Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
23/04.0GDSCD-B.S1
Nº Convencional: 3ª SECÇÃO
Relator: OLIVEIRA MENDES
Descritores: RECURSO DE REVISÃO
SENTENÇA
TRIBUNAL EUROPEU DOS DIREITOS DO HOMEM
DIFAMAÇÃO
LIBERDADE DE EXPRESSÃO
INCONCILIABILIDADE DE DECISÕES
GRAVES DÚVIDAS SOBRE A JUSTIÇA DA CONDENAÇÃO
DIREITO AO RECURSO
CONSTITUCIONALIDADE
CASO JULGADO
INTERPRETAÇÃO RESTRITIVA
NON BIS IN IDEM
Data do Acordão: 11/15/2012
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO DE REVISÃO
Decisão: AUTORIZADA A REVISÃO
Área Temática: DIREITO INTERNACIONAL PÚBLICO - DIREITOS HUMANOS
DIREITO PROCESSUAL PENAL - RECURSOS EXTRAORDINÁRIOS
Doutrina: - Henriques Gaspar, intervenção do Senhor Conselheiro no colóquio organizado pelo Supremo Tribunal de Justiça por ocasião da Comemoração do 30º Aniversário da vigência da CEDH em Portugal, ocorrido a 10 de Novembro de 2008.
- Ireneu Cabral Barreto, “Convenção Europeia dos Direitos do Homem Anotada”, 3ª edição, pp.326/327.
- Pinto de Albuquerque no seu Comentário do Código de Processo Penal (4ª edição), p.1214.
Legislação Nacional: CÓDIGO DE PROCESSO PENAL (CPP): - ARTIGO 449.º, N.º1, ALÍNEA G).
Referências Internacionais: CONVENÇÃO EUROPEIA DOS DIREITOS DO HOMEM (CEDH): - ARTIGOS 10.º, 34.º, 41.º
Jurisprudência Nacional: ACÓRDÃO DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:
-DE 27.05.2009, PUBLICADO NA CJ (STJ), XVII, 2, 235.
Sumário :
I -O recorrente sustenta o seu pedido de revisão de sentença no fundamento previsto na al. g) do n.º 1 do art. 449.° do CPP, invocando a prolação de sentença pelo TEDH, instância a que recorreu nos termos do art. 34.° da CEDH, sob a alegação de que a sua condenação como autor material de um crime continuado de difamação agravada constitui uma ingerência no seu direito de liberdade de expressão, violadora do art. 10.° daquela CEDH.

II - O fundamento de revisão de sentença invocado pelo recorrente foi introduzido no nosso ordenamento jurídico-penal pelas alterações processuais operadas em 2007, concretamente pela Lei 48/07, de 29-08, fundamento que o legislador estendeu, também, ao processo civil, sendo resultado de recomendação adoptada pelo Comité de Ministros do Conselho da Europa, relativa ao reexame e reabertura de determinados processos ao nível interno na sequência de acórdãos do TEDH. Porém, na estrita literalidade da lei, foi bem mais longe.

III -Não só considerou admissível a revisão de sentença (condenatória) perante sentença proveniente de qualquer instância internacional, obviamente, desde que vinculativa do Estado português, como se limitou a exigir, como seu único pressuposto, a ocorrência de inconciliabilidade entre as duas decisões ou de graves dúvidas sobre a justiça da condenação.

IV -Verdadeiramente, o legislador de 2007, ao permitir a revisão de sentença em termos tão latos, instituiu, indirectamente, um novo grau de recurso, quer em matéria criminal, quer em matéria civil, grau de recurso inconstitucional, por notoriamente violador do caso julgado. Tenha-se em vista que a própria CEDH prevê como excepções ao caso julgado, em processo penal, a descoberta de factos novos ou recentemente revelados ou um vício fundamental no processo anterior. Por isso, entendemos que é mister proceder a uma interpretação restritiva da lei no que concerne ao fundamento de revisão recentemente criado e ora em causa no presente recurso, interpretação que deverá ser claramente assumida pela jurisprudência do STJ, designadamente nos casos em que se revele intoleravelmente postergado o princípio non bis in idem, obviamente na sua dimensão objectiva, ou outros direitos e princípios de matriz constitucional.

