Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
084853
Nº Convencional: JSTJ00021776
Relator: SILVA CANCELA
Descritores: INDEFERIMENTO LIMINAR DA PETIÇÃO
PRÉDIO URBANO
PARTE INTEGRANTE
RESERVA DE PROPRIEDADE
TERCEIRO
OPOSIÇÃO
Nº do Documento: SJ199401260848532
Data do Acordão: 01/26/1994
Votação: UNANIMIDADE
Referência de Publicação: BMJ N433 ANO1994 PAG525
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: AGRAVO.
Decisão: PROVIDO.
Indicações Eventuais: M ANDRADE TEOR GER REL JUR VOLI PAG237. M PINTO DIR REAIS LIÇ1970/71 PAG84. M BRITO ANOT VOLIII PAG410.
Área Temática: DIR PROC CIV.
DIR CIV - DIR REAIS.
Legislação Nacional: CCIV66 ARTIGO 204 ARTIGO 408 N2 ARTIGO 409 N2.
CPC67 ARTIGO 474 N1 C.
Jurisprudência Nacional: ACÓRDÃO STJ DE 1987/03/05 IN BMJ N365 PAG562.
ACÓRDÃO STJ DE 1987/05/03 IN TJ N29 PAG25.
ACÓRDÃO STJ PROC83031 DE 1992/10/22.
Sumário : I - A petição inicial pode ser indeferida liminarmente, quando for evidente que a pretensão do autor não pode proceder
- artigo 474, n. 1, c) do Código de Processo Civil, o que se justifica com base no princípio da economia processual e sendo necessário que a petição não tenha quem a defenda, nos tribunais ou na doutrina.
II - São partes integrantes de um prédio coisas que por sua natureza infinariamente móveis, mas cujo serviço útil só pode ser prestado estando materialmente ligadas a outra coisa, o que altera, em princípio, a sua natureza, não chegando a ser elementos da sua estrutura - artigo 204 do Código Civil.
III - Ora os elevadores são parte integrante de um prédio quando nele instalados, o que não implica a nulidade de uma cláusula de reserva de propriedade dos mesmos, como a que consta destes autos, pelo que não é evidente que a pretensão da Autora seja improcedente ou admissível.
IV - E esta reserva pode ser oposta a terceiros independentemente de qualquer formalidade especial, uma vez que não vigora entre nós o princípio possession vant titre (posse vale título), e portanto aos compradores dos vários andares do prédio.
Decisão Texto Integral: Acordam, em conferência, no Supremo Tribunal de
Justiça:
Fortis Elevadores Lda. intentou contra A e mulher B, C e mulher D, E e mulher F, G, H mulher I, J e mulher L, M e mulher N, O, P, Q e mulher R, S e mulher T, U, V e mulher X, Z e mulher A1, B1, C1 e mulher D1, E1 e mulher F1, G1 e mulher H1, I1, J1, L1 e mulher M1, N1 e mulher O1, P1 e mulher
Q1, R1, S1, T1 e mulher U1, V1 e mulher X1, Z1 e marido A2, B2, C3 e mulher D3, E3 e F3, G3 e mulher H3, I3 e mulher J3, L3 e mulher
M3, N3 e mulher O3, P3, Q3 e mulher R3, S3 e mulher T3, U3, V3 e mulher X3, Z3 e mulher A4, B4 e mulher C4, D4 e mulher E4, F4, e mulher G4, H4 e mulher I4, J4, L4 e mulher M4, N4, O4 e mulher P4 e Q4 e marido
R4 uma acção com processo ordinário pedindo que se reconheça a sua propriedade sobre dois grupos de dois elevadores instalados nos prédios A e B do Bloco 7 da Célula 5 da Urbanização de Carnaxide e se condenarem os réus a restituírem-lhe os com todos os respectivos materiais e acessórios. Para tanto alegou, em síntese que em 7 de Março de 1974 celebrou com Construções Messias de Jesus 2 contratos de fornecimento daqueles grupos de elevadores a fim de serem instalados nos prédios em causa e que então a referida sociedade construía.
O preço devia ser pago em quatro prestações mas a Construções Messias de Jesus, Lda. não pagou a quantia das prestações nem a quantia de 329715 escudos respeitante à parte da terceira, tendo parte da dívida ficado reformulada por quatro letras aceites pela Construtora e sacadas pela autora, das quais três no valor, respectivamente, de 131830 escudos, 61690 escudos, com vencimento em 25 de Agosto de 1977, mas que não foram pagar.
Em ambos os contratos ficou acordado que os elevadores fornecidos, incluindo todos os respectivos materiais, se manteriam propriedade da autora até que a construtora contratante pagasse a totalidade do preço da venda, sem que de algum modo pudessem constituir-se partes integrantes dos imóveis.
