisdicional. Enquanto os órgãos da administração pública têm uma supremacia hierárquica em relação aos seus agentes e funcionários, que se manifesta num poder de direcção da actividade e numa competência disciplinar (e no correspondente dever de obediência dos agentes administrativos), o CSM tem apenas competência disciplinar, mas não dirige a função jurisdicional exercida pelos juízes. Estes não estão subordinados a ordens ou instruções do CSM no exercício da actividade de julgar”.
- Ora, no caso, como se disse, tratando-se de um despacho proferido no exercício da actividade jurisdicional do Recorrente, não se vislumbra de que forma estaria o Recorrente vinculado ao cumprimento da douta deliberação do CSM já referida.
- Na verdade, o que aqui ora releva é que a apreciação em causa da douta deliberação impugnada consubstancia uma verdadeira apreciação da interpretação da lei feita pelo Recorrente.
- Porém, repete-se, o controlo da sua actuação nesta matéria reveste natureza jurisdicional, não sindicável pelo CSM, estando por essa razão subtraída às atribuições estritamente administrativas desta entidade.
- Na verdade, refere o artigo 203º da Constituição da República Portuguesa (CRP) que “Os tribunais são independentes e apenas estão sujeitos à lei”.
- Por sua vez, tal preceito constitucional é concretizado pelo artigo 4º do EMJ que estatui “[o]s magistrados judiciais julgam apenas segundo a Constituição e a lei e não estão sujeitos a ordens ou instruções, salvo o dever de acatamento pelos tribunais inferiores das decisões proferidas, em via de recurso, pelos tribunais superiores.”
- Refere ainda o artigo 5º do já mencionado Estatuto, sob a epígrafe “Irresponsabilidade”, que “[o]s magistrados judiciais não podem ser responsabilizados pelas suas decisões”, sendo que apenas nos casos especialmente previstos na lei podem ser sujeitos a responsabilidade civil, criminal e disciplinar.
- Ou seja, as decisões dos Magistrados Judiciais, nomeadamente a aplicação e interpretação do direito, apenas estão sujeitas ao escrutínio dos tribunais superiores, estando, por isso, afastadas da análise disciplinar de qualquer superior hierárquico.
- Assim, no caso em apreço, estamos perante uma apreciação, em sede disciplinar, da interpretação do direito feita pelo Recorrente, o que é inadmissível, salvo o devido respeito, face aos preceitos constitucionais e legais já citados.
- Carece, por isso, o CSM de legitimidade para, sob o prisma da apreciação da responsabilidade disciplinar, conhecer do mérito daqueles despachos.
- Assim sendo, a apreciação dos factos relatados não se insere na competência do CSM, que, nos termos do artigo 217º da CRP, inclui a nomeação, a colocação, a transferência e a promoção dos juízes dos tribunais judiciais e o exercício da acção disciplinar, o que determina, no caso em apreço a nulidade da douta deliberação ora impugnada, que desde já se requer seja declarada.
- Sendo, por essa razão, inconstitucional a interpretação contrária a este entendimento, violadora daquele artigo 217º da CRP, salvo o devido respeito, feita pela douta deliberação impugnada.
- No mesmo sentido, aliás, foi o relatório final do inquérito, que propôs o arquivamento dos presentes autos, no âmbito do qual se referiu que “concorde-se ou não com os fundamentos que invoca para sustentar a inconstitucionalidade, por se tratar de matéria de natureza jurisdicional, não cabe no âmbito dos presentes autos de inquérito, apreciar o mérito da referida decisão. Trata-se de despachos judiciais, proferidos no âmbito de processos pendentes dos quais, por ter recusado a aplicação das normas constantes da aludida Resolução nº 8/2011, cabia recurso, obrigatório para o Ministério Público, para o Tribunal Constitucional (artigo 280º, nº 1, alínea a), da C.R.P.)” – cfr. fls. 329 e 330 dos autos.
- Ainda que assim não se entenda, isto é, ainda que se entenda que o ora Recorrente se encontrava vinculado ao cumprimento da douta deliberação do CSM de 23.04.2012, hipótese que apenas se coloca para efeitos meramente argumentativos e sem conceder, sempre se dirá que, efectivamente, o Recorrente não colocou em causa o cumprimento da referida douta deliberação.
- Na verdade, tendo em conta que a referida douta deliberação, como se refere no ponto 21 da douta Acusação, deliberou que “(…) os Exm.ºs Juízes não podem indicar aos intervenientes processuais quais as normas ortográficas a aplicar” e tendo em conta que a Direcção Geral dos Serviços Prisionais (DGSP), que elabora os relatórios sociais, a solicitação do magistrado titular do processo, não se enquadra nesta categoria, não existiu, no caso, violação da mesma. Neste sentido, foi, igualmente, o relatório final do inquérito que considerou que “[a] citada deliberação do C.S.M. ainda que possa ter pretendido ter um alcance mais alargado, refere-se apenas aos “intervenientes processuais”. Deixa de fora, ainda que possa ter pretendido ter um alcance mais abrangente, as entidades que colaboram com o Tribunal, designadamente a DGRSP. Não pode, pois, concluir-se que o Exmo. Juiz tenha violado o dever de obediência à referida deliberação do C.S.M.” – cfr. fls. 329 dos autos.
- Vem o Relatório Final, a este propósito, e justificando a alteração da posição tomada em sede de Relatório de inquérito, considerar que «reanalisando o teor da deliberação do Plenário do C.S.M. de 23-04-2012, tendo em conta não só o seu teor, mas também o contexto e os motivos que a determinaram o seu sentido e alcance é mais abrangente do que aquele que numa interpretação que admito ter sido excessivamente restritiva da expressão “intervenientes processuais” constante da segunda parte da dita deliberação, na altura lhe atribui. Revendo, nessa parte, a posição inicial temos como mais adequada e plausível a interpretação de que a dita deliberação, além de ter clarificado que não podia indicar ou dar instruções aos Srs. Juízes sobre a observância ou não do Acordo Ortográfico, veio esclarecer que os Srs. Juízes também não podiam indicar ou impor a quem tenha intervenção nos processos que tramitam, independentemente da qualidade em que o façam, quais as normas ortográficas a aplicar”.
- Ora, não só tal interpretação não tem correspondência com a letra do despacho (que decidiu que “…os Exmo.ºs Juízes não podem indicar aos intervenientes processuais quais as normas ortográficas a aplicar”) como não é expectável que o CSM, na qualidade de órgão de natureza jurisdicional, composto por Juízes e personalidades do mundo jurídico, façam uso de uma determinada expressão, sem que a mesma se reporte ao seu conceito jurídico, mas antes a um uso mais abrangente.
- Quanto à alegada violação do dever de prossecução do interesse público, previsto no artigo 3º, nº 2, alínea a), do EDTFP, não se vislumbra – sequer vem concretizado no douto Relatório Final, que se impunha nos termos e para os efeitos do artigo 117º, nº 1, do EMJ – como é que o mesmo possa ter sido posto em causa.
- Sendo certo que o Recorrente sempre se pautou pelo seu cumprimento e foi precisamente este interesse público que o moveu ao proferir os despachos que proferiu, com vista à defesa da legalidade, da Constituição e do património da Língua Portuguesa.
