Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
162/09.1YFLSB
Nº Convencional: 1ª SECÇÃO
Relator: SEBASTIÃO PÓVOAS
Descritores: ACTIVIDADES PERIGOSAS
SUBSTANCIAÇÃO.
CAUSA DE PEDIR
MATÉRIA DE FACTO
Nº do Documento: SJ
Data do Acordão: 05/14/2009
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA
Sumário :

1. O STJ, salvo as situações de excepção legalmente previstas só conhece matéria de direito, sendo que, no âmbito do recurso de revista, o modo como a Relação fixou os factos materiais só é sindicável se foi aceite um facto sem a produção do tipo de prova para tal legalmente imposta ou tiverem sido incumpridos os preceitos reguladores da força probatória de certos meios de prova.

2. É à Relação que compete a censura das respostas aos artigos da base instrutória no uso normal dos poderes que lhe conferem os n.ºs 1 e 4 do artigo 712.º do Código de Processo Civil.

3. O Supremo Tribunal de Justiça só pode usar da faculdade do nº 3 do artigo 729º do Código de Processo Civil, perante patente contradição da matéria de facto apurada pelas instâncias ou se a mesma for de tal modo omissa que se revele insuficiente para ulterior subsunção, essencial para a sorte da demanda.

4. O conceito de causa de pedir é delimitado pelos factos jurídicos dos quais procede a pretensão que o demandante formula, cumprindo às partes a alegação desses factos, apenas nos quais o juiz funda a sua decisão, embora possa atender, ainda que “ex officio”, aos instrumentais, que resultem da instrução e da discussão e aos que sejam complemento ou concretização de outros.

5. O juiz está limitado pelo princípio do dispositivo, mas a substanciação (ou consubstanciação) permite-lhe definir livremente o direito aplicável aos factos que lhe é lícito conhecer, buscando e interpretando as normas jurídicas.

6. Tal princípio pode implicar uma convolação da situação jurídica alegada pelas partes e a sua submissão a diferentes normas.

7. Perante uma causa de pedir complexa, traduzida em factos que podem integrar quer a responsabilidade contratual, quer a responsabilidade aquiliana, o julgador pode inseri-los em qualquer dos institutos desde que, a final, não condene quantitativamente ou qualitativamente para além do pedido, isto é se mantenha nos limites do nº 1 do artigo 661º C.P.C..

8. Embora na responsabilidade contratual exista uma presunção de culpa (nº 1 do artigo 799º do Código Civil) que o devedor tem de ilidir, alegando e demonstrando factos, ou circunstâncias, excepcionais que reduzam ou neutralizem a censurabilidade da sua conduta, também na responsabilidade extracontratual (cuja regra é o ónus da prova da culpa cumprir ao lesado (n.º 1 do artigo 487º CC) existem casos de culpa presumida, sendo um deles a do nº 2 do artigo 493º do Código Civil.

9. Se o juiz pode subsumir livremente ao factos ao direito e não está vinculado à qualificação jurídica do demandante, o demandado tem de lidar com os factos alegados, negando-os, desvalorizando-os ou justificando-os, não sendo surpreendido pela integração que o julgador fez.

10. Ademais, à responsabilidade contratual sempre se aplicam subsidiariamente as normas da responsabilidade aquiliana, que é matriz de toda a responsabilidade civil.

11. A qualificação de uma actividade como perigosa – quer em si mesmo, quer no seu exercício – deve ser feita casuisticamente atentando no estado de perigo anormal criado em concreto e baseando-se em indícios consistentes na experiência comum, no sentir do homem médio e na sensibilidade do legislador (que, em regra baseado em pareceres técnico-científicos) a regulou como tal.

12. A operação de montagem e desmontagem de uma viga de lançamento (com cerca de 100 toneladas e a 30 metros de altura) constituída por várias peças, é uma actividade perigosa e como tal qualificada no Anexo II nº 10, reportado ao nº 3 do artigo 6º do Decreto-Lei nº 155/95, de 1 de Julho, que transpôs para o direito interno a Directiva nº 92/57 CEE do Conselho, de 1 de Julho.

Decisão Texto Integral:
Acordam, no Supremo Tribunal de Justiça:

“AA – Companhia de Seguros, SA”, intentou acção, com processo ordinário, contra “BB, SA”, “CC SA” e “DD AS” pedindo a sua condenação a pagarem-lhe a quantia de 345.257,56 euros, acrescida de juros vincendos desde a citação.

Alegou, em síntese que, no exercício da sua actividade seguradora, celebrou com “EE e Irmão, SA” dois contratos de seguro de duas gruas; que a segurada alugou-as às 1.ª e 2.ª Rés para a construção de um viaduto na auto-estrada A2; que, por sua vez, as Rés alugaram à sociedade “Zagope” uma viga de lançamento para sustentação da cofragem do tabuleiro do viaduto; que a 1.ª e 2.ª Rés subcontrataram a 3.ª Ré para prestar assistência técnica à viga de lançamento, designadamente à sua operação de montagem e desmontagem; que, no dia 24 de Julho de 2002 as duas gruas ficaram danificadas quando sobre elas caiu uma viga de lançamento, o que se deveu a ter sido iniciada a desmontagem sem a retirada de qualquer contrapeso o que provocou o desequilíbrio da estrutura da viga; que a Autora pagou, pelos danos nas gruas, 334.959,05 euros, quantia que já solicitou às Rés, em 25 de Fevereiro de 2003.

A Ré “DD” contestou por impugnação e requereu a intervenção principal da sua seguradora norueguesa “IF-Skadeforsikring”.

As Rés “BB” e “CC” também contestaram.

E requereram a intervenção principal de “FF, Limitada”, por autora do procedimento técnico para a Ré “DD” e terem eventual direito de regresso contra ela.

As intervenções foram admitidas.

