Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
04B584
Nº Convencional: JSTJ000
Relator: FERREIRA DE ALMEIDA
Descritores: PENHORA
COMPROPRIEDADE
Nº do Documento: SJ200403250005842
Data do Acordão: 03/25/2004
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: T REL PORTO
Processo no Tribunal Recurso: 2275/03
Data: 05/13/2003
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: AGRAVO.
Decisão: NEGADO PROVIMENTO.
Sumário : I. No âmbito da penhora de direito a bens indivisos não podem ter-se por penhorados bens concretos compreendidos no património comum, ou uma fracção especificada de qualquer deles, a menos que a execução haja sido instaurada contra todos os comproprietários.
II. O direito que assiste aos comproprietários de exigirem a divisão do prédio comum não pode contender com o direito do exequente/penhorante.
III. São ineficazes em relação ao exequente os actos de disposição ou oneração dos bens penhorados", v.g uma qualquer alteração da consistência ou subsistência da penhora em termos de que resulte diminuição das garantias do credor - artº 819º do C. Civil.
IV. O devedor pode livremente alienar ou onerar os bens penhorados, mas a execução prosseguirá o seu curso normal, como se esses bens (tal como foram penhorados) continuassem a pertencer ao executado.
V. Aquela ineficácia opera "ope legis", não dependendo da intervenção do executado no acto de penhora.
VI. Todo e qualquer negócio de carácter onerante ou translativo (nestes incluídos os actos de ajudicação voluntariamente acordados em acção de divisão de coisa comum) são ineficazes, ou, se se quiser, inoponíveis, ao exequente.
Decisão Texto Integral: Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:

1. Pela 2ª Sec da 5ª Vara Cível da comarca do Porto corre termos a execução de sentença n.º 2315/1994 em que é exequente o "A (antes "Euroleasing" Sociedade Portuguesa de Locação Financeira") e executados "B" e OUTROS (os sócios gerentes da empresa), no seio da qual foi oportunamente convertido em penhora o arresto efectuado em 28-10-94 - providência cautelar antecipatória da acção respectiva - dos seguintes imóveis:
- metade indivisa do prédio urbano sito na Travessa Capitão Carrilho nº... a..., no lugar de Marinha ou Marinhais, freguesia de Gulpilhares, composto de casa de rés-do-chão e andar, com dependência e garagem, lavandaria e logradouro, descrito na 1ª Conservatória de Registo Predial de V. N. Gaia sob o nº 59857 e inscrito na matriz sob o nº 1702;
- metade indivisa do prédio urbano sito na travessa Henrique Galvão, nº.., no lugar de... ou Marinhais, freguesia de Gulpilhares, descrito na 1ª Conservatória do Registo Predial respectiva sob o nº 00374/201288 e inscrito na matriz sob o nº 1343.
2. Chegada à fase da venda dos imóveis penhorados, veio o restante comproprietário C apresentar requerimento em que solicitou se dessem sem efeito as penhoras indicadas pelas inscrições F-1, F-2 e F-3 da certidão de fls. 182 e se ordenasse o respectivo cancelamento, dando-se ainda sem efeito a venda do bem penhorado, alegando, em síntese, que em acção de divisão de coisa comum havia já sido acordado pôr fim à compropriedade, ficando o prédio artº 1343 da matriz a pertencer-lhe por inteiro.
2. Foi então proferido, com data de 19-12-02, o despacho de fls. 193 e ss, no qual se decidiu:
- dar sem efeito a penhora do direito a metade indivisa do prédio urbano sito na Travessa Henrique Galvão nº... no lugar de Marinha ou Marinhais, freguesia de Gulpilhares;
- ordenar (após trânsito) o cancelamento do respectivo registo predial da inscrição F-1- Av. 02 ap. 18/080699 relativa à ordenada conversão em penhora do arresto;
- dar sem efeito a ordenada venda, com solicitação da devolução da carta precatória adrede expedida.
3. Inconformada com tal despacho, dele veio a entidade bancária exequente (o BPI) interpor recurso de agravo, já que o despacho recorrido significaria conferir eficácia plena à divisão de coisa comum operada entre os comproprietários do referido prédio, em detrimento de penhora anterior e registada.
E daí que, por força da penhora (oportunamente realizada) dos direitos de compropriedade em causa, se tenham como ineficazes relativamente ao exequente os actos de disposição ou oneração daqueles direitos nos termos estatuídos pelo artº 819° do C. Civil.
