Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça | |||
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| Nº Convencional: | 7ª SECÇÃO | ||
| Relator: | ALBERTO SOBRINHO | ||
| Descritores: | POSSE PÚBLICA | ||
| Nº do Documento: | SJ | ||
| Data do Acordão: | 06/24/2010 | ||
| Votação: | UNANIMIDADE | ||
| Texto Integral: | S | ||
| Privacidade: | 1 | ||
| Meio Processual: | REVISTA | ||
| Decisão: | CONCEDIDA PARCIALMENTE | ||
| Sumário : | 1. Posse pública, preconiza o art. 1262º C.Civil, é a que se exerce de modo a poder ser conhecida pelos interessados. A publicidade não se reporta ao momento em que se constitui, mas ao próprio exercício dos actos materiais correspondentes ao direito, ou seja, aos seus efeitos, até por que a posse oculta não deixa de ser posse. Para ser pública exige-se que o exercício da posse seja feito de modo a poder ser conhecido dos interessados mas já não um seu conhecimento efectivo. Basta que se possua a coisa como a possuiria um normal proprietário, sem a ocultar dos eventuais interessados. E tem de se apreciar objectiva e casuisticamente dessa possibilidade dos interessados se poderem ou não aperceber do exercício da posse. | ||
| Decisão Texto Integral: | Acordam no Supremo Tribunal de Justiça: I. Relatório AA e mulher BB, intentaram, a 3 de Fevereiro de 2006, a presente acção declarativa, com processo ordinário, contra CC e mulher DD, pedindo que sejam condenados a: a- reconhecerem-nos como legítimos proprietários de uma divisão existente nas águas furtadas do seu prédio confinante com aquele em que os réus residem e a restituírem-lhes essa divisão; b- indemnizá-los dos danos decorrentes da ocupação abusiva dessa divisão, em quantia a liquidar ulteriormente; c- alterar a configuração da cobertura e caleiro do prédio ocupado pelos réus de modo a que as águas pluviais não corram para a janela do seu prédio. Invocam, no essencial, factos tendentes a demonstrar que se radicou na sua esfera jurídica, através da aquisição originária e derivada, o direito de propriedade sobre o prédio urbano que habitam e que os réus ocupam indevidamente uma dependência existente nas águas furtadas desse seu prédio, recusando-se a restituírem-lha. E ainda que os réus, através de uma caleira, encaminham as águas pluviais na direcção de uma janela do seu prédio. Contestaram os réus para, em síntese, impugnarem o direito de propriedade dos autores sobre a aludida dependência, dependência essa que, pelo contrário, faz parte integrante do seu prédio urbano. E que foram os autores que, ao abrirem uma janela, em violação do seu direito de propriedade, levaram a que as águas pluviais passassem a correr na direcção dessa janela. Deduzem pedido reconvencional a fim de lhes ser reconhecido o direito de propriedade sobre aquela dependência e os autores ainda condenados a reporem a caleira e a chapa de cobertura no estado anterior e a fecharem a janela e a retirarem a sua moldura e peitoril, bem como a beirada que ocupa o espaço aéreo do seu prédio. Replicaram os autores para, no essencial, impugnarem os factos suporte da reconvenção. Saneado o processo, procedeu-se à selecção da matéria de facto relevante com fixação dos factos considerados assentes e dos controvertidos. Prosseguiu o processo para julgamento e na sentença, subsequentemente proferida, decidiu-se: - julgar a acção improcedente; - e na parcial procedência da reconvenção, 1. reconhecer o direito de propriedade dos reconvintes sobre a dependência existente nas águas furtadas; 2. condenar os reconvindos a reduzir a janela por eles aberta às medidas de 73 cm de largura por 94 cm de altura e a retirarem-lhes a moldura e peitoril respectivos; 3. bem como a recolocarem o caleiro e a chapa de cobertura do telhado dos réus na posição e forma anterior às obras levadas a efeito pelos autores; 4. e a desenrolarem a chapa de cobertura e rufo referidos na extensão de 30 cm x 10 cm. Inconformados com o assim decidido apelaram os autores, e com sucesso, tendo o Tribunal da Relação de Guimarães: - na parcial procedência da acção, 1. condenado os réus a restituírem aos autores a divisão existente nas aguas furtadas; 2. e a indemnizarem os autores pela ocupação abusiva dessa dependência desde a citação até efectiva desocupação, em montante a liquidar ulteriormente; 3. e improcedente a reconvenção, à excepção do segmento em que os autores foram condenado a reparar o caleiro e chapa de