- Finalmente, quanto à alegada violação do dever de correcção, previsto no artigo 3º, nº 2, alínea h), do EDTFP, e que “consiste em tratar com respeito os utentes dos órgãos ou serviços e os restantes trabalhadores e superiores hierárquicos”, de acordo com o nº 10 do referido artigo 3º, apesar de se individualizar o segmento que se entende ter ferido tal dever, salvo o devido respeito, não se considera que o mesmo possa ter sido posto em causa, ainda mais quando, como já referido, se trataram de despachos proferidos no âmbito jurisdicional.
- Nesse sentido, e dada a sua relevância, há que ter em conta a argumentação do voto de vencida da Senhora Conselheira, a Senhora Dra. BB, no âmbito do qual se fez a seguinte declaração de voto:
“Salvaguardando o elevadíssimo respeito devido pela tese que fez vencimento, considero que os despachos que estão na origem do sancionamento disciplinar do Senhor Juiz, relativos a processos de presos, correspondem a despachos de prossecução processual. Reconheço que tais despachos, no que toca à rejeição do uso de acordo ortográfico pelos órgãos da administração, recorrem a uma linguagem indesejável, mas envolvem uma concreta interpretação normativa que lhes confere um conteúdo jurisdicional. Nos dois processos em causa, o Senhor Juiz solicitou à DGRS a elaboração de relatórios sociais, com a menção de que os mesmos deveriam ser elaborados em português, sem erros ortográficos, sob pena de não serem pagos, chegando, num deles, a devolver àquela entidade o relatório social enviado para cumprimento do despacho proferido.
Entendo que tais despachos têm um conteúdo jurisdicional, por serem praticados pelo tribunal para decidir questões jurídica relativas a casos concretos de acordo com as normas de direito pré-existentes, com o fim específico da realização do direito e da justiça, através de um processo intelectual subordinado àquelas normas (acórdão do Tribunal Constitucional nº 171/1992, de 6 de Maio de 1992, in www.tribunalconstitucional.pt). Nessa medida, não encontrando neles uma clara violação dos deveres de correcção e de desobediência, atenta a sua natureza materialmente jurisdicional, voto o arquivamento dos autos.”.
- Adiantar-se-á, no entanto, que, no entendimento do Recorrente, o despacho em causa, directo e conciso, como é aliás seu apanágio, não foi proferido com o intuito de faltar ao respeito aos seus destinatários ou a quem quer que seja, mas apenas de expressar, de forma clara, o seu entendimento das normas e princípios constitucionais no que respeita ao uso do acordo ortográfico.
- Em suma, face ao exposto, não se encontra verificado o tipo objectivo de ilícito de qualquer uma das infracções disciplinares de que o Recorrente vem condenado, deve, em consequência, e em nosso entendimento, a presente deliberação impugnada ser anulada para os devidos e legais efeitos.
3- Cumprido o art. 174º do EMJ, na resposta o CSM, pugnou pela improcedência do recurso interposto, nos seguintes termos em síntese:
- Salvo o devido respeito, o Recorrente, com estes argumentos, mais não pretende que obnubilar a sua responsabilidade disciplinar.
- Assim, quanto ao 1.° argumento, começamos por notar que a questão colocada na apontada Deliberação do Plenário do Conselho Superior da Magistratura de 23 de Abril de 2012 não era a de saber a língua a empregar nos actos processuais.
- Do que se tratava era saber se nos tribunais devia ser exigido que os actos processuais, necessariamente praticados na língua portuguesa, por força da lei, estivessem redigidos segundo as regras ortográficas anteriores ao denominado Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa ou segundo as decorrentes de tal instrumento.
- Partia-se, portanto, do insofismável pressuposto de que os textos não deixavam de estar na língua portuguesa por, na representação gráfica das palavras que os compunham, terem sido observadas umas ou outras das referidas regras, pelo que havia apenas que saber quais as regras a observar.
- Afinal, a língua portuguesa é um património imaterial partilhado por vários povos espalhados pelo Mundo - existe inclusive a Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (CPLP), composta por nove países independentes (Angola, Brasil, Cabo Verde, Timor-Leste, Guiné-Bissau, Guiné Equatorial, Moçambique, Portugal e São Tomé e Príncipe) que têm o português como língua oficial.
- Delimitada a questão objecto da sobredita Deliberação, temos como inequívoco que a mesma não respeitava a um qualquer conflito de interesses que devesse ser resolvido de acordo com normas pré-determinadas.
- Não respeitava sequer à tramitação de processos judiciais.
-Como tal, não se inseria naquilo que é o núcleo da função jurisdicional - o dizer o direito do caso concreto, administrando a justiça em nome do Povo (cf. art. 202º da Constituição da República).
- Situava-se a montante dele, num aspecto organizativo e gestionário dos Tribunais, em relação ao qual o Conselho Superior da Magistratura tem, por força da Constituição da República e da Lei, um poder de superintendência que lhe permite definir, através de deliberação do seu Plenário, a linha de actuação a seguir.
- A independência dos juízes, designadamente na sua vertente interna, não é molestada pelo facto do nosso sistema constitucional conferir ao Conselho Superior da Magistratura, como órgão compósito de salvaguarda institucional dos juízes e da sua independência (art. 217), o papel maior na gestão dos Tribunais.
- Em verdade, sem prejuízo da subsistência da garantia de independência, os juízes estão submetidos a um dever de obediência institucional no que respeita ao exercício da competência constitucionalmente deferida ao CSM, a significar que estão vinculados às regras gestionárias emitidas pelo CSM.
- O dever de obediência, elencado entre os deveres gerais, consiste em acatar e cumprir ordens dos superiores hierárquicos, dadas em objecto de serviço e com a forma legal (art. 3.°/2, f), e 8), do EDTEFP, vigente ao tempo dos factos).
- Transposto este dever para os magistrados judiciais, temos que o CSM não integra o conceito estrito de superior hierárquico mas, sendo o órgão superior de gestão e disciplina da magistratura judicial, está legitimado a dar orientações genéricas em termos de gestão e organização do serviço dos tribunais - e apenas nestas -, as quais têm de ser, muito naturalmente, acatadas pelo juízes.
- Neste sentido, a inobservância da referida Deliberação, tomada no exercício das competências de gestão do CSM, configura uma violação do dever de obediência, porque, afinal, sem prejuízo da manutenção da garantia de independência, os juízes estão submetidos a um dever de obediência institucional em tudo o que se prende com o exercício das competências constitucionalmente deferidas ao CSM.
- Em função da matéria de facto adquirida, podemos afirmar que, nos aludidos despachos de 5 de Março e de 30 de Setembro de 2013, o Recorrente indicou à DGRS as regras ortográficas que deviam ser seguidas por esta entidade na elaboração dos relatórios sociais destinados aos mencionados processos comuns números 399/l1.3JDLSB e 168/05.0GDTVD.
- Na tese recursiva, essa tomada de posição não configura desobediência à aludida Deliberação, que era do conhecimento do Recorrente, uma vez que, afirma, a DGRS não se enquadra na categoria de interveniente processual.