Os réus são os actuais proprietários das fracções dos prédios em que se encontram instalados os elevadores, que utilizam por si ou através de inquilinos seus, sendo os primeiros vinte e três condóminos do lote A e os restantes do lote B.
A petição foi indeferida liminarmente com o fundamento de que a pretensão formulada pela autora não podia proceder. Para tanto considerou-se que logo que incorporados nos edifícios os elevadores ficaram a pertencer ao dono da obra e, em consequência da venda das diversas fracções autónomas, passaram, livres de quaisquer ónus ou encargos a pertencer, em condomínio, aos adquirentes dessas fracções que não celebraram nenhum contrato com a autora.
Além disso, uma vez montados, os elevadores são coisas imóveis e estando materialmente ligados aos respectivos prédios não pode a autora nem ninguém reivindicá-los isoladamente pois possuem as prorrogativas jurídicas do imóvel enquanto a ele estiverem ligados. Assim a cláusula de reserva de propriedade em que a autora se louva é nula por ineficaz em relação aos réus, que relativamente a ela são terceiros.
Inconformada, a autora recorreu da citada decisão mas a
Relação confirmou-a.
Segundo a Relação, quer se considerasse que os elevadores instalados num prédio urbano são seus componentes quer se considere que são suas partes integrantes, ganham logo que instalados a natureza imobiliária própria do prédio em que estão instalados.
Sendo os réus os actuais proprietários das fracções em que foram divididos os prédios em que os elevadores estão instalados, a sua propriedade passou a pertencer-lhes em consequência dos contratos de compra e venda celebrados com a empresa construtora.
Assim e porque a propriedade dos elevadores não pertence à autora, a acção teria que improceder mesmo que se provassem os factos alegados.
Novamente inconformada, a autora recorreu para este
Supremo Tribunal e, na sua alegação, apresentou conclusões que, assim, se sintetizam:
1 - O acórdão recorrido faz aplicação errada do artigo
474 n. 1 alínea c) do Código de Processo Civil, visto que não é evidente a falta de procedência da acção.
2 - Só há lugar a indeferimento liminar, por aplicação da alínea c) do artigo 474 n. 1 do Código de Processo
Civil, quando a pretensão não tiver qualquer apoio na lei nos tribunais ou na doutrina, o que não é o caso.
3 - O acórdão recorrido fez errada interpretação dos artigos 409 e 204 n. 3 do Código Civil.
4 - Os elevadores dum prédio não deixam, por lhes serem necessários, deter a natureza de parte integrante para passar a ter a natureza de parte componente, uma vez que fisicamente são dele separáveis, idêntica relação de funcionalidade existindo em todos os outros casos de parte integrante.
5 - O acórdão recorrido, além de violar todas as disposições legais citadas, contrariou o ensinamento da doutrina portuguesa e os acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 22.7.38, 9.10.86, 6.12.80 e 5.12.69.
6 - Ao manter o indeferimento liminar da petição inicial em caso em que não era evidente a improcedência da pretensão, o acórdão recorrido violou o principio do contraditório o que, além do mais, implica cerceamento do direito de acesso aos tribunais, consagrado no artigo 20 da Constituição da República Portuguesa.
7 - O acórdão recorrido deve ser revogado e substituído por outro que, tal como no caso inteiramente idêntico do acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 21.10.92
(agravo 83031 da 2 secção) mande prosseguir o processo.
Não houve contra alegação.
Corridos os vistos, cumpre decidir.
I - A petição inicial pode ser indeferida quando for evidente que a pretensão do autor não pode proceder
(artigo 474 n. 1, alínea c), parte final, do Código de
Processo Civil). E o indeferimento, neste caso, justifica-se com base no princípio da economia processual. Se a acção não pode proceder não vale a pena prosseguir com o processo sujeitando-se o réu a incómodos e despesas. É, contudo, jurisprudência deste
Supremo Tribunal que só há lugar a indeferimento liminar nos termos da segunda parte da alínea c) do n.
1 do artigo atrás referido quando a pretensão não tiver quem a defenda, nos tribunais ou na doutrina, isto é, quando for evidente que a tese do autor não tem condições para vingar nos tribunais (Acórdãos de
5.3.1987 in Boletim do Ministério da Justiça, 365, página 562 e de 3.5.1987 in Tribunal de Justiça, 29, página 25).
II - Vejamos, agora se havia fundamento para o indeferimento liminar da petição inicial.
A nova doutrina vem definindo as partes componentes de um prédio como aquelas que fazem parte da sua estrutura e sem as quais ele está incompleto ou impróprio para o fim a que se destina e as partes integrantes como aquelas que estando ligadas ao prédio com carácter de permanência lhe aumentam a utilidade, mas sem que a sua falta o torne incompleto ou imprestável (vid. Manuel de
Andrade in Teoria Geral da Relação Jurídica, vol. I, página 237 e Mota Pinto in Direitos Reais, Lições de 1970-71, página 84).
