Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
96P987
Nº Convencional: JSTJ00031423
Relator: VIRGILIO OLIVEIRA
Descritores: SENTENÇA
FUNDAMENTAÇÃO
NULIDADE
Nº do Documento: SJ199702120009873
Data do Acordão: 02/12/1997
Votação: UNANIMIDADE
Referência de Publicação: BMJ N464 ANO1997 PAG346
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REC PENAL.
Decisão: ANULADA A DECISÃO.
Área Temática: DIR PROC PENAL. DIR CRIM - TEORIA GERAL.
Legislação Nacional: CPP97 ARTIGO 368 N2 ARTIGO 374 N2 ARTIGO 379 A.
CP82 ARTIGO 109.
Sumário : Não tendo o tribunal indicado as provas em que fez assentar a sua convicção acerca da propriedade e posse de um veículo que atribui ao arguido recorrente, e verificando-se, por outro lado, que os documentos juntos por este último põem em crise tal propriedade, ocorre a nulidade nos termos do artigo 379, alínea a), do Código de Processo Penal.
Decisão Texto Integral: Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:
1. - Perante o colectivo do Tribunal Judicial da
Comarca de Vagos, sob acusação do Excelentíssimo
Magistrado do Ministério Público, foram submetidos a julgamento os arguidos A,B, C e D, os quais vieram a ser condenados como co-autores de um crime de roubo previsto e punido nos artigos 306, ns. 1 e 2, alínea a) e n. 5, com referência aos artigos 296 e 297, n. 2, alíneas c) e h), todos do Código Penal de 1982, na pena de dezoito meses de prisão para cada um dos arguidos.
Ainda, nos termos do preceituado no artigo 109 do mesmo
Código Penal, foi declarado perdido a favor do Estado o veículo 40-..por ter sido instrumento do crime.
2. - E, identificado nos autos, não se conformando com o acórdão, interpôs recurso para este Supremo Tribunal de Justiça, invocando o disposto na alínea d) do n. 1 do artigo 401 do Código de Processo Penal.
3. - As conclusões da motivação desse recurso são as seguintes:
3.1. - No acórdão sob recurso foi dado como provado que o arguido A era "proprietário" da viatura
Citroen ...-CG;
3.2. - E, por ter servido para o transporte para o lugar do crime por cuja prática foi condenado, e subsequente fuga dos arguidos, tal veículo foi julgado um instrumento do crime e decretado o seu perdimento a favor do Estado ao abrigo do n. 2 do artigo 109 do
Código de Processo Penal;
3.3. - Acontece, porém, que o tribunal colectivo omitiu em que elementos se fundamentou para consignar aquelas titularidades (propriedade e posse do carro) como circunstâncias ou "factos" provados, inobservando o comando constante da parte final do n. 2 do artigo 374 do Código Penal, o que é factor da nulidade da sentença
(379, alínea a));
3.4. - Aliás, lavrou em erro na apreciação de prova, porque os autos careciam de elementos que permitissem atribuir àquele arguido a propriedade da questionada viatura, nos termos do artigo 1316 do Código Civil, tão pouco apresentados na audiência de julgamento;
3.5. - O arguido não tinha sequer a posse (legítima) do referido carro, mantendo-se na sua "simples detenção"
(nos termos do artigo 1253 do Código Civil).
3.6. - Na verdade, o "...-CG" era e é pertença da sociedade comercial "automóveis Citroen, S.A.", que o mantém registado a seu favor desde 29 de Junho de 1993;
3.7. - Todavia, tal firma alugara-o e cedera-o ao recorrente, em 23 de Junho de 1993 e por 48 meses, mediante contrato escrito outorgado naquela data, pelo que era e é este o correlativo possuidor;
3.8. - O acórdão em apreço fez assim interpretação e errónea aplicação do n. 2 do artigo 109 do Código
Penal, que acautela os direitos de terceiros (no caso a identificada firma e o próprio recorrente);
3.9. - Ao invés de declarar a perda do automóvel a favor do Estado, o tribunal colectivo deveria outrossim ter determinado a sua entrega a quem se mostrasse com direito de a receber;
3.10. - Assim sendo, o colectivo cometeu um erro notório na apreciação da prova e omitiu a propósito a indicação das provas que serviram para formar a sua convicção;
3.11. - E esqueceu-se ou fez errónea interpretação dos artigos 1251, 1253 e 1263 e 1316 do Código Civil, consequentemente esqueceu o artigo 110 do Código Penal que ressalva os direitos de terceiros;
3.12. - Aliás, a referência ao antecedente do artigo
109 desse diploma é até impertinente, porque o carro em questão não foi "instrumento do crime", como se afigura manifesto;
3.13. - A decisão sob recurso deverá pois ser declarada nula ou, pelo menos (como parece preferível), ser reformada quanto ao perdimento a favor do Estado do automóvel ...-CG;
3.14. - A situação em causa já foi apreciada pelo
Supremo Tribunal de Justiça, no seu acórdão de 31 de
Outubro de 1995 (de que o tribunal colectivo tinha conhecimento).
4. - Foram produzidas alegações escritas no Supremo
Tribunal, tendo a Excelentíssima Procuradora-Geral
Adjunta, nas que apresentou, concluído no sentido de ser decretada a nulidade do acórdão por ter havido omissão, em sede de fundamentação, das provas em que se fundou para dar como assente que o veículo em causa é propriedade do arguido A, nulidade essa prevista na alínea a) do artigo 379 do
Código de Processo Penal, a ser suprida pelo tribunal de 1. instância.