V - Interpretação restritiva que entendemos dever orientar-se no sentido dos princípios consignados na mencionada Recomendação, concretamente o princípio segundo o qual a reabertura de processos só se revela indispensável perante sentenças em que o TEDH constate que a decisão interna que suscitou o recurso é, quanto ao mérito, contrária à CEDH, ou quando constate a ocorrência de uma violação da CEDH em virtude de erros ou falhas processuais de uma gravidade tal que suscite fortes dúvidas sobre a decisão e, simultaneamente, a parte lesada continue a sofrer consequências particularmente graves na sequência da decisão nacional, que não podem ser compensadas com a reparação razoável arbitrada pelo TEDH e que apenas podem ser alteradas com o reexame ou a reabertura do processo, isto é, mediante a restitutio in integrum.

VI -Trata-se de limitações razoáveis que visam a harmonização entre o princípio non bis in idem, na sua dimensão objectiva (exceptio judicati), princípio inerente ao Estado de direito, e a necessidade de reposição da verdade e da justiça, designadamente quando estão em causa direitos fundamentais do cidadão, limitações impostas, também, pela necessidade de garantir, minimamente, a soberania nacional em matéria judicial.

VII - No caso vertente, estamos perante decisão do TEDH condenatória do Estado Português, na qual se considerou que a sentença condenatória proferida pelas instâncias nacionais contra o recorrente violou o art. 10° da CEDH, por se haver entendido que a sua condenação constitui uma ingerência no direito à liberdade de expressão. Nesta conformidade, há que conceder provimento ao recurso autorizando a revisão de sentença.

VIII - Quanto à peticionada revogação da sentença é evidente que a pretensão do recorrente terá que improceder, consabido que o ordenamento jurídico nacional permite, apenas, a revisão de sentença e não também recurso de revogação ou anulação.
Decisão Texto Integral:

Processo n.º 23/04.0GDSCD-B.S1

Recurso de Revisão n.º 52907/12

                                         *

AA, com os sinais dos autos, interpôs recurso extraordinário de revisão do acórdão proferido no processo comum com intervenção do tribunal singular n.º 23/04.0GDSCD, do Tribunal Judicial da comarca de Santa Comba Dão, que o condenou como autor material de um crime continuado de difamação agravada na pena de 200 dias de multa à taxa diária de € 7,00 e na indemnização de € 3,000,00[1].

No requerimento apresentado formulou as seguintes conclusões[2]:

«I. O presente recurso visa a revisão, nos termos dos artigos 449° a 466° do C.P.P., do Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, de 21 de Março de 2007, no processo nº 23/04.0GDSCD, que confirmou a condenação do ora recorrente AA pela prática de um crime de difamação agravada na forma continuada, p. e p. pelas disposições conjugadas dos arts. 180.° n.º 1, 184.° e 132.° n.º 2 al. j) do Código Penal.

II. O recurso de revisão inscreve-se nas garantias constitucionais de defesa, no princípio da revisão consagrado no nº 6, do artigo 29°, da Constituição da República Portuguesa: "os cidadãos injustamente condenados têm direito, nas condições que a lei prescrever, à revisão de sentença e à indemnização pelos danos sofridos ".

III. São fundamento e condição de admissibilidade da revisão, na versão dada pela alteração legislativa contemplada na Lei n.º 48/2007, de 29 de Agosto, entre outros, "Uma sentença vinculativa do Estado Português, proferida por uma instância internacional, for inconciliável com a condenação ou suscitar graves dúvidas sobre a sua justiça. " - Artigo 449°, nº 1, al. g) do C.P.P.