A “IF- Skadeforsikring” contestou por adesão ao articulado da Ré “DD”

No círculo judicial de Portimão a acção foi julgada parcialmente procedente e condenadas as Rés “BB” e “CC” a pagarem à Autora 334.952,05 euros, com juros de mora contados desde 26 de Fevereiro de 2003.

A Ré “DD” e as chamadas foram absolvidas.

Apelaram as condenadas tendo a Relação de Évora confirmado a sentença recorrida.

Pedem agora a revista assim concluindo a sua alegação conjunta:

- A decisão dos pontos da matéria de facto af) a al), ap) e am), por um lado, e ar) (tal como estão identificados no acórdão), pelo outro lado, configuram contradições na decisão sobre a matéria de facto que inviabilizam a decisão jurídica do pleito da matéria de facto, pelo que o S.T.J. deve determinar a baixa do processo, nos termos do art. 729/3 do C.P.C.;

- Na determinação do sentido do contrato, ao abrigo do disposto no art. 236CC, deve ser tido em conta o modo como o contrato foi executado;

- Ora, atendendo à matéria provada, nomeadamente a elaboração da sequência de desmontagem, a sua evidente complexidade técnica, as suas exigências em meios humanos qualificados, o seu tempo de duração, impõe-se a conclusão de que o sentido da previsão contratual de assistência técnica, no contrato celebrado entre a R. DD e a Recorrente, abrange a elaboração da sequência de desmontagem, não fazendo sentido que essa sequência de desmontagem seja entendida como mera estratégia/cortesia comercial;

- A A. moveu a presente acção contra as Recorrentes qualificando expressamente a sua responsabilidade como tendo natureza delitual, mas as instâncias alteraram a qualificação da responsabilidade para contratual e entenderam que, consequentemente, competia às Recorrentes o ónus da prova e alegação de não terem culpa pela ocorrência do dano, relevando, na condenação das Recorrentes, a falta dessa alegação e prova;

- Com essa nova qualificação, e em face das circunstâncias do caso concreto, inverteu-se o ónus de prova de factos essenciais, e o consequente ónus de alegação, pelo que às Recorrentes passou a competir, mas apenas a partir do momento em que foi proferida a sentença em primeira instância, o ónus de alegar e provar que não tinham culpa;

- Assim, as Recorrentes não dispuseram da possibilidade de efectiva defesa, pelo que o Tribuna] não deveria ter conhecido da sua responsabilidade a título contratual, e como o fez, conheceu de questão que lhe era vedado conhecer, nos termos do disposto nos arts. 3/3 e 668/1/d do C.P.C.;

- Entendimento contrário destes preceitos, e ainda do disposto no art. 664 do C.P.C., viola o art. 20 da Constituição;

- Os danos verificados, tendo em conta o modo como se produziram, situam-se claramente fora do perímetro delimitado pelo contrato, pois poderiam ter ocorrido mesmo que não existisse nenhum contrato, de aluguer ou de outro tipo, entre a lesada e as Recorrentes;

- Assim, não estão preenchidos os pressupostos da responsabilidade contratual;

- E não estando provada a culpa das Recorrentes, que não se presume, deveriam estas ter sido absolvidas do pedido;

- A A. invoca como causa de pedir o facto de as Recorrentes serem empreiteiras gerais da obra, o que, em relação à R. CC, é falso, pois não se provou, e terem o dever de vigilância da coisa, respondendo assim, segundo a A., nos termos do art. 493/1, mas também não se provou que as Recorrentes tivessem o dever de vigilância da coisa, pelo que deveriam ter sido absolvidas do pedido;

- Não foi alegada, nem se provou, a perigosidade, de modo a qualificar a situação em questão no âmbito da figura prevista no art. 493º, n.º 2, pelo que as Recorrentes não poderiam ser condenadas a este título;

- Por todo o exposto, ao condenar as Recorrentes, o acórdão recorrido violou, além dos preceitos legais anteriormente indicados, ainda o disposto nos arts. 483º, 493º e 798º do C.P.C.

Contra-alegou a chamada “FF” a pugnar pela bondade do Acórdão recorrido.

Com as alterações introduzidas pelo Acórdão recorrido, ficou assente a seguinte matéria de facto:

a) a Autora é uma sociedade que, devidamente autorizada e em conformidade com a legislação portuguesa aplicável, se dedica à actividade seguradora – Al. a) dos factos assentes;

b) no exercício da sua actividade, a Companhia de Seguros “AA, SA” celebrou com a firma “EE & Irmão, SA” dois contratos de seguro denominados “Máquina Cascos” com o nº de apólice 0-0-00-0000/09 e 0-0-00-000000/02, no âmbito dos quais se encontravam, respectivamente, seguras duas gruas da marca Liebherr, modelo LTM 1060/2, série n° 057335 e modelo 1035, nº série 0115407 – Al. b) dos factos assentes;

c) a segurada da “AA”, “EE & Irmão, SA”, é uma empresa que, entre outras actividades, se dedica ao aluguer de gruas destinas a ser utilizadas na construção de grandes obras – Al. c) dos factos assentes;

d) as gruas supra identificadas e seguras pela “AA” tinham sido adquiridas pela segurada através do Sistema de Locação Financeira à “Mello Leasing, SA”, actual “BCP Leasing, SA” – Al. d) dos factos assentes;

e) no âmbito da sua actividade, a firma segurada, alugou às Rés “BB” e “CC” as gruas supra identificadas, para que fossem utilizadas na construção de um viaduto na Auto-Estrada A2, junto à localidade de Barreira – São Bartolomeu de Messines – Al. e) dos factos assentes;

f) o dono da obra era a “Brisa, SA” que a encomendou em regime de empreitada, ao consórcio constituído pelas Rés “BB, SA” e “CC, SA” – Al. f) dos factos assentes;

