Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
05A4244
Nº Convencional: JSTJ000
Relator: ALVES VELHO
Descritores: CONTRATO DE AGÊNCIA
INDEMNIZAÇÃO
Nº do Documento: SJ200602140042441
Data do Acordão: 02/14/2006
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA.
Decisão: NEGADA A REVISTA.
Sumário : - Uma conta bancária diz-se solidária quando pode ser movimentada por qualquer dos respectivos titulares, indistinta ou isoladamente, devendo o banco só uma vez a soma devida ao credor solidário que lho exija, ou seja, quando qualquer dos credores (depositantes ou titulares) tem a faculdade de exigir, por si só, a totalidade da quantia depositada e a prestação assim efectuada libera o devedor (banco) para com todos eles;
- Esta modalidade de depósito, cujo regime, destinado a facilitar a movimentação da conta (exigência do crédito ao banco devedor, que não obtém facilitação no pagamento da dívida), protege exclusivamente os titulares da respectiva conta, titulares que são, note-se, credores solidários do banco, situando-nos no campo da solidariedade activa.
- Diz-se que há "descoberto em conta" ou "facilidades de caixa" quando numa conta corrente subjacente a uma conta o banco admita um saldo negativo para o respectivo titular;
- O descoberto, prática bancária que, na falta de disciplina própria, é tratado como um mútuo mercantil, pode ter por base um contrato prévio, advir de lançamentos de movimentos ou despesas a que o banqueiro esteja obrigado ou, ainda, por contemporização ou tolerância visando facilitar, por períodos curtos, a tesouraria de certos clientes em razão da consideração ou confiança que lhe mereçam.
- Da mera titularidade de uma conta solidária não emerge para o contitular a responsabilidade pelo descoberto, pois que daquela solidariedade activa não pode, sem mais, deduzir-se a sujeição dos contitulares ao regime da solidariedade passiva. Tem de demonstrar-se que as partes quiseram, expressa ou tacitamente, submeter a responsabilidade pelos passivos da conta ao regime das obrigações solidárias, aceitando a posição de mutuários relativamente ao descoberto concedido.
Decisão Texto Integral: Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:


1. - "Empresa-A" intentou contra AA e BB acção declarativa, pedindo a condenação solidária destes no pagamento à A. da quantia de € 30 696,68, acrescidos de juros moratórios sobre o capital de € 27 681,23 desde 27/2/03, saldo devedor da conta D.O. n.º 86887848 resultante de movimentos a débito e a crédito efectuados pelos RR., através de cheques sacados sobre a mesma.

Contestou apenas a R. mulher que, para concluir pela improcedência da acção, impugnou tudo o articulado pela Autora e acrescentou ser divorciada e antes separada de facto do co-Réu desde Agosto de 1999, sem que, desde então, tenha efectuado movimentos da conta ou beneficiado dos montantes nela creditados pela A..

A final a Ré foi absolvida do pedido contra ela formulado, decisão que a Relação confirmou.

O Banco Autor pede ainda revista, insistindo na condenação da Ré na totalidade do pedido.
Para tanto, verte nas conclusões:
1 - Resulta provado que a Ré/Recorrida manifestou vontade em ser titular de "conta solidária" no Banco Recorrente; que quis intervir naquela conta bancária e que a mesma conta em 17 de Outubro de 1997 sofreu uma alteração na titularidade deixando de ser conta-ordenado;
2 - A conta solidária com cláusula de saque a descoberto prova que tal responsabilidade foi assumida por ambos os depositantes, pelo que está também a Ré obrigada a regularizar o descoberto originado pelo débito em conta;
3 - Carece de sentido lógico a interpretação do documento de fls. 6, conforme está plasmada na sentença, pois resulta do seu teor conjugado com fls. 7 que na data dos débitos que deram origem ao saldo devedor a conta n.º 86887848 já não era utilizada como "conta ordenado";
4 - Constando dos autos, no documento n.º 34, junto em 11/10/04, que autoriza o "saque a descoberto", não impugnado pela Recorrida, e mostrando-se devedor o saldo da conta identificado nos autos, funciona o regime da solidariedade passiva, podendo o Banco Recorrente exigir de qualquer dos titulares o saldo em dívida;
5 - O facto de ter ficado provado que a Ré tentou desvincular-se da conta, o que não conseguiu, apenas afirma que esta conhecia a dívida e sabia que poderia ser responsabilizada por via da sua titularidade.

