Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
02B2291
Nº Convencional: JSTJ000
Relator: ARAÚJO BARROS
Nº do Documento: SJ200210240022917
Data do Acordão: 10/24/2002
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: T REL COIMBRA
Processo no Tribunal Recurso: 1984/01
Data: 01/29/2002
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA.
Sumário :
Decisão Texto Integral: Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:

"A" intentou, no Tribunal da Relação de Coimbra, acção especial de revisão de sentença estrangeira contra B, visando obter a revisão e confirmação da sentença proferida em 13 de Abril de 2000, pela Corte Suprema - Câmara de Família, da Província e Distrito de Quebec, Canadá, que decretou o divórcio entre a requerente e o requerido, casados um com o outro desde 31 de Dezembro de 1988.
Citado, o requerido deduziu oposição, restringida à parte da sentença revidenda que homologou o acordo entre os cônjuges relativamente às prestações alimentares a pagar à requerente e aos filhos do casal, alegando que aquele acordo (e a sentença homologatória), ofendem normas fundamentais do direito de família português, o que constitui obstáculo à sua revisão e confirmação, nessa parte.
Cumprido o disposto no art. 1099º do C.Proc.Civil, alegaram a requerente, o requerido e o Ministério Público. A requerente e o Ministério Público, no sentido do deferimento do pedido formulado; e o requerido no sentido defendido na contestação.
Em acórdão de 29 de Janeiro de 2002, o Tribunal da Relação de Coimbra concedeu a pretendida revisão e confirmou a sentença revidenda.
Desta decisão interpôs o requerido recurso de revista, pretendendo a revogação do acórdão impugnado no que concerne às prestações alimentares, porquanto ofende normas fundamentais do direito de família português, devendo por isso a sentença revidenda não ser revista e reconhecida nesta parte, por violação, entre outros, dos artigos 2004º, 2008º e 2016º do C.Civil.
Apresentando contra-alegações pugnou a requerente pela manutenção do acórdão em crise.
Verificados os pressupostos de validade e de regularidade da instância, colhidos os vistos legais, cumpre decidir.
Concluiu o recorrente as suas alegações da seguinte forma (sendo, em princípio pelo teor das conclusões das alegações que se delimitam as questões a apreciar - arts. 690º, nº 1 e 684º, nº 3, do C.Proc.Civil):
1. Temos de verificar se a acção revidenda ofende as normas do direito interno português, com incidência na questão dos alimentos devidos aos filhos e mulher.
2. Conforme consta da tradução da sentença revidenda junta aos autos diz-se claramente que "a pensão alimentar prevista no parágrafo precedente será paga à requerente independentemente se ela exerça ou não um cargo remunerado ou viva maritalmente durante o período indicado. Entretanto, essa pensão alimentar expirará irrevogavelmente em 01/03/2002. Sendo que a requerente renuncia para o futuro a qualquer pensão alimentar para si própria, ou seja, quitando o requerido de maneira completa, geral e final".
3. O ora recorrente foi "forçado" a fazer um acordo por força da lei canadiana relativamente ao direito a alimentos devido aos filhos menores e ex-cônjuge.
4. A lei canadiana determina e impõe matematicamente tal prestação.
5. Não existe na ordem jurídica portuguesa uma norma análoga à da lei canadiana que permita ao cônjuge accionar a sua autonomia financeira à custa do outro cônjuge.
6. Assim, e por se tratar de direitos indisponíveis, tais normas ferem o direito substantivo português, cujas regras de atribuição se encontram definidas em termos totalmente distintos, as quais ponderam razoavelmente as possibilidades de cada cônjuge e a necessidade que cada um tem para receber as prestações alimentares, sendo que também tais direitos são irrenunciáveis.
Está provado nos autos, através dos documentos juntos que:
a) - a requerente e o requerido casaram um com o outro, no dia 31 de Dezembro de 1988;
b) - por sentença proferida em 13 de Abril de 2000 pela Corte Suprema - Câmara de Família, da Província e Distrito de Quebec, Canadá, foi decretado o divórcio entre ambos;
c) - na acção em que tal sentença foi proferida requerente e requerido assinaram uma convenção, também subscrita pelos seus advogados, aos 4 e 6 de Abril de 2000, regulando, além do mais, a pensão para os filhos e para a requerente, a qual foi devidamente homologada nos seus exactos termos pela mesma decisão.
Mostra-se também assente - nesta parte não houve impugnação - que não se suscitam dúvidas quanto à autenticidade dos documentos juntos aos autos, nomeadamente daquele de que consta a sentença, sendo que esta é inteligível e transitou em julgado; que o tribunal da decisão revidenda é o competente segundo as regras de conflitos de jurisdição da lei portuguesa; e que não ocorrem as excepções a que aludem as alíneas d) e e) do art.1096º do C.Proc.Civil.