IV. No Acórdão de 20 de Outubro de 2009 proferido na Queixa nº 41665/07, o Tribunal Europeu dos Direitos do Homem (TEDH), por unanimidade, concluiu que a condenação do recorrente no processo nº 23/04.OGDSCD, foi desnecessária numa sociedade democrática, pelo que no caso concreto foi violado o artigo 10° da C.E.D.H., assim condenando o Estado Português, na sua qualidade de subscritor da Convenção Europeia dos Direitos do Homem.

V. A decisão do TEDH constitui fundamento legal de revisão da sentença condenatória nos termos do art. 449°, nº 1, al. g) do C.P.P. pelo que deverá, assim, ser revogada a decisão condenatória e substituída por outra que absolva o recorrente.

VI. Nestes termos deverá ser dado provimento ao presente recurso de revisão, revogando-se o acórdão que confirma a sentença condenatória e substituindo o mesmo por outro que absolva o recorrente do crime por que foi condenado, que oficie aos Serviços de Identificação Criminal para que seja cancelada definitivamente a condenação do registo criminal do ora recorrente e, ainda, que ordene a restituição da indemnização de € 3.010,00 (capital mais juros) paga ao assistente, assim se fazendo JUSTIÇA!».

É do seguinte teor a resposta apresentada pelo Ministério Público:

«1. Da decisão do TEDH:

Apreciando o pedido do arguido, que sustentava que a decisão do Estado Português que condenou o arguido, como autor material de um crime de difamação agravada, na forma continuada, atentava contra o seu direito de liberdade de expressão, garantido pelo artigo 10° da Convenção dos Direitos do Homem, o TEDH decidiu, para além do mais:

- declarar o pedido admissível quanto à violação do artigo 10° da Convenção dos Direitos do Homem;

- declarar que ocorreu violação do artigo 10° da Convenção dos Direitos do Homem.

2. Do fundamento do recurso de revisão:

Nos termos do preceituado no artigo 449°, nº 1, al. g) do Código de Processo Penal, "A revisão de sentença transitada em julgado é admissível quando (...) Uma sentença vinculativa do Estado Português, proferida por uma instância internacional, for inconciliável com a condenação ou suscitar graves dúvidas sobre a sua justiça".

Não restam dúvidas que existe clara inconcialibilidade de decisões dado que, enquanto os tribunais portugueses consideraram ter sido violado o direito à honra do assistente e condenaram o recorrente com esse fundamento, o TEDH considerou que tal condenação é desproporcional ao objectivo visado, não sendo necessária numa sociedade democrática, tendo havido violação do artigo 10° da Convenção dos Direitos do Homem.

A Convenção dos Direitos do Homem foi acolhida pela Constituição Portuguesa no artigo 16°, nos termos do qual "Os direitos fundamentais consagrados na Constituição não excluem quaisquer outros constantes das leis e das regras aplicáveis de direito internacional.

Sendo discutíveis os termos da recepção do direito internacional pactício, (se automática, se não automática) certo é que, no caso da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, a doutrina propende para o seu carácter supra legal, entre a Constituição e a lei ordinária (ver GOMES CANOTILHO, in Direito Constitucional e Teoria da Constituição, Almedina, 7."edição, p. 820), havendo mesmo quem defenda o seu carácter constitucional (ver JORGE MIRANDA, in Manual de Direito Constitucional, Tomo 2.°, p. 110).

Sendo certo que o Estado português ratificou a referida Convenção pela Lei nº 65/78, de 13 de Outubro e a mesma depositada em 9.11.1978, data em que entrou em vigor (neste sentido, cfr. IRINEU CABRAL BARRETO, in A Convenção Europeia dos Direitos do Homem, Coimbra Editora, 3.a edição - 2005, p. 31), dúvidas não há que ela vincula o Estado português.

