Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça | |||
Processo: |
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Nº Convencional: | JSTJ000 | ||
Relator: | BETTENCOURT DE FARIA | ||
Descritores: | INQUÉRITO PRELIMINAR DIREITO À INFORMAÇÃO | ||
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Nº do Documento: | SJ200403090038192 | ||
Data do Acordão: | 03/09/2004 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Tribunal Recurso: | T REL PORTO | ||
Processo no Tribunal Recurso: | 1027/03 | ||
Data: | 05/12/2003 | ||
Texto Integral: | S | ||
Privacidade: | 1 | ||
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Meio Processual: | REVISTA. | ||
Decisão: | CONCEDIDA A REVISTA. | ||
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Sumário : | I - Se um processo de inquérito se encontra já na fase de destruição, não existe, por parte dos serviços do Mº Pº a obrigação de o facultar para consulta a um interessado. II - Daqui que não exista nexo de causalidade entre o não facultar do processo nessas condições e os eventuais danos que a falta de consulta originou ao mesmo interessado. | ||
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Decisão Texto Integral: | Acordam no Supremo Tribunal de Justiça I Alegam que o seu marido e pai faleceu num acidente de viação, tendo sido levantado o respectivo auto de inquérito, o qual desapareceu, após o arquivamento. Este facto impediu a sua consulta, ficando, assim, os autores impedidos de aquilatar da necessidade de diligências adicionais, devendo o Estado assegurar as devidas indemnizações e as despesas que já realizaram. O réu contestou. Feito o julgamento, foi proferida sentença que absolveu o réu do pedido. Apelaram os autores, tendo visto acolhida em parte a sua pretensão, com a condenação do réu a pagar-lhe a quantia correspondente às despesas que haviam efectuado, para descobrir o paradeiro dos autos e aos incómodos que essa actividade implicou. Recorrem agora ambas as partes, sendo subordinado o recurso dos autores. Nas suas alegações de recurso apresentam aqueles as seguintes conclusões: recurso do réu 1- Um dos Senhores Desembargadores que votou o acórdão recorrido fez a seguinte declaração de voto: "votei a decisão, embora com dúvidas e sem prejuízo de, futuramente, alterar esta posição em resultado de mais profundo estudo". 2- Ora, tal posição assim expressa corresponde a uma não votação, 3- pois os acórdãos têm que ser decididos sem qualquer reserva e sem qualquer hesitação, quer o voto seja favorável, quer seja desfavorável. 4- Deste modo, apesar do acórdão recorrido estar subscrito por três Senhores Desembargadores, o mesmo apenas foi proferido por dois deles. 5- Sendo que um dos adjuntos o não votou, uma vez que a sua declaração corresponde a uma não votação. 6- O que viola o disposto nos artºs 8º nº 1 do CC e 156º nº 1 do CPC. 7- É, pois, tal acórdão juridicamente inexistente, por ter sido proferido apenas por dois Senhores desembargadores - artºs 57º nº 1 e 37º nº 1, ambos do LOFT, aprovada pela Lei 3/99 de 13.01 e 709º nºs 3 a 5 do CPC (um deles tem a função de Relator e os outros dois de Adjuntos). 8- Assim sendo in casu, não está constituído o Tribunal e daí a inexistência jurídica da decisão recorrida, por carência do poder jurisdicional do órgão que a proferiu. 9- Por sua vez, a inexistência jurídica é uma decisão aparente e que não produz quaisquer efeitos. 10- Caso assim se não entenda, então o voto em causa é nulo (artºs 8º nº 1 do CC e 157º nº 1, última parte e 158º nº 1 estes do CPC). 11- O que constitui nulidade processual, sendo que tal acto (voto nulo) acarreta a nulidade do acórdão recorrido - artºs 201º, 205º nº 1, 122º nº 1 alínea e), 123º nºs 1 e 3 e 711º nº 2, todos do CPC. 12- Acresce que o Estado Português foi condenado ao abrigo do disposto nos artºs 2º nº 1, 6º e 7º. Todos do DL 48.051 de 21.11.67. 13- O qual regula a responsabilidade civil extra-contratual do Estado e demais pessoas colectivas públicas, no domínio dos actos de gestão pública. 14- No caso em apreço, o Estado Português foi condenado por acto ilícito culposo. 