Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
07B2541
Nº Convencional: JSTJ000
Relator: SALVADOR DA COSTA
Descritores: POSSE
POSSE PÚBLICA
POSSE PACÍFICA
POSSE DE BOA FÉ
CORPUS
ANIMUS POSSIDEND
USUCAPIÃO
Nº do Documento: SJ20070913025417
Data do Acordão: 09/13/2007
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADO PROVIMENTO
Sumário :
1. O apossamento traduz-se na aquisição unilateral da posse por via do exercício de um poder de facto, ou seja, pela prática reiterada, com publicidade, de actos materiais correspondentes ao exercício do direito.
2. A expressão anexação da horta significa, no contexto, a acção da antecessora dos recorridos de fazer acrescer ao seu prédio urbano a parcela de terreno designada por horta.
3. Tendo os recorridos exercido, desde 1975 até à notificação da reconvenção aos recorrentes, durante cerca de 28 anos, pública e pacificamente e de boa ré, com a intenção de se comportarem como titulares do direito de propriedade relativo àquela parcela de terreno, adquiriram-no originariamente por usucapião.
Decisão Texto Integral:
Acordam no Supremo Tribunal de Justiça


I
AA e BB intentaram, no dia 3 de Outubro de 2003, contra CC e DD acção declarativa de condenação, com processo ordinário, pedindo a declaração de serem os únicos donos do prédio de dois pavimentos e logradouro composto por determinada área de terreno, sito em ..., Monção, e a condenação dos réus na restituição daquela parcela de terreno e a absterem-se de actos obstativos ao seu aproveitamento.
Afirmaram terem adquirido o referido prédio a EE, por escritura pública de 10 de Agosto de 2000, com logradouro de cerca de 19,5 metros quadrados e por usucapião e que os réus ocupam a mencionada parcela de terreno com um tanque e arames para estender a roupa.
Na contestação, os réus declararam aceitar serem os autores donos do prédio mas negaram que ele integre a parcela de terreno, pondo em causa a confrontação sul por aqueles indicada, acrescentando terem comprado o seu prédio urbano com a referida parcela de terreno em 1975 e beneficiarem da usucapião e pediram, em reconvenção, a declaração de serem proprietários do mencionado prédio urbano e que dele faz parte a mencionada parcela de terreno.
Os autores, na réplica, impugnaram os factos em que os réus fundaram o pedido reconvencional, e, realizado o julgamento, foi proferida sentença, no dia 30 de Junho de 2006, por via da qual os réus foram absolvidos do pedido formulado pelos autores e declarados legítimos possuidores do indicado prédio urbano, composto de casa de morada e da mencionada parcela de terreno com a área de 39,58 metros quadrados.
Interpuseram os autores recurso de apelação, e a Relação, por acórdão proferido no dia 8 de Março de 2007, negou provimento ao recurso.

Os apelantes interpuseram recurso de revista, formulando, em síntese, as seguintes conclusões de alegação:
- admite-se que o termo anexação tenha sido aplicado em sentido amplo, mas resulta da escritura pública de compra e venda que dela apenas foi objecto um prédio urbano composto de casa de morada destinada à habitação, e não a parcela de terreno em causa, pelo que quanto a esta não dispõem os recorridos de título translativo do direito de propriedade;
- ao referirem que a parcela de terreno foi objecto de tradição verbal pela anterior possuidora, reconhecem os recorridos que houve anterior proprietária ou possuidora;
- como do documento respeitante ao alegado negócio translativo não consta a mencionada parcela de terreno, não existe constituto possessório nem inversão do título de posse;
- a pessoa que figura como vendedora na escritura de compra e venda invocada pelos
recorrentes e estes não consideraram nem consideram os recorridos proprietários do logradouro;
- o acórdão não fez a melhor aplicação dos artigos 1263º a 1265º do Código Civil e deve improceder o pedido reconvencional.