- Infelizmente, o Recorrente não diz o que entende por interveniente processual, o que nos impede de compreender o substrato da afirmação que faz.
- Ora, desde logo notamos que a Deliberação utilizou o conceito num sentido amplo e não num sentido técnico, querendo com isso abranger não só os sujeitos processuais -ou partes, na terminologia processual civil -, como também todos os que participam a qualquer título no processo.
- Entre estes incluem-se, por exemplo, os peritos e as testemunhas.
- Incluem-se também as entidades que colaboram com os tribunais, como é o caso da DGRS, entidade à qual cabe, nos termos da lei, a elaboração dos relatórios sociais relativos aos arguidos em processo penal.
- É com a elaboração desses relatórios e sua subsequente junção aos processos para que, com base neles, os magistrados judiciais possam tomar conhecimento do percurso de vida dos arguidos e das respectivas condições sociais e económicas, que a. DGRS participa (rectius, intervém) na administração da justiça, assumindo assim a qualidade de interveniente processual.
- Acaso se entendesse que a Deliberação empregou o conceito de intervenientes processuais num sentido técnico, então ter-se-ia de considerar, numa interpretação estritamente literal, que a mesma excluiu do seu âmbito de aplicação os sujeitos processuais - que são algo mais que um mero interveniente no processo - e não os ... intervenientes processuais.
- Assim sendo, não se compreendem as dúvidas do Recorrente quanto à qualificação da DGRS como interveniente processual .
- Se dúvidas de interpretação restassem ao Recorrente, havia remédio para elas: um pedido de esclarecimento ao Conselho Superior da Magistratura.
- Passando agora ao dever de correcção, recordamos que a tese do Recorrente, aqui estribada na declaração de voto da Exma. Sra. Vogal do Conselho Superior da Magistratura Juíza Desembargadora BB, é no sentido de que o despacho de 30 de Setembro de 2013 configura um despacho de prossecução processual e, como tal, foi proferido no exercício do poder jurisdicional, o que o coloca a salvo de qualquer censura disciplinar por infracção ao dever de correcção.
- Acrescenta o Recorrente que o despacho não foi proferido com o intuito de faltar ao respeito à respectiva destinatária, mas de expressar o entendimento do Recorrente quanto às normas e princípios constitucionais no que respeita ao uso do Acordo Ortográfico.
- Em primeiro lugar cumpre dizer que, mesmo a admitir-se que o despacho em causa configura um acto jurisdicional - o que já vimos não é correcto -, aquilo que está em causa na parte relativa à violação do dever de correcção não é o conteúdo da decisão do Recorrente nem a fundamentação dela.
- O que está em causa nesta parte são os termos empregues pelo Recorrente nesse despacho.
- Não se discute aqui se o Recorrente tinha ou não razão em indeferir o referido pedido, mas o tratamento que deu a quem lhe pediu a aclaração de um anterior despacho.
- E isto não está coberto pelo manto da jurisdicionalidade.
- Caso contrário, teríamos de admitir que o juiz que aproveitasse as suas sentenças - que são o produto mais relevante do poder judicial - para injuriar as partes ou os seus mandatários não poderia nunca ser sancionado pelo Conselho Superior da Magistratura por infringir o dever de correcção, pois tal conflituaria com a independência do poder judicial.
- Os juízes estão sujeitos, para além dos deveres especialmente previstos no respectivo Estatuto, também aos deveres gerais que impendem sobre a generalidade dos funcionários e agentes do Estado (arts. 32 e 131 do EMJ), entre os quais se encontra o dever de correcção, o qual consiste, na definição legal, “em tratar com respeito os utentes dos órgãos ou serviços e os restantes trabalhadores e superiores hierárquicos” (art. 3.º,1, h), e 10 do EDTEFP).
- Seguindo a lição de Maria Fernanda Neves (O Direito Disciplinar da Função Pública, II, Lisboa: FDUL, 2007, ps. 215 e ss.), diremos que o dever de correcção é o dever do trabalhador se relacionar, no exercício das suas funções, com os titulares dos órgãos que corporizam o empregador, outros trabalhadores e terceiros com urbanidade e respeito.
- Não se trata da mera observância das regras da boa educação próprias do relacionamento social.
- Tratando-se de um dever funcional é na perspectiva funcional que tem que ser analisado.
- Concretamente, reclama no exercício funcional: i) trato correcto, isto é, cordialidade, atenção e objectividade no atendimento e prestação de serviços aos cidadãos, utentes ou destinatários da actividade administrativa; ii) objectividade e colaboração entre trabalhadores com um mesmo empregador e com um mesmo enquadramento finalístico-institucional; iii) bem assim essa mesma objectividade, colaboração e deferência adequada às relações hierárquicas ou não paritárias.
- O dever de correcção postula também a adopção de "comportamento conforme à dignidade das próprias funções" ou actividade funcional do trabalhador e o seu posicionamento na organização.
- Ora, no caso vertente, resultou provado que o Recorrente não só imputou à técnica da DGRS o “desconhecimento das leis que nos regem”, como também uma “incapacidade de leitura”.
- Com isto assumiu uma posição de sobranceria e menorizou a referida coordenadora.
- E tudo porque ela se atreveu a pedir-lhe que esclarecesse o conteúdo do seu anterior despacho ...
- Para indeferir o pedido de aclaração e vincar o seu entendimento, “de forma clara”, o Recorrente não necessitava de se dirigir naqueles termos à coordenadora da DGRS. - Actuando com urbanidade e com cortesia, poderia (melhor, deveria) tê-lo feito dizendo que o despacho cuja aclaração fora requerida era perfeitamente inteligível, justificando de forma directa e concisa.
- Não necessitava de imputar as dúvidas que lhe foram colocadas pela destinatária a uma suposta ignorância ou incapacidade de compreensão da parte dela.
- A finalizar, uma nota para referimos que a alegação do Recorrente a propósito da violação do dever de prossecução do interesse público é inócua.
- Como se pode concluir pela leitura da deliberação impugnada, o recorrente foi sancionado nos termos da proposta apresentada no relatório final do Exmo. Sr Inspector Judicial que interveio como instrutor.
- Nessa proposta, concluiu-se que os factos têm a relevância disciplinar que lhes foi atribuída na respectiva parte IV., na qual se afirmou que com eles o Recorrente violou os deveres de obediência e correcção.
- Não se concluiu ter ele incorrido também em infracção ao dever de prossecução do interesse público.
- Concluímos que a deliberação impugnada não violou qualquer um dos preceitos legais referidos pelo Recorrente.
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4- Cumprido o art. 176º do EMJ nas alegações,
-o Recorrente pugna pela procedência do recurso, e a
-entidade Recorrida, pela respectiva improcedência, o mesmo acontecendo com o Ministério Público, que conclui pela manutenção da deliberação posta em crise.
A Digna Magistrada do Ministério Público, junto deste Tribunal, emitiu parecer no sentido de ser mantida a deliberação recorrida e, consequentemente, improcedente o recurso.
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5- Fundamentação de facto:
- Por deliberação do CSM datada de 23 de Abril de 2012 foi determinado que «não podem os Exmos. Srs. Juízes indicar aos intervenientes processuais quais as normas ortográficas a aplicar».
