Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça | |||
Processo: |
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Nº Convencional: | JSTJ000 | ||
Relator: | LUCAS COELHO | ||
Descritores: | CESSÃO DE CRÉDITO CONFUSÃO FIADOR DIREITO DE REGRESSO | ||
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Nº do Documento: | SJ200403110015982 | ||
Data do Acordão: | 03/11/2004 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Tribunal Recurso: | T REL LISBOA | ||
Processo no Tribunal Recurso: | 7100/02 | ||
Data: | 11/26/2002 | ||
Texto Integral: | S | ||
Privacidade: | 1 | ||
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Meio Processual: | REVISTA. | ||
Decisão: | NEGADA A REVISTA. | ||
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Sumário : | I - Elemento típico da cessão de créditos na configuração do artigo 577.º do Código Civil é que o cessionário seja um «terceiro», diferente, por conseguinte, do próprio devedor; II - É consequentemente nulo, à luz do artigo 280.º, n.º 1, por contraditoriedade do seu objecto com o n.º 1 do artigo 577.º, o negócio de cessão pelo qual o credor transmite o crédito ao devedor em contrapartida de certo preço; III - Aliás, a transmissão do crédito nestas condições implicaria a cumulação das qualidades de devedor e de credor da mesma obrigação na esfera do pretenso cessionário, com a consequente extinção do crédito e da dívida por confusão (artigo 868.º); IV - Pelas razões subsidiariamente indicadas em II e III, o crédito objecto da virtual cessão não pode ser oposto em compensação a outro credor do pretenso cessionário, por inexistência em qualquer caso de crédito algum susceptível de compensação nos termos do artigo 847.º, n.º 1, alínea a); V - Maxime, quando a posição do credor ao qual é oposta a compensação deriva de exercício do direito de regresso por cumprimento acessório, como fiador, de obrigações contratuais do pretenso cessionário, e a sua posição de devedor do crédito virtualmente cedido emerge de condenação acessória em precedente acção, como fiador do alegado cessionário no mesmo contrato, a satisfazê-lo ao pretenso cedente. | ||
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Decisão Texto Integral: | Acordam no Supremo Tribunal de Justiça: I Neste sentido aduz, efectivamente, que os embargados foram condenados, por sentença com trânsito proferida no processo n.º 7829, da 3.ª Secção, da 1.ª Vara Cível de Lisboa, a pagar à "D - Sociedade Financeira de Locação, S.A.", com sede em Lisboa, a quantia de 7 441 564$00, acrescida de juros vencidos no montante de 1 353 564$00 e vincendos, e a embargante adquiriu este crédito à D por «contrato de transmissão de crédito», titulado por documento escrito junto com a petição (fls. 10), entre ambas celebrado a 6 de Dezembro de 2000 Consta das cláusulas segunda e terceira desse contrato que a cessão é feita pelo preço de 15 000 000$00, dos quais 100 000$00 pagos no acto da celebração e o restante no prazo de 30 dias.. Contestaram os embargados dizendo, em suma, que o crédito accionado no citado processo teve a sua fonte em contrato de locação financeira no qual a D figurava como locadora e a embargante como locatária, tendo-se os embargados constituído fiadores das obrigações por esta aí assumidas. Incumprido o contrato pela locatária no tocante ao pagamento das rendas, importando contratualmente acréscimos de indemnização e juros, a D demandou a ora embargante como devedora e os aqui embargados como fiadores, só estes vindo, porém, a ser condenados porque a autora desistira entretanto da instância quanto à locatária devedora. Nestes termos, a aquisição do crédito pela própria devedora operou a confusão na mesma pessoa das qualidades de credor e devedor, extinguindo o crédito e a dívida, e tornando inadmissível a compensação. Os embargados pediram a condenação da embargante como litigante de má fé em multa e indemnização não inferior a 1 000 contos, por terem deduzido embargos cuja falta de fundamento de facto e de direito bem conheciam. Findos os articulados foi proferida sentença, em 26 de Abril de 2001, que julgou improcedentes, quer os embargos, por um lado, quer a pretensão de condenação da embargante como litigante de má fé, por outro lado. Apelou a embargante na parte desfavorável Da improcedência da litigância de má fé não recorreram, ao invés, os embargados, embora reiterassem a questão na contra-alegação., sem sucesso, vindo a Relação de Lisboa a negar provimento à apelação, confirmando a sentença. Do acórdão neste sentido emitido, em 26 de Novembro de 2002, traz a embargante a presente revista, cujo objecto, considerando a respectiva alegação e suas conclusões, à luz da fundamentação da decisão recorrida, consiste em saber se o crédito invocado pela embargante como adquirido por cessão da D, e tendo a sua fonte no contrato de locação financeira, pode ser objecto de compensação com o crédito exequendo II 1. A Relação considerou provada a factualidade já considerada assente na sentença, a qual, não tendo sido objecto de impugnação ou modificação e devendo aqui persistir inalterada, convém a título elucidativo transcrever, prescindindo-se da remissão facultada pelo n.º 6 do artigo 713.