5. - Vem provado da 1. instância a seguinte matéria de facto:
5.1. - No dia 1 de Dezembro de 1993, cerca das 6 horas e 15 minutos, os arguidos circulavam na E.N. n. 109, na
Vila de Vagos, no veículo automóvel Citroen ZX vermelho, matrícula ....-CG, propriedade do arguido
A, quando, ao passarem pelas bombas de abastecimento de combustível Shell, em Vagos, resolveram assaltá-las:
5.2. - Assim, e na execução de um plano previamente acordado entre todos, o arguido A conduziu o veículo automóvel para as referidas bombas e aí pediu ao funcionário que abastecesse o depósito com 1000 escudos de gasolina, funcionário esse de nome G;
5.3. - Os arguidos B, C e D, saíram então para o exterior e encenaram uma discussão sobre quem devia pagar a gasolina com o objectivo de distraírem o referido funcionário;
5.4. - Foi então que o arguido B sacou de uma faca (navalha de ponta e mola), encostando a lâmina ao pescoço do funcionário e agarrando-o com a outra mão, ao mesmo tempo que lhe dizia "para estar calado que se tratava de um assalto", e o empurrava para a zona do escritório;
5.5. - Foi então que os arguidos C e D se aproximaram do funcionário e lhe retiraram a quantia de 10000 escudos que tinha nos bolsos e um pequeno rádio portátil avaliado em 8000 escudos, pretendendo saber onde havia mais dinheiro;
5.6. - Receando pela sua própria vida, o G indicou-lhes o cofre que os arguidos tentaram abrir mas não conseguiram, pelo que o empurraram até à casa de banho onde o fecharam;
5.7. - Enquanto isso, o arguido A abastecia totalmente o depósito do veículo de gasolina sem chumbo na totalidade de 6500 escudos, após o que todos os arguidos se puseram em fuga no veículo automóvel;
5.8. - Os arguidos agiram de modo consciente e voluntário, com o objectivo de fazerem seus os valores e dinheiros referidos, bem sabendo que amedrontaram e coagiram o A e agiam contra a sua vontade e a do dono do posto de abastecimento, conscientes de que a sua conduta era proibida por lei.
5.9. - Confessaram os factos, disseram-se arrependidos e pagaram os prejuízos materiais causados.
6. - Na parte da decisão sobre a indicação das provas que serviram para formar a convicção do tribunal, escreveu-se: "Foram decisivos para formar, digo, para a formação da nossa convicção, a confissão dos arguidos e, bem assim, o depoimento da testemunha Rui Pina dos
Santos, agente da Polícia Judiciária, que procedeu à investigação do caso, o de F, empregado das bombas de gasolina que foi alvo da acção dos arguidos e ainda de G, proprietário do posto assaltado".
7. - Com a sua motivação o recorrente juntou certidão extraída do processo n. 6214/94, 3. Juízo Criminal do
Tribunal Judicial de Aveiro, contendo o contrato de aluguer e o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
(recurso 48377) de 31 de Outubro de 1995 com os mesmos arguidos dos presentes autos, sendo o objecto do recurso também a questão da perda do mesmo veículo a favor do Estado.
O Supremo Tribunal de Justiça, através desse acórdão anulou o acórdão do Colectivo por ausência de fundamentação quanto à propriedade do veículo.
Naquele processo 6214/94 foi depois proferido o acórdão datado de 29 de Janeiro de 1996, pelo respectivo
Colectivo, em que já se narra, nos factos provados, que os arguidos se haviam aproveitado "do facto de o A ter em seu poder a viatura automóvel Citroen ZX, matrícula ...-CG, propriedade de Automóveis
Citroen, S.A., e alugado pelo seu pai (...)". A viatura foi aí mandada restituir.
Note-se que nos presentes autos já na 1. instância o Excelentíssimo Magistrado do Ministério Público concordara com o recurso por no "acórdão recorrido inexistir fundamentação probatória relativa à propriedade e posse do veículo".
8. - Como resulta do n. 2 do artigo 368 do Código de
Processo Penal, são submetidos a deliberação e votação os factos alegados pela acusação e pela defesa. A acusação atribuía a propriedade do veículo ao arguido A. Daí que o tribunal tivesse de se pronunciar sobre essa propriedade, como efectivamente se pronunciou na decisão sobre os factos, atribuindo a propriedade do veículo ao arguido A e, como tal, tendo presente o disposto no artigo 109 do Código Penal, declarou a sua perda a favor do Estado.
Contudo, o tribunal não indicou as provas em que fez assentar a sua convicção àcerca da propriedade e posse do veículo por parte do A, como lhe competia (374, n. 2, in fine, do Código de Processo Penal), verificando-se, por outro lado, pelos documentos juntos pelo recorrente, que a conclusão do tribunal sobre a qualidade do G em relação ao veículo vem posta em crise por aqueles documentos.
O defeito do acórdão em relação a tal ponto acarreta a sua nulidade, nos termos do disposto no artigo 379, alínea a) do Código de Processo Penal, a ser suprida pelo tribunal do acórdão.
9. - Nestes termos, concedendo-se provimento ao recurso, declara-se nulo o acórdão recorrido, por falta de fundamentação da matéria de facto nos termos expostos, devendo a nulidade ser suprida pelos mesmos
Juizes.
Sem tributação.
Lisboa, 12 de Fevereiro de 1997.
Virgílio Oliveira,
Mariano Pereira,
Flores Ribeiro,
Brito Câmara.
Decisão impugnada:
Acórdão de 14 de Março de 1996 do Tribunal Judicial de
Vagos.