Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
08B2779
Nº Convencional: JSTJ000
Relator: LÁZARO FARIA
Descritores: ACÇÃO CÍVEL
CÂMARA MUNICIPAL
INCOMPETÊNCIA ABSOLUTA
SUBEMPREITADA
TRIBUNAL ADMINISTRATIVO
Nº do Documento: SJ200812040027797
Data do Acordão: 12/04/2008
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: AGRAVO
Decisão: PROVIDO
Sumário :


1 – A apreciação dos litígios sobre questões relativas à execução de contratos de objecto passível de acto administrativo, de contratos especificamente a respeito dos quais existam normas de direito público que regulem aspectos específicos do respectivo regime substantivo, ou de contratos em que pelo menos uma das partes seja uma entidade pública, é da competência dos tribunais administrativos.
2- Sendo o contrato de subempreitada, ainda que celebrado entre entidades privadas, referente a obra pública, tendo sido esta objecto de contrato de empreitada entre uma Câmara Municipal e a empreiteira - sendo ambos os contratos regulados pelo Dec. Lei nº 59/99, de 02/03, e, quanto ao de subempreitada, no seu título X (artºs 265º e seg.s) – o conhecimento das questões, relativas à execução dos mesmos, nomeadamente direito de retenção do seu artº 267º, compete à jurisdição administrativa.

Decisão Texto Integral:
Acordam no Supremo Tribunal de Justiça


1- Relatório
AA, LDA. interpôs recurso de agravo do despacho que julgou procedente, em 1ª instância, a excepção da incompetência absoluta, em razão da matéria, do tribunal comum, nos presentes autos, que move a AA - ENGENHARIA E CONSTRUÇÃO, SA, e MUNICÍPIO DE SETÚ­BAL/CÂMARA MUNICIPAL DE SETÚBAL, com fundamento em que o contrato celebrado entre a recorrente e a 1ªRé, em causa nos autos, é de direito privado e, como tal, regulado pela lei civil; o chamamento da ré, Câmara Municipal de Setúbal, ao abrigo do disposto no artº 267º do DL 59/99, de 2 de Março, não pode ser entendido como a existência de um vínculo entre ambas; a ora recorrente serviu-se da figura jurídica -"acção directa". Por isso, o tribunal competente é o comum - artigos 66°, 69° e 74º, do C.P.C.
O Tribunal da Relação, conhecendo e considerando que o contrato cujo incumprimento se invoca, embora seja na sequência da celebração de tal empreitada, não se confunde com esta última, entendeu que se discutem, essencialmente, interesses não estruturados numa relação jurídica administrativa, que determinasse a atribuição da competência para da mesma conhecer aos tribunais administrativos. E, concedendo provimento ao agravo, revogou o despacho recorrido, ordenando o pros­seguimento dos autos nos termos interpostos, por ser competente para conhecer da acção.
Deste acórdão, inconformado, interpôs recurso, de agravo, o Município de Setúbal/ Câmara Municipal de Setúbal, para este Supremo Tribunal.
Alegando, conclui:
a) No presente processo, a A. integra a causa de pedir do pedido formulado contra a Ré, pessoa jurídica privada num contrato de subempreitada que com ela celebrou, contrato esse cuja natureza é estrita e inequivocamente civilística, embora, pela sua conexão com um contrato de empreitada de obras públicas, se lhe possam aplicar algumas normas da regulamentação própria deste contrato.
b) A A. integra a causa de pedir do pedido formulado contra o R. Município, ora agravante, num contrato de empreitada de obras públicas, contrato que tem, inequivocamente, a natureza de contrato administrativo, invocando a aplicação de uma norma do regime jurídico deste tipo de contratos.
c) Nos termos do disposto na alínea e), do nº 1, do artº 4° do E.T.A.F., é da competência dos tribunais da jurisdição administrativa, a decisão de litígios que tenham por objecto questões relativas à interpretação, validade e execução dos contratos administrativos.
d) Assim, a jurisdição comum é, em face da referida disposição legal, materialmente incompetente para conhecer do pedido formulado pela A. relativamente ao R., ora agravante.
e) Não deixando de existir tal incompetência em razão da matéria pelo facto de a A. ter coligado o ora agravante com uma pessoa jurídica de direito privado, pois, sendo as normas que definem a competência das diversas jurisdições de interesse e ordem pública, a sua aplicação não pode ser subvertida ou contornada por uma especificidade processual da iniciativa do particular.
f) Assim, bem decidiu o Tribunal da 1ª instância ao julgar-se incompetente e absolver o Réu da instância, pelo menos na parte que ao R. agravante se refere, admitindo-se que possa ser discutível a correcção dessa decisão no que se refere à R., pessoa privada.
g) De todo o modo, em face dessa incompetência material para conhecer do pedido formulado contra o R. Município, seria impossível a sua coligação, como foi promovida pela A., com a R. pessoa de direito privado.
h) Por a tal se opor do disposto no nº 1 do artº 31° do C.P.C ..
i) Pelo que, de todo o modo, sempre a decisão de 1a instância teria de ser, como o foi, de absolvição do agravante da instância, por ser impossível a coligação ou por incompetência em razão da matéria, se acaso se entendesse que, em face da impossibilidade da coligação, se deveria dar à A. a possibilidade de opção prevista no art° 31º-A do C.P.C., caso esta viesse a optar pelo prosseguimento da acção contra o agravante.
j) Assim, a sentença de 1a instância, ao absolver o R. da instância por incompetência material do Tribunal, fez uma correcta aplicação da lei pelo que, não deveria, pelo menos nessa parte, ser revogada.
k) Ao assim não entender e ao revogar na totalidade a decisão da 1ª instância, o acórdão recorrido fez uma errada interpretação e aplicação do disposto nos art°s 4°, nº 1, alínea f) do E.T.A.F. e 66° e 69° do C.P.C ..
Deve ser revogado o acórdão recorrido, pelo menos na parte que se refere ao R. agravante, mantendo-se a decisão da 1a instância, pelo menos na parte em que absolve este da instância.