- No processo comum (colectivo) n.º 399/11.3JDLSB foi proferido pelo Recorrente despacho a sugerir data para a realização de audiência de cúmulo jurídico e ainda que fosse pedido relatório social actualizado do arguido à DGRSP.
- Junto o referido relatório aos autos, o Recorrente proferiu despacho datado de 30-09-2013, com cópia junta a folhas 189 a 195 dos autos de inquérito nos termos seguintes:
“ Nos presentes autos foi junto pela DGRSP um relatório social para cúmulo jurídico eivado de erros ortográficos.
A Língua a utilizar nos actos a praticar em Portugal é o Português e não uma mescla resultante de uma resolução denominada acordo ortográfico”.
- Defendendo e fundamentando, nos termos constantes do referido despacho de 30-09-2013, que várias normas do Acordo Ortográfico enfermam de inconstitucionalidade material e que as normas constantes da Resolução do Conselho de Ministros n.º 8/2011, de 25 de Janeiro, são orgânica e materialmente inconstitucionais, concluiu nos seguintes termos:
“Padecendo várias normas do AO de inconstitucionalidade material, tal como as normas da Resolução do Conselho de Ministros n.º 8/2011, para além de não existir obrigação de obediência, existe, ao invés, o dever de desobediência por parte das entidades públicas (órgãos políticos e jurisdicionais), residindo no ordenamento jurídico português duas regras implícitas que conferem a todas as autoridades judiciais e administrativas:
i) O poder de declarar a nulidade de actos inconstitucionais (sob pena de incorrerem em responsabilidade civil),
ii) A consequente competência para decidirem "contra teqem".
Neste termos e tendo o exposto presente:
a) Devolva o relatório remetido;
b) Notifique a DGRSP para apresentar até ao dia de amanhã um relatório sem erros ortográficos;
c) Informe a Sr. a Escrivã que não deverá proceder ao pagamento do relatório até o mesmo ser apresentado e escrito em Português”.
- Por despacho datado de 02-09-2013, proferido no processo comum (colectivo) n.º 399/11.3JDLSB, do 10 Juízo do Tribunal Judicial de Torres Vedras, indicou o dia 01.10.2013 A DGRS apresentou, através de oficio datado de 1-10-2013- relatório, nos termos determinados no despacho de 30-09-2013.
- Na sessão da audiência realizada a 15.102013, após alegações, foi designado o dia 22.10.2013, para leitura do acórdão, data em que foi lido e depositado.
- No processo comum (singular) n.º 168/05.0GDTVD, do 2° Juízo do Tribunal Judicial de Torres Vedras, por despacho de 5-03-2013, o Recorrente designou audiência de cúmulo para o dia 16.04.2013.
- Além da designação de data para a audiência consta ainda do referido despacho:
“Solicite à DGRS a realização de relatório social. Uma vez que este é pago faça expressa menção de que o mesmo deverá ser escrito em Português, sem erros ortográficos, e que este Tribunal não procederá ao pagamento da peça caso a mesma não se mostre em conformidade com a Língua do país”.
- Através de ofício datado de 14.03.2013, subscrito pela Coordenadora da equipa da DGRS “...”, com cópia junta a fls. 230 dos presentes autos de inquérito, foi solicitada a aclaração do aludido despacho de 05-03-2013, alegando dificuldade em compreender o sentido e alcance do mesmo.
- Aberta conclusão após a junção do referido ofício, em 22-03-2013 o Recorrente proferiu despacho com o seguinte teor:
“Não compete aos Tribunais estar a ensinar Leis aos serviços do Estado. É de presumir que a DGRS tenha um serviço jurídico e se não o tiver o Ministério da Justiça tem-no de certeza.
Contudo, o pedido de aclaração deriva mais do que do desconhecimento das Leis que nos regem da incapacidade de leitura de quem subscreve o pedido de aclaração. Se se tivesse lido o que se deixou escrito, facilmente se teria chegado à conclusão que o que se quer é que o relatório a produzir seja escrito em Português. Não se menciona nada do que foi feito pela DGRS.
O documento ser escrito em Português é uma exigência legal nos termos do artº 139º nº1 do CPC.
A Língua Portuguesa não é a resultante de um tal “acordo ortográfico" que o Governo quis impor aos seus serviços. Efectivamente, o acordo ortográfico da Língua Portuguesa foi aprovado pela Resolução da Assembleia da Republica nº 26/91 e ratificado pelo Decreto do Presidente da República nº43/91, ambos de 23 de Agosto. Considerando os pressupostos constantes da aludida resolução da Assembleia da República resulta inequívoco que no actual estádio de adesão dos demais Estados intervenientes, este não tem vigência plena e obrigatória.
Pela resolução do Conselho de Ministros 8/2011 (in DR. Ia série, n° 17 de 25.01), o Governo determinou que a partir de 1 Janeiro de 2012 o Governo e todos os serviços e organismos e entidades sujeitos a poderes de direcção, superintendência e tutela do Governo aplicam a grafia do acordo ortográfico da Língua Portuguesa (. . .) em todos os actos, decisões, normas, orientações, documentos, edições, publicações, bens culturais ou quaisquer textos ou comunicações, sejam internos ou externos, independentemente do suporte, bem como a todos aqueles que venham a ser objecto de revisão, reedição, reimpressão ou qualquer forma de modificação.
Esta Resolução só vincula, como é óbvio, o Governo e aqueles que dele dependem, o que não inclui os Tribunais.
Nestes, nos Tribunais, pelo menos neste, os factos não são fatos, as actas não são uma forma do verbo atar, os cágados continuam a ser animais e não algo malcheiroso e a Língua Portuguesa permanece inalterada até ordem em contrário.
Assim sendo, estando a DGRS a prestar um serviço aos Tribunais e para mais cobrando-se do mesmo, estabelecendo uma relação de prestação de serviços, este Tribunal, enquanto entidade pagante, quer que os documentos presentes o sejam nos termos legais e não de acordo com determinações governamentais.
Notifique”.
- Através de ofício datado de 12-04-2013 a DGRS reenviou o solicitado relatório, nos termos determinados nos aludidos despachos de 5 e 22-03-2013.
- No processo Comum (Júri) n.º 384/12.8PATVD, do ... Juízo de ..., em 05-04-2013 o Dr. AA proferiu despacho com o seguinte teor:
“Uma vez que o processo de selecção de jurados ainda não se mostra finalizado e não é ainda possível prever uma data para a sua conclusão, por ora, não designarei data para realização de julgamento.
Contudo, sugiro que seja, de imediato, pedida a realização de relatórios sociais à DGRS a concluir no prazo de 45 dias a contar da data da recepção dos mesmos por aquela entidade. Mais sugiro seja a DGRS advertida que deverá apresentar as peças em Língua Portuguesa, nos termos do artº 139º do CPC, e sem erros ortográficos decorrentes da aplicação da Resolução do Conselho de Ministros 8/2011 (in DR Iª série, nº 17 de 25.01), a qual apenas vincula o Governo e não os Tribunais .
