Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça | |||
Processo: |
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Nº Convencional: | 7ª SECÇÃO | ||
Relator: | LOPES DO REGO | ||
Descritores: | ACIDENTE SIMULTANEAMENTE DE TRABALHO E VIAÇÃO SEGURO DE ACIDENTES DE TRABALHO DIREITO DE REGRESSO FUNDO DE GARANTIA AUTOMÓVEL | ||
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Data do Acordão: | 05/05/2011 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
Privacidade: | 1 | ||
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Meio Processual: | REVISTA | ||
Decisão: | NEGADA | ||
Área Temática: | DIREITO CIVIL - DIREITO DAS OBRIGAÇÕES | ||
Legislação Nacional: | CÓDIGO DA ESTRADA: - ARTIGO 27.º. DL N.º 522/85: - ARTIGOS 18.º, N.º1, 21.º., N.º2, AL. A). LEI N.º 2127: - BASE XXXVII, N.º 4. | ||
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Sumário : | 1. O «direito de regresso» - outorgado pelo nº4 da Base XXXVII da Lei 2127à entidade empregadora ou seguradora que tiver pago a indemnização por acidente laboral - não se configura como um direito de indemnização de lesado sobre o autor do facto danoso, fundado no instituto da responsabilidade extracontratual, mas antes como uma consequência legal do facto de um dos devedores solidários «imperfeitos» ter cumprido a obrigação de ressarcimento a que estava vinculado, adiantando, no quadro de uma relação contratual destinada a garantir os riscos laborais, um valor indemnizatório que – perante a «hierarquização» das responsabilidades dos potenciais devedores – pode ser ulteriormente repercutido no património do devedor principal e definitivo da obrigação de indemnizar : o responsável civil pelo acidente de viação. 2. Tal direito de regresso tem como destinatários apenas «os responsáveis referidos no nº1» da referida Base, ou seja, os companheiros do sinistrado ou terceiros que tiverem causado o acidente. 3. Não pode qualificar-se o FGA como «causador» do acidente de viação que simultaneamente se configura como acidente laboral, já que a sua obrigação de ressarcir o sinistrado não radica no instituto da responsabilidade civil extracontratual, subjectiva ou objectiva, que para tal entidade houvesse sido transferida, legal ou contratualmente, mas apenas no propósito de – socializando os riscos associados à circulação rodoviária - evitar a total desprotecção da vítima, decorrente, nomeadamente, do não apuramento da identidade do lesante – pelo que não se verificam, quanto a tal entidade, os pressupostos do direito de regresso previsto na citada disposição legal. | ||
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Decisão Texto Integral: | Acordam no Supremo Tribunal de Justiça: 1. AA e mulher, BB, intentaram acção declarativa, com processo sumário, contra o FUNDO DE GARANTIA AUTOMÓVEL”, pedindo a condenação do Réu no pagamento da quantia de € 65. 286,21 (Esc. 13.088.710$00), pelos danos sofridos em consequência do acidente de viação que vitimou o seu filho, acrescida de juros à taxa legal, até efectivo e integral pagamento, contados desde a data da citação. Para tanto, alegam que no dia 24/10/1995, pelas 21h50m, ao km 154,150, na EN 1, Venda da Cruz, Pombal, o filho dos Autores, DD, de 28 anos de idade, foi atropelado e veio a falecer em 27/10/1995, quando atravessava a estrada , com vista a aceder ao local onde se encontrava estacionado o veículo pesado que conduzia: chegado ao meio da EN, parou sobre o traço que divide as hemi-faixas de rodagem por ter avistado um veículo que circulava no sentido Sul-Norte, a velocidade não inferior a 140 km/h; tal viatura, a cerca de 10 metros do local onde havia de cruzar-se com o DD, saiu da hemi-faixa de rodagem em que devia circular e - após uma travagem de dez metros - embateu no peão, pondo-se em fuga, não mais sendo localizado; chovia na altura do acidente e não existia qualquer passadeira a menos de 50 metros, não havendo trânsito em qualquer dos sentidos, estando o local iluminado. Concluem a petição sustentando que o acidente se deveu a culpa exclusiva do condutor do veículo ligeiro, que circulava a velocidade excessiva dentro de povoação, ocupando as duas faixas de rodagem; Quanto aos danos que pretendem ver ressarcidos, invocam o prejuízo patrimonial de € 13.467,54 (Esc. 2.700.000$00) de perdas salariais (a que haverá de deduzir € 8.037,08 (Esc. 1.611.290$00) de pensões recebidas da seguradora de acidentes de trabalho); quanto aos danos não patrimoniais, pretendem ser ressarcidos pelos valores de € 9.975,96 (Esc. 2.000.000$00) compensatório do sofrimento