Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
1127/07.3TCSNT.C1.S1
Nº Convencional: 2ª SECÇÃO
Relator: OLIVEIRA VASCONCELOS
Descritores: COMPRA E VENDA
COISA DEFEITUOSA
ACÇÃO CÍVEL
CADUCIDADE
Data do Acordão: 10/13/2011
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: CONCEDIDA A REVISTA
Área Temática: DIREITO CIVIL - DIREITO DAS OBRIGAÇÕES
Doutrina: - Calvão da Silva. Compra e Venda de Coisas Defeituosas, 2002, págs. 68 a 70, 74 e 75.
- Pedro Romano Martinez, Cumprimento Defeituoso em Especial da Compra e Venda e na Empreitada, 1994, págs. 412 e 413.
- Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, 2ª edição, em anotação ao artigo 917.
Legislação Nacional: CÓDIGO CIVIL (CC): - ARTIGOS 916.º, 917.º, 1225.º, NºS.2 E 4.
Jurisprudência Nacional: ACÓRDÃOS DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:
-DE 2010/09/30;
-DE 2010/05/04;
-DE 2009/02/05;
-DE 2008/03/13.
Sumário :
1. Os prazos fixados nos artigos 916º e 917º do Código Civil para a caducidade das acções de anulação por simples erro na venda de coisas defeituosa são extensivos às acções em que se peça a reparação de defeitos da coisa vendida.

2. O prazo de um ano fixado naquele artigo 917º para o comprador reagir após ter denunciado um defeito da coisa vendida, não diz respeito a qualquer reacção, mesmo extrajudicial, mas apenas respeito à instauração de uma acção judicial.

3. Um comprador não pode pedir judicialmente a reparação dos defeitos da coisa vendida depois de decorrido aquele prazo de um ano após a denúncia.
Decisão Texto Integral:


Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:

Em 2007.06.18, no Tribunal Judicial da Comarca de Sintra, Sociedade Imobiliária das AA, Lda. intentou a presente acção declarativa, com processo ordinário, contra BB e esposa CC, DD e esposa EE, e contra FF.

pedindo
que estes fosse condenados “ (…) a proceder à reparação dos danos referidos ou no pagamento do valor necessário à execução das obras necessárias e ainda no pagamento de uma importância, não inferior a 2.500 € mensais, desde a ocorrência das inundações, substitutiva do rendimento da fracção (…) e bem assim dos juros moratórios legais até efectivo cumprimento”

alegando
em resumo, que
- adquiriu, em 2004.04.14, à sociedade GG-Construção Civil, Lda., de que os RR. eram os únicos sócios e entretanto dissolvida e liquidada, a fracção G dum prédio constituído em propriedade horizontal, que identificam, que a GG também construiu;
- essa fracção veio a apresentar defeitos – infiltrações ao nível do telhado e fissuração nas paredes, causadores de inundações e estragos na fracção da A.;
- oportunamente denunciaram esses defeitos, cuja reparação a GG foi protelando e não efectuou.

Contestando
e também em resumo, os réus, além de impugnarem os factos/defeitos constantes da petição inicial, invocaram a caducidade do direito exercido na acção, uma vez que, segundo dizem, a única comunicação dos eventuais defeitos foi feita em 2005.12.20.

A A. respondeu, opondo-se à caducidade, sustentando que os defeitos invocados nesta acção ocorreram já no ano de 2006.

Por despacho de 2007.11.12, foi julgado territorialmente competente o Tribunal Judicial de Anadia.


Em 10.08.27 e no despacho saneador, foi proferida sentença que julgou a acção improcedente, por se entender ter caducado o direito a ser proposta.

A autora apelou, com êxito, tendo a Relação de Coimbra, por acórdão de 2011.02.01, revogado a decisão recorrida e julgado improcedente a excepção da caducidade, ordenando o prosseguimento da acção.

Inconformados, os réus deduziram a presente revista, apresentando as respectivas alegações e conclusões.
A recorrida não contra alegou.
Corridos os vistos legais, cumpre decidir.

As questões

Tendo em conta que
- o objecto dos recursos é delimitado pelas conclusões neles insertas, salvo as questões de conhecimento oficioso - arts. 684º, nº3 e 690º do Código de Processo Civil;
- nos recursos se apreciam questões e não razões;
- os recursos não visam criar decisões sobre matéria nova, sendo o seu âmbito delimitado pelo conteúdo do acto recorrido
a única questão proposta para resolução consiste em saber de o direito da autora propor a presente acção já caducou.