São, portanto componentes aqueles elementos de uma coisa que a formem na sua totalidade, não podendo dela ser separados sem a destruir.
São nela inconformados como sendo elementos constitutivos, passando a ser abrangidos pelo direito de propriedade (ou qualquer outro direito real) que incida sobre esta.
As partes, integrantes são coisas por sua natureza originariamente móveis mas cujo serviço útil só pode ser prestado estando materialmente ligados a outra coisa o que altera, em princípio, a sua natureza. Estão ao serviço de um prédio mas não chegam a ser elementos da própria estrutura dele.
Não se confundem no seu todo, deixando de poder ser identificados ou individualizados, embora sem prejuízo da sua natureza mobiliária dado o disposto no artigo 204 do Código Civil.
Embora sigam em princípio o destino unitário do prédio, o regime jurídico das partes componentes e das partes integrantes não é o mesmo. Daí que, conforme diz Mota Pinto, seja nula a cláusula de reserva de propriedade quanto a uma coisa que vai tornar-se parte constitutiva de outra mas que já seja duvidoso que o mesmo possa dizer-se quanto a idêntica cláusula sobre coisas que vão ser partes integrantes (vid. Direitos Reais, Lições de 1970-71, página 88).
III - Os elevadores são, conforme entendimento generalizado parte integrante de um prédio quando nele instalados mas tal facto não implica a nulidade de uma cláusula de reserva de propriedade.
A cláusula só seria nula se os elevadores fossem incorporados nos prédios, como seus elementos constitutivos.
Embora instalados no prédio os elevadores mantêm a sua individualidade. Não se confundem no todo pois continuam a ser identificados ou individualizados.
Podem ser retirados quando se avariarem ou forem substituídos sem que os prédios onde estão instalados sofram qualquer dano ou destrinça.
Conforme se diz no acórdão deste Supremo Tribunal de 22 de Outubro de 1992 proferido no processo n. 83031 da segunda secção "o simples facto de os elevadores serem partes integrantes do prédio a partir da sua instalação não afasta o valor da cláusula de reserva de propriedade entre a autora e o dono da obra ou seja o construtor dos prédios, visto que as partes integrantes
- sem afectar a sua natureza de imóveis - são separáveis do prédio, dada a sua natureza originária, e podem, como tal, ser objecto de negócios autónomos, nos termos do artigo 408 n. 2, parte final do Código Civil
(vid. fotocópia de folhas 354 e seguintes).
E será a cláusula de reserva de propriedade oponível a terceiros, ou seja aos réus compradores das várias fracções dos prédios em que os elevadores foram instalados?
Este é, tal como se refere no acórdão de 22 de Outubro de 1992 atrás citado, o problema fulcral. E, tal, como nele se diz, também "cremos que a solução do caso terá de ter em consideração a ponderação de outros elementos
- talvez nem considerados nas diversas decisões proferidas sobre casos idênticos - face aos factos que se venham a considerar definitivamente provados designadamente a natureza imóvel dos prédios urbanos e a sua sujeição a registo, e o alcance, numa perspectiva, para o caso dos autos, da interpretação do artigo 409 n. 2 do Código Civil. Tratando-se de coisa imóvel, ou de coisa móvel sujeita a registo, só a cláusula constante do registo é oponível a terceiros Tratando-se de coisa móvel não sujeita a registo, e segundo Mário de Brito, "parece que a cláusula vale mesmo em relação a terceiros, independentemente de qualquer formalidade especial, uma vez que não vigora entre nós o principio possession vant titre (posse vale titulo)" (vid. Código Civil Anotado, Vol II, página
410)
IV - De todo o exposto resulta que, independentemente do sentido que a solução deva ou possa vir a ter em definitivo no caso dos autos, não é evidente que a pretensão da autora não possa proceder. Daí que não seja admissível o indeferimento liminar nos termos do artigo 474 n. 1 alínea c), parte final, do Código de
Processo Civil.
Assim concede-se provimento ao agravo e, em consequência revogando-se a decisão recorrida determina-se a substituição do despacho de indeferimento liminar por outro que mande prosseguir o processo, nos termos legais.
Custas pelo vencido a final, adiantando-as para já a agravante.
Lisboa, 26 de Janeiro de 1994.
Mário Cancela.
Folque Gouveia.
Figueiredo de Sousa.
Decisões impugnadas:
Despachos de 93.10.19, 85.07.17, 85.11.22, 85.12.13,
86.02.24, 86.03.06 e 92.05.19 do 1 Juízo Cível de
Lisboa.
Acórdão de 93.06.20 da Relação de Lisboa.