15- Contudo, para que se verifique tal responsabilidade é necessário que se preencham os requisitos, ou pressupostos, clássicos da obrigação de indemnizar no âmbito do direito civil: facto, ilicitude, culpa, dano e nexo de causalidade. 16- Ora, no caso concreto, inexiste facto ilícito, inexiste nexo de causalidade entre o facto (desaparecimento do processo) e os danos patrimoniais e não patrimoniais, nos quais o Estado foi condenado. 17- Sendo que nem sequer se provou a existência de quaisquer danos morais resultantes de tal desaparecimento. 18- Não existe facto ilícito, porque, quando os autores pretendiam reabrir o inquérito preliminar, 19- Já o respectivo procedimento criminal se encontrava prescrito. 20- Na verdade, tendo os factos eventualmente integradores de ilícito criminal, ocorrido em 23.06.83, tendo sido dado como assente que a morte do marido e pai dos autores foi, segundo se crê, na sequência de um acidente de viação e, a ter havido crime, seria ele de homicídio por negligência - artº 136º do C. Penal de 1982 e artº 59º do C. da Estrada de 1954, então em vigor. 21- a prescrição do respectivo procedimento criminal verificou-se em 24.06.88 - artº 117º nº 1 alínea c) do CP de 1982 - . 22- Deste modo, em 22.10.96, já não podia ser reaberto o inquérito preliminar aqui em causa e entretanto desaparecido (nº 843/83 da 1ª Delegação do tribunal Judicial de Vila Nova de Famalicão), dada a prescrição do respectivo procedimento criminal. 23- Acresce que, de acordo com a Portaria 330/91 de 11.04, que regulava na altura a Conservação e Eliminação dos Documentos em Arquivo nos Tribunais Judiciais. 24- O inquérito preliminar desaparecido (nº 843/83) já devia ter sido destruído em 24.06.93, isto é, devia ter sido destruído 5 anos após a prescrição do respectivo procedimento criminal - 1º, 2º nº 1 2 Anexo, Tabela II nº 41 da Portaria 330/91. 25- Logo, aquando do pedido de reabertura do dito inquérito preliminar, já não havia por parte da Administração da Justiça qualquer dever de guarda arquivística do mesmo. 26- O mesmo resulta da Portaria nº 1003/99 de 10/11, que revogou a Portaria nº 330/91 de 11.04 - artºs 2º nº 2 e 3 alínea a) e Anexo I Tabela II nº 42 - conjugada com o artº 126º nº 1 alínea c) da Lei 3/99 de 13.01. 27- Assim sendo, com o desaparecimento do inquérito preliminar nº 843/83, não houve qualquer facto ilícito, uma vez que, quando foi requerida a sua reabertura, já não havia qualquer dever da sua conservação em arquivo (o respectivo procedimento criminal já se encontrava prescrito e a lei já determinava a sua eliminação/destruição). 28- Quanto aos danos patrimoniais não existe conexão entre as despesas pessoais levadas a cabo pelo mandatário dos autores no valor de € 1.496,39 e o desaparecimento do processo. 29- Na verdade, não existe causalidade adequada entre tal facto e tais danos, quer em concreto, quer em abstracto. 30- Pois na data em que aqueles pretendiam reabrir e consultar o mencionado inquérito já o respectivo procedimento criminal se encontrava prescrito, não podendo assim ser reaberto. 31- E, nessa altura já o mesmo devia estar destruído e eliminado. 32- Acresce que se os autores entendiam que não tinha sido feita Justiça pelo Tribunal, podiam e deviam ter requerido a reforma do processo extraviado, terem-se constituído Assistentes nos autos e formulado acusação desacompanhada do Mº Pº - artºs 4º §§ 2º, 4º e 5º do DL 35.007 de 13.10.45, e 348º, 387º e 388º todos do CPP de 1929. 33- Quanto aos danos não patrimoniais, tem aqui aplicação tudo quanto se disse relativamente aos danos patrimoniais. 34- Por último, da matéria de facto assente não existe qualquer facto que se refira e que se relacione com quaisquer danos morais que os autores tenham sofrido em consequência do desaparecimento do inquérito preliminar. 35- Por outro lado, os factos assentes e relacionados com danos morais, têm todos como causa adequada a morte do marido e pai dos autores e não o desaparecimento do aludido processo. 