Os factos

Os factos a ter em conta são ou acima enunciados, constantes do relatório inicial.

Os factos, o direito e o recurso

Na sentença proferida na 1ª instância entendeu-se que o direito de a autora instaurar a presente acção tinha caducado porque tinha decorrido entre a data em que denunciou a existência dos defeitos e a data em foi instaurada a presente acção mais que um ano, prazo estabelecido no artigo 917º do Código Civil, conjugado com o disposto nos nºs 2 e 4 do artigo 1225º do mesmo diploma, para a instauração da acção.

No acórdão recorrido, aceitando-se a aplicação do referido prazo de caducidade às acções em que o vendedor pedisse a reparação dos defeitos – assim como a substituição, redução, resolução ou indemnização – entendeu-se, no entanto, que não era necessário, à semelhança do que expressamente de previa naquele artigo 917º para as acções de anulação, que o exercício do direito à reparação dos defeitos e demais direitos tivesse necessariamente que ser feito através da propositura de uma acção judicial, podendo sê-lo extrajudicialmente, desde que dentro do prazo legal de garantia legal de cinco anos.
E sendo assim, tendo a autora denunciado e pedido a reparação dos alegados defeitos em Dezembro de 2005, tinha que se entender que extrajudicialmente tinha exercido o seu direito dentro do prazo de um ano a contar da denúncia dos defeitos e, portanto, o direito de instaurar a presente acção não tinha caducado.
Com todo o respeito que o bem elaborado acórdão recorrido nos merece, cremos no entanto que não se decidiu bem.
Vejamos.

Nos termos do disposto no artigo 917º do Código Civil “ a acção de anulação por simples erro caduca, findo qualquer dos prazos fixados no artigo anterior sem o comprador ter feito a denúncia, ou decorridos sobre esta seis meses, sem prejuízo, neste último caso, do disposto no nº2 do artigo 287º
Face ao disposto nos já citados nº2 e 4 do artigo 1225º do mesmo diploma, o prazo de seis meses referido foi substituído pelo prazo de um ano.

Não está aqui em causa a extensão dos prazos fixados nos artigos 916º e 917º para as acções de anulação às acções em que se peça a reparação de defeitos da coisa vendida.
Nessa parte está de acordo a recorrente e é esse o nosso entendimento e o entendimento geral da jurisprudência e da doutrina – ver, por todos, os acórdãos deste Supremo de 2010.09.30 (Cunha Barbosa), de 2010.05.04 (Hélder Roque), de 2009.02.05 (relatado pelo aqui 1º adjunto) e de 2008.03.13 (relatado pelo aqui relator) e Calvão da Silva “in” Compra e Venda de Coisas Defeituosas, 2002, páginas 68 a 70, Pedro Romano Martinez “in” Cumprimento Defeituoso em Especial da Compra e Venda e na Empreitada, 1994, página 413 e Pires de Lima e Antunes Varela "in" Código Civil Anotado, 2ª edição, em anotação ao artigo 917.

O que está em causa é saber se o segundo prazo de um ano, fixado no artigo 917º do Código Civil para o comprador reagir após ter denunciado um defeito da coisa vendida, diz respeito a qualquer reacção, mesmo extrajudicial, ou diz apenas respeito à instauração de uma acção judicial.
Ou seja, o que está em causa é saber é se um comprador pode pedir judicialmente a reparação dos defeitos da coisa vendida mesmo depois de decorrido aquele prazo de um ano após a denúncia
Crermos bem que não.

Em primeiro lugar, pela ponderação das razões pelas quais foi fixado aquele segundo prazo.
Por um lado, porque se quis consagrar uma autonomização entre o prazo limite da garantia legal de cinco anos consagrado no nº1 do artigo 1225º do Código Civil e o prazo de propositura da acção, evitando-se as confusões entre os dois prazos e “facilitando a possibilidade de os mesmos serem alterados autonomamente, tanto por via convencional como na eventualidade de uma intervenção legislativa” – Pedro Romano Martinez “in” Cumprimento Defeituoso em Especial na Compra e Venda e na Empreitada, 1994, páginas 412 e 413.