do DD, ao aperceber-se da iminência da morte e de € 29.927,87 (Esc. 6.000.000$00) pela lesão do direito à vida, e ainda pelo montante de €9.975,96 (Esc. 2.000.000$00), para cada um dos AA., a título de danos morais próprios. Contestou o Réu CC, alegando desconhecer os factos alegados na petição inicial e reputando de exageradas as quantias peticionadas. Suscitou ainda a intervenção da Companhia de Seguros Fidelidade, por já haver indemnizado parcialmente os Autores, no âmbito do seguro de responsabilidade civil emergente de acidentes de trabalho A Seguradora foi admitida a intervir, tendo apresentado articulado próprio em que peticionou o pagamento do montante de € 15.740,06, referentes a pensões e despesas já pagas aos Autores, tendo o CC impugnado os factos invocados. Após saneamento e condensação da matéria litigiosa, a Seguradora interveniente veio ampliar o pedido para o montante de € 44.149,42, referentes aos € 15.740,06 pagos a que acresceram € 28.409,36. Por sua vez, os AA. actualizaram também o seu pedido, alterando o valor correspondente ao dano emergente das dores e agonia do falecido para € 15.000,00; o montante compensatório da lesão do direito à vida para € 40.000,00 e o valor pecuniário correspondente ao dano moral sofrido pessoalmente pelos AA. para € 15.000,00 para cada um deles. Tendo sido admitidas tais ampliações dos pedidos originários, realizou-se a audiência de discussão e julgamento, após o que foi proferida sentença a julgar a acção improcedente, por imputar ao peão sinistrado a culpa exclusiva na produção do acidente mortal, absolvendo o Réu CC do peticionado pelos Autores e pela interveniente Companhia de Seguros Fidelidade – Mundial, S.A.. 2.Inconformados, apelaram os AA. e a Seguradora interveniente, tendo a Relação, no acórdão ora recorrido, julgado a apelação dos autores parcialmente procedente, revogando, em parte, a sentença e condenando o réu FGA a pagar aos autores a indemnização de €90.000, acrescida de juros de mora, à taxa legal, desde a data do acórdão até integral pagamento; e a apelação da interveniente principal improcedente, confirmando, embora com fundamentação diversa, a sentença, na parte em que absolvera o réu do pedido deduzido pela interveniente. Para alcançar tal decisão, começa o acórdão a Relação por abordar a problemática da dinâmica do acidente, fazendo-o nos seguintes termos: Considerou a sentença que o peão iniciou o atravessamento da faixa de rodagem sem se certificar que a distância que o separava do veículo no momento, atenta a sua velocidade, permitia evitar a ocorrência do embate. Com isso, enquadrou a conduta no art. 104, nº 1 do CE de 1994 (versão aqui aplicável), que dispõe: “ Os peões não podem atravessar a faixa de rodagem sem previamente se certificarem de que, tendo em conta a distância que os separa dos veículos que nela transitam e a respectiva velocidade, o podem fazer sem perigo de acidente.” Sucede, no entanto, que não se provou a distância a que a vítima se encontrava do veículo quando iniciou a travessia da faixa de rodagem, se ela viu o veículo nesse momento ou se o mesmo já lhe era avistável (não é de excluir a possibilidade de o veículo não ser avistável, apesar de traçado se desenvolver, segundo o croquis, em recta). Não é, assim, possível concluir que a vítima tenha infringido o disposto no nº 1 do art. 104 do CE de 1994. Considerou, também, o tribunal que, ao invés de proceder ao atravessamento de forma célere, a vítima parou na faixa de rodagem perturbando o trânsito, de modo que o veículo iniciou uma travagem, que finalizou no embate. E, na verdade, o mesmo art. 104, no seu nº 2 estabelece: “ A travessia da faixa de rodagem deve fazer-se o mais rapidamente possível.” Acrescentando no seu nº 4: “É proibido aos peões parar na faixa de rodagem ou estacionar nos passeios de modo a prejudicar ou perturbar o trânsito.” É provável que o facto de a vítima se encontrar no eixo da via tenha estado na origem do comportamento do veículo, que travou antes de embater na vítima. Mas isso não significa, sem mais, que o facto de a vítima ter parado tenha sido idóneo e objectivamente adequado a prejudicar ou a perturbar o comportamento de um condutor que dentro das regras de trânsito. Não se pode, pois, concluir que à vítima era possível atravessar a faixa de rodagem mais rapidamente, inclusive sem parar e que ao parar o fez de modo a prejudicar ou perturbar o trânsito. Nem se pode concluir, como fez a sentença, que a vítima se tenha proposto atravessar a via de forma inopinada e desatenta, cerceando, com