Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
610/07.5TCGMR.G3.S1
Nº Convencional: 7ª SECÇÃO
Relator: SILVA GONÇALVES
Descritores: DIREITO DE PREFERÊNCIA
PRÉDIO CONFINANTE
UNIDADE DE CULTURA
Data do Acordão: 05/22/2014
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: CONCEDIDA A REVISTA
Área Temática:
DIREITO CIVIL - DIREITOS REAIS / DIREITO DE PROPRIEDADE / PROPRIEDADE DE IMÓVEIS / FRACCIONAMENTO E EMPARCELAMENTO DE PRÉDIOS RÚSTICOS.
Doutrina:
- A. Meneses Cordeiro, Direitos Reais, II vol., p. 1109.
- Antunes Varela, RLJ, Ano 127.º, p. 294 e segs..
- Galvão Telles, Direito de Preferência na Alienação de Prédios Confinantes (a propósito da nova legislação sobre emparcelamento rural), em “O Direito”, 124.º, p.15, citado por Abílio Neto, in “Código de Processo Civil”, Anotado, art.º 1380.º.
- M. Henriques Mesquita, CJ, 1986, 5.º, 49.
- Pires de Lima e Antunes Varela, “Código Civil”, Anotado, III, p. 270.
Legislação Nacional:
CÓDIGO CIVIL (CC): - ARTIGO 1380.º.
DEC. LEI N.º 384/88, DE 25/10: - ARTIGO 18.º, Nº1.
PORTARIA N.º 202/70, DE 21/04 (MANTIDA EM VIGOR PELO ARTIGO 53.º DO DECRETO-LEI N.º 103/90, DE 23/03): - ARTIGO 1.º.
Jurisprudência Nacional:
ACÓRDÃOS DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:
-DE 11.10.1979, BMJ, 290.º, P. 395, E DE 12.07.1983, BMJ, 329.º, P. 561E SEGS..
-DE 13/10/1993, DE 28/02/2002 E DE 20.05.2003 - O PRIMEIRO PUBLICADO NA CJ, ANO I, TOMO III, P. 64 E SEGS; OS DOIS RESTANTES DISPONÍVEIS EM WWW.DGSI.PT .
Sumário :
1. O direito de preferência, conferido pelo art.º 1380.º do C.Civil, devidamente conjugado com o art.º 18.º, n.º 1, do Dec. Lei n.º 384/88, de 25/10 (diploma que regula o novo regime jurídico do emparcelamento rural), está dependente apenas de que um dos prédios (seja aquele cujo dono quer vender, seja o outro contíguo, que o preferente pretende comprar) tenha área inferior à unidade de cultura;
2. Tendo em consideração que um terreno se pode destinar, ao mesmo tempo, a culturas de seco, de árvores e de horta, o que vai determinar a sua classificação como terreno de regadio arvense é, nesta detetada generalidade de utilidades, a que dele mais exuberantemente sobressai.
Decisão Texto Integral: .


                 Acordam no Supremo Tribunal de Justiça

AA intentou a presente acção declarativa de condenação, com processo comum e forma ordinária, contra BB, CC e mulher DD, pedindo que seja reconhecido e declarado judicialmente o direito de preferência do Autor e, em conformidade, determinar-se que o mesmo passe a ocupar a posição de adquirente no contrato de compra e venda de que o prédio em causa na acção foi objecto, com o consequente cancelamento de todos os registos efectuados pelos segundos Réus relativamente a tal prédio e os segundos Réus condenados a entregar-lhe tal prédio livre de pessoas e bens.

Alega para tanto e em síntese que é dono e legítimo possuidor do prédio rústico denominado “Campo das Leiras”, sito no lugar de Seara, freguesia de Brito, de cultura, com árvores nas bordaduras, com a área de 2.640 m2, bem como de um prédio rústico, denominado “Campo de Lagares”, de pastagem, cultura e videiras de enforcado, com a área de cerca de 4.000 m2, confrontando do Norte e Nascente com Josefa de Oliveira e Abílio de Oliveira da Cunha, Sul e Poente com proprietário, sito no lugar de Seara, freguesia de Brito, Guimarães.

Os referidos prédios advieram à sua posse e propriedade por os ter recebido por herança aberta por óbito de seus pais, .... e ..., sendo certo que o Autor, por si e antepossuidores, está na posse dos citados prédios há mais de 30, 40 e 50 anos, de forma ininterrupta, pacífica, pública e de boa fé, pelo que sempre os teria adquirido por usucapião.