Ora, o TEDH foi criado, nos termos do artigo 19° da Convenção, sendo que esta prevê, no seu artigo 46°, nº 1, que «As Altas Partes Contratantes obrigam-se a respeitar as sentenças definitivas do Tribunal nos litígios em que forem partes.».

Assim, dada a referida inconciliabilidade de decisões, uma vez que a decisão do TEDH coloca decisivamente em causa a condenação do recorrente pelos tribunais portugueses, dúvidas não que há fundamento para pretendida revisão de sentença.

Porém, Vossas Excelências melhor apreciarão, fazendo, como sempre».

O Exmo. Juiz prestou a seguinte informação:

«O arguido AA interpôs recurso extraordinário de revisão da sentença condenatória de que foi alvo nos autos a que estes se encontram apensos e por força da qual foi condenado como autor material de um crime de difamação agravada, na forma continuada, p. e p. pelos art. 180°, n.º 1, 184° e 132°, n.º 2, al. j), do CP na pena de 200 dias de multa, à taxa diária de € 7,00, num total de € 1.400,00.

Mais foi condenado nas custas do processo, com taxa de justiça de 4 UCs e 1/2 de procuradoria.

No pedido de indemnização civil deduzido por BB foi o arguido/demandado condenado a pagar a quantia de € 3.000,00 a título de indemnização por danos não patrimoniais, acrescida de juros de mora à taxa legal desde a data do trânsito em julgado até efectivo e integral pagamento.

Na sequência do recurso interposto junto do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem pelo arguido foi decidido: "Declarar o pedido admissível quanto à violação do art. 10° da Convenção Europeia dos Direitos do Homem e declarar que ocorreu violação do art. 10° da Convenção".

O arguido alicerça o presente recurso extraordinário na al. g) do n.º 1 do art. 449° do CPP a qual estatui que a revisão de sentença transitada em julgado é admissível quando:

"Uma sentença vinculativa do Estado Português, proferida por uma instância internacional, for inconciliável com a condenação ou suscitar graves dúvidas sobre a sua justiça".

                                                                    *

O Digno Magistrado do Ministério Público pronunciou-se no sentido de existir fundamento para a pretendida revisão de sentença.

                                                                    *

Cumpre, neste momento, informar sobre o mérito do pedido, nos termos do disposto no art. 454°, do CPP:

Ora, considerando que a decisão do TEDH incide sobre a questão de fundo apreciada por este Tribunal - saber se, em concreto, as expressões proferidas e utilizadas pelo arguido ofendiam a honra do assistente ou se, ao invés, se inseriam na sua liberdade de expressão, optando por esta última hipótese, propendemos a considerar que a decisão do TEDH é inconciliável com a decisão proferida por este Tribunal, havendo, assim, razão válida para o mérito do presente recurso».                                           

Igual posição assumiu nesta instância a Exma. Procuradora-Geral Adjunta.
Colhidos os vistos legais, cumpre agora decidir.
                                         *

O recorrente AA sustenta o seu pedido de revisão de sentença no fundamento previsto na alínea g) do n.º 1 do artigo 449º do Código de Processo Penal[3], invocando a prolação de sentença pelo Tribunal Europeu dos Direitos do Homem (TEDH), instância a que recorreu nos termos do artigo 34º, da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, sob a alegação de que a sua condenação como autor material de um crime continuado de difamação agravada constitui uma ingerência no seu direito de liberdade de expressão, violadora do artigo 10º daquela Convenção.

É do seguinte teor o dispositivo da sentença proferida pelo TEDH:

«Por estes motivos, este Tribunal, por unanimidade.