Por outro lado, porque “em todas as acções de exercício de faculdades decorrentes da garantia, (…) vale a razão de ser do prazo leve (…): evitar no interesse do vendedor, do comércio jurídico, com vendas sucessivas, e da correlativa paz social, a pendência por período dilatado de um estado de incerteza sobre o destino do contrato ou cadeia negocial e as dificuldades de prova (e contraprova) dos vícios anteriores ou contemporâneos à entrega da coisa que acabariam por emergir se os prazos fossem longos (…); transcurso breve prazo razoável, há-de proteger-se a legítima confiança dos vendedores (e revendedores) em que os negócios sejam definitivamente válidos e cumpridos e não entorpeçam o giro comercial” – Calvão da Silva “in” obra citada, páginas 74 e 75.
Esse estado de incerteza só pode definitivamente cessar se e quando houver uma decisão judicial sobre um eventual litígio sobre a questão.
Litígio este que, na tese do acórdão recorrido e no limite, poderia surgir no último dia do prazo de cinco anos da garantia edilícia.
Ou seja, a instauração de acção judicial para fazer cessar aquele estado de incerteza poderia ocorrer cinco anos após a entrega da coisa.
Não pode ser.
Na verdade, tal prazo tinha que se ser considerado manifestamente desproporcionado e desrazoável, tendo em atenção o interesse de brevidade que sustentou a sua fixação.

Finalmente, uma última razão.
É que, na realidade e em rigor, não se vê como a denúncia de um defeito, feita extrajudicialmente por um comprador, não comporta em si já uma interpelação extrajudicial para o vendedor actuar.
Ou seja, quem denuncia um defeito está, obviamente, a pedir a sua reparação ou qualquer outra actuação por parte do vendedor – a este respeito, há que notar que a conduta da autora, alegada por esta nos artigos 6º a 8º da sua petição inicial, foi exactamente essa.
Sendo assim, não se encontra razão para a existência de um prazo para a interpelação extrajudicial, como foi entendido no acórdão recorrido em relação ao fixado em segundo lugar no artigo 917º.
Na verdade, se com a denúncia do defeito o comprador já estava a solicitar ao vendedor uma actuação destinada a resolver o problema, para quê a fixação de um prazo para essa solicitação?
A fixação daquele segundo prazo só se compreende, pois, se visar a instauração de uma acção judicial.
Só assim tem conteúdo útil.

Voltando ao caso concreto em apreço.
A presente acção foi instaurada em 18 de Junho de 2007.
Decorre do que foi decidido no acórdão recorrido que a autora denunciou os defeitos “em Dezembro de 2005 e, principalmente, em Janeiro de 2006”
Logo e conforme decorre do acima exposto, devia ter proposto a presente acção, o mais tardar, até Janeiro de 2007.
Não o tendo feito, caducou, pois, o direito de a propor.

Apenas mais uma nota.
No seu recurso de apelação, a autora recorrente pugnou que no ano de 2006 se assistiu “a um forte agravamento dos danos emergentes bem como ao surgimento de outros, devido à falta de reparação atempada daqueles”, motivo porque só com a sua notificação do resultado da peritagem efectuada no presente processo em produção antecipada de prova é que tomou conhecimento dos defeitos em causa e os pode reclamar.
No acórdão recorrido entendeu-se que foi pedida a reparação dos defeitos em “Dezembro de 2005 e, principalmente, em Janeiro de 2006”, “podendo e devendo observar-se que os defeitos evolutivos – como é decerto o caso das fissuras nas paredes, infiltrações e manchas de humidade – não têm, em função da sua normal evolução, que estar sempre e continuadamente a ser reclamados”.
Ficou assim, a autora, vencida quanto à questão da data da denúncia dos defeitos.
Prevenindo a necessidade da sua apreciação, podia a mesma levantar aqui a questão, nos termos do disposto no nº1 do artigo 684º-A do Código de Processo Civil.
Não o tendo feito, este Supremo ficou impossibilitado de a conhecer.

A decisão

Nesta conformidade, acorda-se em conceder provimento à revista e assim, em revogar o acórdão recorrido, julgando procedente a excepção da caducidade invocada pelos réus e absolvendo os réus do pedido.
Custas pela recorrida.

Lisboa, 13 de Outubro de 2011


Oliveira Vasconcelos (Relator)
Serra Baptista
Álvaro Rodrigues