Por escritura pública de compra e venda celebrada em 13 de Janeiro de 2006, no Cartório do Notário ..., a primeira Ré, representada por EE, vendeu ao segundo Réu e este comprou àquela, além de um prédio urbano, o prédio rústico composto de terreno de lameiro, pastagem e videiras de enforcado, situado no Lugar de Seara, freguesia de Brito, Guimarães, descrito na Conservatória do Registo Predial de Guimarães sob o n.º 1482-Brito, registado a favor da vendedora pela inscrição G-dois, inscrito na respectiva matriz sob o artigo 205, com o valor patrimonial de euros 6.038,21.

O preço estipulado para a referida venda foi de euros 25.000,00.

Os prédios rústicos do Autor confinam com o prédio rústico vendido pela 1.ª Ré, não existindo nem se interpondo entre os referidos prédios terrenos de outrem, caminhos ou outra forma de separação, sendo que o prédio rústico vendido tem uma área real de cerca de 11,00 m2, a qual é inferior à unidade de cultura, sendo certo que qualquer dos prédios do Autor tem uma área igualmente inferior àquela unidade de cultura.

Contestaram os Réus CC e DD, impugnando parcialmente a matéria alegada na petição inicial, mais alegando que, pela escritura pública lavrada em 13.01.2006, o Réu marido comprou dois imóveis que, apesar de possuírem inscrição matricial e descrição próprias, devem considerar-se indissociáveis, sendo certo que a vendedora sempre colocou como condição essencial para a realização do negócio a venda conjunta de ambos.

O Autor sempre esteve a par das negociações e intenções da Ré vendedora, conhecimento que abrangia não só a venda efectuada ao Réu como as realizadas a outros adquirentes.

O Réu não é agricultor nem se dedica ao cultivo da terra, pelo que não adquiriu o terreno com vista ao seu aproveitamento agrícola mas sim porque tem duas filhas e pretende deixar-lhes em herança os prédios que já foram dos seus antepassados para que aí construam as suas habitações.

Mais pedem a condenação do Autor, como litigante de má fé, no pagamento de multa e indemnização a favor dos Réus em montante nunca inferior a euros 5.000,00.

Replicou o Autor, impugnando a matéria relativa à defesa por excepção, mais alegando que o terreno vendido se integra na área de Reserva Agrícola Nacional e Ecológica, sem aptidão construtiva.

Procedeu-se a julgamento com observância do formalismo legal e foi proferida sentença (folhas 334 a 346) a qual foi anulada pela decisão do Tribunal da Relação de Guimarães (404 a 407), a qual determinou a repetição do julgamento para apreciação da matéria de facto aditada.

Procedeu-se à repetição da audiência de discussão e julgamento, nos termos legais, tendo sido proferida sentença que julgou a acção parcialmente procedente e, em consequência,

a) Declarou que ao Autor assiste o direito de preferência na alienação do prédio rústico composto de terreno de lameiro, pastagem e videiras de enforcado, situado no Lugar de Seara, freguesia de Brito, Guimarães, descrito na Conservatória do Registo Predial de Guimarães sob n.º 1482-Brito, registado a favor da vendedora e inscrito na respectiva matriz sob o artigo 205º feita pela Ré BB aos Réus CC e DD e formalizada por escritura pública celebrada no dia 13 de Janeiro de 2006, no Cartório Notarial do Notário ...;

b) Determinou que o Autor passe a ocupar a posição de adquirente do prédio referido na alínea a) na compra e venda também aí aludida, em substituição dos Réus CC e DD e, em consequência, investiu-o na propriedade do citado prédio e atribuiu aos Réus CC e DD a quantia de euros 25.000,00 correspondente ao preço depositado nos autos;

c) Condenou os Réus CC e DD a entregarem ao Autor o identificado prédio rústico, livre de pessoas e bens;

d) Absolveu os Réus do restante peticionado.

     Desta sentença apelaram os réus para a Relação de Guimarães que, por acórdão de 9 de janeiro de 2014 (cfr. fls. 511 a 528), concedeu provimento ao recurso e, revogando a sentença recorrida, absolveu os réus dos pedidos.

Irresignado, recorre agora para este Supremo Tribunal o autor AA, alegando e concluindo pela forma seguinte:

I. O autor, aqui recorrente, intentou contra os réus, recorridos, acção de preferência, com forma ordinária, pedindo o reconhecimento do direito de haver para si o prédio rústico alienado, melhor descrito em l. da matéria provada, alegando ser proprietário de outros prédios rústicos confinantes com aquele, aquele e estes com área inferior á unidade de cultura (2 ha), sem que lhe tivesse sido dada oportunidade de exercer o direito de preferência.