o seu aparecimento inesperado, a possibilidade de o condutor do veículo evitar o embate, tudo em violação do art. 3, nº 2 do CE. Ao conduzir dentro da localidade e a uma velocidade superior a 50 Km/ h o condutor do veículo infringiu o disposto no nº 1 do art. 27 do CE de 1994, que impunha como limite máximo de velocidade instantânea dentro das localidades o de 50Km/h. Porém, o Sr. Juiz afastou a culpa do condutor, por não se ter apurado que a velocidade superior a 50 Km/h tivesse sido determinante para o acidente. Cremos, no entanto, que não ajuizou bem. É que tem sido geralmente entendido que a inobservância de leis e regulamentos e, em especial, a prova da violação de normas de perigo abstracto, tendentes a proteger determinados interesses, como são as regras do Código da Estrada, definidoras de infracções em matéria de trânsito rodoviário, faz presumir a culpa na produção dos danos daí decorrentes (dispensando-se, assim, a prova da falta de diligência) bem como a existência de causalidade, com a ressalva de que ficam excluídas da causalidade e do âmbito definido para a responsabilidade decorrente de certo facto as consequências atípicas ou anormais, por aí concorrer uma causa externa, que faz quebrar o nexo causal (cfr. Ac. STJ de 10/3/1998, BMJ 475º-635, Ac. STJ de 1.2.2002, CJ STJ VIII-I-50, Ac. STJ de 26.06.2003 e Ac. STJ de 6.2.97, in www.dgsi.pt). Ora, no caso sub judice, a presunção de culpa e de causalidade que advém da violação por parte do condutor do art. 27, nº 1 do Código da Estrada de 1994 não se mostra ilidida por qualquer causa externa ou por qualquer circunstância da qual resulte que a contravenção àquela norma estradal foi estranha à vontade do contraventor ou não foi determinante do embate (cfr., ainda, Ac.R.C. 15.3.83, Col. 83-2-15, Ac. R.C. de 21.5.85, Col. 85-3-81). Na verdade, não está demonstrado que o excesso de velocidade tenha sido indiferente à produção do acidente. Nada permite concluir que o acidente se verificaria sempre mesmo que o condutor fosse mais devagar. Imputam, também, os recorrentes ao condutor do veículo a contravenção ao nº 1 do art. 24 do CE, segundo o qual “ O condutor deve regular a velocidade de modo que, atendendo às características e estado da via e do veículo, à carga transportada, às condições atmosféricas, à intensidade do tráfego e a quaisquer outras circunstâncias relevantes, possa, em condições de segurança, executar as manobras cuja necessidade seja de prever e, especialmente, fazer parar o veículo no espaço livre e visível à sua frente”. Porém, e face à escassez de elementos de facto, não se nos afigura possível concluir pela verificação desta contravenção. A regra de o condutor dever especialmente fazer parar o veículo no espaço livre à sua frente pressupõe a não verificação de condições anormais ou obstáculos inesperados. Ora, não é de excluir que o atravessamento do autor tenha representado para o condutor do veículo um obstáculo repentino e imprevisível com o qual este não pudesse razoavelmente contar. Os recorrentes atribuem, também, ao condutor a violação do art. 24, nº 1, al. c) e h) do CE de 1994. Segundo este preceito, a velocidade deve ser especialmente moderada “nas localidades ou vias marginadas por edificações” (c) e “nos troços de via em mau estado de conservação, molhados, enlameados ou que ofereçam precárias condições de aderência ou visibilidade” (h). Mas também não se verifica esta infracção, pois das circunstâncias provadas não é possível concluir que se impusesse uma velocidade inferior (50 Km/h ou menos) àquela que o veículo prosseguia. Alegam, ainda, os recorrentes que se mostra também violado o art. 13, nº 1 do CE, segundo o qual “ o trânsito de veículos deve fazer-se pelo lado direito da faixa de rodagem e o mais próximo possível das bermas e passeios, conservando destes uma distância que permita evitar acidentes”. E isto porque o veículo não seguiria perto da berma mas junto ao eixo da via. No entanto, e admitindo que o veículo seguia pela direita (o que nem sequer se mostra provado), não está provado que era possível ao condutor conduzir mais à esquerda, o mais possível próximo da berma ou do passeio, de forma a evitar o acidente. Finalmente, não se pode afirmar que o condutor tenha praticado qualquer outro acto que tenha impedido ou embaraçado a segurança ou comodidade dos utentes das vias (art. 3 do CE). Em resumo, apenas se demonstra a infracção ao art. 27, nº 1 do CE, suficiente, no entanto, para concluir pela culpa exclusiva do condutor do veículo automóvel. De seguida, passando