cobertura do telhado dos réus danificados pelas obras. É a vez de recorrerem os réus/reconvintes agora de revista para o Supremo Tribunal de Justiça, pugnando pela revogação do acórdão recorrido e manutenção do decidido na sentença da 1ª instância. Contra-alegaram os autores em defesa da manutenção do decidido. Colhidos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir. II. Âmbito do recurso A- De acordo com as conclusões, a rematar as alegações de recurso, o inconformismo dos recorrentes, radica, em síntese, no seguinte: 1- Apesar do acórdão recorrido ter considerado errada a resposta da 1ª instância ao ponto 20° da Base Instrutória (ponto 25 do relatório da matéria de facto), não procedeu, todavia, à alteração dessa resposta. 2- Assim sendo, essa resposta subsiste e deve ser tomada para efeito de julgamento sob pena de, por contradição entre a decisão e os fundamentos, se incorrer na nulidade prevista no art. 668°-1, c) C.Pr.Civil. 3- Mesmo que não proceda a invocada nulidade, sempre a matéria em causa teria de ser assente, uma vez que o conhecimento da posse dos réus sobre a divisão em causa, impunha-se dado que a obra era patente, notória e a sua presença física iniludível para quem se encontrasse no prédio dos autores. 4- Por outro lado, sendo provado o conhecimento de tal posse por parte dos inquilinos do prédio dos autores, os quais são possuidores em nome de outrem os senhorios (autores e seus antecessores) – nos termos do art° 1252°-1 Cod. Civil, sempre tal conhecimento seria oponível aos ditos autores; 5- Acresce que sendo a obra possuída pelos réus notória conforme referido, só um proprietário desinteressado não tomaria conhecimento dela, o que contraria o exercício de direitos em termos de um “bonnus pater familias” como é principio geral e por isso não poderá tal forma de (não) exercício de direitos beneficiar quem deles é titular. 6- Sucede que a posse “boa para usucapião” é a posse pública a qual, nos termos do art° 1262° Cod. Civil é o que é exercida “de modo a poder ser conhecida pelos interessados”. 7- No caso, a posse dos réus/reconvintes foi exercida em termos de poder ser conhecida pelos interessados (os autores/reconvindos e seus antecessores), pelo que se tal posse não foi efectivamente conhecida, isso não descaracteriza a sua qualificação como “pública”, além de não estarem reunidos os requisitos de posse oculta que afaste a usucapião (art.s 1267° e 1297° do Cod. Civil). 8- O aumento das dimensões da janela em cerca de 8% (5cm na largura e 2 na altura), é, por si facto relevante e susceptível de produzir efeitos nocivos no prédio dos réus, já que se trata do agravamento de uma servidão de vistas, ou seja, oneração do direito de propriedade a qual, por natureza, tem de ser estritamente limitada (art.° 1564° Cod. Civil). 9- Também a construção de um peitoril com 5 ou 10 cm invadindo o espaço aéreo, para além de em si ser também de significado relevante, é susceptível de proporcionar estilicídio e, consequentemente, a constituição de uma servidão pelo que é também obra cuja demolição se afigura inteiramente legal (arts. 1365° e 1544° Cod. Civil). 10- Igualmente se não prova a existência de quaisquer prejuízos pelo que não pode relegar-se para fase ulterior qualquer liquidação. B- Face à posição dos recorrentes vertida nas conclusões das alegações, delimitativas do âmbito do recurso, são, no essencial, as seguintes as questões controvertidas que se colocam: - nulidade do acórdão recorrido; - se a posse exercida pelos réus/reconvintes é pública; - oneração da servidão de vistas; - demolição do peitoril construído pelos recorridos. III. Fundamentação A- Os factos O acórdão recorrido teve como assentes os seguintes factos: 1. Os autores são donos do prédio urbano destinado a habitação com três andares e águas furtadas, uma dependência e quintal, situado na ......, com os números,...,...,...,de polícia, da freguesia de S. Sebastião, Guimarães, descrito na Conservatória do Registo Predial de Guimarães sob o nº ...... e na matriz sob o artigo 150º, estando registado a seu favor na 2ª CRP de Guimarães. 2. Os réus vêm ocupando uma dependência situada nas águas furtadas, sem o consentimento dos autores. 3. Por escritura pública denominada de “compra e venda”, celebrada no dia 20-04-1959,EE declarou vender ao réu e este declarou aceitar a venda, o prédio urbano composto de três andares e terreno de logradouro, destinado a habitação, situado na ......, nº ......freguesia de S. Sebastião, Guimarães, descrito na 2ª Conservatória do Registo Predial sob o nº 39.110 e inscrito na matriz sob o artigo 151, aquisição registada a favor do adquirente. 