g) para a construção do viaduto as Rés “BB, SA” e “CC, SA” alugaram à firma “Zagope” uma viga de lançamento para sustentação da cofragem do tabuleiro do viaduto – Al. g) dos factos assentes;

h) em 24 de Julho de 2002, as gruas seguras pela “AA” encontravam-se a operar na obra supra referida, auxiliando na desmontagem de vários componentes da viga de lançamento do viaduto supra identificado – Al. h) dos factos assentes;

i) essa viga caiu, precipitando-se sobre as duas gruas, pertencentes à segurada da “AA” – Al. i) dos factos assentes;

j) tal viga de lançamento tinha aproximadamente 100 (cem) toneladas de peso e 40 (quarenta) metros de comprimento – Al. j) dos factos assentes;

k) a queda da referida viga ocorreu a cerca de 30 (trinta) metros de altura – Al. k) dos factos assentes;

l) a viga de lançamento é constituída por vários componentes principais, designadamente:

- Viga em caixão;

- Extensões em treliça nas extremidades;

- Apoios;

- Contrapesos;

- Triângulos e barras – Al. l) dos factos assentes;

m) a montagem da viga de lançamento tem de seguir determinadas regras devidamente definidas por forma a evitar o desequilíbrio causado pelos acessórios que a integram – barras e triângulos – e os contrapesos – Al. m) dos factos assentes;

n) para regularização dos danos provocados na grua LTM 1035, liquidou a “AA”, no âmbito do contrato de seguro existente, a quantia de 4.940,03 € (quatro mil novecentos e quarenta euros e três cêntimos), ao “BCP Leasing, SA”, enquanto locadora – Al. n) dos factos assentes;

o) no tocante aos danos ocorridos na grua LTM 1060, a “AA” liquidou à sua segurada a quantia de 330.012,02 € (trezentos e trinta mil, doze euros e dois cêntimos), a título de indemnização por perda total da mesma – Al. o) dos factos assentes;

p) a Autora solicitou às Rés “BB, SA” e “CC, SA”, em 25.02.2003, o reembolso dos pagamentos efectuados à sua segurada e ao “BCP Leasing, SA” – Al. p) dos factos assentes;

q) à Ré “BB”, em consórcio com outra sociedade, foi adjudicada pela “Brisa, SA” a empreitada para a construção da obra geral e das obras de arte e viadutos – lote L do sublanço Almodôvar/São Bartolomeu de Messines da A 2 – Auto Estrada do Sul – Al. q) dos factos assentes;

r) a Ré “BB, SA” celebrou com a sociedade “Zagope, SA”, um contrato de aluguer de uma viga de lançamento – Al. r) dos factos assentes;

s) em 12.12.2001 a Ré “BB, SA” celebrou com a Ré “DD” o contrato nº CF-29907/12-0 pelo qual esta última assumiu, entre outras, as seguintes obrigações:

- Elaboração do projecto de adaptação da viga de lançamento;

- Execução dos trabalhos necessários para o efeito;

- Fornecimento de informação técnica complementar; e

- Supervisão – Al. s) dos factos assentes;

t) a operação de desmontagem do equipamento em causa, devido ao seu elevado peso e à sua complexidade, reveste especial dificuldade técnica – Al. t) dos factos assentes;

u) a viga de lançamento, quando se encontra em movimento, desloca-se sobre os vagões que a integram e quando se encontra imóvel apoia-se na retaguarda sobre o tabuleiro e nas consolas na parte da frente – Al. u) dos factos assentes;

v) a viga de lançamento equilibra-se por si só quando se encontra recolhida – Ai. v) dos factos assentes;

w) a Ré “IF Skadeforsikring” com sede em .... Lyseker, Noruega, é uma sucursal de direito norueguês da companhia de seguros “IF Skadeforsikring Holding AB”, Sociedade Comercial de Direito Sueco, com sede em 106 80 Estocolmo, Suécia, matriculada na Conservatória do Registo Comercial da Suécia sob o nº 556241-7559 e no âmbito da sua actividade comercial, celebrou com a Ré “DD, SA” um contrato de seguro cuja apólice se destina à transferência da responsabilidade civil desta por danos causados no exercício da sua actividade profissional” – AI. w) dos factos assentes;

x) as Rés “BB” e “DD” celebraram um contrato pelo qual a segunda se obrigou a executar o projecto de recondicionamento de uma viga de lançamento a transportar desde Rio Maior para o viaduto da Barreira – S. Bartolomeu de Messines —resposta aos quesitos 1º e 29º;

y) a viga que acabou por cair, já tinham sido desmontadas todas as barras que constituem a primeira fiada de peças – resposta ao quesito 2º;

z) já tinha sido, igualmente, desmontado um dos triângulos que constitui a segunda fiada de peças e estava a ser desaparafusado o segundo triângulo – resposta ao quesito 3º;

aa) apenas tinham sido retirados 3 dos 14 parafusos de fixação desse triângulo – resposta ao quesito 4º;

ab) ao iniciar a desmontagem da segunda fiada de peças a viga de lançamento rodou sobre si mesma e despenhou-se sobre as duas gruas que ali se encontravam – resposta aos quesitos 5º e 7º;

ac) a grua LTM 1036 sofreu danos no valor de 4.940,03 € (quatro mil novecentos e quarenta euros e três cêntimos) – resposta ao quesito 9º;

ad) e a grua LTM 1060/2 ficou totalmente inutilizada, sendo o seu valor de 330.012,02 € (trezentos e trinta mil, doze euros e dois cêntimos) – resposta ao quesito 10º;

ae) por via do acordado com a “Zagope”, a Ré “BB” estava vinculada a solicitar a adaptação da viga de lançamento ao respectivo fabricante, a Ré “DD” — resposta ao quesito 12º;

af) a “FF” é representante da “DD” em Portugal – resposta aos quesitos 14º e 15º;

ag) em 24 de Junho de 2002, a “FF” declarou à Ré “CC” o seguinte:

“...Relativamente à desmontagem estou em contacto com a DD para elaborarmos uma lista de procedimentos gerais, os quais tenham em consideração em especial o equilíbrio transversal do sistema durante a fase de desmontagem” – resposta ao quesito 16º;

ah) na mesma data, a “FF” solicitou à Ré “DD” que comentasse a sequência de desmontagem constante do fax que lhe enviou, tendo em conta a necessidade de manter o equilíbrio transversal da viga durante o procedimento de desmontagem – resposta ao quesito 17º;

ai) em 25 de Junho de 2002, a Ré “DD”, em resposta à solicitação da “FF”, enviou a esta última os comentários à sequência de desmontagem constante do fax acima referido – resposta ao quesito 18º;

aj) a “FF” solicitou à Ré “DD”, no próprio fax enviado por esta última em 25 de Junho de 2002, que a Ré “DD” confirmasse uma sequência alternativa detalhada de desmontagem da viga – resposta ao quesito 19º;

ak) na sequência de tal solicitação, a Ré “DD”, em 26 de Junho de 2002, enviou um fax à sua representante “FF” contendo a sequência de desmontagem – resposta ao quesito 20°;

al) em 3 de Julho de 2002 a “FF” remeteu à Ré “CC” outra sequência de desmontagem –resposta ao quesito 22º

am) tendo por base tal sequência a Ré “CC” iniciou os trabalhos de desmontagem da viga – resposta ao quesito 23º;

an) em 24 de Julho de 2002, enquanto a ré CC, SA realizava trabalhos de desmontagem da segunda viga transversal, e encontrando-se já desmontados os painéis referenciados na sequência de desmontagem Revisão B, a parte da viga de lançamento que se encontrava montada sob o tabuleiro esquerdo do viaduto caiu;

ao) o acidente ocorreu por se ter iniciado a desmontagem das vigas transversais referidas no ponto 14 da sequência de desmontagem denominada Revisão B, que constitui fls. 436/438 dos autos, sem que previamente tivessem sido retirados os contrapesos referidos no ponto 15, o que originou que ao efectuar-se aquela operação, encontrando-se a viga (metade) apoiada em 3 pontos, esta entrasse em situação desequilíbrio, tendo as cargas envolvidas determinado a sua queda, com o esclarecimento de que a verificação da estabilidade que esteve na génese da Revisão B partiu do pressuposto de que a viga estava apoiada em quatro pontos;

ap) as Rés “BB” e “CC” não tinham outro conhecimento do processo de desmontagem da viga – resposta ao quesito 27º;

aq) a assistência técnica a prestar pela Ré “DD” teria de ser solicitada pela Ré “CC” e seria prestada apenas durante seis semanas após essa solicitação – resposta ao quesito 30º;

ar) a Ré “CC” não chegou a requerer que a Ré “DD” prestasse a assistência técnica prevista nas cláusulas contratuais – resposta ao quesito 31º;

as) a Ré “DD” forneceu à Ré “BB” um manual de operações que descreve as operações de instalação e a funcionalização do equipamento – resposta ao quesito 33º;

at) a Ré “DD” não teve qualquer intervenção nas operações das gruas e de montagem e desmontagem da viga de lançamento – resposta ao quesito 35º;

au) no momento da ocorrência do acidente descrito, a Ré “DD” não se encontrava a acompanhar a operação de desmontagem, por não ter sido solicitada para esse efeito, nem sequer tendo sido avisada de que tal operação ia decorrer – resposta ao quesito 36.º.

Foram colhidos os vistos.

Conhecendo,

1 – Matéria de facto;

2 – Poderes de cognição do julgador;

3 – Actividades perigosas;

4 – Conclusões.

1 – Matéria de facto

No primeiro ponto do seu acervo conclusivo, as recorrentes insurgem-se contra a decisão dos pontos da matéria de facto (af; am; al e ap) assacando-lhes contradição inviabilizadora da decisão jurídica e casual da baixa do processo, nos termos do n.º 3 do artigo 729.º do Código de Processo Civil.

A mesma questão já fora suscitada na apelação (e decidida no aresto recorrido) embora aí não tenha sido suficientemente explanada.

Recorde-se, antes de mais, que estamos no âmbito do recurso de revista com grande limitação dos poderes deste Supremo Tribunal quanto à matéria de facto.

Isto porque o princípio é cumprir às instâncias apurar a matéria de facto relevante para a solução do litígio, só a Relação podendo emitir um juízo de censura sobre a apurada na 1ª instância.

O STJ, e salvo situações de excepção legalmente previstas, só conhece matéria de direito, sendo que, no âmbito do recurso de revista, o modo como a Relação fixou os factos materiais só é sindicável se foi aceite um facto sem produção do tipo de prova para tal legalmente imposto ou tiverem sido incumpridos os preceitos reguladores da força probatória de certos meios de prova.

O Supremo Tribunal de Justiça é, por isso, tribunal de revista, ex vi dos artigos 26º da LOFTJ e 722º do CPC, com as excepções acima referidas.

E, pois, muitíssimo limitada intervenção na matéria de facto apenas podendo averiguar da observância das regras de direito probatório material – nº 2 do citado artigo 722º – ou mandar ampliar a decisão sobre a matéria de facto – nº 3 do artigo 729º.

São as instâncias que têm de apurar a factualidade relevante cabendo à Relação a última palavra.

E à Relação que compete censurar as respostas ao questionário ou anular a decisão proferida em primeira instância, no uso dos poderes que lhe são conferidos pelos nºs 1 e 4 do artigo 712º da lei processual.