a apreciar os valores indemnizatórios peticionados pelos AA, fixou a Relação em, respectivamente, €10.000, €50.000 e €15.000, neste caso para cada um deles, a indemnização pelos danos não patrimoniais sofridos pelo falecido antes do seu decesso, emergentes da lesão do direito à vida e correspondentes ao dano moral próprio de cada um dos AA. – o que perfaz a condenação global no referido montante de €90.000. Finalmente, quanto à pretensão deduzida pela seguradora interveniente, proferiu a Relação a seguinte decisão: A interveniente Fidelidade Mundial, seguradora do acidente de trabalho, pediu a condenação do réu FGA, a pagar-lhe a quantia já liquidada de € 15.740,06, mais juros, pedido que ampliou mais tarde para 44.149,42 (15.740,06 de despesas até 30.4.2003 e 28.409,36 de 1.5.2003 a 3.10.2005). Aí incluiu transportes, incapacidades temporárias, pensões e capitais de remição. Está em questão o direito de desoneração da interveniente ao abrigo do art. 18 do DL nº 522/85 e Base XXXVII da Lei nº 2127 de 3.8.65, que impede que os lesados cumulem as indemnizações por acidente que seja simultaneamente de viação e de trabalho (Ac. STJ de 30.6.2009, Garcia Calejo, em www.dgsi.pt). Ponto é que a indemnização respeite ao mesmo dano (Ac.R.P. de 25.1.2007, Fernando Batista, em www.dgsi.pt). A cumulação é apenas vedada em relação ao mesmo dano, que terá de ser sempre patrimonial, uma vez que o Tribunal do Trabalho apenas repara esse tipo de danos (ver, ainda, no mesmo site, Ac. STJ de 29.4.2010, Maria dos Prazeres Beleza). Ora, o FGA foi condenado apenas a pagar indemnização por danos não patrimoniais. Não foi condenado a pagar qualquer indemnização por danos patrimoniais. Não se verificando, assim, qualquer duplicação de indemnizações relativamente ao mesmo dano, mas antes indemnizações complementares, não há qualquer reembolso a efectuar, nem qualquer desconto a operar nas quantias indemnizatórias a receber pelos autores (v. Ac. STJ de 30.6.2007, Silva Salazar, no site atrás referido). 3. Inconformados com este sentido decisório, recorreram para este STJ, quer o R./ FGA, - questionando o decidido na Relação quanto à dinâmica do acidente, dissentindo da imputação de culpa exclusiva no evento mortal ao condutor do veículo atropelante, que se pôs em fuga - quer a seguradora interveniente, suscitando questão jurídica em torno da efectivação do seu «direito de regresso», encerrando as suas alegações sobre este tema com as seguintes conclusões: 1ª) Quando o acidente (de trabalho) for causado por companheiros da vítima ou terceiros, o direito à reparação não prejudica o direito de acção contra aqueles, nos termos da lei geral. 2ª) A seguradora que houver pago a indemnização pelo acidente (de trabalho) terá o direito de regresso contra os responsáveis referidos na Conclusão anterior, se a vítima não lhes houver exigido judicialmente a indemnização no prazo de um ano, a contar da data do acidente. 3ª) Também à seguradora assiste o direito de intervir como parte principal no processo em que a vítima exigir aos responsáveis a indemnização pelo acidente a que se alude nas anteriores Conclusões. 4ª) Compete ao CC satisfazer as indemnizações decorrentes de acidentes originados por veículos sujeitos ao seguro obrigatório e que sejam matriculados em Portugal ou em países terceiros em relação à Comunidade Económica Europeia, que não tenham gabinete nacional de seguros, ou cujo gabinete não tenha aderido à Convenção Complementar entre Gabinetes Nacionais. 5ª) O CC garante, por acidente originado pelos veículos referidos na Conclusão 4a), a satisfação das indemnizações por morte ou lesões corporais, quando o responsável seja desconhecido ou não beneficie de seguro válido ou eficaz ou for declarada a falência da seguradora; lesões materiais, quando o responsável, sendo conhecido, não beneficie de seguro válido ou eficaz. 6ª) Havendo, como houve, responsabilidade do condutor do veículo identificado nos autos, que se encontrava abrangido pela garantia do Fundo, ora réu, compete a este reparar os danos causados e indemnizar os lesados. 7ª) A recorrente, que tem vindo a reparar as consequências do acidente de trabalho - que foi, simultaneamente, de viação - tendo já despendido as quantias que se mostram provadas nos autos, tem um direito próprio, paralelo ao dos autores, de indemnização, cabendo-lhe ser reembolsada pelas despesas em que incorreu, e respectivos juros de mora. 8ª) Ao deduzir o incidente de intervenção principal da recorrente nos presentes autos, o réu CC admitiu já o seu dever de indemnizar, sem prejuízo da impugnação dos factos alegados pela interveniente, que, não obstante, se vieram a provar. 