A Recorrida não apresentou resposta.

2. - Como das transcritas conclusões decorre, a questão que se coloca é a de saber se a Ré-recorrida, contitular da conta solidária aberta no Banco Recorrente, é responsável pelo pagamento do saldo devedor dessa conta à data do seu encerramento pelo Banco.

3. - Vem assente a seguinte factualidade:

1 - A A. é uma instituição de crédito que exerce a actividade bancária.
2 - Os RR. celebraram casamento entre si, casamento que foi dissolvido por sentença de divórcio transitada em julgado em 7-5-2001.
3 - Os RR. apuseram as respectivas assinaturas no doc. de que se mostra junta cópia a fls. 6, denominado Nova Conta Ordenado em que assinaladamente se lê que a Nova Conta Ordenado é uma conta de depósito à ordem onde o cliente domicilia a retribuição mensal e outras provenientes do seu trabalho e que permite o acesso preferencial a determinados produtos e serviços bancários e que ao titular da Nova Conta Ordenado será automaticamente atribuído, após o primeiro crédito de ordenado:
a) um limite de crédito para o cartão Visa Nova Rede equivalente a um ordenado;
b) a possibilidade de antecipar o seu ordenado a partir do dia 15 de cada mês, ou o dia útil anterior, nas condições praticadas pelo Banco em situações similares.
4 - Os RR. solicitaram ao A., ao que esta acedeu, que se procedesse à alteração da titularidade da conta, por forma a que o R. passasse a figurar como primeiro titular.
5 - No exercício da sua actividade a A., através da Nova Rede, aceitou abrir conta bancária de depósitos à ordem em nome de ambos os RR. figurando ambos como titulares no contrato a que foi atribuído o n.º 86887848.
6 - Através da conta n.º 86887848 o R. realizou movimentos de crédito e de débito, que deram origem a um saldo devedor de € 21 436, 05, que em 1-9-2002 se fixou em € 27 681, 23, constituindo este montante um financiamento ao R..
7 - Os RR. não procederam ao pagamento da quantia de € 27 681, 23.
8 - Os RR. estão separados de facto desde Setembro de 1999.
9 - Com a abertura da conta a R. acordou que poderia ser concedido a cada titular da conta crédito equivalente a um ordenado.
10 - Desde que os RR. estão separados de facto a R. deixou de movimentar aquela conta ou de assinar qualquer cheque da mesma e deixou de aceder aos saldos bancários que eram e continuam a ser enviados para a morada do R. AA.
11 - A A. financiou a aquisição de casa própria pelos RR., ficando a dívida garantida por hipoteca sobre a casa.
12 - O financiamento de € 27 681, 23 foi apenas feito a favor de AA e para seu uso pessoal.
13 - A R. tentou desvincular-se da qualidade de titular da conta, o que não conseguiu.
14 - Na abertura da conta n.º 86887848 a R. apenas teve conhecimento e acordou quanto o teor dos docs. de fls. 6 e 7.

4. - Mérito do recurso.

4. 1. - Embora não invoque o preceituado na parte final do n.º 2 do art. 722º CPC nem os preceitos de direito substantivo probatório ao abrigo dos quais o documento n.º 34, junto em 11/10/05, goza de "força probatória que só por si implica decisão diversa, na medida em que dele "consta que autoriza o saque a descoberto" - limitando-se a aludir, como violado a este propósito, o art. 669º-2-b) CPC, preceito que se refere aos pressupostos de reforma da decisão -, certo é que a Recorrente sustenta dever ter-se como assente que, por não impugnado, do conteúdo do documento em causa resulta demonstrado ter a R. autorizado o "saque a descoberto", infirmando, assim, a resposta ao quesito 5º - ponto n.º 9 da matéria de facto - e o juízo das instâncias segundo o qual " a A. não logrou demonstrar que haja acordado com a R. para além disso [que poderia ser concedido a cada titular da conta crédito equivalente a um ordenado], quer oralmente, quer por escrito".