E mesmo aí, não se olvide que “a garantia deste duplo grau de jurisdição em sede de matéria de facto nunca pode envolver, pela própria natureza das coisas, a reapreciação sistemática e global de toda a prova produzida em audiência, visando apenas a detecção e correcção de pontuais, concretos e seguramente excepcionais erros de julgamento, incidindo sobre pontos determinados da matéria de facto.” (apud preâmbulo do DL no 39/95, de 15 de Fevereiro).

E a Relação até usou da faculdade do citado artigo 712.º do diploma adjectivo alterando alguma da factualidade dada por assente (respostas aos quesitos 24º e 25º) e deixando intocadas as respostas aos artigos da base instrutória sob controvérsia (cfr., a propósito, e “inter alia” os Acórdãos desta conferência de 18 de Abril de 2006 – 06ª871 – e de 21 de Novembro de 2006 -06 A3489).

Outrossim, não é caso de uso, por este Supremo Tribunal, da faculdade do n.º 3 do artigo 729º do Código de Processo Civil.

Vejamos,

Provou-se nos pontos em crise:

“af) a FF é representante da DD em Portugal” – resultado da resposta aos quesitos 14º e 15º;

“al) em 3 de Julho de 2002 a FF remeteu à Ré CC outra sequência de desmontagem” – resultado da resposta ao quesito 22º;

“am) tendo por base tal sequência a Ré CC iniciou os trabalhos de desmontagem da viga – resultado da resposta ao quesito 23º;

“ap) as Rés BB e CC não tinham outro conhecimento do processo de desmontagem da viga” – resultado da resposta ao quesito 27º.

Ora não se alcança, por resultante do teor das respostas, qualquer contradição com outros factos dados por provados, designadamente entre o al) e o ag) já que aquele se reporta a “outra sequência de desmontagem”, que não à comunicada em 24 de Junho de 2002 (ag); nem com o ak) reportado a 26 de Junho de 2002, sendo também anterior ao descrito em al), de 3 de Julho seguinte; nem sequer com o am) que surge em perfeito seguimento do al).

Quanto ao ar) – “A Ré CC não chegou a requerer que a Ré DD prestasse assistência técnica prevista nas cláusulas contratuais”, resultado da resposta ao quesito 31.º - não se afigura em contradição com os já referidos pois nos primeiros surge uma “sequência (ou “processo”) de desmontagem” sendo que aí há uma conexão à assistência técnica que não se provou (cf. as respostas negativas aos quesitos 13.º e 21.º) tivesse sido pedida pela “CC” (através da “FF”, à “DD”).

Recorde-se que, como bem refere o Acórdão recorrido, “o envio de uma sequência de desmontagem não acarreta necessariamente a prestação de assistência técnica, desde logo por este último conceito abarcar uma realidade mais complexa e ampla do que o da sequência de desmontagem”.

Assim será considerando que a assistência técnica é o “genus”, implicando toda uma planificação e acervo de cálculos e procedimentos que, entre eles, inclui a “sequência” ou “faseamento operacional”.

Poderá, quando muito, afirmar-se que existiu uma fase em que houve aconselhamento técnico mas daí não é licito inferir a assistência técnica em toda a sua amplitude.

Ora sem patente contradição na matéria de facto apurada pelas instâncias ou sem que a factualidade apurada se revele insuficiente para ulterior subsunção jurídica, essencial para a sorte da demanda, não pode lançar-se mão da faculdade do n.º 3 do artigo 729.º do Código de Processo Civil, já que este tem sempre subjacente contradições ou omissões (cf. v.g. Conselheiro Rodrigues Bastos – “Notas ao Código de Processo Civil”, 286 e Conselheiro Amâncio Ferreira, “Manual dos Recursos em Processo Civil”, 6.ª ed., 277).

Improcedem, em consequência, os primeiros segmentos conclusivos das recorrentes.

2. Poderes de cognição do julgador.

Vêm, de seguida questionar o terem sido condenados com base na responsabilidade contratual, que não na delitual como haviam sido demandados, sendo que, assim, viram invertido o ónus da prova da sua culpa o que as surpreendeu, e limitou a defesa, tendo sido violado o disposto nos artigos 3.º, 664.º, 668.º, n.º1, alínea d) do Código de Processo Civil e 20.º da Constituição da República.

Que, outrossim, não só não se provaram os pressupostos da responsabilidade contratual nem os do artigo 493.º do Código Civil (n.º 1 e n.º 2, aqui por não se ter provado a qualificação da situação como actividade perigosa).

2.1- No tocante ao primeiro ponto, é clara a não razão das recorrentes.

Tudo se coloca no âmbito da causa de pedir e dos poderes de cognição do julgador.

Sabido que o conceito de causa de pedir é delimitado pelos factos jurídicos dos quais procede a pretensão que o demandante formula.

“Trata-se do facto jurídico concreto ou específico invocado pelo autor, como fundamento da sua pretensão e destina-se, além do mais, a impedir que o demandante seja compelido a defender-se de toda e qualquer possível causa de pedir só tendo que defender-se da concretamente invocada pelo autor.” (Prof. Vaz Serra, RLJ, 109, 313).

Como se disse no Acórdão de 27 de Abril de 2006 – 06 A945 – desta Conferência, da causa de pedir emerge o direito que o Autor pretende fazer valer. “Esse direito não pode ter existência (e por vezes nem pode identificar-se) sem um acto ou facto jurídico que seja legalmente idóneo para o condicionar ou produzir (Prof. Manuel de Andrade, in “Noções Elementares de Processo Civil”. 1979, 11) (…) O Prof. Castro Mendes (“Do Conceito de Prova em Processo Civil”, 140 e 141) afirma que a “causa petendi” tem de ser especificada ou determinada, tem de consistir em factos ou circunstâncias concretas ou individualizadas. “A causa de pedir é aposta pela lei ao objecto do processo, como elemento delimitador deste, ao lado do pedido. Objecto próximo do processo será então o pedido, delimitado em si e por certa causa de pedir.” (in “Direito Processual Civil”, II, 1969, 11).”