9ª) Ao direito da recorrente não obsta o facto de aos autores apenas ter sido arbitrada uma indemnização por danos não patrimoniais, já que, como se disse, o direito da recorrente é autónomo. 10ª) A douta decisão do tribunal a quo, na parte em que julgou improcedente o pedido deduzido pela ora recorrente, resulta de manifesto equívoco na interpretação dos factos e na consequente aplicação do direito: por um lado, não foi dada a devida atenção à causa de pedir e respectivo pedido da recorrente; por outro lado, fez-se uma interpretação dos factos provados como se estivesse em causa um pedido de desoneração (temporária) do cumprimento de uma obrigação fixada pelo Tribunal do Trabalho, o que manifestamente não sucede. 11ª) Ao assim decidir, por erro de interpretação dos factos e deficiente aplicação do direito, o tribunal a quo violou as normas dos n°s 1 e 4 da Base XXXVII da Lei n° 2127, os art°s 18° e 21° do DL 522/85, os art°s 483°, 495°, 562° e seguintes do Código . 4. As instâncias fizeram assentar a solução jurídica do pleito na seguinte matéria de facto: A) No dia 24 de Outubro de 1995, pelas 21:50 horas, ao km 154,150, na EN nº 1, em Venda da Cruz, Pombal, ocorreu um acidente de viação que se traduziu entre o embate frontal de viatura automóvel com DD, que veio a falecer em 27/10/95 (alínea A) dos factos assentes); B) DD nasceu a 17/12/66 e é filho dos Autores, que se encontram habilitados como seus únicos herdeiros (alínea B) dos factos assentes); C) A Companhia de Seguros Fidelidade-Mundial, S.A., na data referida em A) era a seguradora, no âmbito dos acidentes de trabalho, apólice 5.173.078 da entidade patronal do DD, a sociedade Transportes F......, Lda.” (alínea C) dos Factos Assentes); D) No processo nº 105/1997 que corre termos pelo Tribunal de Trabalho de Castelo Branco por morte de DD, foi efectuado acordo entre os aqui Autores e a Companhia de Seguros Fidelidade-Mundial, S.A., nos termos constantes de fls. 382 e 383, cujo teor aqui se dá por reproduzido (alínea D) dos Factos Assentes); E) No âmbito desse processo, em 30 de Janeiro de 2004, a Companhia de Seguros Fidelidade-Mundial, S.A., procedeu à entrega a BB do montante de € 13.888,00 a título de capital de remição (alínea E) dos Factos Assentes); F) No âmbito desse processo, em 30 de Janeiro de 2004, a Companhia de Seguros Fidelidade-Mundial, S.A. procedeu à entrega a AA do montante de € 13.532,78 a título de capital de remição (alínea F) dos Factos Assentes); G) O DD havia chegado a Venda da Cruz, Pombal, ao volante de viatura pesada pertencente a Transportes F......, Lda., circulando no sentido Leiria/Coimbra (art. 1º da Base Instrutória); H) DD foi jantar ao restaurante “A Taberna” que, atento aquele sentido, se situa à esquerda (resposta ao art. 2º da Base Instrutória); I) O DD estacionou a viatura na berma direita, ligeiramente atrás da porta do restaurante, atento o seu sentido de marcha (resposta ao art. 4º da Base Instrutória); J) O DD atravessou a EN da direita para a esquerda atento o seu sentido de marcha (resposta ao art. 5º da Base Instrutória); L) Percorreu cerca de 7 metros e jantou (resposta ao art. 6º da Base Instrutória); M) Findo o jantar, o DD propôs-se efectuar o caminho em sentido contrário (resposta ao art. 7º da Base Instrutória); N) Chovia no momento (art. 8º da Base Instrutória); O) Não existia a menos de 50 metros qualquer passadeira para peões (art. 9º da Base Instrutória); P) Não vinha no sentido Norte – Sul qualquer viatura (resposta ao art. 10º da Base Instrutória); Q) O DD atravessou no sentido Poente/Nascente a hemi-faixa destinada ao trânsito Norte/Sul e, chegado ao meio da EN, parou sobre o traço que divide as duas hemi-faixas (resposta ao art. 11º da Base Instrutória); R) Viu aparecer, no sentido Sul/Norte, a viatura automóvel referida em A), a velocidade superior a 50 km/h (resposta ao art. 12º da Base Instrutória); S) No local havia junto ao restaurante poste de iluminação e ainda luz no parque de estacionamento deste (resposta ao art. 13º da Base Instrutória); T) A viatura referida em A) deixou marcado no pavimento um rasto de travagem de 10 metros, indo embater no DD, projectando-o metros de distância (resposta ao art. 15º da Base Instrutória); U) Pondo-se, após, em fuga para não mais, até hoje, ser localizado (art. 16º da Base Instrutória); V) Ao acidente assistiu pelo menos EE (resposta ao art. 17º da Base Instrutória); X) Na circunstância, face à