36- Deste modo, o acórdão recorrido violou, por erro de interpretação os artºs 22º e 217º da Constituição da República e os artºs 2º nº 1, 6º e 7º, todos do DL 48.051 de 21.11.67. recurso subordinado dos autores 1- Deverá eliminar-se a matéria do nº 10 da douta sentença em apreço, porque, para além do seu aspecto conclusivo, se traduz em matéria de facto que só poderia ser demonstrada por intermédio de documentos autênticos. 2- Assim, só através dum inquérito judicial, que nunca foi feito, é que se poderia chegar a tal conclusão (de que houve diligências). 3- Até porque poderia ter havido negligência por parte de quem tinha a guarda do mesmo processo, com a correspondente responsabilidade penal e ou disciplinar. 4- De outro modo, o Estado estava a ser Juiz em causa própria, afirmando e nunca demonstrando ter realizado tais diligências. 5- Com violação do princípio do contraditório. 6- E com a consequente nulidade absoluta. 7- As respostas não provadas não foram sujeitas a qualquer fundamentação, pelo que deverão ser anuladas (1º e 2º). 8- O Estado tem um dever de arquivo em relação a este tipo de processos. 9- Ora, com o desaparecimento do processo de inquérito, os autores ficaram impedidos de pedir a reabertura do mesmo. 10- A causa de pedir desta acção de indemnização derivou do facto do Estado não ter procedido à reforma do processo de inquérito criminal em tempo útil, impedindo que os autores formulassem o respectivo pedido de reabertura da investigação criminal. 11- Sendo o Mº Pº o único "dono" do processo criminal a este competia a iniciativa da sua reforma em face da denúncia feita pelos autores. 12- O Supremo pode exercer censura sobre a relação, sobre o modo como esta interpretou a matéria de facto (artº 722º do C. P. Civil). 13- No nosso ordenamento jurídico, desde há largas dezenas de anos, mais de cem anos, que existe por parte do Estado uma obrigação de arquivo especialmente disciplinada para os processos judiciais em sentido lato. 14- Mesmo após o prazo de conservação/arquivo, os documentos, processos e inquéritos só podem ser eliminados no decurso dum processo de eliminação, que termina com um acto de inutilização, tudo rodeado de rigoroso cumprimento de decisões e formalidades. 15- Só por absurdo do Ministério Público é que se poderá fazer equivaler o desaparecimento dum inquérito a um acto de inutilização, que de resto nunca poderia desaparecer. 16- Mesmo que se elimine um processo de inquérito, o respectivo processo de inutilização e auto respectivo terão sempre de ser conservados. 17- Estamos perante um acto ilícito culposo do Mº Pº, que implica responsabilidade do Estado, que existiria sempre na forma de responsabilidade objectiva. 18- Todos os danos invocados pelos autores derivam necessariamente do processo de inquérito. 19- Aos autores não pode ser exigida a prova impossível de demonstrar que, com a reabertura do inquérito, chegariam a um resultado que conduzisse à acusação do Mº Pº. 20- É ao Estado que competiria provar que os autores nunca encontrariam elementos probatórios novos para proceder ao pedido de reabertura do inquérito. 21- A única realidade a ter em conte é que os autores pretenderam proceder à reabertura do inquérito e este tinha desaparecido. 22- Desaparecimento este que é causa adequada de todos os danos sofridos pelos autores. 23- A negligência do Mº Pº foi ao ponto de ter demorado mais de 4 anos a pedir a reforma do processo de inquérito e, mesmo assim, só por causa desta acção de indemnização: o que até revelou "desprezo" pelo cumprimento da lei. 24- No douto acórdão da VTR Porto, não foram apreciadas as questões levantadas nas conclusões constantes dos pontos 1 a 7, pelo que padece de nulidade por omissão de pronúncia. 25- Foram violados os artºs: - 3º, 13º e 22º da C. Política; - 1º do C. Civil; - 1º, 2º, 3º, 653º, 668º e 712º do C. P. Civil; - 71º, 72º e 102º do C. Penal (por maioria de razão); - 335º do C. Penal; - 1º e segs. Do DL 447/88 de 10.12; - único da Portaria 330/91 de 11.04 e respectivo Regulamento de Conservação e Eliminação de Documentos em Arquivo nos Tribunais Judiciais (artºs 3º, 4º e Anexos); - 8º e 9º do DL 48.051 de 21.11.67. Corridos os Vistos legais, cumpre decidir II As instância deram por assentes os seguintes factos: 1 - Os autores são, respectivamente, viúva e filhos do falecido F. 2 - F faleceu em 23.06.83. 