Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça | |||
Processo: |
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Nº Convencional: | 7ª SECÇÃO | ||
Relator: | LOPES DO REGO | ||
Descritores: | CONTRATO DE UTILIZAÇÃO TRABALHO TEMPORÁRIO CLÁUSULA SOBRE RESPONSABILIDADE CIVIL LIBERDADE DE ESTIPULAÇÃO CULPA DO TRABALHADOR VIOLAÇÃO DO DEVER GERAL DE CUIDADO | ||
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Data do Acordão: | 02/09/2012 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
Privacidade: | 1 | ||
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Meio Processual: | REVISTA | ||
Decisão: | NEGADA | ||
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Sumário : | 1. A cláusula de assunção de responsabilidade por parte da sociedade de trabalho temporário relativamente aos factos ilícitos e culposos eventualmente cometidos pelos seus trabalhadores, cedidos à empresa utilizadora, referentemente aos danos resultantes do incumprimento dos respectivos deveres funcionais, provocados nos próprios equipamentos de que se serve o trabalhador para exercer as tarefas laborais que lhe competem, não extravasa o âmbito possível da liberdade de estipulação das partes na relação triangular em litígio, não padecendo, consequentemente, de nulidade por violação de disposição legal imperativa. 2. Não é sindicável, no âmbito de um recurso de revista, o juízo das instâncias sobre a culpa do condutor de viatura pesada que circulava de noite, no local do estaleiro de certa obra, com a caixa de carga levantada, embatendo por isso em certo obstáculo, assente decisivamente em presunções naturais ( associadas à improcedência da tese segundo a qual tal levantamento da caixa se devera a facto fortuito, não imputável ao condutor) e na apreciação casuística da inobservância de um dever geral de diligência e zelo na condução profissional desse veículo.
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Decisão Texto Integral: |
Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:
1. AA – Empresa de Trabalho Temporário, Lda instaurou acção de condenação, com processo ordinário, contra BB, S.A., pedindo a condenação da Ré a pagar-lhe a quantia de 48.137,04€, acrescida de juros comerciais vencidos até 03.01.2008, no montante de 2.469,64€, e vincendos até efectivo e integral pagamento. Alega como fundamento de tal pretensão que, no exercício da sua actividade comercial, celebrou com a Ré, como utilizadora, em 21 de Agosto de 2006, um "contrato de utilização de trabalho temporário", por força do qual prestou a esta diversos serviços que foram facturados pelo valor global de 48.137,04€, facturas que se venceram no dia 10 do mês seguinte ao da sua emissão e que a Ré não pagou. A Ré contestou por excepção, invocando a compensação de créditos, argumentando, em substância, que um dos trabalhadores temporários cedidos pela Autora (Armando Gaspar) provocou um acidente com uma máquina da Ré, cuja reparação foi por si custeada e ascendeu a 47.651,45€, sendo que, ao abrigo do disposto na cláusula 11ª do contrato celebrado entre a Autora e a Ré, cabe à primeira o ressarcimento de eventuais danos causados em equipamentos por negligência dos trabalhadores cedidos. Na réplica, a A. sustentou a nulidade de tal cláusula, por violar normas imperativas em sede de responsabilidade civil extracontratual e do regime normativo do trabalho temporário, impugnando ainda a factualidade alegada como base do contra-direito que lhe fora oposto. Após saneamento e condensação da matéria da causa, efectuou-se o julgamento, considerando-se provados os seguintes factos: 1. A Autora é uma empresa que se dedica à cedência temporária a utilizadores da actividade de trabalhadores que, para esse efeito, admite e retribui, encontrando-se licenciada pela Licença n.° 404/2002, de 30 de Dezembro de 2002. 2. No âmbito da sua actividade, a Autora (la Outorgante), celebrou em 21 de Agosto de 2006, com a Ré (2a Outorgante), como utilizadora, o acordo denominado "contrato de utilização de trabalho temporário" junto por cópia de fls. 6 a 9, cujo teor se dá por integralmente reproduzido. 3. Por força de tal acordo, a Autora colocou à disposição da Ré um conjunto de trabalhadores para prestarem a sua actividade na obra da Ré, designada "obra 2402 – construção do sublanço Marinha Grande (A8) / Monte Redondo da A17 – Auto Estrada Marinha Grande / Mira" . 