II. Incumbia, assim, ao autor a alegação e prova dos factos que segundo a norma do art.º 1380.° n.º l do Código Civil servem de pressupostos ao efeito jurídico pretendido, isto é, a substituição do adquirente na compra e venda.

III. Segundo o acórdão recorrido, o único requisito legal previsto na norma do art.º 1380.° do Código Civil que aqui está em causa é que “o prédio vendido ou dado em cumprimento tenha área inferior à unidade de cultura e que o prédio do proprietário que se apresenta a preferir tenha também área inferior à unidade de cultura”.

IV. Ora, resultou provado, quanto ao prédio alienado, que se trata de prédio rústico composto de terreno de lameiro, pastagem e videiras de enforcado, que tem uma área real de cerca de 11000 m2 e que integra a área de Reserva Agrícola Nacional e Ecológica (factos l, 12 e 21 da matéria provada).

V. Resultou, ainda, provado quanto aos prédios rústicos confinantes (denominados "Campo das Leiras" e "Campo de Lagares") que os mesmos vêm sendo cultivados pelo A. e antepossuidores há mais de vinte anos, e que estes neles colhem frutos, apascentam gado, podam árvores e vinha, colhem vinho, sendo que qualquer deles tem uma área inferior a 2 hectares (factos 4 e 13 da matéria provada).

VI. A descrição do prédio vendido (lameiro, pastagem e videiras de enforcado) não foi impugnada pelos réus, que admitiram ter adquirido o prédio rústico assim descrito, inscrito na matriz predial respectiva sob o art. 205 (cfr art. 7° da contestação).

VII. Alegou o autor, no art.º 28.° da petição inicial, que o prédio rústico vendido (com área registada de 32.780 m2) tem uma área real de cerca de 11.000 m2, logo inferior à unidade de cultura (2 hectares - 20.000 m2). Os réus admitiram que o prédio possui cerca de 20.000 m2, confronta do Norte com Josefa de Oliveira, do Sul com caminho de servidão, do Nascente com caminho vicinal e do Poente com linha de água (ribeiro) - (cfr. art. 12.° da contestação).

VIII. O autor alegou, ainda, e os réus aceitaram, não impugnando especificadamente o facto vertido no art.º 24° da petição inicial, que o terreno adquirido por estes se encontra inculto - cfr ainda art.º 37.° da contestação.

IX. Quanto a estes terrenos, o autor alegou, nos arts 25.° e 26.° da petição inicial, que o denominado "Campo de Lagares", com algumas árvores de bordadura e videiras de enforcado, se encontra arrendado, tendo plantadas erva e couves; o denominado "Campo das Leiras" produz milho e erva, factos que não foram levados á base instrutória.

X. O réu Abílio, aceitando que o terreno alienado é de lameiro, pastagem e videiras de enforcado e que se encontra inculto, veio alegar nos arts. 37.° e 40.° a 44.° da contestação que o terreno adquirido se encontra inculto, que não é agricultor, nem se dedica ao cultivo da terra, não adquiriu o terreno com vista ao seu aproveitamento agrícola, a aquisição efectuada nada tem a ver com a aptidão do terreno nem as características da casa de habitação aí existente, readquiriu parte da propriedade que pertencera a seu avô, ..., há cerca de 30 anos havia sido vendido à mãe do A. e, porque tem 2 filhos, pretende deixar-lhes em herança os prédios dos seus antepassados para que aí construam as suas habitações.

XI. Repetido o julgamento para se apurar tal matéria de facto, provou-se apenas que o terreno vendido aos réus integra a área de Reserva Agrícola Nacional e Ecológica.

XII. Com esta factualidade alegada e provada, o Tribunal recorrido considerou, ainda assim, que "...em relação aos prédios do Autor, este alegou os factos constantes dos artigos 25.° e 26.° da petição inicial susceptíveis de permitir qualificá-los quanto à sua aptidão agrícola, ainda que não tenham sido levados à base instrutória, a verdade é que a anulação da decisão, tendo em vista a ampliação da matéria de facto, ao abrigo do disposto no art.º 662.°, n.º 2 do Código do Processo Civil, redundaria inútil, uma vez que em relação ao prédio alienado nada se alega quanto a essa aptidão [agrícola], e, por isso, nunca seria possível concluir-se ter área inferior à unidade de cultura".