velocidade da viatura e carros estacionados, a pessoa referida em V) não pôde nem teve tempo de recolher a matrícula do veículo (resposta ao art. 18º da Base Instrutória); Z) O local do acidente situa-se dentro de uma povoação (art. 19º da Base Instrutória); AA) Chamados os bombeiros foi o DD evacuado para o hospital de Pombal, donde foi transferido para os Hospitais dos Covões (art. 20º da Base Instrutória); BB) Onde veio a falecer, na data referida em A), devido a lesões traumáticas meningo-encefálicas e toráxicas sofridas (art. 21º da Base Instrutória); CC) O DD teve consciência do acidente e lutou pela sobrevivência logo após (art. 22º da Base Instrutória); DD) O DD era indivíduo de compleição normal (resposta ao art. 23º da Base Instrutória); EE) O DD tinha um temperamento afectuoso (resposta ao art. 24º da Base Instrutória); FF) O DD era trabalhador, dele se afeiçoando os patrões e colegas (resposta ao art. 25º da Base Instrutória); GG) A sua morte foi uma perda irreparável para os pais que tanto amavam, sendo correspondidos de igual forma (art. 26º da Base Instrutória); HH) O DD trabalhava em Albergaria, Marinha Grande, com a profissão de motorista de pesados (art. 27º da Base Instrutória); II) Pedia à sua entidade patronal que todos os serviços que a mesma tivesse para Castelo Branco ou perto da Beira Interior lhe fosse distribuído (art. 28º da Base Instrutória); JJ) O DD aproveitava as ocasiões referidas em II) para estar com os pais (resposta ao art. 29º da Base Instrutória); LL) A entidade patronal do DD atendia a tais pedidos (resposta ao art. 30º da Base Instrutória); MM) O DD contribuía para as despesas domésticas dos pais com parte do seu vencimento (resposta ao art. 31º da Base Instrutória); NN) O DD não namorava (resposta ao art. 32º da Base Instrutória); OO) Os pais do DD vestiram-se de luto, mantendo-o por largo tempo (resposta ao art. 33º da Base Instrutória); PP) O lar constituído pelos pais do DD era alegre anteriormente à sua morte (resposta ao art. 34º da Base Instrutória); QQ) Passou a ser um lugar triste e sofrido (resposta ao art. 35º da Base Instrutória); RR) Os Autores são pessoas tristes (resposta ao art. 36º da Base Instrutória); SS) Os Autores perderam a vontade de conviver, de se divertir, de assistir às festas e romarias da zona, a que todos assistiam (resposta ao art. 37º da Base Instrutória); TT) A Companhia de Seguros Fidelidade-Mundial, S.A., no âmbito do contrato referido em C), para além do referido em F), pagou a AA, a título de transportes, incapacidades temporárias e subsídio de funeral a quantia de € 1.332,16 (art. 40º da Base Instrutória); UU) A Companhia de Seguros Fidelidade-Mundial, S.A., no âmbito do contrato referido em C), para além do referido em E), pagou à Autora BB e a AA, a título de transportes, incapacidades temporárias e subsídio de funeral a quantia de € 7.427,30 e € 7.284,85, respectivamente a BB e AA (art. 41º da Base Instrutória); VV) Com despesas judiciais para cumprimento do contrato referido em C), a Fidelidade Mundial pagou € 725,33 de despesas judiciais (art. 42º da Base Instrutória). 5. Na alegação apresentada, o FGA impugna a solução jurídica do litígio, adoptada pela Relação no acórdão recorrido, no que se refere à dinâmica do acidente, pretendendo imputar a culpa exclusiva ao peão sinistrado, em acidente em que – importa salientar - o automobilista interveniente se pôs em fuga, não tendo sido possível apurar a respectiva identidade. Considera-se, porém, claramente improcedente o esforço argumentativo desenvolvido pela entidade recorrente, aderindo-se quanto a esta questão inteiramente ao conteúdo decisório do acórdão proferido pelo Relação, atrás transcrito –e entendendo-se, deste modo, que o acidente terá de imputar-se, face à matéria de facto fixada, ao condutor desconhecido que infringiu a norma constante do art. 27º, nº1, do C. Estrada, ao circular a velocidade inadequada ao local (interior de uma povoação) e concretas circunstâncias adversas ou «hostis»à segurança do tráfego (noite, chuva , visibilidade deficiente), originando, em consequência, com a sua conduta o atropelamento mortal. E, assim sendo, é evidente que nenhuma censura merece a decisão que condenou tal entidade a satisfazer as indemnizações devidas aos progenitores do falecido pelos danos não patrimoniais, decorrentes da morte do sinistrado, imputável ao responsável desconhecido, por se verificarem inteiramente os pressupostos previstos na al. a) do nº2 do art. 21º do DL522/85. 