O documento em causa é uma fotocópia de um texto impresso de "CONDIÇÕES GERAIS DE DEPÓSITO" junta pela A. mediante notificação do Tribunal, a solicitação da R. na fase de instrução para prova dos quesitos 2º a 12º.
Trata-se, pois, de um repositório de cláusulas gerais, não assinado pelas Partes nem referenciado como integrante ou respeitante ao concreto contrato de depósito bancário em questão.

Acresce que, indagado através do quesitado no ponto 12º da base instrutória, se a Ré apenas teve conhecimento e acordou quanto ao teor dos documentos de fls. 6 e 7 - "Nova conta Ordenado" e alteração do 1º titular da mesma - a resposta foi afirmativa, isto é, o julgador da matéria de facto afastou da aplicabilidade ao contrato dos autos as condições gerais que constituem o dito documento n.º 34.

Nesta conformidade, porque se está perante documento de natureza particular que, por não reconhecido pela R. nem demonstrado estar integrado no clausulado ou no desenvolvimento do programa contratual, isto é, desprovido dos requisitos exigidos no art. 374º C. Civil, carece de força probatória plena (art. 376º), com a consequente inclusão nos meios de prova sujeitos à livre apreciação do tribunal (art. 366º).
Daí que não se vislumbre obstáculo a que o texto do documento junto não tenha sido considerado na decisão recorrida nem a que não se mostre reflectido na matéria de facto emergente das respostas à base instrutória.

Fica, assim, claro, no tocante ao conteúdo da conclusão 5ª (n.º 4 supra), que o clausulado do aí invocado documento n.º 34 - com ou sem o alcance que a Recorrente dele retira - não pode ser considerado, designadamente em termos de interferência com o quadro fáctico que vem fixado.

4. 2. 1. - Pretende a Recorrente ver a Ré responsabilizada pelo pagamento do saldo do descoberto da conta a pretexto de ser titular dessa "conta solidária", conta que, sustenta, com cláusula de saque a descoberto, deixou de ser "conta-ordenado" em 17/10/97, por ter sofrido alteração na titularidade.

A conta bancária diz-se solidária quando pode ser movimentada por qualquer dos respectivos titulares, indistinta ou isoladamente, devendo o banco só uma vez a soma devida ao credor solidário que lho exija, ou seja, quando qualquer dos credores (depositantes ou titulares) tem a faculdade de exigir, por si só, a totalidade da quantia depositada e a prestação assim efectuada libera o devedor (banco) para com todos eles (cfr. arts. 512º C. Civ.). Qualquer dos titulares pode só por si realizar as várias operações de movimentação (vd. CALVÃO DA SILVA, "Direito Bancário", 345; PAULA P. CAMANHO, "Do Contrato de Depósito Bancário", 131.
Esta modalidade de depósito, cujo regime, destinado a facilitar a movimentação da conta (exigência do crédito ao banco devedor, que não obtém facilitação no pagamento da dívida), protege exclusivamente os titulares da respectiva conta, titulares que são, note-se, credores solidários do banco, situando-nos no campo da solidariedade activa.

Diz-se que há "descoberto em conta" ou "facilidades de caixa" quando numa conta corrente subjacente a uma conta o banco admita um saldo negativo para o respectivo titular.
O descoberto, prática bancária que, na falta de disciplina própria, é tratado como um mútuo mercantil, pode ter por base um contrato prévio, advir de lançamentos de movimentos ou despesas a que o banqueiro esteja obrigado ou, ainda, por contemporização ou tolerância visando facilitar, por períodos curtos, a tesouraria de certos clientes em razão da consideração ou confiança que lhe mereçam (cfr. MENEZES CORDEIRO, "Manual de Direito Bancário", 541).

4. 2. 2. - As Partes celebraram um contrato de depósito à ordem, em 3/3/93, a que corresponde a "conta solidária" de que é contitular a Recorrida.
Essa conta, denominada "Nova Conta Ordenado", permitia aos seus titulares, ao que agora releva, um limite de crédito para o cartão Visa Nova Rede equivalente a um ordenado e nela realizou o outro contitular movimentos que deram origem a um saldo devedor que veio a fixar-se em € 27 681,23 em 1/9/02, sendo que a R. deixou de movimentar a conta desde Setembro de 1999.

Como se deixou já referido, a abertura de uma conta solidária significa apenas que se quis facilitar a sua movimentação por qualquer dos titulares sem intervenção dos outros. Estabelece-se, sem dúvida, uma relação de solidariedade activa.