1 – Declara o pedido admissível quanto à violação do artigo 10 da Convenção e inadmissível na parte sobrante;

2 – Declara que ocorreu violação do artigo 10 da Convenção;

3 – Declara:

a) Que o Estado requerido deve pagar ao requerente, no prazo de 3 meses a contar do dia em que a presente decisão ficar definitiva, conforme o disposto no artigo 44 § 2 da Convenção, as quantias seguintes:

(i) 4445,96 Euros (quatro mil quatrocentos e quarenta e cinco euros e noventa e seis cêntimos), acrescidos de qualquer montante que possa ser devido a título de imposto, por danos materiais,

(ii) 4000 Euros (quatro mil euros), acrescidos de qualquer montante que possa ser devido a título de imposto, por danos patrimoniais;

(iii) 1500 Euros (mil e quinhentos euros), acrescidos de qualquer montante que possa ser devido pelo requerente a título de imposto, por custas e despesas;

b) A contar do termo do mencionado prazo e até ao pagamento, estes montantes serão majorados de um rendimento simples a taxa igual à taxa de facilidade de empréstimo do Banco Central Europeu aplicável durante esse período, acrescido de três pontos percentuais.

4 – Rejeita o pedido de compensação equitativa na parte sobrante».

O fundamento de revisão de sentença invocado pelo recorrente foi introduzido no nosso ordenamento jurídico-penal pelas alterações processuais operadas em 2007, concretamente pela Lei n.º 48/07, de 29 de Agosto, fundamento que o legislador estendeu, também, ao processo civil, sendo resultado de recomendação adoptada pelo Comité de Ministros do Conselho da Europa, na reunião ocorrida em 19 de Janeiro de 2000, relativa ao reexame e reabertura de determinados processos ao nível interno na sequência de acórdãos do TEDH[4].

Como referimos no acórdão deste Supremo Tribunal de 27 de Maio de 2009[5], o legislador de 2007, porém, na estrita literalidade da lei, foi bem mais longe.

Não só considerou admissível a revisão de sentença (condenatória) perante sentença proveniente de qualquer instância internacional, obviamente, desde que vinculativa do Estado Português[6], como se limitou a exigir, como seu único pressuposto, a ocorrência de inconciliabilidade entre as duas decisões ou de graves dúvidas sobre a justiça da condenação.

Verdadeiramente, o legislador de 2007, ao permitir a revisão de sentença em termos tão latos, instituiu, indirectamente, um novo grau de recurso, quer em matéria criminal, quer em matéria civil, grau de recurso inconstitucional, por notoriamente violador do caso julgado. Tenha-se em vista que a própria Convenção Europeia dos Direitos do Homem prevê como excepções ao caso julgado, em processo penal, a descoberta de factos novos ou recentemente revelados ou um vício fundamental no processo anterior[7]. Por isso, entendemos que é mister proceder a uma interpretação restritiva da lei no que concerne ao fundamento de revisão recentemente criado e ora em causa no presente recurso, interpretação que deverá ser claramente assumida pela jurisprudência deste Supremo Tribunal de Justiça, designadamente nos casos em que se revele intoleravelmente postergado o princípio non bis in idem, obviamente na sua dimensão objectiva, ou outros direitos e princípios de matriz constitucional[8].

Interpretação restritiva que entendemos dever orientar-se no sentido dos princípios consignados na Recomendação de 19 de Janeiro de 2000, do Conselho de Ministros do Conselho da Europa, atrás transcrita, concretamente o princípio segundo o qual a reabertura de processos só se revela indispensável perante sentenças em que o TEDH constate que a decisão interna que suscitou o recurso é, quanto ao mérito, contrária à Convenção, ou quando constate a ocorrência de uma violação da Convenção em virtude de erros ou falhas processuais de uma gravidade tal que suscite fortes dúvidas sobre a decisão e, simultaneamente, a parte lesada continue a sofrer consequências particularmente graves na sequência da decisão nacional, que não podem ser compensadas com a reparação razoável arbitrada pelo TEDH e que apenas podem ser alteradas com o reexame ou a reabertura do processo, isto é, mediante a restitutio in integrum.