XIII. A decisão recorrida enferma de manifesto erro na aplicação do direito substantivo e adjectivo aos factos - art.º 1380.º do Código Civil, arts. 662.°, n.° 2, al c) e 674.°, n.° l, al a) do CPC.

XIV. Apurou-se que os terrenos em causa têm aptidão agrícola, área inferior à unidade de cultura, estipulada na Portaria n° 202/70, de 21.04, que o pertencente ao autor confina com o que foi objecto de venda entre os réus e que os adquirentes não detêm a propriedade de qualquer prédio contíguo. Todos estes elementos foram objecto de alegação e prova pelo autor, mostrando-se constitutivos do seu direito (art. 342°, n.º l, do Código Civil), motivo pelo qual lhe assiste o direito de exercer a preferência pretendida.

XV. Dúvidas não restam, pois, quanto à natureza e aptidão agrícola do terreno vendido, nenhuma factualidade tendo sido alegada ou provada susceptível de pôr em causa ou que se mostre incompatível com tal aptidão, sendo certo que os RR não lograram demonstrar a verificação das condições de possibilidade legal de afectação do prédio adquirido à construção de habitações - sendo certo que nem tampouco demonstraram que tal finalidade esteve subjacente à aquisição.

XVI. O parâmetro pelo qual o Tribunal recorrido analisou e enquadrou a área do prédio na unidade das várias culturas referidas na citada Portaria (terrenos de regadio hortícolas) é incorrectamente aplicado atenta a matéria de facto alegada e apurada quanto aos prédios alienado e confinantes.

XVII. O primeiro sendo terreno de lameiro, pastagem e videiras de enforcado não pode integrar a categoria "Terreno de regadio hortícola" previsto na Portaria n.° 202/70; o mesmo devendo ser considerado para os confinantes que vêm descritos como de pastagem de gado, com árvores e vinha.

XVIII. Assim sendo, como bem se decidiu na primeira instância, quer para os terrenos do autor, quer para o terreno vendido, a unidade de cultura, segundo a citada Portaria, é de 2 ha, o que significa que nenhum dos prédios excede aquela unidade de cultura.

XIX. Em termos de realidade agrícola e fundiária, quer os prédios do A, quer o prédio do R, encontram-se numa situação de minifúndio, logo em condições do exercício do direito de preferência de harmonia com o disposto no art. 18.° do DL 384/88, de 25/10.

XX. O critério para determinar a consecução do objecto pretendido para o direito de preferência não é a aplicação efectiva do terreno, ou a sua maior aptidão natural, mas sim a aptidão abstracta de qualquer dos terrenos para a cultura, desde que de área inferior à maior unidade de cultura definida.

XXI. Relevante é a aptidão abstracta do terreno, quer para excluir os terrenos que são meros logradouros de construções, quer para excluir terrenos com área superior à maior unidade de cultura estabelecida para a região (no caso da região de Braga, dois hectares/20.000 m2), independentemente do tipo de cultura efectivamente praticada.

XXII. Desde que qualquer dos terrenos (alienado e confinante) tenha aptidão para a cultura e área inferior à maior unidade de cultura estabelecida na região (no distrito de Braga, 2 ha), tanto basta para ser decretado o direito de preferência, sendo indiferente a identidade de culturas ou, mesmo, que qualquer dos terrenos seja efectivamente utilizado para cultura ou, nos casos de terrenos com várias culturas em regiões com diferentes unidades de cultura, sem curar da cultura efectivamente praticada.

     XXIII. O acórdão revidendo é nulo por excesso de pronúncia - art. 615.°, n.° l, al. d) do CPC- por ter julgado não verificado o pressuposto previsto no n° l do art.º 1380.º do Código Civil, "área inferior à unidade de cultura dos prédios vendidos e confinantes" por referência a "terrenos de regadio e hortícolas", questão que não foi suscitada pelas partes nos articulados e não é de conhecimento oficioso.

XXIV. O Tribunal emitiu assim pronúncia, tomou posição sobre questão de que não deveria conhecer, porque não levantada pelas partes, sendo certo que, ao fazê-lo, dotou, ainda, a decisão de ambiguidade e obscuridade que atinge a respectiva coerência e inteligibilidade, ferindo-a de nulidade – art.º 615°, n° l, al c), in fine.

XXV. A matéria de facto alegada pelo autor nos arts 24.°, 25.° e 26.° da petição inicial, não levados à matéria assente (art. 24.°) e base instrutória, sempre determinariam a anulação da decisão tendo em vista a ampliação da matéria de facto ao abrigo do disposto no art.º 662.°, n.° 2, al c), do Código do Processo Civil.