II
É a seguinte a factualidade em que assentou o acórdão recorrido:
1. Em escritura pública de 8 de Junho de 1953, outorgada no Cartório Notarial de Monção, Manuel ..., por um lado, e Amâncio ..., em representação legal de ..., por outro, declararam, os primeiros vender e a última comprar, por 2 000$, uma casa com um pavimento, sita no lugar de Gandarela, a confrontar a norte com ..., a sul com caminho público, a nascente com caminho de servidão e a poente com .... e outros, omisso na Conservatória do Registo Predial, inscrito na respectiva matriz sob o artigo urbano 72.º
2. Em documento escrito datado de 29 de Setembro de 1960, Manuel ... e Maria ..., por um lado, e Laurentina ..., por outro, declararam prometer, os primeiros vender e a última comprar, por 500$, uma horta sita no lugar de ..., Freguesia de ..., a confrontar do nascente com caminho público, do poente com a promitente compradora, do norte com os promitentes vendedores e do sul com caminho público.
3. Logo no dia do escrito referido sob 2, Laurentina ..., por intermédio dos pais, Amâncio e Zulmira, que viviam na casa mencionada sob 1 e trabalhavam terrenos arrendados por Manuel ...e Maria .., anexou essa horta, que corresponde à parcela de terreno mencionada sob 4, ao prédio urbano descrito em 1, e passou a aí plantar e semear couves, alfaces feijões, favas e similares, a tratar de quatro pés de videira, e a colher e fazer seus os frutos que aí se produziam, lavrando, semeando, adubando e mondando a terra, sem oposição de ninguém, à vista de toda a gente, de forma continuada, e na fé de exercer um direito próprio.
4. Em 1975, entre Laurentina ..., os seus pais e os réus foi acordado que a estes últimos ficariam a pertencer o prédio referido em 1 e a horta mencionada sob 2, e, desde aí, os réus passaram a cuidar dos quatro pés de videira existentes na horta e a recolher as respectivas uvas, e, há cerca de dez anos, passaram a plantar flores diversas, e há cerca de seis anos aí plantaram uma laranjeira e colheram os seus frutos, e instalaram lá um tanque de cimento para lavar roupa, e despejam águas sujas no solo da horta, mantêm de pé e conservam três postes ou esteios de pedra e quatro esteios de madeira sobrepostos com fiadas de arame, que cobre todo o espaço da parcela de terreno e serve de suporte para o crescimento da rama das videiras, mantêm esticados e funcionais os fios de arame que servem de estendal de roupa, reconstruíram o muro de suporte da mesma quando desmoronou parcialmente, sem oposição dos autores ou seus antecessores e de nenhuma outra pessoa, à vista de toda a gente, continuadamente, e na fé de exercerem um direito próprio.
5. Em escritura pública de 28 de Agosto de 1998, outorgada no Cartório Notarial de Monção, Laurentina ..., por um lado, e João ..., por outro, declararam, a primeira vender e o último comprar, por 200 000$, um prédio urbano, sito no lugar de Gandarela, freguesia de ..., concelho de Monção, composto de casa de morada com um pavimento destinada a habitação, com a área coberta de 69 metros quadrados, a confrontar do norte com Germano Teixeira, do sul com caminho público, do nascente com Laurentina... e do poente com Luís ..., descrito na Conservatória do Registo Predial sob o n.º 58 763, e inscrito na respectiva matriz sob o artigo 72.°.
6. A aquisição do direito de propriedade sobre o prédio mencionado sob 5, descrito sob o n.º 00405/290998, inscrito na matriz sob artigo 72.º, está inscrita na Conservatória do Registo Predial de Monção na titularidade dos réus desde 29 de Setembro de 1998.
7. Em escritura pública de 10 de Agosto de 2000 lavrada no Cartório Notarial de Monção, José ..., por um lado, e AA, por outro, declararam, o primeiro vender e o último comprar, por 2 800 000$, o prédio urbano, sito no lugar de Gandarela, freguesia de ..., concelho de Monção, composto de casa de morada com dois pavimentos, com a área de 148 metros quadrados, a confrontar a norte com Abel ..., a sul com terreiro do lugar, a nascente com caminho público e a poente com Germano ..., omisso na Conservatória do Registo Predial, e inscrito na respectiva matriz sob o artigo 71°.
8. No dia 11 de Agosto de 2000, AA e Maria CCdeclararam por escrito que: “por escritura de compra e venda outorgada em 10 de Agosto de 2000 no Cartório Notarial de Monção, a folhas 37 do Livro B/3-E, compramos a EE, solteiro, maior, residente no lugar de Gandarela, freguesia de ..., uma casa de morada, alboio e rossios, sito no lugar de Ganderela, freguesia de ..., inscrito na respectiva matriz sob os artigos 71º urbano e 747º rústico. Pelo presente declaramos que enquanto vivo for o referido vendedor – EE - autorizamos o mesmo a viver no alboio objecto da presente venda, que se compõe de quarto, cozinha e casa de banho.”
9. A aquisição do direito de propriedade sobre o prédio mencionado sob 7, descrito na Conservatória do Registo Predial de Monção sob o n.º 00570/010900, inscrito na matriz sob o artigo 71.º urbano, no qual a área indicada corresponde à respectiva área coberta e está inscrita naquela Conservatória na titularidade dos autores desde 1 de Setembro de 2000.
10. Os prédios mencionados sob 5 e 7 são contíguos, e a sul do último e a nascente do primeiro existe uma parcela de terreno com a área 39,58 metros quadrados, delimitada por muros de suporte dos lados nascente, poente e sul, e pela parede de um anexo coberto ou alboio do prédio mencionado sob 5 pelo lado norte, na qual os réus colocaram um tanque de lavar roupa e aí existem arames que têm sido utilizados por eles para estender e secar roupa.
11. Só recentemente os réus formalizaram as declarações referidas sob 4 pela escritura pública mencionada sob 5 por necessidade de licenciar uma obra de ampliação, sendo que a casa descrita sob 5 encontra-se separada da parcela descrita por um caminho usado por outras pessoas para aceder aos seus prédios.