4. Este prédio dos réus confronta do nascente com o prédio dos autores, sendo meeira a parede divisória em quase toda a sua extensão. 5. Todavia, no último piso, o prédio dos autores sobreleva o prédio dos réus, pelo que há uma parte da parede da confrontação em causa que se eleva acima deste prédio, sendo, nessa parte, pertença exclusiva dos autores. 6. Em meados do ano de 2005, os autores iniciaram umas obras de restauro e remodelação do seu prédio. 7. O prédio dos autores tem três divisões no rés-do-chão, quatro divisões no primeiro andar, duas divisões no segundo andar e duas divisões nas águas furtadas. 8. Instados os réus para procederem à entrega do espaço referido em 2), livre de pessoas e bens, vêm recusando fazê-lo; 9. Uma parte do prédio dos réus tem uma cobertura cujo caleiro se encontra encostado ao parapeito da janela situada na parede poente das águas furtadas do prédio dos autores. 10. Parte da cobertura do prédio dos réus encontra-se encostada ao parapeito da referida janela. 11. A dependência referida em 2) situa-se no último piso ou águas furtadas, tem uma área de cerca de 1,7m2, em forma rectangular, construída em madeira, sendo lateralmente em tabique e é servida por uma entrada, com cerca de 1,20 m de largura, de acesso exclusivo para o interior do prédio dos réus e pelos restantes lados, piso e tecto é completamente fechada não tendo acesso directo de ou para o prédio dos autores. 13. Por detrás da parede de fundo da dependência em causa não existe, ao mesmo nível, continuidade do piso pelo lado do prédio dos autores. 14. A dependência destina-se a arrumos do prédio dos réus e foi construída antes de 20 de Abril de 1959, mantendo-se a sua forma e destino actual, sem qualquer alteração. 15. Desde há mais de vinte anos, por si e antecessores, os réus têm-se mantido a usar a dependência em causa, utilizando-a para arrumos do seu prédio. 16. Vêm-no fazendo com exclusão de outrem e sem oposição dos antecessores dos autores. 17. E com espírito e convicção de que o fazem por direito próprio. 18. A dependência em causa ultrapassa o plano vertical da linha que em geral define a estrema dos prédios dos autores e réus. 19. A dependência está assente no piso de soalho do prédio dos autores. 20. Encontra-se sob o seu telhado. 21. As obras referidas em 6) encontram-se concluídas. 22. O piso das águas furtadas do prédio dos autores continua, após as obras, a ser utilizado pelas mesmas pessoas que o faziam antes. 23. No decurso das obras referidas em 6) os autores substituíram uma janela existente na parede poente do último piso do seu prédio que sobreleva o prédio dos réus, a qual media 94 cm de altura por 73 cm de largura. 24. Essa janela passou a ter 95cms de altura por 78cms de largura, encontrando-se o respectivo parapeito a cerca de 1,60m do sobrado da divisão do prédio onde se situa. 25. Está dotada de moldura e peitoril salientes que ocupam o espaço aéreo do prédio dos réus em cerca de 10cms. 26. Não está protegida por qualquer forma, seja gradeamento, seja outra. 27. O telhado do prédio dos réus situa-se a não mais de 10 cms abaixo do peitoril da janela. 28. Sob esse telhado encontra-se uma varanda do prédio dos réus. 29. Ao substituírem a janela em causa, os autores fizeram recuar cerca de 10 cm, o caleiro que recebe as águas pluviais do telhado da varanda do prédio dos réus e que antes se estendia até à parede do prédio dos autores. 30. Deixaram a extremidade do caleiro encostada ao peitoril da janela. 31. Os autores enrolaram cerca de 30 cms x 10 cms da chapa de cobertura e do rufo do telhado da varanda dos réus de modo a poderem encaixar a moldura e o peitoril da janela. 