E, de acordo com o artigo 264.º do Código de Processo Civil “as partes cabe alegar os factos que integram a causa de pedir e aqueles em que se baseiam as suas excepções” (n.º1), sendo que o julgador “só pode fundar a decisão nos factos alegados pelas partes, sem prejuízo do disposto nos artigos 514.º e 665.º, de atender, ainda que oficiosamente, aos factos instrumentais que resultem da instrução e da discussão da causa e, finalmente, os factos que sejam “complemento ou concretização de outros” (…) “desde que a parte interessada manifeste vontade de deles se aproveitar” e garantido, que seja, o contraditório (n.º 2 e 3).

Para além deste preceito e dos artigos 273.º n.º 1 (modificação da causa de pedir) e 660.º, n.º 2 (questões a conhecer em sede de decisão e seus limites – artigo 661.º, n.º 1) importa aqui acentuar o princípio do artigo 664.º: “O juiz não está sujeito às alegações das partes no tocante à indagação, interpretação e aplicação das regras de direito; mas só pode servir-se dos factos articulados pelas partes, sem prejuízo do disposto no artigo 264.º”.

O demandante, antes de culminar com o pedido, tem de alegar os factos concretos que irão produzir o efeito jurídico que quer obter, de acordo com os artigos 467.º, n.º 1, alínea d) e 498.º, n.º 4, também do Código de Processo Civil, assim delimitando (ou caracterizando precisamente) a sua pretensão (cf., v.g., o Prof. Lebre de Freitas, in “Introdução ao Processo Civil”, 53).

Trata-se de consagrar inequivocamente o princípio do dispositivo ou, na expressão do Prof. Teixeira de Sousa, o “princípio da disponibilidade do objecto” ou da “disponibilidade objectiva”.

E é perante tal que o juiz fica limitado nos termos do citado n.º 1 do artigo 661.º do CPC e, consequentemente, impedido de ir para além desses limites, quer em condenação, quer em absolvição) ou encontrar coisa diversa da que lhe foi pedida.

Se só fosse esta, a questão não ofereceria grandes escolhos.

Mas a lei consagrou a teoria da substanciação, precisamente no n.º 4 do artigo 498.º da lei adjectiva.

A também chamada “teoria da consubstanciação” implica que a causa de pedir se traduza no facto jurídico em que se baseia o pedido.

É o título gerador do direito invocado que tem de se distinguir, em termos dogmáticos, quer dos factos materiais alegados, quer das razões jurídicas invocadas, devendo ser definida em função da qualificação jurídica dos factos necessários à determinação do direito (cf. o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 6 de Julho de 2004 – 04B853).

Daí que, quando se define – como atrás de procurou fazer – causa de pedir, tem de entender-se não como o acto, ou facto jurídico, abstracto mas em concreto (aquele, o certo, o que foi determinado, o que o Autor individualizou). (cf., o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 8 de Julho de 2003 -03 A1848 – relatado pelo, aqui, 2.º adjunto).

É então que é exercida a função delimitadora, impedindo o julgador de ultrapassar essa barreira, deixando-lhe, tão-somente, a liberdade de buscar, interpretar e aplicar as regras do direito.

Já Pereira e Sousa distinguira causa próxima (o direito) e causa remota (o facto constitutivo do direito) - in “Primeiras Linhas de Processo Civil”, nota 261 – e Dias Ferreira referia-se-lhe como “identidade do direito”, consistindo em “ser o mesmo facto jurídico que é o fundamento directo e imediato do pedido.” (in “Código Civil Anotado”, IV, 383).

O Acórdão, também deste Supremo Tribunal, de 3 de Fevereiro de 2005 – 04B4773 – refere que “inspirada pelo princípio da consubstanciação, a causa de pedir é envolvida, além do mais, pelas características da facticidade e da concretização, estruturando-se na envolvência dos factos concretos correspondentes à previsão das normas substantivas concedentes da situação jurídica alegada pelas partes, independentemente da respectiva valoração jurídica.”

2.2- Assentes os conceitos, e da leitura atenta da petição inicial, pode concluir-se que a Autora formulou um pedido de indemnização alegando factos integradores de negligência no processo de desmontagem de uma viga de lançamento que, por isso, veio a desequilibrar-se, provocando danos nas gruas.

Ora, como assumira, por contrato de seguro do dono, a responsabilidade pelos danos, teve de satisfazer o respectivo pagamento, cujo reembolso pede, agora, aos autores do ilícito.

Trata-se de causa de pedir complexa que tanto podia gerar – em sede de interpretação dos factos alegados – responsabilidade contratual ou extra contratual.

Para ali chegar ter-se-ia o arrimo de na base estar o aluguer das gruas pela segurada e a não restituição destas incólumes, como impõem a alínea i) do artigo 1038.º e os artigos 1043.º e 1044.º do Código Civil.

Mas para defender a responsabilidade aquiliana, atentar-se-ia na invocação pela Autora, “ab initio”, do n.º 1 do artigo 493.º do Código Civil.

Ora, o que as instâncias fizeram foi subsumir os factos provados à responsabilidade contratual embora, “ex abundantia”, “in fine”, e em relação à Ré “CC”, tivesse sido feito um apelo ao n.º 2 do artigo 493.º do Código Civil.

Crê-se que, e face ao que acima se explanou quanto ao princípio da substanciação, ao terem sido alegados factos concretos permissivos de integrarem qualquer das modalidades de responsabilidade, as instâncias não andaram mal ao procederem a eventual “convolação” da responsabilidade extra-contratual para a responsabilidade contratual.