6. Passando a apreciar o recurso interposto pela interveniente Fidelidade, importa realçar liminarmente que esta entidade deduziu intervenção principal, na sequência de chamamento deduzido pelo R./FGA na sua contestação, peticionando a condenação desta entidade no pagamento das quantias já liquidadas no âmbito da responsabilidade que havia assumido pelas consequências do acidente de trabalho, nomeadamente o valor das pensões e capitais de remição que, na qualidade de seguradora, teve de satisfazer aos interessados/AA.. O acórdão recorrido, porém, interpretando tal pretensão como visando apenas evitar que os AA./lesados pudessem vir a alcançar uma dupla indemnização pelos mesmos danos ( obtendo, em termos cumulativos, o ressarcimento dos danos patrimoniais decorrentes da perda irremediável da capacidade laboral da vítima simultaneamente da seguradora do sinistro laboral e do FGA, na veste de entidade que garantia a indemnização dos danos decorrentes do acidente de viação, causado pelo condutor desconhecido), fez notar que não ocorria, no caso, qualquer duplicação de indemnizações pelo mesmo tipo de danos, já que a indemnização alcançada através da presente acção se conexionava exclusivamente com a compensação de danos não patrimoniais, obviamente não compreendidos no âmbito da responsabilidade da seguradora pelo acidente de trabalho. É contra esta decisão que se insurge a seguradora/interveniente, fazendo notar que o fim da sua intervenção principal não era o de obter a desoneração da sua responsabilidade perante os lesados, mas antes o de efectivar o direito de regresso contra o responsável pelo acidente de viação, fundando-se nos nºs 1 e 4 da Base XXXVII da Lei 2127: o objectivo da intervenção principal não era, pois, o de evitar uma indevida acumulação de indemnizações pelos lesados do acidente que simultaneamente se configurava como de viação e de trabalho, mas antes o de obter o reconhecimento do seu direito de repercutir no principal e definitivo responsável pelo ressarcimento de todos os danos patrimoniais decorrentes da morte do sinistrado o montante das indemnizações que, em primeira linha, tivera de satisfazer , na veste de seguradora laboral. Não oferecendo dúvida que esta pretensão poderia perfeitamente ser deduzida contra a seguradora que garantisse o pagamento das indemnizações devidas pelo responsável pelo facto ilícito, gerador do óbito do sinistrado, impõe-se verificar, todavia, na concreta situação litigiosa – caracterizada por tal responsabilidade incidir sobre responsável desconhecido, estando, consequentemente, a cargo do FGA – se competirá a tal entidade satisfazer o direito de regresso que o nº4 da referida Base XXXVII - disposição aplicável a acidente ocorrido em 1995- concede à seguradora do acidente laboral. De um ponto de vista funcional e teleológico, importa acentuar o papel que está cometido ao FGA no nosso ordenamento jurídico de entidade que - assumindo de pleno a socialização do risco no âmbito dos acidentes rodoviários – constitui o último recurso - a última linha de defesa - no ressarcimento das vítimas dos riscos típicos da circulação rodoviária, evitando a sua total desprotecção nos casos em que acabe por não poder funcionar o pilar / seguro obrigatório ( nomeadamente, e desde logo, porque, como ocorreu no caso dos autos, é desconhecido o autor do facto ilícito e culposo que causou o decesso do peão sinistrado). Ora, na peculiar situação dos autos, em que a seguradora dos riscos laborais pretende efectivar o direito de regresso que a lei lhe outorga por – numa situação de solidariedade imprópria ou imperfeita – ter assumido, em primeira linha, no confronto dos lesados, o ressarcimento dos danos decorrentes da privação da capacidade laboral do sinistrado, deve realçar-se que, por um lado, tal seguradora não pode propriamente qualificar-se como «lesado» pelo acidente rodoviário, isto é, como titular dos direitos subjectivos ou interesses legalmente protegidos, afectados pela morte do sinistrado: a seguradora assumiu o pagamento dos danos ligados à perda irremediável da capacidade laboral da vítima no quadro de uma relação contratual que estabeleceu com a entidade patronal daquela, visando garantir determinados riscos laborais, não representando propriamente o pagamento da indemnização devida um «dano próprio» da seguradora, cujo ressarcimento lhe seja possível obter - sempre e em quaisquer circunstâncias - de quem, a qualquer título, garanta a responsabilidade civil do lesante. Verificando-se uma situação de concurso de pretensões indemnizatórias -de que é titular o verdadeiro «lesado» pelo