- O Relatório, sobre o arguido AA, elaborado pela DGRS nos termos determinados no aludido despacho, datado de 23-05-2013, foi junto aos autos em 24-05-2013
- O Relatório sobre a arguida CC, elaborado pela DGRS, nos termos determinados, foi remetido ao Tribunal de Torres Vedras através de ofício datado de 18-07-2013.
- Na Sessão do Plenário do Conselho Superior da Magistratura, realizada em 05-11-2013, apreciado o expediente remetido pelo Exmo, Chefe de Gabinete de Sua Excelência a Ministra da Justiça, bem como o expediente recebido da Direcção-Geral de Reinserção e Serviços Prisionais, relativamente aos sobreditos despachos judiciais e a sua conflitualidade com a utilização da grafia decorrente da utilização do acordo ortográfico, proferidos pelo Exrno. Juiz de Círculo do Tribunal de ...., ora Recorrente, foi deliberado instaurar inquérito.
- Na sessão do Conselho Plenário Extraordinário do C.S.M., realizada em 25-02-2014, foi tomada a seguinte deliberação no âmbito do inquérito realizado ao Recorrente, o qual culminou com a proposta de arquivamento dos autos por banda do Exmo. Sr. Inspector Judicial:
«Apreciada a proposta de deliberação do Exm Sr. Inspector judicial, juiz Desembargador Dr. DD, nos autos de inquérito em que é visado o Exm Sr. juiz de Círculo de .... Dr. AA, foi deliberado proceder a votação, tendo-se obtido a seguinte votação:
• A favor do arquivamento proposto, 3 (três) votos, dos Exms Srs., Drª BB, Prof. EE e Dr. FF;
• A favor da conversão dos autos em processo disciplinar, 10 (dez) votos, dos Exmo.s Srs., Presidente, Vice-Presidente, Prof. Doutor GG, Dr. HH, Dr II, Dr. JJ, Dra. LL, Dr. MM, Dr. NN e a Dra. OO.
Atenta a votação foi deliberado não concordar com a proposta constante do relatório e converter os presentes autos em processo disciplinar, uma vez que a matéria em causa é susceptível de integrar infracção disciplinar.
A Exma. Sra. Dra. BB, proferiu a seguinte declaração de voto: “Não obstante discordar da matriz usada na prolação dos despachos em causa, considero que a interpretação que o Senhor Juiz evoca para a rejeição do novo acordo ortográfico com o assacar de uma inconstitucionalidade, quiçá discutível, enferma numa natureza jurisdicional, insindicável por este C.S.M.
Voto, pois, o arquivamento proposto pelo Senhor Inspector.”
- Na sessão do Conselho Plenário do CSM., realizada em 11-11-2014, no âmbito do processo disciplinar instaurado contra o aqui Recorrente, foi tomada a deliberação do seguinte teor:
«Foi deliberado por maioria, com o voto de vencida da Exma. Sra. Dra. BB, concordar com o teor da proposta de pena formulada pelo Exmo. Sr. Inspector Judicial, Juiz Desembargador Dr. DD, que aqui se dá por integralmente reproduzida, nos autos de processo disciplinar em que é arguido o Exmo. Sr. Juiz de Direito Dr. AA. e em consequência aplicar a este Exmo. Sr. Juiz de Direito a pena de
" Advertência registada"
A Exma. Sra. Dra. BB, proferiu a seguinte declaração de voto: "Salvaguardando o elevadíssimo respeito devido pela tese que fez vencimento, considero que os despachos que estão na origem do sancionamento disciplinar do Senhor Juiz, relativos a processos de presos, correspondem a despachos de prossecução processual. Reconhece que tais despachos, no que toca à rejeição do uso do acordo ortográfico pelos órgãos da administração, recorrem a uma linguagem indesejável, mas envolvem uma concreta interpretação normativa que lhes confere um conteúdo jurisdicional. Nos dois processos em causa, o Senhor Juiz solicitou à DGRS a elaboração de relatórios sociais, com a menção de que o mesmos deveriam ser elaborados em português, sem erros ortográficos, sob pena de não serem pagos, chegando, num deles, a devolver àquela entidade o relatório social enviado para cumprimento do despacho proferido.
Entendo que tais despachos têm um conteúdo jurisdicional, por serem praticados pelo tribunal para decidir questões jurídicas relativas a casos concretos de acordo com as normas de direito pré-existentes, com o fim específico da realização do direito e da justiça, através de um processo intelectual subordinado àquelas normas (acórdão do Tribunal Constitucional n.º 171/1992, de 6 de Maio de 1992, in www.tribunalconstituciorial.pt). Nessa medida, não encontrando neles uma clara violação dos deveres de correcção e de desobediência, atenta a sua natureza materialmente jurisdicional, voto o arquivamento dos autos.».
- O processo de inquérito que correu pela Procuradoria-Geral Distrital de Lisboa sob o nº21/13.3TRLSB, instaurado na sequência da denúncia apresentada pelo Exº Director-Geral da DGRSP contra o Recorrente foi arquivado por despacho de 22 de Janeiro de 2014.
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6-Fundamentação de direito :
As questões a resolver são as seguintes:
A. Função jurisdicional.
B. Dever de obediência.
C. Dever de correcção.
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A- Função jurisdicional
Não temos dúvidas que o Conselho Superior da Magistratura (CSM) tem competência disciplinar, mas não dirige a função jurisdicional exercida pelos juízes. Estes não estão subordinados a ordens ou instruções do CSM no exercício da actividade de julgar.
É o que resulta do artigo 4º do EMJ que «Os magistrados julgam apenas segundo a Constituição e a lei e não estão sujeitos a ordens ou instruções, salvo o dever de acatamento pelos tribunais inferiores das decisões proferidas em sede de recurso.».
Este normativo não é mais do que a expressão do princípio da independência dos Tribunais consagrado no artigo 203º da CRP, sendo certo que o CSM é, nos termos desta mesma Lei Fundamental o órgão a quem incumbe «A nomeação, a colocação, a transferência e a promoção dos juízes dos tribunais judiciais e o exercício da acção disciplinar(...) nos termos da Lei.», nº1 do artigo 217º.
E é neste ponto ,o exercício da actividade de julgar, que radica o cerne da questão sobre a qual nos debruçamos.
Na verdade, reportando-nos á situação em apreço, a função jurisdicional circunscreve-se, no âmbito da prossecução processual, tão só à solicitação do relatório social actualizado do arguido à DGRSP. Extravasa-se o âmbito dessa função, quando se impõe a adopção ou não do acordo ortográfico na elaboração desse inquérito. É o próprio recorrente que afirma que expressou o seu entendimento no que respeita ao uso do acordo ortográfico, sendo certo que na situação em apreço o objecto da prossecução processual (relatório com vista á aplicação de um cúmulo) nada tinha a ver com as normas e princípios constitucionais concernentes ao uso do acordo ortográfico. Não é o facto de se tecerem reflexões jurídicas ou mencionarem-se normativos que transfigura um qualquer acto num acto jurisdicional. Os juízes têm independência para interpretar a Constituição e a lei; mas nem tudo o que possam escrever nos autos constitui necessariamente “aplicação do Direito”.