32. Em consequência desse enrolamento da chapa e do recuo do caleiro, as águas pluviais que anteriormente eram escoadas pela chapa e pelo rufo nesse caleiro, passaram, junto à janela nova, a precipitar-se directamente na respectiva moldura. B- O direito 1. nulidade do acórdão recorrido Nas alegações do recurso interposto perante a Relação os autores/recorrentes insurgiram-se contra a resposta que haviam merecido vários pontos controvertidos da base instrutória, designadamente o nº 20. Neste concreto ponto controvertido questionava-se se os réus vêm usando e fruindo de uma dependência, desde há mais de vinte anos, com exclusão de outrem e conhecimento, respeito e não oposição generalizado, em especial de quantos utilizam ou visitam qualquer dos prédios identificados, designadamente dos respectivos donos. Tendo merecido a resposta de Provado que: vêm-no fazendo com exclusão de outrem, com conhecimento, respeito e sem oposição dos antecessores dos Autores. No acórdão da Relação não se tomou uma posição firme e clara sobre a factualidade apurada em cada um dos pontos impugnados pelos autores/recorrentes. E apenas ao ponto nº 20, único a que os réus/reconvintes, ora recorrentes, fazem referência e se baseiam para invocarem a nulidade do acórdão, se faz referência no acórdão recorrido e se conclui, após uma apreciação crítica do depoimento de várias testemunhas, que o tribunal “a quo” não tinha o mínimo suporte probatório para considerar provado o facto recolhido sob o artigo 25° (20º da Base Instrutória) no tocante ao invocado conhecimento (relativamente ao “respeito” a resposta deve ter-se igualmente por não escrita por se tratar de um mero conceito sem dimensão fáctica). Desta conclusão ressalta indubitavelmente que no acórdão da Relação se alterou a resposta que este concreto ponto controvertido havia merecido, considerando-se não provada a factualidade nele vertida mas apenas no segmento referente ao conhecimento e respeito dos antecessores dos autores. Quando o acórdão, na revogação da sentença da 1ª instância, julga improcedente a reconvenção e o faz por considerar que a posse dos reconvintes não reveste o carácter de publicidade legalmente exigida, está estribado nos factos que teve por assentes. Por isso, não merece acolhimento a pretensão dos recorrentes quando alegam que a decisão está em desconformidade com a factualidade constante daquele ponto nº 20, na medida em que essa factualidade se teve parcialmente por não apurada. 2. posse pública A reconvenção foi julgada improcedente na Relação pela simples e única razão de que a posse exercida pelos réus/reconvintes sobre a pequena dependência situada nas águas furtadas não foi pública. Pela usucapião adquirem-se direitos reais sobre coisas por força de uma posse duradoura sobre elas exercida, desde logo o direito de propriedade –art. 1287º C.Civil. A usucapião baseia-se numa situação de posse. Posse é o poder que se manifesta quando alguém actua por forma correspondente ao exercício do direito de propriedade ou de outro direito real –art. 1251º C.Civil. Na posse concorrem dois elementos: o corpus, que consiste na relação material com a coisa e o animus, elemento psicológico, que se traduz na intenção de actuar com a convicção de ser titular do direito real correspondente. Possuidor é, pois, aquele que exerce efectivos poderes materiais sobre a coisa e com a intenção de exercer um direito real próprio. E só através de actos materiais correspondentes ao exercício do direito, ou seja, de actos que incidam directa e materialmente sobre a coisa se pode adquirir a posse, e nunca através de actos de disposição e administração, como referem Pires de Lima e Antunes Varela(1). Os actos materiais incidentes directamente sobre a coisa hão-de ser aqueles que se ajustem à utilização normal da coisa em concreto, que sejam adequados às particularidades de fruição proporcionados por essa mesma coisa. O apossamento, aquisição originária aqui invocada, traduz-se na aquisição unilateral da posse mediante a prática reiterada, com publicidade, de actos materiais correspondentes ao exercício do direito, em conformidade com o disposto na al. a) do art. 1263º C.Civil. Perante a factualidade assente é um dado adquirido, que aliás ninguém contesta, que os réus/reconvintes, desde há mais de vinte anos, por si e antecessores, se têm mantido a usar a dependência em causa, utilizando-a para arrumos do seu prédio, com exclusão de outrem e sem oposição dos antecessores dos autores e com o espírito e convicção de que o fazem por direito próprio. Surpreende-se nesta actuação dos réus/reconvintes os elementos integradores da posse relevante para efeito de usucapião, como sejam o corpus e o animus. Impõem-se agora apreciar se essa posse está ou não revestida da característica da publicidade, requisito essencial à aquisição do direito mediante a usucapião. Posse pública, preconiza o art. 1262º C.Civil, é a que se exerce de modo a poder ser conhecida