Crê-se, porém, que da convenção desse regime de solidariedade não poderá, sem mais, concluir-se também pelo estabelecimento do regime de solidariedade passiva, pois que, para tanto, haveria de poder formular-se um juízo afirmativo da vontade dos contitulares da conta se responsabilizarem também pelos seus saldos negativos decorrentes de movimentos efectuados pelos outros contitulares.
Efectivamente, como escreve Paula Camanho (ob. cit., 245, nota 757), "o grau de confiança existente entre eles [contitulares] resume-se à movimentação do saldo da conta, e não respeita a uma movimentação para além daquele". E continua: "E tal será ainda mais notório nos casos em que não exista uma convenção de "sacar a descoberto". Parece-nos, deste modo, que, em princípio, não existirá qualquer solidariedade passiva em tais casos. Para que esta possa, eventualmente, existir é necessária uma cláusula no contrato de depósito que a estabeleça, ou então, e tal hipótese não é totalmente líquida, que se convencione, no momento da abertura da conta a possibilidade de "sacar a descoberto" e, neste caso, talvez se possa retirar, tacitamente, uma vontade de os contitulares se obrigarem por saldos negativos de tal conta, ainda que tais descobertos sejam criados por outro dos co-depositantes".

Numa palavra, da mera titularidade de uma conta solidária não emerge para o contitular a responsabilidade pelo descoberto, pois que daquela solidariedade activa não pode, sem mais, deduzir-se a sujeição dos contitulares ao regime da solidariedade passiva. Tem de demonstrar-se que as partes quiseram, expressa ou tacitamente, submeter a responsabilidade pelos passivos da conta ao regime das obrigações solidárias, aceitando a posição de mutuários relativamente ao descoberto concedido.

4. 2. 3. - A Autora não só não provou, como alegara, que a Ré participou dos movimentos de que resultou o saldo negativo, tendo ficado provado que tal se deveu à actuação do outro contitular, ex-marido da Ré, como, diferentemente do que afirma neste recurso, alegou ou está demonstrada a existência de qualquer cláusula de saque a descoberto ou de previsão da sua ocorrência.

Elucidativas, quanto ao ponto, as respostas aos já mencionados quesitos 5º e 12º. Com efeito, perguntado aí se "com a abertura da conta acordou a Ré que poderia ser concedido a qualquer dos titulares crédito até 27 681,23, desde que efectuados os movimentos com vista a tal fim" ou se "na abertura da conta a Ré apenas teve conhecimento e acordou quanto ao teor dos documentos de fls. 6 [abertura da Nova Conta Ordenado] 7 da petição inicial [inversão da ordem dos titulares]", as respostas foram que "com a abertura da conta a R. acordou que poderia ser concedido a cada titular da conta crédito equivalente a um ordenado" e que apenas acordou nisso e na alteração dos titulares. Nenhum pacto sobre o descoberto ou a possibilidade de este vir a ser concedido.

Igualmente infundada se apresenta, à luz da mesma matéria de facto, a agora sustentada alteração da natureza da conta para "depósito à ordem normal", por força da invocada alteração de titularidade, em 17/10/97.
Nem tal foi alegado a integrar a causa de pedir ou fundamentando a pretensão, nem a A. fornece razões que expliquem ou justifiquem a mutação que vem invocar.

De qualquer modo, tal alteração careceria sempre de idoneidade para induzir a responsabilidade da Recorrida permanecendo, como permaneceu a ausência de qualquer pacto relativo à admissibilidade de descoberto, designadamente no excedente ao montante de um ordenado mensal.

Resta dizer, para terminar, que, não tendo a Ré movimentado a conta desde Setembro de 1999 não faz sentido, ao menos quanto a ela, fazer assentar a concessão do descoberto em qualquer relação de confiança no cliente motivada pela superação de eventuais dificuldades momentâneas de fundos de maneio, nem havia uma prática de "factos concludentes" que justificassem reciprocamente a provisão da conta e a manutenção do progressivo saldo devedor.

5. - Decisão.

De harmonia com o que se deixou exposto, decide-se:
- Negar a revista;
- Confirmar o acórdão impugnado; e,
- Condenar a Recorrente nas custas.

Lisboa, 14 de Fevereiro de 2006
Alves Velho
Moreira Camilo
Urbano Dias