Foram apresentadas contra-alegações, defendendo a agravada que, tendo os presentes autos origem no incumprimento contratual por parte da ré AA-SA., para com a ora agravada - duas pessoas colectivas de direito privado – e, como tal, regulado pela lei civil, e tendo sido a agravante chamada ao abrigo do disposto no artigo 267° do Decreto-Lei nº 55/99, de 02 de Março, não significa que o contrato celebrado entre a agravada e a ré AA-SA fique sujeito à jurisdição administrativa.

Deve, por isso, ser mantido o acórdão recorrido.

2 - Cumpre apreciar e decidir.

Em causa está o facto da A., em execução de um contrato de subempreitada celebrado com a 1ª Ré, respeitante a obras relativas a contrato de obra pública celebrado por esta com o 2º Réu, não ter sido a A.(subempreiteira) ressarcida de facturas apresentadas a esta e de que pediu pagamento, bem como ao 2º Réu.
Tendo intentado acção no tribunal comum, pedindo a condenação solidária dos R.R. no pagamento das quantias não pagas pela 1ª Ré, invocando quanto a este – Município de Setúbal – o disposto no artº 267º do Dec. Lei nº 59/99, de 02/03, a questão que ora se coloca é decidir-se se, no contexto da acção, o tribunal comum é competente para conhecer do pedido relativamente ao Réu-Município, uma vez que, ao contrário do entendido na 1ª instância, o tribunal recorrido decidiu por tal competência.
Vejamos:
Dispõe o artº 4º do E.T.A.F. al. f) que:
«1 - Compete aos tribunais da jurisdição administrativa e fiscal a apreciação de litígios que tenham nomeadamente por objecto:
(…)
f) Questões relativas à interpretação, validade e execução de contratos de objecto passível de acto administrativo, de contratos especificamente a respeito dos quais existam normas de direito público que regulem aspectos específicos do respectivo regime substantivo, ou de contratos em que pelo menos uma das partes seja uma entidade pública ou um concessionário que actue no âmbito da concessão e que as partes tenham expressamente submetido a um regime substantivo de direito público»;
Por sua vez, a Constituição da República Portuguesa dispõe no seu artº 212º nº 3 que:
«Compete aos tribunais administrativos e fiscais o julgamento das acções e recursos contenciosos que tenham por objecto dirimir os litígios emergentes das relações jurídicas administrativas».