E isto sendo certo que a divisão de coisa comum representa um inequívoco acto de disposição, a que o exequente não foi chamado e em que não pôde, nem podia, intervir a qualquer título.
4. Por acórdão de 13-5-03, o Tribunal da Relação do Porto concedeu provimento ao agravo e revogou o despacho recorrido, dando assim sem efeito a sustação da requerida venda e mantendo subsistente a penhora efectuada nos autos devidamente registada, ordenando, em comsequência, a prossecução da tramitação normal do processo executivo.
5. Irresignada com esse aresto, dele veio a comproprietária C agravar para este Supremo Tribunal, em cuja alegação formulou as seguintes conclusões:
1ª- O comproprietário pode, a todo o tempo, fazer cessar a indivisão;
2ª- A circunstância da quota de um dos comproprietários ter sido penhorada não prejudica nem condiciona o exercício de tal direito;
3ª- O direito do exequente não é mais digno de tutela que o direito do comproprietário não executado fazer cessar a indivisão quando lhe aprouver, tanto mais que este é absolutamente estranho à execução;
4ª- Os actos de disposição e oneração, como actos jurídicos que são, dependem da vontade do titular, e a norma do artigo 819º do C.C. pressupõe a prática de um acto voluntário do executado;
5ª- A regra da ineficácia relativa não abrange os actos constitutivos de direitos praticados independentemente da vontade do executado;
6ª- Os actos independentes da vontade do executado estão excluídos da aplicação da regra;
7ª- Não é aplicável ao caso «sub judice» o previsto no artigo 819º do C.Civil;
8ª- A lei em parte alguma impõe que o comproprietário não executado tenha de aguardar a alienação da quota penhorada, para só depois requerer a divisão do bem comum;
9ª- Ainda que assim se não entendesse, e sem prescindir, tendo sido penhorada a metade indivisa (direito de compropriedade), uma vez cessada a indivisão, deu-se uma sub-rogação real directa;
10ª- A quota penhorada foi preenchida ou "materializada" com os bens e/ou valores que foram adjudicados ao executado, devendo a execução prosseguir quanto a esses bens;
11ª- Tendo cessado a indivisão e o bem sido adjudicado à ora recorrente, não pode a penhora manter-se sobre um direito (metade indivisa) que cessou com a decisão, transitada em julgado, proferida nos autos de divisão de coisa comum;
12ª- Tanto mais que pelas dívidas do executado só respondem os bens deste e, a partir da sentença que decretou a cessação da indivisão, o executado nenhum direito dispõe sobre o prédio com o artigo matricial urbano nº 1343 da freguesia de Gulpilhares;
13ª- Deveria o douto acórdão ter confirmado a decisão proferida em 1ª instância, dando sem efeito a penhora que incidia sobre a metade indivisa do prédio referido na conclusão anterior, transferindo-a para os bens em que tal quota se consubstanciou;
14ª- Ao decidir de modo diferente, o douto acórdão recorrido fez uma errada interpretação e aplicação, entre outros, dos artigos 819°, 820º, 1412°, 1413° e 601°, todos do C.C., os quais deverão ser interpretados no sentido supra-exposto.
Contra-alegou a entidade exequente "A SA", sustentando a correcção do julgado pela Relação.
7. Colhidos os vistos legais, e nada obstando, cumpre apreciar e decidir.
8. Em matéria de facto relevante, vêm assentes pela Relação os seguintes pontos:
1º- Em 28-10-94 foi ordenado o arresto do direito a metade indivisa de dois imóveis, artºs 1702 e 1343 da matriz urbana de Gulpilhares e inscritos da Conservatória de Registo Predial em nome de D e outro, o qual foi devidamente registado;
2º- tal arresto foi convertido em penhora, devidamente registada pela inscrição F-1- A V.02. Ap.18/080699;
3º- A restante comproprietária, C, moveu ao executado D acção de divisão de coisa comum que veio a culminar com decisão homologatória de 14-1-00, que homologou o acordo das partes segundo o qual o artº 1343, acima referido, ficou a pertencer em exclusivo à C e o artº 1702 em exclusivo ao executado, devendo este pagar à comproprietária 2.000 contos de tornas;
4º- Em tal processo não teve intervenção a aqui exequente;
5º- A aquisição pela comproprietária relativamente ao prédio do artigo matricial 1343 foi registada na Conservatória de Registo Predial - Ap. 49/170300;
Passemos ao direito aplicável.
