Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
07A079
Nº Convencional: JSTJ000
Relator: URBANO DIAS
Descritores: CONTRATO DE MÚTUO
CONVERSÃO DO NEGÓCIO
Nº do Documento: SJ200702130000791
Data do Acordão: 02/13/2007
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA.
Decisão: NEGADA A REVISTA.
Sumário : Sendo o contrato de mútuo um contrato real quod constitutionem, isto é, um contrato que só se completa com a entrega da coisa, e não tendo havido qualquer entrega, então tal "contrato" é nulo por falta de objecto, nos termos do art. 280º do CC.
Embora nulo, o contrato sempre poderia ser convertido num outro, em homenagem ao princípio do favor negotii, desde que tivesse sido possível apurar a vontade conjectural ou hipotética das partes, como resulta do art. 293º do Código Civil. *

* Sumário elaborado pelo Relator.
Decisão Texto Integral: Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:


I -

Relatório

"AA" intentou, no Tribunal Judicial de Santarém, acção ordinária contra BB, pedindo que se declare nula e de nenhum efeito a escritura pública exarada no dia 06/10/97, no Cartório Notarial de Coruche, na qual ela figura como mutuária e o R. como mutuante e, ainda, nulos e de nenhum efeito os contratos de mútuo de hipoteca aí consignados, ordenando-se o cancelamento do registo de hipoteca caso ele exista.
Em suma, alegou que:
- Celebrou com o R. a dita escritura pública, na qual consta que este lhe emprestou a quantia de 66.907.500$00;
- Antes, em 28 de Setembro de 1983, celebrou com o R. um contrato de mútuo, através do qual este lhe emprestou 640.000$00, dos quais apenas lhe entregou 480.000$00, deduzindo o restante em pagamento de juros à cabeça;
- Passado mais algum tempo, o R. entregou-lhe mais 40.000$00;
- Não cumpriu o contrato de mútuo, o que motivou o R. a exigir-lhe letras e cheques alegando tratar-se de juros, os quais se multiplicavam sucessivamente e sem qualquer critério;
- O R., invocando não lhe ter pago as importâncias em dívida, ameaçou-a com a instauração de uma acção, o que motivou a celebração da escritura supra referida.

O R. contestou, defendendo serem verdadeiras as declarações constantes da escritura, acabando por pedir a sua absolvição.

Houve réplica.

Seguiu-se a elaboração do saneador, a selecção dos factos provados e a provar e, finalmente, o julgamento, após o que foi proferida sentença a julgar a acção procedente.

Mediante recurso de apelação do R., a Relação de Évora confirmou o julgado.

Ainda irresignado, o R. pede ora revista, tendo concluído a sua alegação com as seguintes conclusões:

- Foi dado como provado que nem na data em que a A. e R. celebraram a escritura pública de mútuo com hipoteca no Cartório Notarial de Coruche, em 6/10/1997, nem posteriormente à mesma, o R. entregou à A., a titulo de empréstimo e esta recebeu daquele a quantia de 66.907.500$00.

- Na escritura pública foi declarado que o R. emprestou à A. uma determinada quantia que esta declarou já ter recebido.

- O que é declarado é que foi recebida uma quantia por empréstimo, sendo possível que esse recebimento não tenha sido efectuado fisicamente, mas sim apenas por conversão de dívidas anteriores.

- Também ficou provado em resposta aos pontos 5° e 6° da B.I. que a A. foi entregando ao R. letras e cheques referentes a quantias monetárias não apuradas. Logo, está provada a existência de títulos de crédito emitidos pela A. a favor do R., cujo pagamento não foi concretizado até à data da celebração da escritura pública de mútuo.

- Está finalmente provado que a A. declarou ter recebido do R. a referida quantia e declarou que constituía hipoteca de prédio a favor do R..

- Deste modo, julgamos que, apesar do negócio que foi celebrado, a que foi chamado mútuo, as partes quiseram celebrar outro negócio.

- Reconhecimento de dívida.

- Apesar de terem chamado ao negócio um mútuo, o que resulta da prova produzida é que na verdade as partes quiseram efectuar um negócio bilateral de reconhecimento de determinada quantia que era devida em que as partes acordaram o valor em dívida por parte da A. e a forma de pagamento por parte do R.

- No fundo o que se pretendeu com a escritura foi obter um reconhecimento de dívida e uma garantia para o seu pagamento.

- Nos termos dos arts. 292º e 293º, ambos do C. Civil, a nulidade do negócio não determina todo o negócio, podendo converter-se num negócio de tipo ou conteúdo diferente, do qual contenha os requisitos essenciais de substância e forma, quando o fim prosseguido pelas partes permitam supor que elas o teriam querido.