Entendeu o tribunal recorrido que, no caso concreto, tendo em conta a factualidade alegada pela autora, da qual faz emergir a eventual responsabilidade e incumprimento por parte de ambas as rés, e tendo-se como bom o entendimento, que a competência em razão da maté­ria é fixada em função dos termos em que a acção é proposta, considerando o pedido do autor, isto é, o direito a que se arroga e que quer ver reconhecido ou declarado judicialmente, concluiu, como se disse, pela competência do tribunal comum para conhecer da acção relativamente a ambos os R.R..
Porém, desta decisão discorda o recorrente.
E bem.
Na verdade, a causa, embora seja estruturada em contrato de subempreitada celebrado entre duas pessoas jurídicas privadas, não deixa de ter incidido sobre “obra pública”, objecto de contrato de correspondente natureza, celebrado entre o 2º Réu e a 1ª Ré. Por isso, é que a A., face aos factos invocados e ao direito que, por si, é chamado à respectiva decisão, não deixa de, com base neles, pedir a condenação do Réu, Município de Setúbal, em responsabilidade solidária com a Ré, no pagamento da quantia que, refere, lhe é devida.
Ora, em sede de competência material, tal é relevante para se aferir de qual o tribunal competente para conhecer da pretensão formulada pela autora contra o Réu.
Dispõe-se, é certo, que: - a causa deverá ser apreciada no tribunal comum, se não couber na competência de outro tribunal - artº 211º, nº 1, da C.R.P., artº 18º, n.o 1, da L.O.F.T.J. e art.o 66º do C.P.C.
Porém, não é caso de aplicação destas normas.
Senão, vejamos:
Se compete aos tribunais administrativos dirimir os litígios emergentes de relações jurídicas administrativas, nos termos das normas atrás também referidas, deles apenas ficam excluídos os conflitos puramente privados, ou de cariz meramente juridico-civilístico; “in casu”, embora não esteja, directamente, em causa o cumprimento ou incumprimento, pelo Réu Município, de qualquer contrato por si celebrado com a A., porque com esta nenhum celebrou, está em causa o cumprimento de um contrato de “subempreitada de obra pública”, a qual foi objecto de contrato de empreitada pelo Réu Município com a Ré, cujo conhecimento e apreciação é da competência do tribunal administrativo, conforme aquelas normas.
Aliás, não só ao contrato de empreitada como também ao de subempreitada, de “obras públicas”, se refere o Dec. Lei nº 59/99 referido e, nomeadamente quanto a este, no seu título X – artºs 265º e seg.s – onde se insere o invocado artº 267º, na base no qual a A. fundamenta o seu pedido.

As relações jurídicas administrativas dizem respeito, especialmente, às relações jurídicas entre a Administração e os particulares, em que aquela surge investida de autoridade pública, com vista à realização de um interesse igualmente público, cabendo, assim, estas no âmbito do direito administrativo.
E é no âmbito de relações jurídicas de natureza administrativa que é demandado o Réu.
Tratando-se de não pagamento de trabalhos executados ao abrigo dum contrato de subempreitada de obras públicas celebrado entre a A. e a Ré AA, em consequência de contrato de “empreitada de obra pública”, de Cons­trução do Mercado - Bairro 2 de Abril, este celebrado entre a Ré e o Réu, Município - sendo, por isso, este o dono da obra - é este, neste processo, Réu, por esta qualidade; e, nesta, apresenta-se como titular de relações jurídicas administrativas, das quais emerge o direito que a A. pretende ver reconhecido e de que faz invocação; o Município é accionado por causa de garantir, nos termos da norma invocada pela A. (artº 267º) o cumprimento da subempreitada de obra pública, sendo matéria do âmbito do direito administrativo, por se tratar “de contrato especificamente a respeito do qual existam normas de direito público que regulem aspectos específicos do respectivo regime substantivo” – artº 4º, al. f) do E.T.A.F.