9. A única questão a decidir centra-se na incidência para a acção executiva, na qual havia sido penhorado e registado o direito de compropriedade do questionado imóvel, da ulteriormente intentada acção de divisão de coisa comum entre os comproprietários.
Havia sido entendido em 1ª instância que a entidade exequente se teria de conformar com o que fora decidido e acordado pelos comproprietários, adequando a sua conduta aos termos desse acordo.
A Relação - todavia - não coonestou tal posição, em termos que - diga-se desde já - merecem inteiro aplauso.
De recordar que já desde 1994 que os comproprietários do prédio se encontravam perfeitamente cientes da existência do aludido arresto e da respectiva conversão em penhora.
Penhora que - contra o sustentado pela ora agravante - não incidiu sobre bens certos e determinados, como claramente postula o artº 826º do CPC95 (anterior artigo 824º do CPC67). Movemo-nos no âmbito da penhora de direito a bens indivisos, pelo que, por mor desse preceito, não poderiam ter-se penhorado bens concretos compreendidos no património comum, ou uma fracção especificada de qualquer deles, nem uma parte especificada de bens indivisos, a menos que a execução houvesse sido instaurada contra todos os comproprietários.
Não se contesta o direito que assistia aos comproprietários de exigir a divisão do prédio comum, pois que, à míngua de acordo prévio nesse sentido, não seriam obrigados a permanecer na respectiva indivisão - conf. artº 1412.º do CC.
Ponto é que a exercitação desse direito de divisão não contendesse com o direito do exequente/penhorante.
Mas, face ao preceituado no artº 819º do C. Civil "são ineficazes em relação ao exequente os actos de disposição ou oneração dos bens penhorados", o que, em termos práticos, significa que se encontra defesa uma qualquer alteração da consistência ou subsistência da penhora em termos de que resulte diminuição das garantias do credor.
Consagra-se, pois, nesse artigo o princípio da ineficácia, em relação ao credor, dos actos de disposição ou oneração dos bens penhorados, dele resultando que, podendo embora o devedor livremente alienar ou onerar os bens penhorados, a execução prosseguirá o seu curso normal, como se esses bens (tal como foram penhorados) continuassem a pertencer ao executado - conf. Pires de Lima e Antunes Varela, in "Código Civil Anotado", vol II, 4ª ed., pág 91.
Ineficácia essa que opera "ope legis", e que não necessita, por isso, de ser declarada «ex-professo» pelo tribunal, e que se não encontra dependente da intervenção do executado no acto de penhora (conf. últimos autores citados, in ob e loc cits).
Abra-se aqui um parêntesis para observar que este Supremo Tribunal tem por ex. entendido que, uma vez penhorado o direito e acção do executado a herança indivisa, nos termos do artº 862º do CPC, a partilha realizada na pendência da execução é inoponível ao exequente (conf. Ac de 28-4-75, in BMJ, nº 246, pág 114). E mais que "todos os actos de disposição ou oneração dos bens penhorados que, aquando da sua celebração, já eram inoponíveis em relação ao exequente, continuam a sê-lo em relação ao adquirente do imóvel na respectiva execução " (conf. Ac de 20-11-03, in Proc 3431/03 - 2ª Sec).
Todo e qualquer negócio de carácter onerante ou translativo (nestes incluídos os actos de ajudicação voluntariamente acordados em acção de divisão de coisa comum) são ineficazes, ou, se se quiser, inoponíveis ao exequente.
A não ser assim, - se o acto de disposição ou oneração do bem penhorado surtisse eficácia relativamente ao exequente - sempre poderia o comproprietário ou contitular de bens indivisos, mediante a exercitação (artificial ou mesmo genuína) da faculdade de pôr termo à comunhão na pendência da acção executiva, torpedear a finalidade da cobrança coerciva, garantida que se encontra esta pela incolumidade da penhora devidamente registada.
10. Bem decidiu, por isso, a Relação, ao não considerar haver respaldo legal para a sustação da venda executiva do prédio em causa, e para haver sido dada sem efeito a penhora efectuada nos autos e devidamente registada.
11. Decisão:
Em face do exposto, decidem:
- negar provimento ao agravo;
- confirmar, em consequência, o acórdão recorrido.
Custas pela agravante.

Lisboa, 25 de Março de 2004
Ferreira de Almeida
Abílio Vasconcelos
Duarte Soares