Por isso existem certos actos que estão excluídos da “esfera de protecção” dos princípios da independência e da irresponsabilidade dos juízes pelas suas decisões.
Sobre o manto da função jurisdicional não podem estar incluídas posições pessoais estranhas ao objecto do processo.
A independência garantida à função jurisdicional não significa que no exercício dessa função, os actos dos magistrados, mesmo os respeitantes à condução do processo, estejam isentos a controle disciplinar.([1])
O princípio fundamental da independência decisória do juiz não é afectada pelo facto de a sua actividade processual ser sindicada pelo órgãos que está constitucionalmente cometida a gestão e disciplina da magistratura judicial.([2])
Deste modo conclui-se que a concreta actuação do recorrente não se insere no âmbito da função jurisdicional.
B- Dever de obediência
Assentes neste ponto, debruçando-nos agora sobre o dever de obediência, temos como certo que o CSM não é um órgão hierárquico, inexistindo portanto qualquer elo de dependência funcional no que tange ao exercício da actividade jurisdicional.
Mas no caso, como sublinhamos, não se trata de “actividade jurisdicional” por isso importa apreciar se era devida ou não obediência.
Estamos de acordo com o recorrido quando defende que CSM não integra o conceito estrito de superior hierárquico, mas sendo o órgão superior de gestão e disciplina da magistratura judicial, está legitimado a dar orientações genéricas em termos de gestão e organização do serviço dos tribunais - e apenas nestas - as quais têm de ser, muito naturalmente, acatadas pelo juízes.
Aos juízes é devida, pois, efectiva obediência à deliberação de 23 de Abril de 2012, segundo a qual os mesmos “não podem indicar aos intervenientes processuais quais as normas ortográficas a aplicar”, sendo certo que se tem por líquido (até por maioria de razão) que a expressão “intervenientes processuais” assume aqui um sentido amplo, abrangendo não só os sujeitos processuais (ou as partes), como todos os demais que a qualquer título intervêm no processo, como é o caso das testemunhas, peritos e entidades (públicas ou privadas) que colaboram com os tribunais.
A prevalecer a tese do recorrente a actividade do CSM ficaria esvaziada de conteúdo.
A referida deliberação é clara e concisa não suscitando qualquer tipo de dúvidas. Como tal e no circunstancialismo referido consideramos que o recorrente violou o dever de obediência.
C- Dever de correcção
Debruçando-nos agora sobre o dever de correcção temos como certo que o mesmo não é só compaginável quando existe um carácter ofensivo da honra ou dignidade.
Consideramos também que a utilização de afirmações, desnecessárias e injustificadas que nada têm a ver com a finalidade subjacente, como é o caso, só por si, podem não consubstanciar a violação deste dever.
Não temos dúvidas, também, que estamos perante a utilização de uma linguagem, de um estilo, que se deve evitar, indesejável.
Mas também não temos dúvidas que foi violado o dever de correcção, na medida em que este tem que ser aferido como um dever objectivo correlacionado com a necessidade e proporcionalidade.
Com as expressões que utilizou(“desconhecimento das leis que nos regem”, como também uma “incapacidade de leitura”.) que, sublinhe-se são excessivas, desnecessárias e nada têm a ver com a finalidade visada com o despacho, questionando a capacidade profissional e intelectual da visada, o recorrente violou o dever de correcção.
Além do mais, como sublinha o recorrido ,o dever de correcção postula também “comportamento conforme á dignidade das próprias funções “ ou actividade funcional do trabalhador e o seu posicionamento na organização (Ettore Morone, Impiego Publico,Novissimo Digesto Italiano, III,Unione Tipografico, Editore Torinense ,pag. 275).
João Trindade (relator)
Santos Cabral (com declaração de voto)*
Belo Morgado
Souto Moura
Ana Paula Boularot (com voto vencido) **
Martins de Sousa
Silva Gonçalves
Sebastião Póvoas (Presidente da Secção)
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[1] - Ac. proferido em 27.9.2001 no Processo 2246/00
[2] -Ac. 18-10-12- Processo 24712
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* Declaração de voto
A arguição de nulidade que ora se analisa emerge, para além do mais, da consideração do requerente de que a declaração de voto aposta pelo signatário foi produzida contra os fundamentos da decisão proferida o que levaria, necessariamente, à conclusão de que o acórdão, agora objecto de reclamação, não obteve a maioria necessária quanto à sua fundamentação.
Por outro lado igualmente foi produzida argumentação no sentido de que praticado um acto administrativo com base em certos pressupostos de facto e determinados fundamentos de direito (in casu a violação dos deveres de obediência e correcção) e, considerada a inexistência dum daqueles fundamentos, impunha-se a anulação pura e simples e não uma confirmação nos termos constantes da declaração emitida pelo signatário.
Assim, não obstante a simplicidade linear daquela declaração o certo é que, a seu propósito, se suscitam duas questões de natureza distinta:- a primeira relativa à interpretação da declaração de voto aposta e a segunda relativa às suas consequências jurídicas, ou seja, a correcção técnica da inferência extraída.
No que concerne à primeira daquelas questões importa sublinhar que a sentença proferida em processo judicial constitui um verdadeiro acto jurídico, a que aplicam as regras reguladoras dos negócios jurídicos. Consequentemente, na sua interpretação importa apelar para as normas que disciplinam a interpretação da declaração negocial uma vez que estas igualmente relevam para a interpretação de uma sentença. Tal significa que a sentença tem de ser interpretada com o sentido que um declaratário normal, colocado na posição do real declaratário, possa deduzir do seu contexto (art. 236º do C.Civil).
Apelando para as palavras de Castanheira Neves a identificação do objecto da decisão passa pala definição da sua estrutura, constituída pela correlação teleológica entre a motivação e o dispositivo decisório, elementos que reciprocamente se condicionam e determinam, fundindo-se em síntese normativa concreta. [1] Saliente-se, ainda, que embora o objecto da interpretação seja a própria sentença a verdade é que nessa tarefa interpretativa há que ter em conta outras circunstâncias, mesmo que posteriores, que funcionam como meios auxiliares de interpretação, na medida em que daí se possa retirar uma conclusão sobre o sentido que se lhe quis emprestar [2]
No caso concreto declara-se expressamente que se confirma a decisão recorrida com base na violação do dever de obediência. Pretender que tal declaração tem o sentido inequívoco duma declaração contra a fundamentação da decisão não tem a menor correcção à luz do entendimento dum declaratário normal.
Questão distinta é a de saber se tecnicamente tal declaração é correcta ou enferma de patologia a necessitar do esclarecimento de que “apenas vincula o seu autor”. Na verdade, a questão é então, e na sua génese, a admissibilidade duma declaração de tal tipo num contencioso de anulação e não uma interpretação da declaração, que é inequívoca.