Constituem obstáculos à concessão da revisão de sentença estrangeira - e como tal fundamentos de oposição ao pedido - a falta de qualquer dos requisitos mencionados no art. 1096º do C.Proc.Civil ou, se a sentença tiver sido proferida contra pessoa de nacionalidade portuguesa, se verificar que o resultado da acção lhe teria sido mais favorável se o tribunal estrangeiro tivesse aplicado o direito material português, quando por este devesse ser resolvida a questão segundo as normas de conflitos da lei portuguesa (art. 1100º, nº s 1 e 2, do C.Proc.Civil).
Quanto aos requisitos enunciados no citado art. 1096º, importa aqui apenas verificar se não está presente (único que pode faltar) o previsto na respectiva al. f), ou seja, que a sentença não contenha decisão cujo reconhecimento conduza a um resultado manifestamente incompatível com os princípios da ordem pública internacional do Estado português.
Observar-se-á, antes de mais, que a frase utilizada pelos recorrentes na segunda conclusão das alegações constitui fiel reprodução do nº 8 da "Convenção Referente às Medidas Acessórias", convenção consensual (fls. 8 a 14), posteriormente homologada pela sentença revidenda.
O que significa, desde logo, que as prestações alimentares a pagar pelo recorrente à recorrida e aos filhos do casal foram fixadas, quanto à forma e montantes estabelecidos, por acordo, subscrito e, portanto, assumido, quer pelo requerente, quer pela requerida (aliás com a intervenção dos respectivos advogados).
Ora - e é, sem qualquer dúvida, irrelevante o facto de o recorrente, dando o dito por não dito, afirmar agora que foi forçado àquele acordo pela lei canadiana, que fixa os montantes prestacionais matematicamente, já que o não demonstra minimamente (e, porventura, tal facto tão só poderia traduzir um vício da vontade ou da declaração, aqui não equacionável) - como a sentença revidenda se limitou a homologar o acordo celebrado, fruto também do assentimento do recorrente, está afastada a aplicação do nº 2 do art. 1100º do C.Proc.Civil, já que a sentença não foi proferida contra ele (mas como ele próprio quis) e porque nunca uma decisão de um tribunal português, homologatória do acordo realizado, poderia ser-lhe mais favorável do que a revidenda.
Resta, assim, determinar se o reconhecimento pode conduzir a uma solução manifestamente incompatível com os princípios da ordem pública do Estado português (alínea f) do mencionado art. 1096º).
O que, parece-nos evidente, não acontece.
É que, no ordenamento jurídico nacional, o direito a alimentos legais, quer dos filhos, quer do cônjuge (arts. 2003º, nº 1, 2009º, nº 1, als. a) e d), e 2016º, nº 1, al. a), do C.Civil), nos casos de divórcio por mútuo consentimento, deverá, antes de tudo, ser regulamentado por acordo (arts. 1775º, nº s 2 e 3, do C.Civil e 1419º, nº 1, als. c) e d), do C.Proc.Civil). Por isso se pode afirmar, quanto aos alimentos legais, que "podem ser eles fixados por acordo ou por sentença judicial". (1)
Não ocorre, pois, in casu, qualquer incompatibilidade da decisão revidenda com normas portuguesas de ordem pública.
Mostrando-se falacioso o argumento de que o direito a alimentos - pelo menos no que concerne ao cônjuge - é irrenunciável, por isso que a impossibilidade de renúncia apenas abrange o direito em si próprio, que não a vontade e o poder de não exigir o crédito correspondente.
Como sustenta Vaz Serra (2), "a circunstância de os créditos alimentares legais serem indisponíveis não obsta a que as partes convencionem o montante dos alimentos a prestar e o modo da prestação". E, acrescentamos, também não impede que o interessado prescinda de receber qualquer retribuição a esse título.
O mesmo se dirá, aliás, da afirmação constante da quinta conclusão das alegações de que não existe na ordem jurídica portuguesa uma norma que permita ao cônjuge accionar a sua autonomia financeira à custa do outro cônjuge. Na verdade - mera questão de terminologia - a mencionada autonomia financeira não é mais do que o prazo durante o qual a recorrida entende precisar da prestação alimentar do recorrido (e que este aceitou), o que é perfeitamente admissível entre nós, sobretudo em caso de acordo dos interessados.
Não há, assim, qualquer razoabilidade na revista interposta.
Pelo exposto, decide-se:
a) - julgar improcedente o recurso de revista interposto pelo requerido B;
b) - confirmar inteiramente o acórdão recorrido;
c) - condenar o recorrente nas custas da revista.

Lisboa, 24 de Outubro de 2002
Araújo Barros
Oliveira barros
Diogo Fernandes
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(1) Eduardo dos Santos, in "Direito da Família", Coimbra, 1985, pág. 676.
(2) "Obrigação de Alimentos", in BMJ nº 108, pág. 180.