III

A questão essencial decidenda é a de saber se os recorridos são ou não titulares do direito de propriedade sobre a parcela de terreno mencionada sob II 3.
Tendo em conta o conteúdo do acórdão recorrido e das conclusões de alegação dos recorrentes e dos recorridos, a resposta à referida questão pressupõe a análise da seguinte problemática:
- delimitação do objecto do recurso;
- a presunção de titularidade do direito de propriedade derivada do registo predial;
- estrutura da posse usucapiente;
- adquiriram ou não os recorridos o direito de propriedade sobre a parcela de terreno em causa por usucapião?
- síntese da solução para o caso espécie decorrente dos factos e da lei.

Vejamos, de per se, cada uma das referidas questões.

1.
Comecemos pela delimitação do objecto do recurso.
O objecto do recurso cinge-se às questões postas nas conclusões da alegação formuladas pelos recorrentes (artigos 684º, nº 3 e 690º, nº 1, do Código de Processo Civil).
Tendo em conta o conteúdo das conclusões de alegação formuladas pelos recorrentes, a única questão a resolver no recurso é a de saber se os recorridos adquiriram ou não por usucapião o direito de propriedade sobre a parcela de terreno que tem servido de logradouro ao prédio urbano em relação ao qual são titulares do direito de propriedade.
Assim, não é objecto do recurso a questão de saber se os recorrentes adquiriram ou não o direito de propriedade sobre a mesma parcela de terreno por aquisição derivada ou por usucapião.