Com efeito, invoca a A. o artº267º, nº 1 do dec. Lei nº 55/99 de 02/03, fundamentando com o disposto nesta norma a condenação do Réu no pedido.

No entanto, esta apenas dispõe sobre a possibilidade de uso, pelo dono da obra, do direito de retenção, “de quantias do mesmo montante devidas ao empreiteiro e decorrentes do contrato de empreitada de obra pública”.

Sob a epígrafe – “Direito de retenção” – dispõe, o seu nº 1, que: “ Os subempreiteiros podem reclamar junto do dono da obra pelos pagamentos em atraso que sejam devidos pelo empreiteiro, podendo o dono da obra exercer o direito de retenção de quantias do mesmo montante devidas ao empreiteiro e decorrentes do contrato de empreitada de obra pública”.

E o seu nº 2, dispõe como fazer com as quantias retidas. Assim: “As quantias retidas nos termos do número anterior serão pagas directamente ao subempreiteiro, caso o empreiteiro, notificado para o efeito pelo dono de obra, não comprove haver procedido à liquidação das mesmas nos 15 dias imediatos à recepção de tal notificação”.

Como se vê dos autos, servindo-se a A., embora, do contrato de subempreitada celebrado entre ela e a Ré – duas pessoas colectivas de direito privado – e da sua violação por esta, invoca também relações jurídicas administrativas (conexas), para demanda do Réu – contrato de empreitada celebrado entre aquela e este - contra este fazendo o mesmo pedido (condenação solidária com a Ré), “ex vi” dessas mesmas relações.

Por isso, sendo o objecto da acção o conhecimento de uma questão, que embora, relativamente à ré, mostre ser de mero direito privado, já o mesmo se não passa relativamente ao Réu Município, pelos atrás referidos fundamentos.
As “questões relativas à interpretação, validade e execução de contratos de objecto passível de acto administrativo, de contratos especificamente a respeito dos quais existam normas de direito público que regulem aspectos do respectivo regime substantivo, ou de contratos que as partes tenham expressamente submetido a um regime substantivo de direito público” – al f) do artº 4º do E.T.A.F. – caem no âmbito do direito administrativo; no caso, são reguladas pelas referidas normas do dec. Lei nº 59/99, de 02/03.
Aliás, no Dec. Lei nº 59/99, de 2 de Março, consigna-se no art.o 2º, que este diploma estabelece o regime de contrato administrativo de empreitada de obras públicas, indicando-se, entre outros, como donas de obras públicas, as Autarquias Locais – artº 3º - estabelecendo-se que as questões suscitadas sobre a “interpretação, validade ou execução” de tal contrato podem ser dirimidas pelo tribunal e que, neste caso, o competente é o tribunal adminis­trativo - artºs 253º e 254º do citado Decreto- Lei; e, como atrás também se disse, também neste se encontra regulado o contrato de subempreitada ( artºs 265º e seg.s).
Ora, nos termos dos artºs 105º do C. P. Civil, a verificação da incompetência absoluta implica a absolvição do Réu da instância, o mesmo resultando do disposto nos artºs 493º nº2 e 494º al. a), todos do C. P. Civil.
Não tendo assim sido entendido pelo tribunal recorrido, a decisão não pode manter-se. Procedem os invocados fundamentos do recurso.
Em consequência, acorda-se em conceder provimento, revogar o acórdão recorrido e manter a decisão proferida em 1ª instância.
Custas pela recorrida.

Lisboa, 04 de Dezembro de 2008

Lázaro Faria (Relator)
Salvador da Costa
Ferreira de Sousa