- Assim, o mútuo em causa deveria ter sido convertido num outro negócio, o supra referido reconhecimento de dívida.

- Ora estando provado que houve entregas de títulos de crédito por parte da A. ao R. referentes a quantias monetárias, parece óbvio que o negócio que as partes quiseram celebrar não seria o contrato de mútuo, mas sim um reconhecimento de dívida, através da confissão da mesma.

- Houve assim uma errada determinação do negócio por parte da A. e R., pois como atrás se referiu, o que se pretendeu foi obter um reconhecimento de existência de dívida, de forma bilateral e onde ficou determinado o seu montante e prazo de pagamento.

- Não deveria pois ter sido declarado nulo e de nenhum efeito o mútuo em causa, mas sim declarada a conversão do mútuo noutro negócio - reconhecimento de dívida.
- Não houve simulação, pois não houve intenção de enganar terceiros e estes, no presente caso, não podem ser o Estado.

- Não foram alegados quaisquer factos relativos a esta questão, por um lado, e, por outro, de todos os factos provados, nenhum faz referência a qualquer intenção de lesar terceiros, e muito menos o fisco.

- Contudo e à cautela, e caso assim não seja entendido, ou seja, caso seja entendido que há simulação, a solução jurídica não pode ser a declaração de nenhum efeito do contrato de mútuo.

- Na verdade, dispõe o art. 241º do Código Civil, que quando sobre o negócio jurídico exista um outro que as partes quiseram realizar, é aplicável a este o regime que lhe corresponderia se fosse concluído sem dissimulação, não sendo a sua validade prejudicada pela nulidade do negócio simulado.

- Por detrás do negócio de mútuo, existiu um outro, que consistiu no reconhecimento por parte da A. de uma dívida para com o R..

- Apesar de terem chamado ao negócio um mútuo, o que resulta da prova produzida é que na verdade as partes quiseram efectuar um negócio bilateral de reconhecimento de determinada quantia que era devida - em que as partes acordaram o valor em dívida por parte da A. e a forma de pagamento por parte do R..

- O que se pretendeu com a escritura foi obter um reconhecimento de dívida e uma garantia para o seu pagamento.
- Houve assim outro negócio que as partes quiseram realizar, concretizado na obtenção de um reconhecimento de existência de dívida, de forma bilateral e onde ficou determinado o seu montante e prazo de pagamento.
- Não deveria pois ter sido declarado nulo e de nenhum efeito o mútuo em causa, mas sim declarado outro regime jurídico aplicável ao negócio dissimulado.
- Viola assim o acórdão recorrido, entre outros, o disposto nos arts. 236º, 240º, 241º, 246º, 292º, 293º e 393º, todos do C. Civil.

A recorrida contra-alegou em defesa da manutenção do aresto impugnado.

II -

As instâncias fixaram o seguinte quadro factual:

- No dia 06.10.1997, no Cartório Notarial de Coruche, foi exarada a escritura pública, figurando como mutuante o R. e como mutuária a A.;
- Por essa escritura, o R. declarou emprestar à A. a quantia de 66.907.500$00, sem juros, vencendo-se aquele montante no dia 06.10.2002;
- Por sua vez, a A. declarou ter recebido do R. a referida quantia e declarou em garantia do bom pagamento da mesma e das despesas extrajudiciais, que constituía a favor do R. hipoteca sobre o seu prédio rústico, denominado Vale da .., sito em ..., freguesia de . ...., concelho de Coruche, com a área de dezoito hectares e sete mil e duzentos centiares, composto de pinhal, cultura arvense, sobreiros, horta e laranjeiras, inscrito na matriz predial rústica da freguesia de ... sob o art. 64º da Secção M e descrito na C.R.P. de Coruche sob o nº. 68.1803.87;
- Declararam, ainda, A. e R. que as despesas com o registo desta escritura correm por conta da segunda outorgante que se compromete também a pagar os encargos fiscais por este acto se os mesmos forem devidos;
- A A. e o R. celebraram um contrato de mútuo em 28.09.1983 no montante de 640.000$00;
- Nem na data em que a A. e R. celebraram o contrato referido nos nºs. 1 a 4 destes factos assentes nem posteriormente o R. entregou à A. a título de empréstimo e a A. recebeu do R. a quantia aí mencionada de 66.907.500$00;
- A A. nunca recebeu do R. a quantia de 66.907.500$00;
- Por motivos que não foi possível concretamente apurar ao longo dos anos a A. foi entregando ao R. letras e cheques referentes a quantias monetárias que igualmente não foi possível determinar, assim como a A. chegou a pagar ao R. quantias que também não se lograram determinar;
- O R., invocando não se encontrar pago, referiu à A. que propunha contra ela acção judicial e na sequência disto vieram a celebrar a escritura acima aludida.
III -

Quid iuris?