3 - Em circunstâncias nunca esclarecidas, mas que se crêem na sequência de um acidente de viação. 4 - Foi instaurado o IP 843/83, 1ª Del. TJ. VN Famalicão, para averiguar das circunstâncias desta morte. 5 - Após a prolacção pelo MºPº (e subsequente notificação) de vários despachos a determinar que os autos aguardassem a produção de melhor prova, veio a autora viúva suscitar a intervenção do Senhor Vice Procurador Geral da República: foi determinada a reabertura do inquérito, com a realização de várias diligências. 6 - Reaberto o inquérito, procedeu-se à realização destas mesmas, bem como de outras julgadas pertinentes, mas no final o Senhor Procurador da República que avocara o inquérito despachou da mesma sorte, a mandar que os autos aguardassem melhor prova. 7 - Em 22.10.96, a autora, através do seu actual patrono, tentou proceder à reabertura do inquérito. 8 - Mas o inquérito não foi encontrado nos arquivos do MºPº, entidade que o dirigiu e, quando foi procurado, justamente na sequência do requerimento apresentado pelo mandatário dos autores, onde também pedia a confiança do processo. 9 - E até o momento presente não foi possível localizá-lo, apesar de aturadas buscas empreendidas nesse sentido. 10 - Apesar de todas as diligências realizadas, também não puderam ser esclarecidas as circunstâncias que rodearam o afastamento do inquérito em causa do controlo da autoridade judiciária competente. 11 - Entretanto, o patrono da autora procedeu a diligências pessoais juntos dos serviços do MºPº nas comarcas de VN Famalicão e Santo Tirso e no TR Porto, sem que o processo tenha aparecido. 12 - Porém, o MºPº não procedeu à reforma dos autos. 13 - Ora, todas as diligências levadas a cabo pelo patrono já deram origem a despesas (honorários e encargos de escritório), avaliadas em quantia não inferior a 300.000$00. 14 - No entanto, os autores foram notificados dos despachos finais proferidos no decurso do IP em causa, nos quais foi determinado que ficasse a aguardar melhor prova. 15 - E, na sequência dessas notificações, não requereram a sua constituição como assistentes, nem formularam acusação independentemente do Mº Pº. 16 - Acontece que com a morte do marido e pai dos autores, sofreram estes um profundo abalo emocional e psíquico, por causa das circunstâncias em que a mesma ocorreu, sendo os filhos bastantes jovens, crianças. 17 - E, na altura dessa morte, o ordenado do falecido rondaria uma quantia não concretamente apurada , mas superior a 20.000$00, sendo certo que hoje seria mais elevada. 18 - Por isso mesmo, privados os autores desse montante, passaram eles a viver com bastantes mais carências, já que tiveram de se sustentar somente com o ordenado da 1ª autora, equivalente ao salário mínimo nacional. 19 - Tiveram dificuldades acrescidas para adquirir vestuário, alimentos e, por vezes, viviam com falta destes, ou através de donativos de terceiros. 20 - Contudo, se os autores tivesse o benefício do salário do seu falecido marido e pai, que por vezes fazia horas de trabalho extraordinário, viveriam e continuariam a viver com maior abundância, ou menos carências. 21 - O Estado requereu a reforma dos autos IP 843/83, 1ª Del MP, TJ, VN Famalicão, através da acção proposta, em 03.11.00, que correu termos sob o nº 523.00, no 1º Juízo de Competência Especializada Criminal do Tribunal Da Comarca, onde foi proferida sentença em 08.01.01, transitada em 24.01.01. III Apreciando recurso do réu 1- Pretende o recorrente que a declaração de voto aposta no acórdão recorrido por um dos senhores Desembargadores Adjuntos, pela forma como foi feita, integra uma não decisão. Deste modo, conclui que o referido acórdão é inexistente, dado ter sido votado apenas por dois juízes. Efectivamente, salvo o devido respeito, entendemos que é incorrecta a aludida declaração de voto. As dúvidas do julgador são legítimas e, do ponto de vista do cuidado posto na apreciação dos casos, até de louvar. Simplesmente, não as deve ele expressar, pois isso não corresponde ao que processualmente se espera do mesmo julgador. Na verdade, decidir é optar e não pode deixar de ficar clara essa opção. As