Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
97B693
Nº Convencional: JSTJ00039888
Relator: COSTA MARQUES
Descritores: COMPRA E VENDA
PRESSUPOSTOS
ÓNUS DA PROVA
MATÉRIA DE FACTO
Nº do Documento: SJ199803030006932
Data do Acordão: 03/03/1998
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: T REL PORTO
Processo no Tribunal Recurso: 750/96
Data: 12/03/1996
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA.
Decisão: NEGADA A REVISTA.
Área Temática: DIR COM.
DIR CIV - DIR CONTRAL / TEORIA GERAL.
Legislação Nacional: CCOM888 ARTIGO 463 N1.
CCIV66 ARTIGO 342 N1 N2 ARTIGO 817 ARTIGO 879 C.
Sumário : 1 - É questão de facto da exclusiva competência das instâncias apurar se a ré mulher explora um estabelecimento de mercadoria em certo local.
2 - Ao Autor-vendedor incumbe provar o que vendeu e por quanto, ao réu comprador o facto extintivo do pagamento do preço.
3 - Não provada a excepção, provada está a acção em que se pede o pagamento do preço da coisa vendida.
Decisão Texto Integral: Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:

1 . A, demandou B, e marido C, em acção com processo ordinário instaurada no Tribunal da Comarca de Barcelos, pedindo a condenação dos RR. a pagarem-lhe a quantia de 2257855 escudos, acrescida de juros à taxa de 15%, com a sobretaxa de 2% nos termos da Portaria 807-U/83, de 30-07, sobre o montante de 1527051 escudos, que é o preço de mercadoria que vendeu à Ré C e por ela adquirida no exercício da sua actividade comercial, especificada nas facturas que junta, sendo 730805 escudos o montante de juros vencidos até à data da propositura da acção.
Os RR., citados, contestaram para contradizerem os factos articulados pela A., concluindo pela improcedência da acção.
A A, respondeu à contestação na réplica, articulado que foi admitido.
2 . Prosseguiu o processo os seus termos e, realizada a audiência final, o Exmo Juiz do Círculo Judicial proferiu sentença a julgar a acção procedente, com condenação do RR. no pedido.
Apelaram os RR., mas a Relação do Porto, por douto acórdão de fls.173/181, negando provimento ao recurso, confirmou a sentença apelada.
Deste acórdão pedem revista os RR., que, alegando a visarem a sua revogação, com decisão de improcedência da acção, concluem:
- o acórdão recorrido, na esteira da decisão em 1ª instância, continua a fazer uma incorrecta aplicação das leis aos factos;
- com estes factos o tribunal não tem elementos para condenar os recorrentes, continuando a fazer-se uma confusão completa entre o que são factos e o que são conceitos de direito;
- explorar um estabelecimento comercial é um conceito de direito, que tem de ser traduzido em factos concretos;
- como a A, não alegou - e por isso não provou - que era a Ré C, quem fazia as encomendas, as pagava, emitia cheques, letras ou outros modos de pagamento, o Tribunal da Relação mais não fez do que extrair uma conclusão, rematando que era ela quem explorava o estabelecimento;
- de facto, não podia ela explorar o estabelecimento se não era quem praticava os actos acima referidos (como está provado), actos esses que consubstanciam e determinam o conceito de explorar um estabelecimento comercial;
- quem o fazia, isto é, quem explorava e explora efectivamente o estabelecimento comercial é a filha D, como resulta da resposta ao quesito 7, já que explorar um estabelecimento é exactamente executar e praticar os actos de comércio acima referidos;
- ao aceitar aquela resposta ao quesito 1, o acórdão recorrido limita-se também a extrair uma conclusão que só podia ser retirada de factos adequados, tais como fazer as encomendas, pagá-las, emitir cheques, letras ou outros modos de pagamento;
- não se duvida que haja hoje termos que são empregues num duplo sentido, ou seja, num sentido jurídico e num sentido fáctico, mas esse sentido terá forçosamente que ter algo a ver com a realidade sentida e vivida pelas partes, pois doutra forma, estamos a aceitar implicitamente que todos os conceitos são jurídicos e fácticos ao mesmo tempo, o que é um absurdo;
- por isso, é forçoso que se considere a resposta aos quesitos 1 e 3 como são escritas e sem qualquer valor;
- acresce, para além do mais que no acórdão recorrido não existe qualquer alusão ou qualquer matéria fáctica donde resulte que o valor das facturas foi ou não pago, já que essa questão controvertida não consta do questionário, e daí que não haja quaisquer elementos para concluir, sem mais, que o valor das facturas está por pagar;
- sustenta o acórdão recorrido, em síntese, que não se tendo provado o cumprimento ou obrigação, o preço está por pagar, mas salvo o devido respeito, voltamos ao campo das suposições e da imaginação, pois como se pode concluir que o fornecimento não foi pago, se não há qualquer quesito ou resposta a tal respeito...
- alegando um fornecimento, pedindo a condenação no pagamento, não se encontra no questionário um facto sequer que possa levar o tribunal a concluir pela falta de pagamento;
- Ora, o processo tem regras e elas não estão verificadas para que o tribunal e o acórdão recorrido extraiam aquele efeito jurídico, pelo que não podem proceder os pedidos da A, formulados na petição;
- O douto acórdão recorrido violou o disposto no n. 4 do art. 464 (deverá ter-se querido escrever "646"), n. 2 do art. 653 e n. 3 do art. 659 do Cód. de Proc. Civil e ainda o disposto no art. 268 do Cód. Civil.
A A, contra-alegou em defesa do julgado.
Corridos os vistos depois, cumpre decidir.