4. O referido acordo foi celebrado pelo prazo de 12 meses (D/FA). 5. No âmbito do sobredito acordo, os trabalhadores colocados pela Autora à disposição da Ré prestaram a esta os trabalhos discriminados nas facturas sob documentos n.°s 2, 3, 4 e 5 da petição inicial cujo teor se dá por integralmente reproduzido, a saber: N. FACTURA DATA DE EMISSÃO VALOR 377/2007 25/05/2007 6.682,83€ 378/2007 25/05/2005 26.224,69€ 384/2007 25/06/2007 13.158,60€ 385/2007 25/06/2007 2.070,92€ 6. Um dos trabalhadores cedidos pela Autora à Ré foi CC. 7. Na Cláusula 11ª do acordo mencionado em B) ficou consignado: «Será da responsabilidade da lª Outorgante o ressarcimento de eventuais danos causados em equipamentos da 2ª Outorgante por negligência dos trabalhadores cedidos ao abrigo do presente contrato». 8. A Ré mostrou à Autora facturas relativas à reparação do veículo Dumper Bell B35D N/N° 0452.0062 (H/FA). 9. A Autora recebeu da Ré a quantia de 12.508,76€ (UFA). 10. As facturas discriminadas em 5. deveriam ter sido pagas pela Ré no dia 10 do mês seguinte à sua emissão. 11. No dia 07/09/2006, pelas 05h20m, no decurso da realização do trabalho nocturno, o trabalhador temporário CC conduzia o camião Dumper Bell 0000 N/n.° 000000 . 12. Na ocasião, o camião Dumper Bell circulava com a caixa de carga (báscula) parcialmente levantada e embateu com a mesma no tabuleiro da Passagem Superior 3 — PS3. 13. Se aquele camião circulasse com a caixa de carga (báscula) recolhida teria passado por debaixo da referida Passagem Superior sem que nela tivesse embatido . 14. Em consequência directa daquele embate, o camião Dumper Bell B35D N/n.° 000000 sofreu estragos que obstavam à sua circulação. 15. Os trabalhos de reparação do camião Dumper Bell realizados no «Entreposto Máquinas» (Grupo Entreposto) custaram à Ré um total de 45.317,13€, assim discriminado: a) Reparação da suspensão: 11.472,57€; b) Reparação de articulação central: 6.167,27€; c) Reparação de caixa de carga e macaco: 12.952,34€; d) Reparação de estruturas exteriores: 6.356,21€; e e) Reparação de cabine: 8.368,74€ (8°/BI). 16. Parte da reparação do camião Dumper Bell (trabalhos de serralharia), com custo não apurado, foi executada nas oficinas da Ré. 17. Após diversos contactos mantidos com a Autora sobre este assunto, a Ré procedeu á compensação do montante das reparações com a Factura n.° 000000, de 26/04/2007, no valor de 12.023,17€, e com as Facturas discriminadas em 5. 18. Só após a referida compensação, a Ré pagou à Autora, por conta de todas aquelas facturas o montante de 12 .508,76 a que se alude em 5. 19. A Ré emitiu a factura e recibos juntos por cópia como documentos 7 a 9 da contestação e a Autora teve conhecimento de tais documentos. 20. No momento do acidente era de noite. E – perante tal quadro factual - decidiu-se: «a) Julgar a acção procedente, por provada, e em consequência condenar a Ré a pagar à Autora a quantia de 50.606,68€, acrescida de juros comerciais, contados à taxa legal supletiva sobre 48.137,04€, desde 04.01.2008 até efectivo e integral pagamento. b) Julgar a reconvenção improcedente, por não provada, e absolver a Autora do pedido reconvencional». 2. Inconformada, apelou a Ré, pugnando pela improcedência da acção e pela procedência da reconvenção deduzida – tendo a Relação concedido provimento ao recurso, com os seguintes fundamentos: O tribunal considerou nula a cláusula em questão, … “por limitar em termos desproporcionados e insuportáveis a esfera jurídica e económica da Autora e contrariar normas de ordem pública que visam os superiores interesses da comunidade como as definidoras da responsabilidade civil por actos ilícitos (artigo 280° do Código Civil)”. A recorrente entende que não é nula… “ por não consubstanciar mais do que o que se considera apropriado à natureza do próprio contrato, e se enquadrar legitimamente dentro da autonomia contratual permitida às partes pelo disposto no artigo 405° do Código Civil” Ora, O regime geral dos contratos e a sua força vinculativa encontra-se consignada genericamente no art. 405 do C.C.: “dentro dos limites da lei, as partes têm a faculdade de fixar livremente o conteúdo