XXVI. A decisão recorrida violou, por erro de interpretação e aplicação, além do mais, o disposto nos arts 342°, n° l e 1380°, n° l e do Código Civil, art. 18° do DL 384/88, Decreto Regulamentar 103/90, de 22/3 (Regime de Emparcelamento Rural e seu regulamento) e a Portaria n.º 207/70, arts 615°, n° l, als c) e d) in fine e 662°, n° 2, al c) do Código do Processo Civil.

Termina pedindo que seja revogado o acórdão recorrido.

    

     Os recorridos não contra-alegaram.

                Corridos os vistos legais cumpre decidir.

    As instâncias consideraram provados os factos seguintes:

1. Por escritura pública de compra e venda celebrada no dia 13 de Janeiro de 2006 no Cartório Notarial do Notário ..., a primeira Ré, representada por EE, vendeu ao segundo Réu e este comprou, além de um prédio urbano, o prédio rústico composto de terreno de lameiro, pastagem e videiras de enforcado, situado no Lugar de Seara, freguesia de Brito, Guimarães, descrito na Conservatória do Registo Predial de Guimarães sob n.º 1482-Brito, registado a favor da vendedora e inscrito na respectiva matriz sob o artigo 205º;

2. O preço estipulado para a venda, quanto ao prédio rústico, foi de euros 25.000,00;

3. Por decisão transitada em julgado proferida nos autos de processo n.º 4523/07.2TBGMR, que correram termos no 1.º Juízo Cível da Comarca de Guimarães, foi ordenada a restituição provisória da posse do caminho que dá acesso aos prédios do Autor denominados “Campo das Leiras”, inscrito na matriz predial rústica sob o artigo 201º da freguesia de Brito e “Campo de Lagares”, rústico, situado na mesma freguesia e a remoção de todos os obstáculos nele colocados pelos Réus, de forma a permitir o acesso aos ditos prédios;

4. O Autor, por si e antepossuidores, há mais de 20 anos, ininterruptamente, está na posse dos prédios referidos em 3, pagando os impostos devidos, dando-os de arrendamentos e recebendo rendas, cultivando-os e colhendo frutos, apascentando o gado, podando árvores e vinha e colhendo vinho, à vista e com conhecimento de toda gente, sem oposição de quem quer que seja e na convicção de ser seu dono;

5. Os prédios rústicos descritos em 3 são autónomos entre si;

6. E confinam com o prédio rústico referido em 1; - cfr., resposta ao quesito13.º da Base Instrutória.

7. Entre o prédio rústico denominado “Campo de Lagares” e o prédio rústico referido em 1. não existem nem se interpõem terrenos de outrem, caminhos ou outra forma de separação;

8. O acesso aos prédios referidos em 3 para a via pública faz-se, há mais de 50 anos, por um caminho com a largura actual de 4 metros, bem marcado no chão, com o seu leito bem calcado e trilhado, com início na estrada, prolongando-se por uma extensão de cerca de 300 metros, bordejando o Campo das Leiras, atravessando o prédio rústico identificado em 1, até atingir o Campo de Lagares;

9. Por este caminho passa o Autor e sempre passaram os seus antecessores, com carros de bois, animais, tractores e outras máquinas agrícolas para transportar sementes, adubos, colheitas, cortar e transportar erva, há mais de 50 anos, continuada e pacificamente, sem oposição de ninguém, à vista de todos e na convicção de que tinham e exerciam um direito próprio;

10. Tal caminho é o único acesso dos prédios do Autor para a via pública;

11. Os 2.ºs Réus não eram, à data referida em 1, nem são donos de qualquer parcela confinante com a parcela alienada;

12. O prédio rústico referido em 1 tem uma área real de cerca de 11.000 m2;

13. Qualquer dos prédios referidos em 3 tem uma área inferior a 2 hectares;

14. Hoje em dia, torna-se desnecessário qualquer caminho para aceder a parcelas do terreno comprado pelos 2ºs Réus;

15. O prédio urbano inscrito sob o artigo 338.º, constituído por casa de habitação e dependências, foi edificado há mais de 50 anos no solo do prédio rústico actualmente inscrito sob o artigo 205º;

16. Pelo que apenas possui área coberta, sendo rodeado pelo terreno do prédio rústico;

17. A casa de habitação e uma parcela de terreno do prédio rústico, com cerca de 800 m2, encontram-se arrendados a ... e mulher há cerca de 30 anos;

18. A 1.ª Ré sempre colocou como condição essencial para a realização do negócio que a venda da casa e do terreno fosse conjunta;