3 . Face às conclusões ou alegações dos recorrentes, que delimitam o objecto de recurso (art. 684, n. 3 e 690, n. 1, do Cód. de Proc. Civil), são duas as questões postas para resolver: a de se terem por não escritas as respostas dadas pelo colectivo aos quesitos 1 e 3 e a das consequências a extrair de não ter sido alegado e não estar provado o facto de não pagamento à A, do preço da mercadoria constante das facturas.
4 . Dispõe-se no art. 646, n. 4, do Cód. de Proc. Civil, que se têm por não escritas as respostas do tribunal colectivo "sobre questões de direito e bem assim as dadas sobre factos que só possam ser provados por documentos ou que estejam plenamente provados quer por documentos, quer por acordo ou confissões das partes":
Defendem os recorrentes que a resposta de provado dada pelo colectivo ao quesito 1º versa sobre questão de direito.
Mas sem razão.
Como escreve o Prof. Antunes Varela, na Rev. de Leg. e Jurisp., Ano 122, pág. 219, "os factos (a matéria de facto), no campo do direito processual, abrangem principalmente, embora não exclusivamente, as ocorrências concretas ou vida real".
Ora, o quesito 1º está assim formulado:
"A Ré mulher explora um estabelecimento de mercearia no lugar de Fiopos, Barroselas, Viana do Castelo?".
Nele não está em causa a natureza jurídica do estabelecimento comercial. O que através dele se procura saber é se a Ré mulher explora uma mercearia no lugar referido, ou seja, se ela frui a unidade económica que é o estabelecimento de mercearia identificado.
Na verdade, como refere aquele autor, na Rev. cit., Ano 100, pág. 271, o direito à exploração do estabelecimento comercial limita-se à fruição da unidade económica que é o estabelecimento.
E a Ré explorar, com o sentido de fruir, a mercearia é uma ocorrência concreta da vida real, por isso matéria de facto, sobre a qual recaiu a resposta dada pelo colectivo.
Quanto ao quesito 3º, em que se pergunta se "tais fornecimentos (referidos no quesito 2º ocorreram nas datas referidas nas facturas e pelos preços que das mesmas constam", que teve a resposta de provado, mas que os recorrentes pretendem que se tenha também por não escrita, não se vê de que vício ela padeça, nem os recorrentes lho apontam, por forma a poder ser extraída tal consequência.
Assim, sendo de manter as respostas dadas àqueles quesitos, a matéria de facto a ter em conta na resolução da outra questão posta no recurso é a seguinte, fixada pela Relação:
- A A, comercializa, por grosso, produtos alimentares e bebidas;
- A Ré mulher B explora um estabelecimento de mercearia no lugar de Fiopos, Barroselas, Viana do Castelo;
- No exercício da sua actividade a A, vendeu à Ré mulher, os produtos descriminados nas facturas juntas de fls. 5 e 37 e guias de transporte de fls. 38 a 41, no valor global de 1527051 escudos, com IVA incluido;
-Tais fornecimentos ocorreram nas datas referidas nas facturas e pelos preços que elas constam;
- Foi acordado entre a A, e a Ré que os valores das facturas podiam ser pagos por esta até ao 30º dia posterior à data daquelas facturas;
- A Ré mulher faz da actividade comercial o seu único e exclusivo modo de vida, auferindo os vencimentos com que faz face às despesas do lar e do agregado familiar, possuindo, também, um estabelecimento de talho que igualmente explora;
- D faz e paga encomendas, vende e emite cheques no giro comercial do dito estabelecimento;
- Os RR. contraíram entre si casamento canónico em 24-02-57, no regime de comunhão geral de bens.
5 . Os factos apurados integram a figura típica do contrato de compra e venda comercial, previsto no art. 463, n. 1, do Cód. Comercial, celebrado entre a A, como vendedora e a Ré mulher, como compradora, qualificação feita pelas instâncias sem reparo dos recorrentes.
Deste contrato emerge para a Ré mulher compradora a obrigação de pagar o preço (art. 879, al. c)), do Cód. Civil).
A A, visa na acção a efectivação do seu direito à realização coactiva ou prestação, a que se refere o art. 817 do Cód. Civil.
E, de harmonia com as regras sobre a repartição do ónus da prova contidas no art. 342, ns. 1 e 2, do Cód. Civil, "todos sabem, escreve o Prof. Antunes Varela, na Rev. cit., Ano 116, pág. 342, que do autor, em semelhante caso, apenas se exige a prova dos factos essenciais que integram a fonte da obrigação, sendo ao devedor que incumbe alegar e provar os factos extintivos da obrigação (como o pagamento, a compensação, a prescrição, etc.) ou os factos impeditivos do direito do autor (como a nulidade ou qualquer das causas de anulabilidade do contrato)."
Ora a A, credora, alegou e provou os factos essenciais integradores do contrato de compra e venda comercial, fonte da obrigação, nada mais lhe sendo exigido alegar e provar, incluindo o não cumprimento da obrigação.
Mas os RR., devedores, não alegaram e provaram qualquer facto extinto ou impeditivo do direito de crédito invocado pelo A, sendo que o respectivo ónus sobre eles impendia.
A responsabilidade de ambos os cônjuges pela dívida, considerada nas instâncias, não é questão posta para resolver no recurso.
Daí o acerto da decisão confirmada no acórdão recorrido, de condenação dos RR. no pedido.

6 . Termos em que, negando a revista, se confirma o douto acórdão recorrido.
Custas pelos recorrentes.
Lisboa, 03 de Março de 1998.
Costa Marques,
Costa Soares.