dos contratos, celebrar contratos diferentes dos previstos neste código ou incluir nestes as cláusulas que lhes aprouver”. Dentro da sua esfera de actuação de direito privado os particulares agem de acordo com a sua própria vontade Por conseguinte, os contraentes são inteiramente livres tanto para contratar ou não contratar, fixando livremente o conteúdo das relações contratuais que estabeleçam, desde que não haja lei imperativa, ditame de ordem pública ou bons costumes que a tal se oponham. A liberdade das partes ao estipularem cláusulas diferentes das legalmente previstas apenas tem como o limite o artº 280º, do C.C. Na Cláusula 11ª do acordo mencionado em B) ficou consignado: «Será da responsabilidade da lª Outorgante o ressarcimento de eventuais danos causados em equipamentos da 2ª Outorgante por negligência dos trabalhadores cedidos ao abrigo do presente contrato» (cfr. nº 7 dos factos provados). O contrato é de … cedência temporária a utilizadores de actividade de trabalhadores ou de locação de mão-de-obra cujo regime jurídico emerge, fundamentalmente, do D.L. Nº 358-89 de 17 de Junho, considerando-se a data em que tais factos ocorreram. O trabalho temporário é uma especialidade no ramo do direito de trabalho já que se apresenta como um contrato de trabalho “triangular” em que a posição contratual da entidade empregadora é desdobrada entre a empresa de trabalho temporário – que contrata, remunera e exerce poder disciplinar – e o utilizador que recebe nas suas instalações um trabalhador que não integra nos seus quadros e exerce, em relação a ele, por delegação da empresa de trabalho temporário, os poderes de autoridade e de direcção próprios da entidade empregadora. (cfr. preâmbulo). Por conseguinte, conservando a empresa de trabalho temporário a quase totalidade dos poderes de direcção, de responsabilidade e de disciplina do trabalhador em causa, nada obsta a que se permita, de acordo comum, a fixação ou transferência de responsabilidade civil para outrem ou para si próprios. Constata-se que, o conteúdo da cláusula em causa não é física ou legalmente impossível; não é contrário à lei ou sequer indeterminável; não é contrário à ordem pública e muito menos ofensivos dos “bons costumes”. Assim, concluir-se-á que nenhuma nulidade encerra que determine a sua invalidade. Daí que deva considerar-se válida tal cláusula. Por outro lado, considerou ainda o acórdão recorrido que se verificavam todos os pressupostos da invocada compensação, já que os factos anteriormente referidos incluem-se numa situação negligente por parte do trabalhador “cedido” temporariamente. Os danos daí acontecidos incluem-se totalmente na cláusula 11ª do contrato que ambos aceitaram. 3. Inconformada com este inovatório conteúdo decisório, interpôs a sociedade A. a presente revista, que encerra com as seguintes conclusões que, como é sabido, lhe delimitam o objecto: 1. É nula a clausula de transferência de responsabilidade inserta no contrato de utilização de trabalho temporário dos autos. 2. Nos termos do disposto no n° 1 do art. 35° da Lei 19/2007, de 22/5, no que diz respeito ao "modo" da prestação do trabalho e "segurança" no trabalho, a relação entre o trabalhador temporário e o utilizador é bilateral, sendo por isso a Rec.te, enquanto empresa de trabalho temporário, alheia aos referidos circunstancialismos daquela relação jurídica (trabalhador - utilizador). 3. A tal relação jurídica é aplicável, no que aos actos ilícitos diz respeito, o regime jurídico da responsabilidade civil, previsto nos Arts. 483° e segs do Código Civil. 4. Tal regime de responsabilidade civil não podia ser afastado pelas partes no contrato de utilização de trabalho temporário constante dos autos, e "apenas" celebrado entre Rec.te e Rec.da. 5. Desde logo, porque os trabalhadores beneficiários dessa clausula não intervieram no dito contrato, nem subscreveram tal clausula, à qual são completamente alheios. 6. Depois, por ser manifestamente abusivo que a responsabilidade civil que caiba a um trabalhador temporário (que está inserido numa estrutura laboral e produtiva da Ré/Rec.da, no que respeita ao modo, lugar e duração do trabalho, bem como no que concerne às demais condições que lhe são proporcionadas, mormente de segurança e higiene), seja transferida aleatoriamente para a A./Rec.te, que nada controla, nem pode controlar, das concretas condições da prestação de trabalho pelo trabalhador temporário. 