19. O preço da venda sempre foi proposto como um valor unitário para o conjunto dos prédios;

20. Em 13.11.2007, o Autor efectuou o depósito da quantia de euros 25.000,00;

21. O terreno vendido aos Réus integra a área de Reserva Agrícola Nacional e Ecológica.

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     Pretende o autor nesta ação que lhe seja reconhecido o direito de preferência na venda do prédio rústico composto de terreno de lameiro, pastagem e videiras de enforcado, situado no Lugar de Seara, freguesia de Brito, Guimarães, descrito na CRPredial de Guimarães sob o n.º 1482-Brito e inscrito na respectiva matriz sob o artigo 205, o qual, por escritura pública celebrada em 13.1.2006, a primeira ré (BB) vendeu ao segundo réu (CC).

     O fundamento do seu rogo é a circunstância de este particularizado prédio rústico, assim transacionado, estar a confrontar com os prédios rústicos, que lhe pertencem, denominados “Campo das Leiras” (de cultura, com árvores nas bordaduras, com a área de 2.640 m2) e “Campo de Lagares” (de pastagem, cultura e videiras de enforcado, com a área de cerca de 4.000 m2), afirmando que o prédio rústico vendido tem uma área real de cerca de 11,00 m2 (inferior à unidade de cultura) e, ainda, que qualquer dos prédios do autor tem uma área igualmente inferior àquela unidade de cultura.

     A Relação de Guimarães, registando que, nos termos do artigo 1.º da Portaria n.º 202/70, de 21/04, mantida em vigor pelo artigo 53.º do Decreto-Lei n.º 103/90, de 23/03, a unidade de cultura, estabelecida para a região de Braga, é de 2 hectares, quer para terrenos de regadio arvenses, quer para terrenos de sequeiro, ajuizou que, porque não ficou demonstrado na ação que os terrenos em causa (o vendido e o do preferente) sejam de regadio arvense ou de sequeiro, não é possível concluir que cada um deles têm áreas inferiores àquela unidade de cultura.

     Prosseguindo, concede este Tribunal Superior que, se é certo que, em relação aos prédios do autor, estão alegados os factos (artigos 25.º e 26.º da petição inicial) susceptíveis de permitirem qualificá-los quanto à sua aptidão agrícola, ainda que não tenham sido levados à base instrutória, a verdade é que a anulação da decisão, tendo em vista ampliação da matéria de facto, redundaria inútil uma vez que, em relação ao prédio alienado nada se alega quanto a essa aptidão e, por isso, nunca seria possível concluir-se ter área inferior à unidade de cultura.

    

     Com fundamento na falta dos pressupostos legais tipificados no art.º 1380.º do Cód. Civil, a Relação de Guimarães denegou ao demandante aquele seu pedido de preferência na venda do identificado imóvel praticada pela ré BB.

     É contra esta resolução que o autor/recorrente se insurge.

                           Vejamos se lhe assiste razão.


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I. Dispõe o art.º 1380.º, n.º 1, do Código Civil, que "os proprietários de terrenos confinantes, de área inferior à unidade de cultura, gozam reciprocamente do direito de preferência nos casos de venda, dação em cumprimento ou aforamento de qualquer dos prédios a quem não seja proprietário confinante".

O legislador caracterizou o direito de preferência como um direito real de aquisição, deste modo visando, de um modo geral, solucionar conflitos de direitos reais, facilitando a reunião, na mesma esfera jurídica, das coisas ou direitos que gerem os conflitos em causa; é o que sucede na comunhão (artigo 1409.º, n.º 1), no emparcelamento (artigo 1380.º, n.º 1), nos prédios onerados com servidão legal de passagem (artigo 1555.º), na superfície (artigo 1535.º) e no arrendamento habitacional (Lei n.º 63/77), por exemplo.[1]

O direito de preferência prescrito no art.º 1380.º do C.Civil tem como objetivo, tal e qual o emparcelamento, pôr fim ao desmembramento e difusão de prédios agrícolas de curta dimensão, isto é, busca fazer desaparecer os incómodos que da exploração da exígua fazenda resultam para o seu titular, muito frequente no norte do país, desta feita dando uma oportunidade a quem, no caso de alienação operada pelo dono do prédio que com o seu confina, poder fazer acrescer ao seu a área do imóvel que se encontrava nesta desvantajosa circunstância de exploração e, assim, projetar a majoração das condições técnicas e económicas a esta conjuntura inerente.