2.
Atentemos agora na presunção de titularidade do direito de propriedade derivada do registo predial.
A principal finalidade do registo predial é a de dar publicidade à situação jurídica dos prédios, assegurando a quem adquirir direitos sobre eles o conhecimento de toda a realidade subjectiva e objectiva que os envolva (artigo 1.º do Código do Registo Predial).
Dada a sua natureza essencialmente declarativa e a sua função de publicitação de direitos sobre prédios, não pode o registo predial assegurar a efectiva existência do direito na titularidade da pessoa em nome da qual está inscrito.
Conforme resulta de II 5 e 6, a aquisição do direito de propriedade sobre a qual a mencionada parcela de terreno serve de logradouro, está inscrita no registo predial na titularidade dos recorridos, mas nem a descrição nem a inscrição se referem àquela parcela.
O registo definitivo constitui presunção de que o direito existe e pertence ao titular inscrito, nos termos em que o registo o define (artigo 7.º do Código do Registo Predial).
Em virtude da mencionada presunção, estão os recorridos dispensados de provar os factos constitutivos do seu direito de propriedade sobre o referido prédio propriamente dito, mas não em relação à mencionada parcela de terreno (artigo 350.º, n.º 1 do Código Civil).
Com efeito, o ónus da prova do contrário, ou seja, de que os titulares inscritos no registo predial não o são efectivamente, passou a caber aos recorrentes (artigos 344º, nº 1 e 350º, nº 1, do Código Civil).

3.
Vejamos agora a estrutura da posse usucapiente, ou seja, a idónea para a aquisição de direitos reais por usucapião.
A posse é o poder que se manifesta quando alguém actua por forma correspondente ao exercício do direito de propriedade ou de outro direito real (artigo 1251º do Código Civil).
Nela se diferenciam dois elementos, o corpus ou domínio de facto sobre a coisa, traduzido no exercício efectivo de poderes materiais sobre ela ou a possibilidade física desse exercício, e o animus, consubstanciado na intenção de exercer sobre a coisa, como seu titular, o direito real correspondente àquele domínio.
A aquisição da posse pode ser originária ou derivada, no primeiro caso por apossamento ou inversão do título e, no segundo, por tradição, constituto possessório ou sucessão por morte.
No caso vertente, dada a natureza da situação de facto envolvente, não relevam a aquisição da posse por sucessão por morte nem por inversão do título de posse, pelo que à mesma não nos referiremos.
Com efeito, apenas relevam no caso vertente, porque aos mesmos se referiram os recorrentes, o apossamento, a traditio e o constituto possessório.
O apossamento traduz-se na aquisição unilateral da posse por via do exercício de um poder de facto, ou seja, pela prática reiterada, com publicidade, de actos materiais correspondentes ao exercício do direito (artigo 1263º, alínea a), do Código Civil).
A traditio consubstancia-se, por seu turno, na transferência voluntária da posse entre vivos, em regra quando a transmissão da situação jurídica e da situação de facto coincidem, o que ocorre quando há entrega da coisa.
A entrega efectiva não é, porém, essencial à transmissão da posse, visto que a lei se basta, para o efeito, com a entrega simbólica (artigo 1263º, alínea b), do Código Civil).
A aquisição da posse através do constituto possessório pressupõe, em regra, a transmissão pelo possuidor, sem entrega da coisa, do direito real relativo àquela (artigo 1264º, nº 1, do Código Civil).
Quem suceder na posse de outrem por título diverso da sucessão por morte pode juntar à sua a posse do antecessor, e se a posse deste for de natureza diferente da posse do sucessor, a acessão só ocorre nos limites da de menor âmbito (artigo 1256º do Código Civil).
Reporta-se este artigo à soma facultativa de situações consecutivas de posse propriamente dita, isto é, com corpus e animus, independentemente da natureza do respectivo acto translativo.
A posse mantém-se enquanto durar a actuação correspondente ao exercício do direito ou a possibilidade de a continuar, e presume-se que continua em nome de quem a começou (artigo 1257º Código Civil).
Assim, embora seja o corpus que marca a existência e a duração da posse, a sua conservação não depende em absoluto da continuidade dos actos materiais. Com efeito, se a posse se mantém enquanto haja a possibilidade de continuar a actuação correspondente ao exercício do direito, a relação da pessoa com a coisa legalmente exigida para o efeito não implica necessariamente que ela se traduza em actos materiais.
Nesta perspectiva, há corpus enquanto a coisa estiver submetida à vontade do sujeito em termos de ele poder, querendo, renovar a actuação material sobre ela.
A posse de direitos reais de gozo, incluindo o direito de propriedade, mantida por certo lapso de tempo, faculta, em regra, ao possuidor a aquisição por usucapião do direito a cujo exercício corresponde a sua actuação (artigo 1287º do Código Civil).
Os efeitos da invocação da usucapião revertem retroactivamente à data do início da posse propriamente dita (artigo 1288º do Código Civil).
É titulada se fundada em algum modo legítimo de adquirir - negócio jurídico abstractamente idóneo à transferência do direito - independentemente do direito de quem transmite e da validade substancial do negócio jurídico (artigo 1259º, nº 1, do Código Civil).
É de boa fé quando o possuidor ignorava, ao adquiri-la, que lesava o direito de outrem, presumindo-se de boa fé a posse titulada e de má fé a posse não titulada e a que for adquirida por violência, ainda que seja titulada (artigo 1260º do Código Civil).
A ignorância a que a lei se reporta envolve, em regra, a convicção do exercício de um direito próprio, adquirido por título válido, sendo o momento relevante para o efeito o da aquisição da posse, seja por apreensão da coisa, seja por tradição material ou simbólica.
É pacífica a posse adquirida sem violência, considerando-se violenta a obtida pelo uso de coacção física ou moral, e pública a que é exercida de modo a poder ser conhecida pelos interessados (artigo 1261º do Código Civil).
O possuidor goza da titularidade do direito, excepto se existir, a favor de outrem, presunção fundada no registo anterior ao início da posse (artigo 1268º, nº 1, do Código Civil).
A regra é, pois, a de que a posse implica a presunção legal da titularidade do direito, e a excepção no caso de colisão entre ela e a presunção derivada do registo de um direito anterior ao início da posse, caso em que prevalece esta última presunção.
Assim, no caso de o início da posse em relação a um direito ser anterior ao seu registo predial, prevalece a presunção derivada da posse sobre a presunção derivada do registo.
O possuidor goza da presunção da titularidade do direito. A excepção da segunda parte consiste em dar prevalência à presunção fundada no registo de um direito anterior ao início da posse se houver colisão entre a presunção resultante da posse e a resultante do registo.
Havendo título de aquisição e registo deste, a usucapião tem lugar quando a posse de boa fé durar dez anos contados desde a data do registo ou, ainda que seja de má fé, se houver durado quinze anos contados da mesma data (artigo 1294º do Código Civil).
Inexistindo registo do título ou da mera posse, a usucapião só ocorre no termo do prazo de quinze anos se a posse for de boa fé, e de vinte anos se for de má fé ou de boa fé não titulada (artigo 1296º do Código Civil).
Na hipótese de a situação de posse haver sido constituída por violência ou de modo oculto, a contagem do prazo de usucapião começa cessada que seja a violência ou tornada a posse pública (artigo 1297º do Código Civil).