pelos interessados. A publicidade não se reporta ao momento em que se constitui, mas ao próprio exercício dos actos materiais correspondentes ao direito, ou seja, aos seus efeitos, até por que a posse oculta não deixa de ser posse. Para ser pública exige-se que o exercício da posse seja feito de modo a poder ser conhecido dos interessados mas já não um seu conhecimento efectivo. Como refere Carvalho Fernandes(2), não é necessário o conhecimento efectivo do exercício da posse por aqueles a quem possa interessar, bastando a possibilidade de dela se aperceberem aqueles a quem a posse afectar. Basta que possua a coisa como a possuiria um normal proprietário, sem a ocultar dos eventuais interessados. E tem de se apreciar objectiva e casuisticamente dessa possibilidade dos interessados se poderem ou não aperceber do exercício da posse. Ainda segundo o mesmo autor se o exercício for tal, que uma pessoa de normal diligência, colocada na situação do titular do direito, daquele se teria apercebido, a posse é pública. Na situação vertente, há a realçar que, quando os réus adquiriram o seu prédio, em 20 de Abril de 1959, já a dependência em causa existia, com a delimitação física actual, porque construída antes dessa data. Não obstante a dependência estar assente no piso de soalho e sob o telhado do prédio dos autores, a verdade é que é construída em madeira e lateralmente em tabique, sendo servida por uma entrada de acesso exclusivo para o interior do prédio dos réus, sem qualquer ligação ou abertura de e para o prédio dos autores. Existe, pois, um cubículo rectangular com uma área de cerca de 1,72 m2 que encaixa nas águas furtadas do prédio dos autores. Ora, é bom de ver, porque notoriamente iniludível, que os proprietários deste prédio, quer os actuais quer os anteriores, não podiam ignorar a existência desta pequena divisão, assim como não podiam ignorar que ela apenas servia os proprietários do prédio vizinho, pois só com ele tinha ligação. E esta situação manteve-se durante mais de 40 anos e sem oposição dos antecessores do prédio hoje dos autores. Uma vez que a prática de actos materiais correspondentes ao exercício do direito de propriedade sobre esta divisão era exercido de modo a poder ser conhecida de uma pessoa de normal diligência, temos de concluir que o exercício da posse se reveste claramente de publicidade. Assim sendo e porque estamos in casu perante uma situação de posse em que concorrem o corpus e o animus, posse ainda pacífica e pública e continuada durante mais de vinte anos, ou seja, todos os requisitos necessários à aquisição do direito de propriedade sobre a dependência em causa, tem de se concluir que se radicou na esfera jurídica dos réus/reconvintes o direito de propriedade sobre a tal dependência, através da usucapião, na conformidade do disposto no art. 1287º C.Civil. Daí que, quanto a esta questão, se não possa manter o decidido no acórdão recorrido. E, consequentemente, também não pode merecer aceitação o segmento do mesmo acórdão em que reconhece o direito de propriedade dos autores sobre essa divisão. Aliás, o acórdão é completamente omisso quanto ao reconhecimento deste direito dos autores, não havendo a menor referência a fundamentar este reconhecimento. É patente a falta de fundamentação jurídica deste segmento decisório. Improcedência que também se estende à indemnização pelos danos decorrentes da ocupação, tida por abusiva, da mesma dependência. Sendo os réus proprietários desse espaço, não privaram os autores do seu gozo e fruição e, por conseguinte, não lhes poderiam ter causado qualquer prejuízo a esse título. Mas também nesta parte é flagrante a falta de fundamentação do acórdão recorrido quanto à indemnização arbitrada aos autores. 3. oneração da servidão de vistas Ficou demonstrado que os autores, no decurso de obras de restauro e remodelação do seu prédio, efectuadas em 2005, alteraram as medidas de uma janela existente na parede na parte que sobreleva o prédio dos réus aumentando as suas medidas, 1 cm na altura e 5 cm na largura, janela não gradada e com o parapeito a cerca de 1,60 m do sobrado. Considerou-se no acórdão recorrido que a janela não foi alteada tendo a diferença de 1 cm sido ocasionada pela colocação do perfil onde a janela de correr desliza. Esta é uma dedução que a Relação pode extrair e que, no caso vertente, se apresenta como dedução lógica formada com base em regras da experiência. Como