É esta, aliás, a solução legislativa consagrada na lei processual penal francesa que permite, também, a revisão de sentença penal condenatória perante decisão proferida pelo TEDH[9]. Conforme estabelece o n.º 1 do artigo 652º do Código de Processo Penal francês, o reexame só é admissível perante sentença proferida pelo Tribunal Europeu dos Direitos do Homem, que declare que a condenação foi proferida com violação das disposições da convenção para protecção dos direitos do homem e das liberdades fundamentais ou dos seus protocolos adicionais, desde que pela sua natureza e gravidade, a violação constatada envolva para o condenado consequências que não possam ser compensadas com a reparação razoável atribuída nos termos do artigo 41º da Convenção[10].

Trata-se de limitações razoáveis que visam a harmonização entre o princípio non bis in idem, na sua dimensão objectiva (exceptio judicati), princípio inerente ao Estado de direito, e a necessidade de reposição da verdade e da justiça, designadamente quando estão em causa direitos fundamentais do cidadão, limitações impostas, também, pela necessidade de garantir, minimamente, a soberania nacional em matéria judicial[11].

Para além destas limitações, decorrentes da própria Recomendação, há que ter em consideração, ainda, a partir de uma interpretação histórica e teleológica, o desejo e a intenção do Comité de Ministros do Conselho da Europa que aprovou a Recomendação, desejo e intenção expressos na respectiva exposição de motivos, através da indicação das situações em que se justifica a revisão, quais sejam:

a) pessoas condenadas a longas penas de prisão e que continuam presas quando o seu caso é examinado pelo TEDH;

b) pessoas injustamente privadas dos seus direitos civis e políticos;

c) pessoas expulsas com violação do seu direito ao respeito da sua vida familiar;

d) crianças interditas injustamente de todo o contacto com os pais;

e) condenações penais que violem os artigos 10º ou 9º, porque as declarações que as autoridades nacionais qualificam de criminais constituem o exercício legítimo da liberdade de expressão da parte lesada ou exercício legítimo da sua liberdade religiosa;

f) nos casos em que a parte não teve tempo ou as facilidades para preparar a sua defesa nos processos penais;

g) nos casos em que a condenação se baseia em declarações extorquidas sob tortura ou sobre meios que a parte lesada nunca teve a possibilidade de verificar;

h) nos processos civis, nos casos em que as partes não foram tratadas com o respeito do princípio da igualdade de armas.

No caso vertente estamos perante decisão do TEDH condenatória do Estado Português, na qual se considerou que a sentença condenatória proferida pelas instâncias nacionais contra o recorrente AA violou o artigo 10º, da CEDH[12], por se haver entendido que a sua condenação constitui uma ingerência no direito à liberdade de expressão.

Nesta conformidade, tendo o TEDH considerado violado o artigo 10º, da CEDH, há que conceder provimento ao recurso autorizando a revisão de sentença.

Quanto à peticionada revogação da sentença é evidente que a pretensão do recorrente AA terá que improceder, consabido que o ordenamento jurídico nacional permite, apenas, a revisão de sentença e não também recurso de revogação ou anulação[13].                                    

                                       ***

Termos em que se acorda autorizar a revisão requerida.

Sem tributação.

                                      ***

Supremo Tribunal de Justiça, 15 de Novembro de 2012

Oliveira Mendes (Relator)

Maia Costa

Pereira Madeira



________________________
[1] - Esta decisão foi confirmada pelo Tribunal da Relação de Coimbra na sequência de recurso interposto pelo ora recorrente.