Diferentemente do que estatuía o n.º 1 da Base VI da Lei n.º 2116, de 14/8/1962 - qualquer proprietário confinante gozava do direito de preferência em relação aos terrenos com área inferior à unidade de cultura que fossem transmitidos a proprietário não confinante - este normativo legal dispõe que só gozam deste direito os proprietários de área inferior à unidade de cultura.

A razão da alteração introduzida pelo Código está em não se justificar que a grande propriedade absorva a pequena propriedade que lhe é contígua. Desde que já está formada uma unidade de cultura, desaparece o interesse económico da absorção, ou, pelo menos, trata-se de um interesse que não justifica a restrição da preferência, que apresenta igualmente inconvenientes sob o ponto de vista social e económico.[2]

     Conferindo a descrição posta neste particularizado preceito legal (art.º 1380.º do C.Civil), são estes os requisitos exigidos, amplamente difundidos pela doutrina e jurisprudência, para que se possa deferir o direito de preferência nele consignado:

1. Que tenha sido vendido ou dado em cumprimento um prédio com área inferior à unidade de cultura;

2. Que o preferente seja dono de prédio confinante com o prédio alienado;

3. Que o prédio do proprietário que se apresenta a preferir tenha área inferior à unidade de cultura; e

4. Que o adquirente do prédio não seja proprietário confinante.

   

      Feita a prova de todos os pressupostos exigidos para o exercício do direito real de preferência, de que se ocupa o n.º 1 do art.º 1380.º do C.Civil, a ação só improcederá se se verificar a hipótese mencionada na parte final da alínea a) do art.º 1381.º do mesmo diploma legal que estabelece que esse direito não existe quando o terreno alienado se destine a algum fim que não seja a cultura - não deve considerar-se necessário que o terreno de cultura vendido ou dado em cumprimento se encontre à data da alienação já afetado a um fim diferente, desde que tal afetação seja permitida por lei; o fim que releva é aquele que o adquirente pretende dar ao terreno (M. Henriques Mesquita; CJ; 1986; 5.º; 49).

II. Todavia, este pormenorizado e assim difundido regime jurídico em ponderação está, agora, superado pelo sentido legislativo adiantando pelo art.º 18.º, n.º 1, do Dec. Lei n.º 384/88, de 25/10 (diploma que regula o novo regime jurídico do emparcelamento rural) e que estabelece que "os proprietários de terrenos confinantes gozam do direito de preferência previsto no art. 1380.º do Código Civil, ainda que a área daqueles seja superior à unidade de cultura".

     Não obstante a interpretação mais restritiva que lhe concede o Prof. Galvão Telles[3] - a Lei n.º 2116 permitia que um “não minifúndio” absorvesse um “minifúndio”; o Código Civil exigiu que a absorção só pudesse dar-se a favor de um terreno que também fosse minifúndio; o Dec. Lei n.º 384/88, devidamente interpretado, limitou-se a afastar esta solução e a regressar à consagrada na Lei n.º 2116. Nada mais - o certo é que, tanto a doutrina (Professor Antunes Varela, RLJ, Ano 127.º, pág. 294 e segs.), como a jurisprudência deste STJ (v.g. os acórdãos de 13/10/1993, de 28/02/2002 e de 20.05.2003 - o primeiro publicado na CJ; Ano I, Tomo III, pág. 64 e segs; os dois restantes disponíveis em www.dgsi.pt) assentaram em que o legislador de 1988 pretendeu, afastando o regime do Código Civil, aumentar a elisão dos minifúndios e não querendo regressar à disciplina legal de 1962; e, assim sendo, concluir, como o faz o Professor Antunes Varela (RLJ; ano 127.º, págs. 373/374) que "uma única solução é capaz de corresponder simultaneamente a esse duplo objectivo - que é a de estabelecer um direito recíproco de preferência entre os donos dos prédios rústicos confinantes, desde que um deles (seja aquele cujo dono quer vendê-lo, seja o outro contíguo, que pretende comprá-lo) tenha área inferior à unidade de cultura".

   

     Tomando a determinabilidade proposta naquele art.º 18.º, n.º 1, do Dec. Lei n.º 384/88, de 25/10 (diploma que regula o novo regime jurídico do emparcelamento rural), podemos reputar com a necessária certeza e segurança que, confrontando o prédio rústico (composto de terreno de lameiro, pastagem e videiras de enforcado) vendido pela ré BB com os prédios rústicos do autor/preferente (designados por “Campo das Leiras” e “Campo de Lagares”) e atendendo a que qualquer um destes prédios rústicos tem uma área inferior à unidade de cultura estabelecida pela Portaria n.º 207/70 (dois hectares/20.000 m2 para a região de Braga), havemos de admitir que existem os pressupostos legalmente prescritos para que se consinta ao preferente (demandante) o implorado direito de preferência na alienação daquele imóvel rústico.