4.
Atentemos agora na questão de saber se os recorridos adquiriram ou não, por usucapião, o direito de propriedade sobre a parcela de terreno em causa.
Os recorrentes entendem no sentido negativo, sob o argumento, por um lado, de a escritura pública outorgada no dia 28 de Agosto de 1998 não constituir título translativo desse direito, por dela não constar aquela parcela de terreno e a situação não configurar constituto possessório ou inversão do título da posse.
E, por outro, por não estar assente que EE lhes vendeu bens alheios e que a posse dos recorridos só relevaria se todas as pessoas reputadas como proprietárias da parcela de terreno àqueles reconhecessem como tal.
É exacto que na aludida escritura publica se não faz referência à parcela de terreno em causa e que os restantes factos provados não revelam qualquer venda de bens alheios ou situação de constituto possessório ou inversão do título de posse.
Mas isso não pode servir para afastar a conclusão de que os recorridos são titulares do direito de propriedade sobre a mencionada parcela de terreno, ou seja, do logradouro do prédio mencionado sob II 5.
Conforme já se referiu, uma das formas de aquisição do direito de propriedade, reportada ao momento do início da posse, é a usucapião (artigos 1288º, 1316º e 1317º, alínea c), do Código Civil).
A expressão anexou a horta significa, conforme foi considerado no acórdão recorrido, a acção de Laurentina ... de fazer acrescer ao prédio urbano mencionado sob II 1 a parcela de terreno em causa.
Na sequência do referido apossamento, ela passou a exercer sobre a referida parcela de terreno actos de posse formal correspondentes ao exercício do direito de propriedade de forma pública, pacífica e continuada, com intenção de se comportar como seu titular.
Quinze anos depois do referido acto unilateral de apossamento, sob mero acordo da proprietária do prédio em causa e dos recorridos, estes foram tidos como seus donos ou proprietários, beneficiaram da respectiva tradição material e, a partir de então, passaram a operar actos de posse formal sobre o mesmo correspondentes ao exercício do direito de propriedade de forma pública e pacífica e com a intenção de se comportarem como titulares do referido direito.
Continuou a referida situação de posse formal sobre a mencionada parcela de terreno e, vinte e três anos depois do referido contrato destituído de forma, as partes formalizaram-no, ou seja, celebraram o contrato de compra e venda do prédio e da faixa de terreno em causa sob a forma exigida de escritura púbica.
Conforme já resulta do exposto, a usucapião constitui uma forma originária de constituição de direitos reais de gozo por via da transformação de uma situação de facto objectiva e subjectiva sobre uma coisa, de determinadas duração e características, em situação jurídica.
Essencial ao começo do prazo de aquisição do direito real por usucapião é que a mencionada situação de posse seja pública e pacífica, sendo que os requisitos de justo título de aquisição, registo deste e boa fé apenas relevam no que concerne ao prazo de duração da posse (artigos 1294º a1297º do Código Civil).
No caso vertente, relativamente à mencionada parcela de terreno, estamos perante uma situação de posse envolvida de corpus e de animus, pública e pacífica, começada sob a acção de Laurentina Valença e continuada por acção dos recorridos, idónea à aquisição do respectivo direito de propriedade por usucapião.
Independentemente da junção da posse de Laurentina ... à posse dos recorridos, a que se reporta o artigo 1256º do Código Civil, o certo é que os últimos, desde 1975, data da tradição da posse sobre a mencionada parcela de terreno a seu favor, até à notificação da reconvenção, ou seja, durante tempo manifestamente excedente ao máximo prazo de usucapião, beneficiaram da mencionada situação de posse usucapível.
Em consequência, ao invés do que os recorrentes alegaram, a conclusão não pode deixar de ser no sentido de que os recorridos adquiriram por usucapião o direito de propriedade sobre a parcela de terreno em causa.