Previamente, importa delimitar o campo de apreciação das questões colocadas pelo recorrente ao tribunal ad quem.
Sabemos todos que, no nosso sistema processual, os recursos são meios para obter o reexame das questões já debatidas nos tribunais inferiores, e não para criar decisões sobre matéria nova, não submetida ao exame do tribunal de que se recorre, a menos que se esteja perante questões de conhecimento oficioso.
Esta ideia tem tradução prática no art. 678º, nº 1 do CPC: "as decisões judiciais podem ser impugnadas por meio de recursos".
Dito isto, salta à vista que o recorrente ao suscitar a questão da conversão do negócio nulo (aqui finalmente reconhece isso mesmo, ou seja, a nulidade do negócio celebrado no Cartório Notarial de Coruche) o faz pela primeira vez, criando, desta forma, uma questão nova que, como tal, é avessa à apreciação do tribunal de recurso.
Ademais, sempre faltaria o material fáctico a permitir a conversão almejada (de mútuo para reconhecimento de dívida), como resulta de uma leitura, ligeira que seja, do art. 293º do CC.
Queremos apenas dizer que para haver a consagração prática do favor negotii necessário de torna apurar a vontade conjectural ou hipotética das partes.
Ora, nada, mas nada, permite concluir que as partes, perante a situação irremediável de o negócio ser nulo, pudessem eventualmente aceitar que o mesmo fosse convertido num outro.
Ademais, a conversão do negócio não é uma questão "oficiosa", pelo que, não tendo sido suscitada em sede própria, como não o foi, nunca encontraria a mesma aqui lugar para a sua apreciação.
Sobeja, desta forma, razão à recorrida quando alerta o Tribunal para a invocação por parte do recorrente de "questões novas".

Dito isto, pouco mais há a dizer sobre o mérito do recurso interposto pelo R..
Mas há, ainda, alguma coisa.
Diz ela respeito ao instituto que as instâncias se socorreram com vista a dar guarida à pretensão da A..
Ora, a verdade manda que se diga que o material fáctico apurado (e, para sermos mais rigorosos, o alegado na petição) não permite que se chame à colação o instituto da simulação absoluta.
Com efeito, resulta claramente do art. 240º, nº 1 do CC que "se, por acordo entre declarante e declaratário, e no intuito de enganar terceiros, houver divergências entre a declaração negocial e a vontade do declarante, o negócio diz-se simulado".
Dos factos provados apenas resulta que a A. não percebeu a importância referida na escritura outorgada no Cartório Notarial de Coruche (cfr. respostas aos quesitos 1º e 2º da base instrutória).
Ou seja, provou-se que as partes declararam perante o notário uma coisa que não teve correspondência prática.
Isto não permite - de forma alguma - concluir pela verificação da simulação.
O que aconteceu foi o seguinte: houve uma escritura pública de mútuo (a forma era exigível atento o montante em causa - cfr. art. 1142º do CC. na redacção dada pelo D.-L. 163/95, de 13 de Julho, aplicável ao caso atenta a temporalidade dos factos), mas não houve a entrega da coisa, ou seja, do dinheiro.
Sendo o contrato de mútuo um contrato real quod constitutionem (vide definição constante do art. 1142º do CC), isto é, um contrato que só se completa com a entrega da coisa, e não tendo havido qualquer entrega, então tal "contrato" é nulo por falta de objecto, nos termos do art. 280º do CC.
A "este contrato" falta, pois, o quid sem o qual não pode haver contrato de mútuo, o seja, o objecto mediato ou stricto sensu.
Esta é, aliás, a observação pertinente que a recorrida também deixou expressa na sua alegação. E - teremos de o dizer - com todo o acerto.
Com efeito, o pedido não foi formulado na base de uma qualquer simulação, antes o fez na base de um negócio inexistente (cfr. art. 33º da petição inicial).

Postos perante estas considerações, ressalvadas, pois, as considerações jurídicas consagradas pelas instâncias a respeito do "mal" do "contrato" ajuizado, apenas temos de concluir pela total improcedência do recurso do R..

IV -

Decisão

Pelo exposto, nega-se a revista.
Custas pelo recorrente.

Lisboa, 13 de Fevereiro de 2007
Urbano Dias
Paulo Sá
Borges Soeiro