     IV. Partindo do pressuposto de que o direito de preferência, conferido pelo artigo 1380.º do C.Civil, exige para além do mais, que o prédio vendido ou dado em cumprimento tenha área inferior à unidade de cultura e que o prédio do proprietário que se apresenta a preferir tenha também área inferior à unidade de cultura, e, prosseguindo, argumentando que a unidade de cultura estabelecida para a região de Braga para terrenos de regadio hortícolas é de 0,5 hectares e que não estão provados factos que permitam afirmar que os terrenos em causa sejam de regadio arvense ou de sequeiro e não é possível concluir que cada um deles têm áreas inferiores à unidade de cultura, a Relação de Guimarães rejeitou o pedido formulado pelo autor/preferente.

         Não acompanhamos, porém, esta detalhada inferência.

    Já vimos, e procurámos demonstrar, que o direito de preferência, conferido pelo art.º 1380.º do C.Civil, devidamente conjugado com o art.º 18.º, n.º 1, do Dec. Lei n.º 384/88, de 25/10 (diploma que regula o novo regime jurídico do emparcelamento rural), está dependente apenas de que um dos prédios (seja aquele cujo dono quer vender, seja o outro contíguo que o preferente pretende comprar) tenha área inferior à unidade de cultura.

     É neste delineado enquadramento interpretativo que se terá de persistir em apreciar aquela resolução tomada.

     Prosseguindo, convenhamos também que as características dos prédios em apreciação - do alienado (prédio rústico composto de terreno de lameiro, pastagem e videiras de enforcado) e dos seus contíguos (nos quais o autor colhe frutos, apascenta o gado, poda árvores e vinha e colhe vinho) - apresentam, clara e inequivocamente, as características de espaços agrários condizentes com terrenos de regadio arvense.

     É este o mais seguro discernimento a que chegamos se usarmos o critério de classificar o terreno de harmonia com a natureza da cultura que nele predominava por ocasião da venda e que vem sendo adotado também por este STJ (acórdãos de 11.10.1979, BMJ, 290.º, pág. 395 e de 12.07.1983, BMJ, 329.º, pág. 561e segs.), isto é, em função da predominância daquilo que lá se cultiva: tendo em consideração que um terreno se pode destinar, ao mesmo tempo, a culturas de seco, de árvores e de horta, o que vai determinar a sua classificação é, nesta detetada generalidade de utilidades, a que dele mais exuberantemente sobressai; e um terreno de lameiro, pastagem e videiras de enforcado tem o seu natural e preponderante aproveitamento numa exploração agrícola onde a cultura arvense essencialmente avulta.

   

     A ação terá, assim, de proceder e reposta em vigor a decisão da 1.ª instância.

         Concluindo:

     1. O direito de preferência, conferido pelo art.º 1380.º do C.Civil, devidamente conjugado com o art.º 18.º, n.º 1, do Dec. Lei n.º 384/88, de 25/10 (diploma que regula o novo regime jurídico do emparcelamento rural), está dependente apenas de que um dos prédios (seja aquele cujo dono quer vender, seja o outro contíguo, que o preferente pretende comprar) tenha área inferior à unidade de cultura.

     2. As características dos prédios em apreciação - do alienado (prédio rústico composto de terreno de lameiro, pastagem e videiras de enforcado) e dos seus contíguos (nos quais o autor colhe frutos, apascenta o gado, poda árvores e vinha e colhe vinho) - apresentam, clara e inequivocamente, as características de espaços agrários condizentes com terrenos de regadio arvense.

     Pelo exposto, concede-se a revista e, revogando o acórdão recorrido, repomos em vigor a sentença proferida na 1.ª instância.

   Custas pelos recorridos.

     Supremo Tribunal de Justiça, 22 de Maio de 2014


Silva Gonçalves (Relator).

Fernanda Isabel

Pires da Rosa


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[1] A. Meneses Cordeiro; Direitos Reais; II vol; pág. 1109.
[2] Pires de Lima e Antunes Varela; Código Civil Anotado; III, pág. 270.
[3] Direito de Preferência na Alienação de Prédios Confinantes (a propósito da nova legislação sobre emparcelamento rural), em “O Direito”; 124.º; pág.15, citado por Abílio Neto in Código de Processo Civil Anotado (art.º 1380.º).