Podiam fazê-lo, por se conterem na mesma “causa petendi” e se terem limitado ao uso da faculdade do artigo 664.º do Código de Processo Civil, sem que tivessem contendido com o preceituado no artigo 264.º do mesmo diploma.

Ao fazê-lo não excederam pronúncia já que a diversa indagação, interpretação e aplicação das regras de direito não implica o extravasar os poderes de cognição referidos no n.º 2 do artigo 660.º do Código de Processo Civil.

E é neste preceito que se baliza o vício de limite a que se refere a alínea d) do artigo 668.º do mesmo Código.

Outrossim, não se diga ter-se tratado de decisão surpresa, geradora da preterição do contraditório (n.ºs 2 e 3 do artigo 3.º do Código de Processo Civil).

Certo que na responsabilidade contratual existe uma presunção de culpa do devedor (n.º 1 do artigo 799.º do Código Civil) o que, em regra, inexiste na responsabilidade aquiliana (n.º 1 do artigo 487.º do Código Civil).

Ali, recai sobre o incumpridor o ónus de provar que agiu com a diligência exigível em abstracto (tal como na apreciação da culpa na responsabilidade por facto ilícito – n.º 2 do citado artigo 799.º), só assim ilidindo a presunção de culpa.

Essa ilisão terá de consistir na alegação de factos ou circunstâncias excepcionais que reduzam ou neutralizem a censurabilidade da conduta.

Já na responsabilidade aquiliana – e nos casos (que também os há) em que não se perfile uma presunção legal de culpa é ao lesado que incumbe a sua prova.

Mas este regime não basta para que (caso o juiz convole a responsabilidade extra contratual para contratual) se diga que surpreendeu, e impediu o contraditório, da parte que estava comodamente a aguardar que o demandante provasse a sua culpa e passou a ter de a ilidir.

É que, por um lado, vale o princípio geral “da mihi factum dabo tibi jus”, que acima, detalhadamente, se explanou e o demandado tem sempre de contar com diversa qualificação jurídica por ser seu dever conhecer a não vinculação do julgador nessa área; de outra banda teve oportunidade de impugnar (negando-os, desvalorizando-os ou justificando) os factos alegados que permaneceram intocados; finalmente à responsabilidade contratual aplicam-se subsidiariamente as normas da aquiliana pelo que os pressupostos, em muitos pontos, se aproximam.

Nesta parte também falece a razão dos recorrentes.

3. Actividades perigosas

Resta, finalmente, abordar o argumento final da aplicação do n.º 2 do artigo 493.º do Código Civil.

Aí se encontra (tal como no n.º 1) uma presunção legal de culpa na responsabilidade extra contratual.

Mas, enquanto o n.º 1 se reporta à omissão do dever de vigilância, o n.º 2 regula o “exercício de uma actividade perigosa”; quer “por sua própria natureza ou pela natureza dos meios utilizados”.

Foi também com este último fundamento que o Acórdão recorrido imputou culpa às recorrentes, já que considerou que “a actividade de montagem e desmontagem da viga de lançamento deve ser qualificada como perigosa por sua própria natureza, perigosidade esta que derivava do elevado peso do equipamento e complexidade e dificuldade técnica da operação, bem como do risco de queda de objectos e da própria estrutura.”

E decidiu bem.

Vejamos.

3.1. Como acima se acenou, o n.º 2 do artigo 493.º do Código Civil contém uma presunção de culpa só ilidível pelo causador dos danos quando mostre que empregou todas as providências exigidas pelas circunstâncias com o fim de as prevenir (cf., a propósito, e entre muitos outros, os Acórdãos do STJ de 28 de Maio de 1974, de 22 de Julho de 1975, de 3 de Fevereiro de 1976 – este tirado em reunião de secções – e de 4 de Maio de 1976 – BMJ, 237-231, 249-480, 254-180 e 257-121, respectivamente, e Assento de 21 de Novembro de 1979 – 06 8004).

O que deve entender-se por actividade perigosa tem sido objecto de algum tratamento jurisprudencial e doutrinário, que, contudo, surge mais no apreciar acções concretas do que numa conceptualização geral.

Assim não o será a condução-circulação automóvel (cf. o Assento citado); a actividade de construção civil (v.g., os Acórdãos do STJ de 12 de Fevereiro de 2004 – P.º 3883/03; de 27 de Novembro de 2004 – P.º 25/04), embora se recorde dever atentar-se na fase de construção e no tipo de acto a decorrer aquando do evento (Acórdão do STJ de 10 de Outubro de 2007 – 07S2089); mas são a manipulação de líquidos corrosivos e o fabrico de explosivos (Dr. Ribeiro de Faria – “Direito das Obrigações”, I, 1990, 480); o funcionamento de um catterpillar (Acórdão do STJ de 12 de Dezembro de 1995 – CJ/STJ III-3-153); a condução de energia eléctrica em alta tensão por linhas aéreas (Acórdão do STJ de 25 de Março de 2004 – 04 A521).

Entende-se que a qualificação deve ser feita caso a caso e segundo critério naturalístico.

Mas deve ser sempre classificada como perigosa quando, em si mesma, ou pelos meios empregues para a levar a efeito, seja apta para produzir danos.

Actualmente, o respectivo exercício é, em regra, sujeito a normas técnico-regulamentares para minorar o perigo que objectivamente produzem.

Daí que, e para além da apreciação casuística, há actividades que notoriamente são perigosas porque, e na definição do Prof. Vaz Serra, “criam para os terceiros um estado de perigo, isto é, a possibilidade de receber dano, uma probabilidade maior do que a normal noutras actividades” (BMJ 53-387), ou, como refere o Prof. Almeida Costa, por terem ínsita, ou envolverem “uma possibilidade maior de causar danos do que a verificada nas restantes actividades em geral”. (in “Direito das Obrigações”, 5.ª ed., 473).