7. A referida clausula é, assim nula, por limitar em termos desproporcionados e insuportáveis a esfera jurídica e económica da A./Rec.te, e contrariar normas de ordem pública que visam os superiores interesses da comunidade, como as definidoras da responsabilidade civil por actos ilícitos (Art. 280° C.C.). Sem prescindir, 8. Mesmo a considerar-se válida a sobredita clausula - no que não se concede - só em caso de comprovada negligência é que haveria lugar ao pretendido ressarcimento dos danos por parte da Rec.te à Rec.da. 9. Ora, a matéria factual dada como provada não permite concluir que o acidente dos autos se ficou a dever a uma qualquer conduta negligente (imprevidência, imperícia, etc ...) do trabalhador temporário, antes deixando por definir qualquer tipo de responsabilidade pessoal a respeito da verificação daquele sinistro. 10. Era sobre a Ré/Rec.da que recaía o ónus de provar que o acidente se deveu a negligência do trabalhador cedido (Art. 342°, n° 1, C.C.). 11. Quer se considere nula a Clausula 11a do contrato dos autos, quer se julgue que não ficou demonstrada, com a necessária certeza, a pretendida negligência do trabalhador, sempre resultará não ser a Ré/Rec.da titular de qualquer contracrédito que possa ser oponível ao reconhecido crédito da A./Rec.te. 12. O douto acórdão recorrido violou o n° 1 do Art. 35° da Lei 19/2007, de 22/5, bem como o disposto nos Arts. 280°, 324°, n° 1 e 493° e sgs., todos do Código Civil. Termos em que, Excelentíssimos Conselheiros, Deve o recurso ser julgado procedente, substituindo-se a decisão recorrida por outra que julgue procedente a acção e improcedente a reconvenção, pelo não reconhecimento de qualquer crédito da Rec.da oponível à Rec.te, assim se fazendo, como sempre, sã e inteira JUSTIÇA. A recorrida pugna pela manutenção do decidido no acórdão recorrido. 4.A primeira questão a dirimir prende-se com a validade da cláusula 11ª, atrás referida, tendo as instâncias divergido na apreciação desta matéria. Questionando o sentido decisório adoptado pela Relação, sustenta a entidade recorrente a tese da nulidade da dita cláusula, por entender que: - o regime de responsabilidade civil extracontratual, decorrente do estatuído nos arts. 483º e segs. do CC, não podia ser afastado por convenção das duas sociedades, partes no contrato de utilização de trabalho temporário; - os trabalhadores beneficiários dessa cláusula não a subscreveram, sendo alheios à respectiva estipulação; - não cabe à A./recorrente o controlo das concretas condições de prestação do trabalho pelo trabalhador temporário, nem da segurança no exercício da actividade laboral, pelo que seria abusiva a sua responsabilização pelos comportamentos do trabalhador no exercício da sua actividade laboral. Salienta-se, desde já, que esta questão tem de ser apreciada e decidida com particulares cautelas, já que a sociedade Ré assumiu, de forma explícita e inequívoca, no contrato que celebrou, uma responsabilização pelos danos eventualmente provocados em equipamentos da contraparte por comportamentos negligentes dos trabalhadores cedidos : como é evidente, a tentativa de desoneração desta responsabilidade, em prejuízo de garantia expressamente assumida, é susceptível de afectar o princípio da boa fé contratual - ferindo as legítimas expectativas em que estaria efectivamente garantido o ressarcimento dos danos ocasionados em equipamentos da sociedade utilizadora da mão de obra por condutas inadequadas dos trabalhadores cedidos – e perturbar o equilíbrio da economia do negócio ( porventura assente numa garantia da A. de qualificação e adequada preparação técnico-profissional dos trabalhadores utilizados ao abrigo do referido contrato). Implica isto que o juízo sobre a possível nulidade da cláusula terá de assentar em fundamentação convincente, que mostre que a mesma excedia efectivamente o âmbito possível da liberdade de estipulação das partes. Saliente-se ainda liminarmente que o quadro normativo aplicável ao contrato litigioso é – como explicitamente se decidiu na sentença proferida – o emergente do DL358/89, por ser este o