[2] - O texto que a seguir se transcreve, tal como os demais que mais à adiante se irão transcrever, corresponde integralmente ao constante dos autos.
[3] - É do seguinte teor a alínea g) do n.º 1 do artigo 449º do Código de Processo Penal:
«1. A revisão de sentença transitada em julgado é admissível quando:

g) Uma sentença vinculativa do Estado Português, proferida por uma instância internacional, for inconciliável com a condenação ou suscitar graves dúvidas sobre a sua justiça».
[4] - É do seguinte teor aquela recomendação:
«Recomendação R (2000) 2
O Comité de Ministros, nos termos do artigo 15.b do Estatuto do Conselho da Europa.
Considerando que a finalidade do Conselho da Europa é o de realizar uma união mais estreita entre os seus membros;
Tendo em conta a Convenção para a Protecção dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais (a seguir designada “a Convenção”);
Constatando que, com base no artigo 46º da Convenção, as Altas Partes Contratantes obrigam-se a respeitar as sentenças definitivas do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem (“o Tribunal”) nos litígios em que forem partes e que o Comité de Ministros velará pela sua execução;
Tendo presente que, em certas circunstâncias, a obrigação acima referida pode implicar a adopção de medidas, independentemente da reparação razoável atribuída pelo Tribunal nos termos do artigo 41º da Convenção e/ou de medidas gerais, a fim de que a parte lesada recupere, na medida do possível, a situação em que se encontrava antes da violação da Convenção (restitutio in integrum);
Verificando-se que compete às autoridades competentes do Estado Requerido determinar quais as medidas mais adequadas para aplicar a restitutio in integrum, tendo em consideração os meios disponíveis no sistema jurídico nacional;
Tendo contudo presente que – tal como mostra a prática do Comité de Ministros relativa ao controlo da execução dos acórdãos do Tribunal – há circunstâncias excepcionais em que o reexame de um caso ou a reabertura de um processo se revela ser o meio mais eficaz, mesmo único, para aplicar a restitutio in integrum;
I. Convida, à luz de tais considerações, as Partes Contratantes a assegurarem-se de que existe ao nível interno possibilidades adequadas para aplicar, na medida do possível, a restitutio in integrum;
II. Encoraja, nomeadamente, as Partes Contratantes a examinar os respectivos sistemas jurídicos nacionais com vista a assegurarem-se de que existe possibilidades adequadas para o reexame de um caso, incluindo a reabertura de processos, nos casos em que o Tribunal constate a existência de uma violação da Convenção em particular quando:
(i) a parte lesada continua a sofrer consequências particularmente graves na sequência da decisão nacional, que não podem ser compensadas com a reparação razoável e que apenas podem ser alteradas com o reexame ou a reabertura, e
(II) decorre do acórdão do Tribunal que
- a decisão interna que suscitou o recurso é, quanto ao mérito, contrária à da Convenção, ou
- a violação constatada em virtude de erros ou falhas processuais é de uma gravidade tal que suscita fortes dúvidas sobre a decisão final do processo nacional».

[5] - Publicado na CJ (STJ), XVII, 2, 235.

[6] - Pinto de Albuquerque no seu Comentário do Código de Processo Penal (4ª edição), 1214, enumera as instâncias internacionais que vinculam o Estado Português, indicando, para além do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem, o Tribunal Internacional de Justiça e os tribunais penais internacionais.
[7] - É do seguinte teor o artigo 4º, do protocolo n.º 7 da CEDH:
«1. Ninguém pode ser penalmente julgado ou punido pelas jurisdições do mesmo Estado por motivo de uma infracção pela qual já foi absolvido ou condenado por sentença definitiva, em conformidade com a lei e o processo penal desse Estado.
2. As disposições do número anterior não impedem a reabertura do processo, nos termos da lei e do processo penal do Estado em causa, se factos novos ou recentemente revelados ou um vício fundamental no processo anterior puderem afectar o resultado do julgamento.
3. Não é permitida qualquer derrogação ao presente artigo com fundamento no artigo 15º da Convenção».