declarações de voto são aceitáveis, mas apenas na medida em que contribuírem para a clareza da decisão. O que não é o caso dos autos, em que a declaração em apreço, deixa a impressão da pouca consistência da solução pela qual se enveredou. Queremos com isto dizer que uma declaração de voto em que se consignam as dificuldades do thema decidendum é uma atitude acertada e contribui certamente para a qualidade jurídica da decisão. Agora, aquilo que o julgador não pode fazer é transformar essas dificuldades num problema subjectivo de dificuldade em tomar uma decisão. Assim e salvo o devido respeito, não deveria o senhor Desembargador Adjunto ter elaborado a dita declaração pelo modo como o fez. Resta saber se o recorrente tem razão quando tira efeitos jurídicos processuais dessa incorrecção. O voto de concordância do mesmo Magistrado com a solução apontada existe e tanto basta para que haja decisão. Só assim não aconteceria se da citada declaração se inferisse uma abstenção. Acresce que, não tendo a decisão dos Adjuntos de ser fundamentada - artº 709º nº 3 do C. P. Civil - não se põe a questão da deficiência da fundamentação a que alude o recorrente, quando se refere ao disposto no artº 158º nº 1 desse código, que impõe a necessidade de fundamentar as decisões. Do ponto de vista processual o acórdão mereceu a aprovação dos dois Desembargadores Adjuntos que o deviam votar. Logo, nos termos do aludido 709º nº 3 foi devidamente decidido. 2- Estamos de acordo com as judiciosas considerações feitas no acórdão recorrido quando reconduz a questão da responsabilidade administrativa do Estado à da culpa de serviço, decorrente do mau funcionamento de um serviço público. E, como se julgou no AC deste STJ de 08.07.97 : "Neste campo da responsabilidade civil do Estado por facto do exercício do poder jurisdicional pode aceitar-se uma que seja emergente da má organização do sistema judicial, estruturado em moldes deficientes para a satisfação das necessidades do sector.". Só que, como se assinala no mesmo acórdão, há que complementar essa regra com os princípios gerais da responsabilidade civil, nomeadamente, com a necessidade da existência do facto ilícito e do nexo de causalidade entre o primeiro e os danos invocados. No caso dos autos, a ilicitude da actuação do serviço de justiça consistiria em ter extraviado um processo, facto que, obviamente, vai contra os deveres de cautela que lhe são exigíveis. No entanto, o mesmo processo já deveria ter sido destruído. Ou seja, a obrigação, por parte dos serviços do Mº Pº, de o facultar aos autores já havia cessado. Logo, a impossibilidade de consulta dos autos e os eventuais danos daqui derivados teriam sempre ocorrido, ainda que o extravio não se tivesse dado. A conduta do réu funcionou, pois, como causa virtual do evento danoso, uma vez que a sua causa real foi outra, o ter cessado o dever de manutenção dos autos em arquivo. Senão, vejamos a hipótese contrária. Se o processo não se houvesse extraviado e tivesse sido facultado aos autores, poder-se-ia até considerar existir uma falta funcional daqueles serviços, uma vez que estava a facultar ao público documentos que já só tinham uma finalidade interna e que era a da sua destruição. Ora, a causa virtual é irrelevante - cf. Antunes Varela Obrigações 2ª ed. I 498 - . Donde se segue que não existe nexo de causalidade entre o extravio em causa e os prejuízos apresentados. Pelo que, no caso vertente, não pode haver responsabilidade do Estado. Termos em que procede integralmente o recurso do réu. recurso subordinado dos autores 1- Pretendem os recorrentes que o ponto 10 dos factos assentes só podia ser dado por provado através de documento autêntico. Alegam que apenas com um inquérito formal ao desaparecimento do processo, se poderiam atestar validamente as razões do extravio. A verdade, porém, é que o aludido ponto 10 não consigna qualquer facto para cuja constatação a lei exija meio específico de prova. Nem se compreendem os receios dos autores. Nesse ponto não se atesta que os serviços do Ministério Público actuaram correctamente. Como também não se afirma o contrário. Limita-se ele a constatar