Chegados pois ao critério de aplicação caso a caso (como, entre outros, Profs. Pires de Lima e A. Varela, “Código Civil Anotado”, I, 4.ª ed., 495) mas sem nunca descurar a natureza da actividade em si ou dos meios para a praticar, segundo a experiência comum, o sentir do homem médio e a sensibilidade do legislador (baseado em perícias técnico-cientificas) ao regular o exercício da actividade como tal.

3.2. Perante o que fica dito, e verificado que a viga de lançamento tinha cerca de 100 toneladas de peso e 40 metros de comprimento, que era montada a cerca de 30 metros de altura e constituída por extensões, apoios e contrapesos, não há dúvidas ser tr operação perigosa a sua montagem ou desmontagem, por implicar manipulação de estrutura muito pesada e colocada a grande altura.

Aliás, e transpondo para o direito interno a Directiva n.º 92/57 CEE do Conselho, de 24 de Junho, o Decreto-Lei n.º 155/95, de 1 de Julho, considerou trabalho que implica riscos especiais para a segurança dos trabalhadores (actividade perigosa, portanto) a “montagem e desmontagem de elementos pré-fabricados ou outros, cuja forma, dimensão ou peso exponham os trabalhadores a risco grave” – n.º 10 do Anexo II referido ao n.º 3 do artigo 6.º (“riscos especiais para a segurança e saúde”).

Assim sendo, e ainda que não tivessem desde logo ilidido a culpa apurada em sede de responsabilidade contratual, sempre às recorrentes falharia razão pois não afastaram a presunção de culpa do artigo 493.º, n.º 2 do Código Civil.

O resultado final, seria, pois, o mesmo quer se optasse pela responsabilidade aquiliana, quer pela resultante do ilícito negocial, não havendo qualquer limitação no seu direito de defesa, tal como insinuam nas alegações de recurso.


4 – Conclusões

Do exposto pode concluir-se que:

a) O STJ, salvo as situações de excepção legalmente previstas só conhece matéria de direito, sendo que, no âmbito do recurso de revista, o modo como a Relação fixou os factos materiais só é sindicável se foi aceite um facto sem a produção do tipo de prova para tal legalmente imposta ou tiverem sido incumpridos os preceitos reguladores da força probatória de certos meios de prova.

b) É à Relação que compete a censura das respostas aos artigos da base instrutória no uso normal dos poderes que lhe conferem os n.ºs 1 e 4 do artigo 712.º do Código de Processo Civil.

c) O Supremo Tribunal de Justiça só pode usar da faculdade do nº 3 do artigo 729º do Código de Processo Civil, perante patente contradição da matéria de facto apurada pelas instâncias ou se a mesma for de tal modo omissa que se revele insuficiente para ulterior subsunção, essencial para a sorte da demanda.

d) O conceito de causa de pedir é delimitado pelos factos jurídicos dos quais procede a pretensão que o demandante formula, cumprindo as partes a alegação desses factos, apenas nos quais o juiz funda a sua decisão, embora possa atender, ainda que “ex officio”, aos instrumentais, que resultem da instrução e da discussão e aos que sejam complemento ou concretização de outros.

e) O juiz está limitado pelo princípio do dispositivo, mas a substanciação (ou consubstanciação) permite-lhe definir livremente o direito aplicável aos factos que lhe é lícito conhecer, buscando e interpretando as normas jurídicas.

f) Tal princípio pode implicar uma convolação da situação jurídica alegada pelas partes e a sua submissão a diferentes normas.

g) Perante uma causa de pedir complexa, traduzida em factos que podem integrar quer a responsabilidade contratual, quer a responsabilidade aquiliana, o julgador pode inseri-los em qualquer dos institutos desde que, a final, não condene quantitativamente ou qualitativamente para além do pedido, isto é se mantenha nos limites do nº 1 do artigo 661º C.P.C..

h) Embora na responsabilidade contratual exista uma presunção de culpa (nº 1 do artigo 799º do Código Civil) que o devedor tem de ilidir, alegando e demonstrando factos, ou circunstâncias, excepcionais que reduzam ou neutralizem a censurabilidade da sua conduta, também na responsabilidade extracontratual (cuja regra é o ónus da prova da culpa cumprir ao lesado (n.º 1 do artigo 487º CC) existem casos de culpa presumida, sendo um deles a do nº 2 do artigo 493º do Código Civil.

i) Se o juiz pode subsumir livremente ao factos ao direito e não está vinculado à qualificação jurídica da demandante, o demandado tem de lidar com os factos alegados, negando-os, desvalorizando-os ou justificando-os, não sendo surpreendido pela integração que o julgador fez.

j) Ademais, à responsabilidade contratual sempre se aplicam subsidiariamente as normas da responsabilidade aquiliana, que é matriz de toda a responsabilidade civil.

k) A qualificação de uma actividade como perigosa – quer em si mesma, quer no seu exercício – deve ser feita casuisticamente atentando no estado de perigo anormal criado em concreto e baseando-se em indícios consistentes na experiência comum, no sentir do homem médio e na sensibilidade do legislador (que, em regra baseado em pareceres técnico-científicos) a regulou como tal.

l) A operação de montagem e desmontagem de uma viga de lançamento (com cerca de 100 toneladas e a 30 metros de altura) constituída por várias peças, é uma actividade perigosa e como tal qualificada no Anexo II nº 10, reportado ao nº 3 do artigo 6º do Decreto-Lei nº 155/95, de 1 de Julho, que transpôs para o direito interno a Directiva nº 92/57 CEE do Conselho, de 1 de Julho.

Nos termos expostos, acordam negar a revista.

Custas pelas recorrentes.

Lisboa, 14 de Maio de 2009

Sebastião Póvoas (Relator)
Moreira Alves
Alves Velho