[8] - Cumpre sublinhar que a aceitação do fundamento de recurso de revisão da alínea g) do n.º 1 do artigo 449º do Código de Processo Penal, na sua estrita literalidade, conduz ao reconhecimento de que as instâncias internacionais passam a constituir, no nosso ordenamento jurídico, conquanto de forma indirecta, uma nova e inovadora instância de recurso, mais concretamente a “última instância”, conduzindo à perda total da soberania nacional em matéria judiciária.
[9] - Ao que sabemos, de entre os diversos estados que fazem parte do Conselho da Europa (46 estados), por enquanto, só o Luxemburgo, Malta, Noruega, Suécia, França e Portugal permitem a revisão de sentença penal face a sentença proferida pelo TEDH.
A Áustria e a Bélgica instituíram um recurso de anulação das decisões internas para garantir o respeito da lei (Convenção) – cf. Ireneu Cabral Barreto, Convenção Europeia dos Direitos do Homem Anotada 3ª edição), 326/327.

[10] - É do seguinte teor o n.º 1 do artigo 626º do Código de Processo Penal francês:
«Le réexamen d'une décision pénale définitive peut être demandé au bénéfice de toute personne reconnue coupable d'une infraction lorsqu'il résulte d'un arrêt rendu par la Cour européenne des droits de l'homme que la condamnation a été prononcée en violation des dispositions de la convention de sauvegarde des droits de l'homme et des libertés fondamentales ou de ses protocoles additionnels, dès lors que, par sa nature et sa gravité, la violation constatée entraîne pour le condamné des conséquences dommageables auxquelles la " satisfaction équitable " allouée sur le fondement de l'article 41 de la convention ne pourrait mettre un terme».

[11] - A propósito desta concreta problemática veja-se a intervenção do Conselheiro Henriques Gaspar no colóquio organizado pelo Supremo Tribunal de Justiça por ocasião da Comemoração do 30º Aniversário da vigência da CEDH em Portugal, ocorrido a 10 de Novembro de 2008, naquele tribunal, em que, entre outros comentários, salienta:
«As relações de mútua influência entre o TEDH e os tribunais nacionais tecem-se dentro de um modelo que não reveste natureza processual, seja hierárquica ou normativa.
O sistema convencional de controlo está instituído num quadro de autonomia, sem continuidade processual directa entre as ordens judiciais nacionais e o TEDH; não existe recurso de decisões judiciais internas, nem partilha de decisões no processo com a instância europeia.
O pedido pelos interessados para a intervenção do TEDH – a queixa – depende mesmo, como pressuposto processual, da exaustão dos meios internos disponíveis e, por isso, da existência de uma decisão interna definitiva – ou seja, de uma decisão transitada em julgado quando emanada de um tribunal interno – artigo 35º, par. 1º da CEDH…».

[12] - É do seguinte teor o artigo 10º, da CEDH:
«1. Qualquer pessoa tem direito à liberdade de expressão. Este preceito compreende a liberdade de opinião e a liberdade de receber ou de transmitir informações ou ideias sem que possa haver ingerência de quaisquer autoridades públicas e sem considerações de fronteiras. O presente artigo não impede que os Estados submetam as empresas de radiodifusão, de cinematografia ou de televisão a um regime de autorização prévia.
2. O exercício destas liberdades, porquanto implica deveres e responsabilidade, pode ser submetido a certas formalidades, condições, restrições ou sanções, previstas pela lei, que constituam providências necessárias, numa sociedade democrática, para a segurança nacional, a integridade territorial ou a segurança pública, a defesa da ordem e a prevenção do crime, a protecção da saúde ou da moral, a protecção da honra ou dos direitos de outrem, para impedir a divulgação de informações confidenciais, ou para garantir a autoridade e a imparcialidade do poder judicial».
[13] - Recurso este que, ao que sabemos, de entre os diversos estados que fazem parte do Conselho da Europa (46 estados), por enquanto, só foi instituído pela Áustria e a Bélgica – cf. Ireneu Cabral Barreto, Convenção Europeia dos Direitos do Homem Anotada 3ª edição), 326/327.