matéria de facto que é, impõe-se a este tribunal de revista, que a não pode censurar. Temos, portanto, que esta janela foi apenas alargada e em cerca de 5 cm. Aceitam as partes que a abertura desta janela na parede do prédio ora dos autores importou a constituição de uma servidão de vistas. Esta servidão tem a amplitude com que foi constituída, amplitude essa determinada em função da posse do titular, ou seja, com as medidas de 94 cm de altura x 73 cm de largura, em conformidade com o disposto nos arts. 1547º e 1564º C.Civil. A alteração dos elementos constitutivos de uma servidão desta natureza, designadamente da sua amplitude física, traduz-se sempre numa sua modificação e eventual oneração para o prédio serviente, podendo acarretar a constituição de uma nova servidão com essas características, desde que ocorram os necessários requisitos. A medida do alargamento –uns meros 5 cms- pode parecer algo insignificante. Tudo depende, porém, das implicações que uma redução desta grandeza possa ter sobre um aproveitamento futuro do espaço aéreo do prédio. E quanto a uma eventual insignificância deste aumento nada vem alegado. Por isso, ao alargar a janela, ainda que só em 5 cm, é evidente que a servidão foi ampliada e, como tal, deve ser reduzida às dimensões com que foi construída. E não se afigura que esta pretensão exceda, por qualquer modo, de forma manifesta os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico do direito feito valer, ou seja, que se apresente abusivo o exercício deste direito. O abuso de direito, pressupondo a existência de um direito subjectivo, existe quando o seu titular exorbita dos fins próprios desse direito ou do contexto em que é exercido. Mas esse excesso há-de ser claro e manifesto, clamorosa ofensa do sentimento jurídico socialmente dominante, no dizer de Vaz Serra, sem se exigir todavia a consciência de se estarem a exceder os limites do direito, dado ter sido adoptada pelo Código Civil uma concepção objectivista do abuso de direito. O abuso de direito existe quando o direito é exercido fora do seu objectivo natural e da razão justificativa da sua existência e com o fim de causar dano a outrem (3). Os réus, ao exigirem a manutenção da servidão dentro dos limites materiais com que foi constituída, estão legitimamente a salvaguardar o espaço aéreo do seu prédio e uma acrescida restrição de construção decorrente da ampliação dessa servidão. O exercício deste direito apresenta-se, por isso, como uma justificada reacção contra o agravamento da servidão com que estão onerados. 4. demolição do peitoril da janela Reacção igualmente justificada se afigura a pretensão dos réus/reconvintes quando pretendem ver demolidos o peitoril e moldura com que os autores dotaram aquela janela. Efectivamente, os autores, no decurso daquelas obras de restauro e remodelação do seu prédio, dotaram a janela de moldura e peitoril salientes, ocupando em cerca de 10 cms o espaço aéreo do prédio dos réus. Esta inovação estava-lhes vedada por força do disposto no nº 1 do art. 1344º C.Civil, já que com esta inovação invadiram o espaço aéreo do prédio dos réus. A inovação, a manter-se, implicaria, tal qual o alargamento da janela, uma possível restrição do pleno direito de fruição e disposição do prédio por parte do proprietário traduzida numa limitação acrescida ao espaço aéreo do prédio. Ao exigirem a sua demolição estão os réus a exercer legítima e justificadamente o seu direito, não exorbitando da razão da sua existência. Também esta inovação tem de ser demolida. IV. Decisão Perante tudo quanto exposto fica, acorda-se, na parcial procedência da revista, nos seguintes termos: a- revogar o acórdão recorrido quando reconhece aos autores o direito de propriedade sobre a dependência em causa e condena os réus a indemnizá-los pela ocupação dessa mesma dependência; b- manter o decidido na sentença da 1ª instância, à excepção da redução da altura da janela; c- condenar nas custas, nas instâncias e deste recurso, recorrentes e recorridos na proporção de 1/10 e 9/10, respectivamente. Lisboa, 24 de Junho de 2010 Alberto Sobrinho (Relator) Maria dos Prazeres Pizarro Beleza Lopes do Rego ________________________ (1) in Código Civil, Anotado, III, 2ª ed., pág. 27 (2) in Lições de Direitos Reais, 6ª ed., pág. 302 (3) É este o ensinamento que se colhe, entre outros dos acs.S.T.J., de 98/11/12 e 00/05/10, in B.M.J., 497º-343 e C.J., VI-3º, 110 (S.T.J.) |