5.
Vejamos finalmente a síntese da solução para o caso espécie decorrente dos factos e da lei.
Inscrita no registo predial a aquisição do direito de propriedade sobre o prédio urbano mencionado sob II 5 na titularidade dos recorridos, e não ililida pelos recorrentes a presunção da titularidade do direito de propriedade por parte dos primeiros, a conclusão é no sentido de que estes são os seus proprietários.
Os recorridos exerceram, desde 1975 até à data da notificação aos recorrentes da reconvenção por eles deduzida na acção intentada pelos últimos no dia 3 de Outubro de 2003, actos materiais de uso e fruição, com animus de titularidade do respectivo direito de propriedade, de boa fé, pública e pacificamente.
Exerceram, por isso, a posse formal sobre a mencionada parcela de terreno durante mais de vinte anos e, consequentemente, independentemente da acessão de posses, adquiriram o direito de propriedade sobre ela por usucapião.


Improcede, por isso, o recurso,
Vencidos, são as recorrentes responsáveis pelo pagamento das custas respectivas (artigo 446º, nºs 1 e 2, do Código de Processo Civil).


IV
Pelo exposto, nega-se provimento ao recurso e condenam-se os recorrentes no pagamento das custas respectivas.

Lisboa, 13 de Setembro de 2007.

Salvador da Costa ( relator)
Ferreira de Sousa
Armindo Luis