sinistro (simultaneamente rodoviário e laboral) - geradora de «solidariedade imprópria» dos responsáveis pelos acidentes laboral e de viação, os vários devedores não estão situados num mesmo plano, incumbindo a um deles, em primeira linha, assegurar perante o credor a plena e total realização da prestação devida ; mas podendo, num segundo momento, repercutir a totalidade daquilo que foi chamado a pagar sobre o património do devedor, principal e definitivo, da obrigação comum : há, pois, neste tipo de situações configuráveis como de solidariedade imprópria, um escalonamento ou hierarquização de responsabilidades, incumbindo a um dos devedores – o que responde pelas consequências danosas do acidente laboral - assumir ou garantir transitoriamente a satisfação do direito do credor, mas beneficiando, num segundo momento, logo após o cumprimento, da faculdade de se reembolsar inteiramente à custa do património do devedor principal e definitivo da obrigação – isto é, aquele a quem é imputável o acidente rodoviário e as suas consequências danosas. O «direito de regresso» não se configura, deste modo, como um direito de indemnização do lesado sobre o autor do facto danoso, fundado em responsabilidade extracontratual, mas antes como uma consequência legal do facto de um dos devedores solidários ter cumprido a obrigação de ressarcimento a que estava vinculado, adiantando, no quadro de uma relação contratual, um valor indemnizatório que – perante a «hierarquização» das responsabilidades dos potenciais devedores – pode ser ulteriormente repercutido no património do devedor principal e definitivo da obrigação de indemnizar. E, para que exista efectivamente tal direito de regresso, é indispensável que se verifiquem todos os pressupostos legalmente estabelecidos na norma que o prevê – no caso, porque estamos confrontados com acidente ocorrido em 1995, nos nºs 1 e 4 da Base XXXVII da Lei 2127, aplicável por força da remissão realizada pelo nº1 do art. 18º do DL 522/85. O que decorre de tal conjunto normativo é que a seguradora que tiver cumprido a obrigação que sobre ela recaía de pagar a indemnização devida pelo acidente de trabalho tem direito de regresso contra «os responsáveis referidos no nº1», ou seja, contra os companheiros do sinistrado ou terceiros que tiverem causado o acidente – e não, note-se, sobre qualquer entidade que deva garantir e assegurar os direitos do lesado, ressarcindo-o nos casos em que o causador do acidente o não puder fazer. Ora, como temos por evidente, não pode seguramente qualificar-se o FGA como «causador» do acidente em litígio nos presentes autos, não radicando a sua obrigação de ressarcir os lesados no instituto da responsabilidade civil extracontratual, subjectiva ou objectiva, que para tal entidade houvesse sido transferida, legal ou contratualmente, mas apenas e tão somente no propósito de – socializando os riscos associados à circulação rodoviária - evitar a total desprotecção da vítima, decorrente do não apuramento da identidade do lesante ( e, consequentemente, da impossibilidade de transferir para a respectiva seguradora o dever de ressarcimento que normalmente lhe competiria). Ou seja: a fonte normativa do dever de indemnizar que o art. 21ºdo DL 522/85 faz recair sobre o FGA, embora tenha como pressuposto e medida a responsabilidade civil do causador do acidente, cuja identidade foi impossível apurar, não se situa no âmbito da figura da responsabilidade civil, constituindo antes objecto de um dever legal de ressarcimento, emergente do propósito de fazer assumir pela colectividade os risco mais gravosos, ligados aos acidentes estradais, nos casos em que foi inviável fazê-los incluir no âmbito do pilar/seguro obrigatório. E, não podendo, pelos motivos apontados, qualificar-se o FGA como causador do sinistro, isto é, como entidade que deva assumir, no âmbito da figura da responsabilidade civil, a indemnização de certo tipo de danos resultantes do acidente rodoviário, não se verificam os pressupostos legais a que a norma aplicável condiciona o exercício do direito de regresso por parte da seguradora que garantia os riscos laborais. Improcede, pois, o recurso interposto pela seguradora/interveniente, confirmando-se, embora por diferente fundamento, o sentido decisório contido no acórdão da Relação. 7. Nestes termos e pelos fundamentos apontados, nega-se provimento às revistas. Custas pela seguradora recorrente, atenta a isenção de que beneficiou nos presentes autos o FGA. Lisboa, 5 de Maio de 2011 Lopes do Rego (Relator) Orlando Afonso Távora Victor |