uma realidade. A saber: que se desconhecem as causas de não ter sido encontrado o processo; que foram feitas diligências para as determinar. E dizer que houve diligências, não significa que houve as que devia haver, mas tão só que pelo menos algumas existiram. Nada há de conclusivo no sentido de desculpabilizar a conduta de magistrados ou funcionários. Nem houve aqui qualquer violação dos princípios da igualdade ou do contraditório. Como qualquer outro litigante o réu Estado alegou ter feito diligências, a parte contrário foi livre de contraditar tal facto e o tribunal julgou provadas tais diligências. A questão que os recorrentes levantam é outra. É uma questão jurídica decorrente dos factos assentes e que é a de ser suficiente ou não, para averiguar da diligência do réu, ter este simplesmente provado as diligências sem as especificar. Mas isto nada tem a ver com a correcção com que foi fixada a matéria de facto. Aliás, estranha-se que os autores tenham mudado de posição falando em factos que só se provariam por documentos e que portanto não estariam provados, quando é certo que na réplica os consideram provados por confissão. Foi essa a razão de terem sido levados á especificação: "Apesar das diligências realizadas, não puderam ser esclarecidas as circunstâncias que rodearam o afastamento do inquérito em causa do controlo da autoridade judiciária competente." - artº 6º da contestação - . "Aceita-se a "confissão" constante dos nºs 4, 5 e 6 da douta contestação." - artº 1º da réplica - . É certo que a confissão do Mº Pº não tem os efeitos cominatórios previstos no artº 358º do C. Civil, mas aceite, integra a prova por acordo do facto a que respeita, nos termos dos artºs 490º e 505º do C. P. Civil. 2- Alegam os recorrentes que houve omissão de pronúncia, na medida em que pediram em 2ª instância a eliminação do ponto referido em 1 e, no entanto, o acórdão recorrido é omisso quanto a esta sua pretensão. A matéria de facto em apreço reporta-se nitidamente ao período posterior ao pedido de reabertura do inquérito. Quanto a este período, a Relação acolheu integralmente a pretensão dos autores, ao condenar na quantia que especificamente reclamaram para o ressarcimento das despesas que tiveram na tentativa de descobrir os autos. Pelo que tem de se entender que considerou prejudicada a questão, uma vez que o seu não conhecimento não impedia de dar total satisfação ao peticionado. Ou seja, considerou-se que não era questão essencial ou decisiva para a decisão da causa. Como efectivamente não o foi. Deste modo, não houve omissão de pronúncia. 3- Só por lapso é que os recorrentes podem referir que não existe fundamentação às respostas aos quesitos 1º e 2º. Ela é clara e consta de fls. 500 e 501 dos autos. Quanto ao facto da questão ter sido suscitada em 2ª instância e sobre ela não se ter pronunciado a decisão sob recurso, valem aqui inteiramente os argumentos expendidos em 2, uma vez que os factos em apreço reportavam-se também àquele segmento do pedido que obteve provimento. 4- Sobre a questão de fundo, remete-se para o que se consignou a propósito do recurso do réu. Acrescenta-se que o dever de arquivo estava extinto. Consequentemente, não impendia sobre o Mº Pº o dever de pedir a reforma dos autos. A reforma efectuada para efeitos do presente processo é um caso excepcional e específico. Por outro lado, ao se fazer depender a extinção daquele dever de arquivo do facto do inquérito se encontrar em fase de destruição, não significa a equiparação do extravio ao auto de inutilização. Houve uma infracção ao dever de boa gestão dos arquivos. Só que essa infracção é interna ou disciplinar e não tem a faculdade de fazer renascer um direito de consulta que já estava precludido. Nem seria a ficha de inutilização que satisfaria as necessidades de consulta dos autores. Com o que improcede o recurso dos autores. Pelo exposto, acordam em conceder a revista do réu e em negar a dos autores e, em consequência, revogando parcialmente o Acórdão recorrido, absolvem o réu do pedido. Custas pelos autores. Lisboa, 9 de Março de 2004 Bettencourt de Faria Moitinho de Almeida Ferreira de Almeida |