vigente, quer à data da celebração do contrato, quer no momento em que ocorreu o facto danoso que despoletou a aplicação da cláusula contratual em litígio. São, pois, as normas deste diploma legal – e não as dos que sucessivamente lhe sucederam na regulamentação desta matéria – que cumpre ter em consideração na definição da exacta situação jurídica das partes envolvidas num contrato de utilização de trabalho temporário. Como se afirma, por exemplo, no Ac. de 3/12/03, proferido pelo STJ no P. 03S2555: O contrato de trabalho temporário é o negócio jurídico celebrado entre uma empresa de trabalho temporário e um trabalhador, pelo qual este se obriga mediante retribuição daquela, a prestar temporariamente a sua actividade a utilizadores - alínea d) do artigo 2° do Decreto-Lei n.º 358/89,de 17 de Outubro. E, nos termos da alínea e) do mesmo artigo, entende-se como contrato de utilização de trabalho temporário o contrato de prestação de serviços celebrado entre um utilizador e uma empresa de trabalho temporário, pelo qual esta se obriga, mediante retribuição, a colocar à disposição daquele um ou mais trabalhadores temporários. Como explicita ainda a alínea a) do mesmo preceito, em termos que são reafirmados no n.º 1 do artigo 3°, a empresa de trabalho temporário tem por objecto a "actividade de cedência temporária a terceiros, utilizadores, para utilização de trabalhadores que, para esse efeito, admite e remunera". Sendo certo que é o utilizador que "ocupa, sob a sua direcção e autoridade, os trabalhadores cedidos pela empresa de trabalho temporário (alínea c) do artigo 2° do mesmo diploma). O trabalhador temporário mantém, pois, um vínculo jurídico-laboral à empresa de trabalho temporário; mas durante a vigência do contrato de utilização temporária, a subordinação jurídica - entendida como a relação de dependência da conduta pessoal do trabalhador face às ordens, regras ou orientações ditadas pelo empregador - transfere-se para a entidade utilizadora. É, por sua vez, a existência desse vinculo originário com a empresa de trabalho temporário que justifica que seja esta a efectuar o pagamento das remunerações do trabalhador, auferindo, por sua vez, a retribuição que é devida pelo facto de colocar esse mesmo trabalhador à disposição do utilizador (alíneas a) e e), in fine, do artigo 2º). Assim se compreende que o preâmbulo do Decreto-Lei n.º 358/89 apresente o trabalho temporário como um "contrato de trabalho triangular em que a posição contratual da entidade empregadora é desdobrada entre a empresa de trabalho temporário (que contrata, remunera e exerce o poder disciplinar) e o utilizador (que recebe nas suas instalações um trabalhador que não integra os seus quadros e exerce, em relação a ele, por delegação da empresa de trabalho temporário, os poderes de autoridade e direcção próprios da entidade empregadora". Torna-se assim evidente que o utilizador do trabalhador temporário não é um mero representante da empresa de trabalho temporário; ao contrário, ele é, segundo a própria designação da lei, um terceiro relativamente a essa empresa, mas que, por efeito do contrato de utilização de trabalho temporário que com ela celebra, passa a assumir as responsabilidades da entidade empregadora no que se refere à execução do trabalho. Além do mais, é isso que resulta, com linear clareza, dos artigos 13º e 20º do referenciado Decreto-Lei. O primeiro desses preceitos, sob a epígrafe enquadramento dos trabalhadores temporários, especifica, no seu n.º 1, que "os trabalhadores postos à disposição do utilizador em execução do contrato de utilização temporária não são incluídos no efectivo do pessoal deste para determinação das obrigações relativas ao número de trabalhadores empregados (...), excepto no que respeita à organização dos serviços de higiene, saúde e segurança no trabalho". E o n.