No que respeita importa precisar que é largamente preponderante a corrente jurisprudencial de que não se justifica a anulação dum acto administrativo quando o respectivo conteúdo não possa ser outro, devendo antes aproveitar-se o ato anulável (princípio do aproveitamento do ato administrativo). Como se sintetiza no acórdão do Supremo Tribunal Administrativo (STA) de 22/5/2007, P. 161/07: "Este Supremo Tribunal Administrativo tem vindo a aplicar frequentemente o princípio geral de direito que se exprime pela fórmula latina utile per inutile non vitiatur, e que, com essa ou com outras formulações e designações (como a de princípio do aproveitamento do acto administrativo, a de princípio da inoperância dos vícios, a de princípio antiformalista, e a de princípio da economia dos actos públicos) [ ... ]
À face deste princípio, não se justifica a anulação de um acto, mesmo que enferme de um vício de violação de lei ou de forma, quando a existência desse vício não se veio a traduzir numa lesão em concreto para o interessado cuja protecção a norma visa, designadamente, no caso de um vício procedimental, quando a sua ocorrência não teve qualquer reflexo no procedimento administrativo.
No que se refere a vícios desta última natureza, o mesmo Supremo Tribunal afirmou no seu Ac. de 28/10/2009, P. 121/09:
«Tem sido [ ... entendimento deste STA considerando irrelevante o erro de facto e de direito face ao "princípio do aproveitamento do acto", em casos de plúrima fundamentação, quando um ou alguns dos fundamentos são exactos e suficientes para suportar a legalidade do acto, os acórdãos deste Supremo Tribunal de 23/1/2002, recurso 45 967; de 22/7/1982, recurso 16 746, e de 20/3/1997, recurso 27930, este último sublinhando que "( ... ) o referido princípio conduz à validade do acto quando apesar de apoiado este em um fundamento ilegal, outro ou outros fundamentos também invocados, estes legais, conduzem à introdução no ordenamento jurídico dos efeitos pretendidos por lei". Como expressivamente se diz no acórdão deste STA de 7/2/2002, proferido no recurso 46 611, "O princípio do aproveitamento do acto administrativo é, no domínio de apreciação de invalidade dos actos administrativos, o corolário do princípio da economia dos actos públicos, refracção do princípio geral de direito que se exprime pela fórmula utile per inutile non vitiatur, servindo o interesse de que não devem ser tomadas decisões sem alcance real para o impugnante, porque a economia de meios é, também em si, um valor jurídico, correspondendo a uma das dimensões indispensáveis do interesse público (cfr., acerca da razão de ser do aproveitamento dos actos administrativos pelo juiz, Prof Vieira de Andrade, O Dever de Fundamentação Expressa de Actos Administrativos, pp. 332 e segs.).
O seu âmbito de aplicação não se determina mecanicamente pela antítese vinculação <-> discricionariedade, em termos de sempre ser de excluir no domínio dos actos praticados no exercício de um poder discricionário. Limitando-nos ao erro (nos pressupostos ou na base legal) porque é desse tipo o vício em causa, há erros respeitantes a actos praticados no uso de um poder discricionário cuja anulação o juiz administrativo pode abster-se de decretar por invocação do referido princípio, atendendo ir razão que o justifica. Mesmo neste domínio, o tribunal pode negar relevância anulatória ao erro, sem risco de substituir-se ir Administração (cfr. Prof Afonso Queiró RLJ-117. pp. 148 e segs.), quando, pelo conteúdo do acto e pela incidência da sindicação que foi chamado a fazer, possa afirmar, com inteira segurança, que a representação errónea dos factos ou do direito aplicável não interferiu com o conteúdo da decisão administrativa porque não afectou as ponderações ou as opções compreendidas (efectuadas ou potenciais) nesse espaço discricionário".
O aproveitamento do ato administrativo não contrapõe vícios formais a vícios substanciais nem assenta numa mera diferença entre vinculação e discricionariedade, Embora seja mais frequente a sua aplicação com referência à violação de preceitos formais e nos casos em que inexista discricionariedade, o que o define é a necessidade legal do conteúdo da decisão concretamente adoptada: à luz da lei aplicável ou seja o conteúdo do acto praticado só podia ser aquele que concretamente foi adoptado, ainda que tivessem sido observadas as normas preteridas. Trata-se, por conseguinte, de uma faculdade do juiz afastar o efeito anulatório, nos casos em que este verifique uma identidade entre o conteúdo real ou efectivo do ato anulável e o conteúdo hipotético do acto válido.
Como refere Luís Cabral de Moncada o aproveitamento do acto administrativo consiste na desculpabilização dos vícios de que o acto padece pela Administração ou pelos tribunais. Analisa-se na desvalorização das invalidades do acto em nome do aproveitamento do mesmo acto. No primeiro caso a Administração aproveita o acto que praticou através dum acto secundário que vem substituir o acto originário inquinado de um ou mais vícios. No segundo caso são os tribunais que aproveitam na sentença o acto inquinado porquanto não deram relevância aos respectivos vícios.
O tribunal desvaloriza os vícios de que o acto padece e que o tornam inválido mantendo-o como acto válido apesar daqueles vícios. Aproveita-se o acto na medida em que degrada a preterição ou omissão das formalidades do acto de essenciais em não essenciais ou meras irregularidades o que lhe permite manter a validade do acto. O acto impugnado persiste apesar do vício que o inquina e gera efeitos jurídicos válidos. [3]
Sinteticamente as entidades aplicadoras do direito corrigem o acto em causa ou consideram irrelevantes as patologias de que padece em nome da legalidade e até da consistência dos interesses públicos que o acto prossegue.
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O princípio utile per inutile non vitiatur, ou seja, do aproveitamento do aproveitamento do acto administrativo tem relevância substancial, procedimental e processual e está patente em diversas decisões algumas das quais convergem com o tema do caso vertente. Atente-se no Acórdão do STA 14-07-2015 o qual refere que Sobre esta figura, o seu alcance e consequências, designadamente quando está em causa uma actuação administrativa que consente alguma margem de livre apreciação – como é o caso do doseamento da pena aplicada em concreto –, teve já este Supremo Tribunal a oportunidade de se pronunciar por diversas vezes. Atentemos no Acórdão do STA de 11.01.11, Proc. n.º 0247/10: “(…) de acordo com a jurisprudência mais recente do Pleno deste Supremo Tribunal, Cf. Acórdão de 2010.11.18 – recº nº 855/09 e acórdão da Secção de 2002.02.07 – recº nº 46611, nele citado, o princípio do aproveitamento do acto administrativo também é aplicável no perímetro das ponderações próprias da Administração, podendo o tribunal negar relevância anulatória aos vícios, sem risco de dupla administração, «quando pelo conteúdo do acto e pela incidência da sindicação que foi chamado a fazer, possa afirmar, com inteira segurança, que a representação errónea dos factos ou do direito aplicável não interferiu com o conteúdo da decisão administrativa porque não afectou as ponderações ou as opções compreendidas nesse espaço»”..[4]
Transpondo o exposto para o caso vertente temos por adquirido a existência dum dever de obediência o que consubstancia uma infracção disciplinar.
Demonstrada a existência dos elemento material e intelectual da mesma infracção como fundamentadores duma sanção disciplinar importa acentuar que o catálogo das mesmas está elencado no artigo 85.º do Estatuto dos Magistrados Judiciais sendo certo que a pena menos grave é a de advertência, que foi exactamente aquela que foi aplicada.
Consequentemente, sendo cada uma das infracções disciplinares e deveres profissionais violados suficiente, e adequada, por si, à aplicação da pena menos grave do catálogo, pode afirmar-se com segurança de que a constatação de eventual patologia nos termos de declaração emitida não interfere com o sentido da decisão administrativa impugnada, a qual, se fosse anulada seria repetida com o mesmo sentido.
Consequentemente, a declaração de confirmação emitida.
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[1] Castanheira Neves, RLJ 110º, pags. 289 e 305).
[2] (Vaz Serra, RLJ, 110-42).
[3] Autoridade e liberdade na teoria do acto administrativo pag 446.
[4] Conclui-se naquela decisão com relevância para o caso vertente que Retomando o caso dos autos, há que recordar que o CSMP desde sempre ressalvou que qualquer uma das infracções cometidas e deveres profissionais violados pela A., dada a sua gravidade, seriam suficientes, por si mesmos, para justificar a pena de demissão. Designadamente, afirmou-o na deliberação do Plenário impugnada, em que se pode ler:
“Tais condutas são manifestamente ofensivas da função do MP, violadoras de princípios consagrados na Constituição.
Comportamentos que revelam ainda falta de honestidade e conduta desonrosa para a Magistratura do MP.
Agiu com culpa grave, pois bem sabia que não o poder fazer e que pelo menos, dois desses dados pesquisados se destinavam a produzir falsas identidades.
São infracções que revelam grave abuso da função, grave desinteresse pelos deveres profissionais, e manifesta e grave violação dos deveres a ela inerentes.
Infracções que atentaram gravemente contra a dignidade, credibilidade prestígio da imagem da justiça e da função do MP, comprometendo de forma irremediável a manutenção do vínculo funcional.
Cada uma das infracções disciplinares e deveres profissionais violados, só por isso, é de tal forma grave ao ponto de as considerarmos individualmente, suficientes e adequados à aplicação da pena expulsiva da função (negrito nosso).
(…) Efetivamente, a grave violação de deveres funcionais apuradas revelam definitiva incapacidade de adaptação às exigências da função e falta de honestidade, estando em causa condutas desonrosas, grave abuso da função e manifesta e grave violação dos deveres a ela inerentes.
Tais graves violação de deveres funcionais inviabilizam a manutenção da relação funcional, por revelarem que a Arguida não reúne as condições de dignidade e confiança exigidas pelo cargo, impondo-se, assim, a pena de demissão” (fls. 146-7).
Dito isto, pode afirmar-se com segurança estar este Supremo Tribunal convicto de que o vício supra indicado não interferiu com o sentido da decisão administrativa impugnada, a qual, se fosse anulada, com toda a certeza seria repetida com o mesmo sentido. A opção pela pena de demissão, justificada por cada uma das várias infracções cometidas pela A. e com ponderação de várias circunstâncias agravantes, não sendo de relevar qualquer circunstância atenuante, mostra-se adequada e justa, tanto mais quanto a A. é uma magistrada do MP com larga experiência no DIAP. À face das regras da vida e da experiência comum, é de concluir que as condutas praticadas pela A. configuram várias infracções disciplinares distintas, expressão de distintas formulações de vontade da A., que se prolongaram no tempo, conclusão a que se chega sem que se possa dizer que a ponderação do Tribunal configura uma clara intromissão em área reservada pela lei, em primeira linha, à Administração
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** DECLARAÇÃO DE VOTO
Sempre s.d.r.o.c., não posso acompanhar quer a fundamentação, quer a decisão das arguidas nulidades do Acórdão, por falta de vencimento e por omissão de pronúncia.
No que tange à omissão de pronúncia, remeto para tudo quanto deixei exarado na minha declaração de voto aposta ao Acórdão aqui em crise.
No que tange à irregularidade apontada, da falta de vencimento, deixo consignado o seguinte:
Como deflui do Acórdão que confirmou a decisão do CSM, o mesmo foi tomado com quatro declarações de voto, sendo que a que está aqui em causa é a respeitante ao Conselheiro Santos Cabral, do seguinte teor: «Confirmaria a decisão sancionatória aplicada pelo Conselho Superior da Magistratura com fundamento na violação do dever de obediência. No que concerne ao dever de correcção entendo que os factos provados, sendo passíveis de critica, não atingem o patamar de ilicitude necessário para serem considerados como infracção do mesmo tipo.».
No que tange a este voto, diz-se na fundamentação que como decorre da acta em que se apurou o vencimento, a decisão só poderia ser aquela que se tomou.
E, se essa asserção tem em si o seu quê de verdade, porque efectivamente o colectivo assentou em que a decisão seria a de confirmar a deliberação do CSM, o que aconteceu é que o Acórdão proferido, veio a reflectir uma outra verdade, qual foi a de um empate técnico entre os votos favoráveis à tese do Acórdão produzido e os votos vencidos, o que levaria, neste caso à intervenção do presidente da secção através da utilização do seu voto de qualidade, o que não aconteceu, tendo sido produzido um Acórdão contra o vencido.
Se não.
Aquela declaração de voto supra transcrita e que deu origem à problemática em questão, não obstante concorde com a decisão sancionatória, não concorda com a fundamentação e assim sendo, não se poderá dizer, como se diz que a decisão do mesmo é favorável à improcedência do recurso e por isso terá de ser isolado dos restantes votos, como uma terceira posição que não influi no resultado final, porquanto o maior número de votantes foi no sentido global da decisão que foi tomada, ou seja, confirmação integral e sem reservas da decisão do CSM.
Um voto que não concorda com a fundamentação lavrada, é um voto de vencido, mesmo que não colida com a decisão tomada é o que resulta do normativo inserto no artigo 663º, nºs 3 e 4 do CPCivil, cfr o Ac de 17 de Junho de 2014 em que fui Relatora, in www.dgsi.pt, onde se pode ler no sumário elaborado, além do mais, que «I Se na prolação de um Acórdão, ambos os Adjuntos seguirem uma fundamentação diversa da porfiada pelo Relator, sem embargo de o resultado poder ser idêntico, o caminho para o alcançar não é igual, pelo que tal Aresto assim obtido mostra-se lavrado «sem o necessário vencimento», a que se alude no normativo inserto no artigo 716º, nº1 do CPCivil, porquanto se não seguiram os items aludidos no artigo 713º, do mesmo diploma legal. II O Acórdão proferido com dois votos de vencido no que tange à fundamentação é nulo.».
In casu, porque ao contrário do que se defende, existiram quatro votos concordantes com a tese defendida no Acórdão e quatro votos discordantes, deveria ter intervindo o Exº Senhor Presidente da secção, Conselheiro Sebastião Povoas, com o seu voto de qualidade, no sentido de apurar o vencido, o que não foi feito, de harmonia com o preceituado no artigo 168º, nºs 2 e 3 do EMJ , o que inquina inexoravelmente a validade do Aresto em causa, sendo indiferente, para o que se cura aqui, o que tenha ficado «acordado» e exarado em acta, se o resultado desse acordo não se mostra espelhado no Acórdão produzido.
Deferiria, pois, o pedido formulado pelo Recorrente.
(Ana Paula Boularot)