º 1 do artigo 20º reafirma esse mesmo princípio, ao estabelecer que "durante a execução do contrato de trabalho temporário, o trabalhador fica sujeito ao regime de trabalho aplicável ao utilizador no que respeita ao modo, lugar, duração de trabalho e suspensão da prestação de trabalho, higiene, segurança no trabalho e acesso aos seus equipamentos sociais". Saliente-se que, no caso dos autos, não está em causa, nem uma questão de responsabilidade emergente de acidente laboral - em que nem sempre tem sido clara e isenta de dúvidas a articulação das responsabilidades incidentes sobre entidade patronal e sociedade utilizadora do trabalhador – nem propriamente um problema de responsabilidade extracontratual por dados causados a terceiros pelo trabalhador utilizado ( como sucederia, por ex., se este tivesse atropelado alguém com a viatura que conduzia ou embatido com esta num terceiro veículo, causando danos pessoais ou patrimoniais fora do âmbito das relações triangulares emergentes do contrato em causa : o que sucedeu foi que o trabalhador em questão, por alegadamente ter incumprido culposamente os deveres funcionais e de diligência a que estava vinculado, causou danos – não a terceiros – mas nos bens da entidade utilizadora de que se servia como instrumento de trabalho. E é precisamente esta caracterização da situação litigiosa que deita por terra o argumento de que a dita cláusula de responsabilização da sociedade de trabalho temporário envolveria afastamento ou transferência de responsabilidade extracontratual: não é efectivamente assim, já que o acto ilícito e culposo do trabalhador se consubstancia na violação das obrigações funcionais a que está vinculado perante as entidades empregadora e utilizadora, gerando danos – não na pessoa ou património de terceiros – mas no património da segunda daquelas entidades, mais exactamente nos próprios equipamentos de que o trabalhador se servia para exercer as tarefas laborais que lhe estavam confiadas. Ora, colocadas as coisas nesta perspectiva, temos como seguro que a cláusula de assunção de responsabilidade por parte da sociedade de trabalho temporário relativamente aos factos ilícitos e culposos dos seus trabalhadores, cedidos à empresa utilizadora, referentemente aos danos resultantes do incumprimento de deveres funcionais, provocados nos próprios equipamentos de que se serve o trabalhador para exercer as tarefas laborais que lhe competem, não extravasa o âmbito possível da liberdade de estipulação das partes na relação triangular em litígio: o que tal cláusula significa é que a sociedade de trabalho temporário assume uma garantia da qualidade técnica e da efectiva aptidão da mão de obra cedida, comprometendo-se a ressarcir a contraparte pelos danos ocasionados por comportamentos inadequados dos trabalhadores utilizados nos equipamentos de que os mesmos se serviam para exercício das tarefas laborais a que estão adstritos. É certo que o poder de direcção do trabalhador compete , durante a execução do contrato, à empresa utilizadora: não se considera, porém, que esta circunstância permita, sem mais, afirmar que tal assunção voluntária de responsabilidade por parte da sociedade de trabalho temporário limitaria, em termos desproporcionados e insuportáveis, a esfera jurídica e económica desta, por estar privada de um controlo efectivo das concretas condições de trabalho pelo trabalhador temporário: é que, como é evidente, se for alegado e provado que os danos causados nos equipamentos da contraparte se deveram, em concreto, não a uma deficiente ou negligente actuação do trabalhador cedido, mas antes ao estrito cumprimento das directivas ou ordens emanadas da empresa utilizadora, estará obviamente afastada a aplicabilidade da cláusula 11ª, por, neste caso, a causa adequada do dano radicar, afinal, não num comportamento negligente do trabalhador, mas num comportamento inadequado dos órgãos ou agentes com poder de direcção da entidade utilizadora ; dito por outras palavras, é evidente que nenhuma responsabilidade poderia ser assacada à A. se se tivesse alegado e demonstrado que o veículo circulava com a caixa de carga levantada por tal ter sido determinado pelos funcionários ou agentes ao serviço da entidade utilizadora, com poder de direcção sobre o condutor/ trabalhador cedido… E, deste modo, considera-se que a dita cláusula de assunção de responsabilidade, funcionando no estrito âmbito da relação triangular em questão, reportando-se a danos causados em equipamentos conexionados com o exercício das típicas tarefas laborais do trabalhador cedido e pressupondo o incumprimento, imputável ao trabalhador, das específicas obrigações funcionais a que estava vinculado, nos termos dessa mesma relação contratual, não padece de nulidade por violação, nomeadamente, da norma constante do art. 280º do CC ou de qualquer outro preceito legal dotado de valor imperativo. 5. A segunda questão suscitada pela entidade recorrente prende-se com a parcela da decisão que considerou negligente o comportamento do trabalhador utilizado, por circular, com forte e grave incúria, de noite , com a caixa de carga do veículo parcialmente levantada. Apesar de o acórdão recorrido ser, no que respeita à apreciação desta questão, efectivamente muito lacónico na respectiva fundamentação, entende-se, todavia, que é possível interpretá-lo , de modo a apreender e reconstituir as razões substanciais que estiveram na sua base. Note-se que a própria A., na réplica que apresentou, não pôs em causa que constituísse erro evidente ou manifesta inconsideração no exercício da condução a circulação com a caixa de carga da viatura pesada levantada : o que se sustentou foi que tal circunstância se teria devido a facto fortuito, pelo qual não seria responsabilizável o respectivo condutor: em virtude do mau estado do piso, o veículo produziria solavancos, anormalmente intensos dentro da cabina de condução, levando a que o trabalhador tivesse tocado inadvertidamente e de forma momentânea na alavanca que acciona o sistema hidráulico da caixa do veículo, no preciso momento em que passava pelo obstáculo em que a caixa de carga levantada embateu. Sucede, porém, que a matéria de facto que corporizava esta verdadeira invocação de facto fortuito, alegadamente desresponsabilizador do trabalhador/condutor, oportunamente levada à base instrutória (pontos 22/29), foi tida como não provada. Ou seja: apenas se teve por demonstrado que a dita viatura circulava de noite com a caixa de carga parcialmente levantada, embatendo por isso no tabuleiro da passagem superior, o que determinou a produção do resultado danoso nessa viatura, alegado pela sociedade Ré. Ora, constitui jurisprudência reiterada e uniforme que, constatada a violação objectiva de certa disposição atinente ao exercício da condução, se presume, em termos de verdadeira prova de primeira aparência, decorrente de justificada presunção natural, a culpa do condutor quanto a tal infracção objectiva, cabendo-lhe o ónus de fazer a contraprova, demonstrando que a actuação ilícita ou irregular foi estranha à sua vontade. Foi exactamente isto que ocorreu no caso dos autos, inferindo a Relação um juízo de culpabilidade, com base nas regras de experiência, e naufragando a contraprova, ensaiada pela recorrente, com base em pretenso caso fortuito. Por outro lado, no caso peculiar dos autos, o juízo sobre a culpa não emerge propriamente da violação de normas legais ou regulamentares, mas antes da violação de um dever geral de diligência no exercício da condução no local do estaleiro onde estavam em curso obras de construção civil : não vem imputado ao condutor, pelo facto de circular nesse local, vedado ao trânsito comum, durante a noite, com a caixa de carga parcialmente levantada, uma contravenção específica ao CE, mas antes uma violação do dever geral de diligência na condução profissional de veículos do tipo do acidentado, com manifesta incúria e inconsideração para os riscos que resultam do aumento da altura do veículo e do perigo acrescido de colisão com possíveis obstáculos, inatingíveis por viatura com o seu volume e dimensões normais. Ora, como é sabido, constitui jurisprudência reiterada do STJ a que considera que não cabe nos poderes do Supremo a apreciação da culpa decorrente da inobservância dos deveres gerais de diligência, mas tão somente a culpa de cariz «normativo»,resultante da infracção de normas legais ou regulamentares (vejam-se, a título meramente exemplificativo, os acs. de 24/5/95 ,in CJ II/95 pg.293 ,de15/1/04 no p.03B3718 e de 11/1/2000,in sumários,37º,17 e de 10/9/09, P. 376/09.4YFLSB). Não se consideram, deste modo, violadas pela decisão recorrida as disposições legais invocadas pela entidade recorrente. 6. Nestes termos e pelos fundamentos apontados, nega-se provimento à revista. Custas pela recorrente.
Lisboa, 09 de Fevereiro de 2012 Lopes do Rego (Relator) Orlando Afonso Távora Victor
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