º do Código de Processo Civil:1.1. «A embargante celebrou com a D o contrato de locação financeira mobiliária que constitui fls. 4 a 10 dos autos principais em 18 de Julho de 1991, tendo por objecto uma viatura ‘MAN’ com a matrícula PQ e um semi-reboque com a matrícula L-....; 1.2. Por instrumento de fiança outorgado em 24 de Julho de 1991 os embargados declararam-se fiadores de todas e quaisquer obrigações que para a embargante resultavam do aludido contrato de locação financeira; 1.3. «No processo principal instaurado pelos fiadores contra a locatária esta foi condenada a pagar aos embargados a quantia de 6.149.192$00 referentes às três primeiras rendas e parte da quarta e respectivos juros vencidos e vincendos; 1.4. «A "D" fizera distribuir em data anterior contra a embargante e contra os ora embargados acção declarativa sob a forma ordinária a qual correu termos sob o n.° 7829 pela 3.ª secção da actual 1.ª vara cível desta comarca, pedindo a sua condenação a pagarem-lhe as rendas vencidas, indemnização e juros emergentes do incumprimento pela locatária do mesmo contrato de locação financeira; 1.5. «Nessa acção a autora desistiu da instância relativamente à aqui embargante, prosseguindo os autos quanto aos ora embargados que a final foram condenados a pagar à autora D a quantia de 7 441 026$00 e juros; 1.6. «Em contrato documentado a fls. 10 e verso a embargante declarou adquirir à D o crédito que lhe foi reconhecido no aludido processo da 1.ª Vara, pelo preço de 15 000 000$00, declarando a titular ceder-lho pela mencionada quantia.» 3. Com base na matéria de facto assim apurada, o julgamento da 1.ª instância, em síntese, como inicialmente se deixou entrever, foi no sentido de que a embargada, ao adquirir à locadora do contrato de locação financeira um crédito emergente de rendas e acréscimos de que ela mesma era devedora inadimplente como locatária nesse mesmo contrato, originara a confusão na sua própria pessoa das qualidades de credor e devedor da mesma obrigação, dando por isso lugar à extinção do crédito e da dívida - e isto evidentemente por força do artigo 868.º do Código Civil -, conducente à inadmissibilidade da compensação, exactamente por não haver nenhum crédito a compensar (artigo 847.º do mesmo corpo de leis). 4. A Relação de Lisboa confirmou como sabemos a sentença, declarando inclusive que podia ter-se remetido para os fundamentos desta nos termos do n.º 5 do artigo 713.º do Código de Processo Civil. Entendeu em todo o caso não ficar por aí. Abstraindo de certas considerações argumentativas laterais, o que sobretudo interessa salientar é que o acórdão recorrido foi mais longe, ao ponto de questionar a admissibilidade do negócio de transmissão do crédito da D para a embargante sua locatária. Considerando, por um lado, o contrato de locação financeira entre a D e a embargante provado nos autos (cfr. supra, 1.1. e fls. 36 a 44) - de 18 de Julho de 1991 - e o instrumento da fiança igualmente provado (supra, fls.48) - de 24 de Julho do mesmo ano -, pelo qual os embargados se declararam fiadores de todas e quaisquer obrigações que para a embargante resultavam desse contrato, concluiu-se no aresto sub iudicio que a embargante se constituíra devedora principal, revestindo natureza acessória a obrigação dos embargados. Sendo, por conseguinte, a embargante principal devedora da D, esta não podia ter-lhe cedido o crédito, visto que não se verificavam os requisitos de admissibilidade da cessão previstos no artigo 577.º do Código Civil, nem, por isso mesmo, os requisitos da compensação definidos no artigo 847.º 5. Da decisão dissente a embargante mediante a presente revista, concentrando a respectiva alegação nas 36 conclusões seguintes: 5.1.«A validade do contrato que a embargante celebrou com a D - contrato de locação financeira mobiliária que constitui fls. 4 a 10 dos autos principais, em 18/7/91, tendo por objecto uma viatura ‘MAN’, matrícula PQ e um semi-reboque com a matrícula L-.... - sempre foi impugnada pela embargante; 5.2. «O local próprio para decidir sobre questões da validade deste contrato terá de ser uma acção em que estejam intervenientes a embargante e a D; 5.3. «A sentença nestes autos - transitada em julgado - não constitui, porém, caso julgado fora do processo respectivo, nos termos do artigo 96.°, n.° 2, do Código de Processo Civil; 5.4. «O facto de estar assente nestes autos que foi celebrado um contrato entre a D e a embargante, não permite atribuir valor jurídico aos actos praticados entre a D e a embargante; 5.5. «Terá de ser no âmbito das relações entre a D e a embargante que a validade e eficácia do contrato de locação financeira terá de ser dirimida, naturalmente quanto à responsabilidade da embargante pelo pagamento das obrigações emergentes desse contrato; 5.6. «O contrato de cessão de crédito celebrado entre a D e a embargante tem o valor e o sentido que emanam do seu conteúdo e não outro (cfr. artigos 236.° e segs. do Código Civil); 5.7. «Assim, a embargante, ora recorrente, não pagou qualquer dívida, à D; 5.8. «Não faz sentido o contrato de transmissão contratual junto a fls., se a D considerasse a embargante sua devedora; 5.9. «Esse contrato de transmissão de crédito junto a fls. mostra, pelo menos, que a D e a embargante entendem que do contrato de locação mobiliária não emergem dívidas para a embargante; 5.10. «A desistência do pedido não pode, igualmente ter outro significado; 5.11. «A embargante não era devedora e adquiriu o crédito como modo de poder evitar a execução dos seus bens; 5.12. «Na verdade, a embargante adquiriu o crédito da D sobre os embargados e não um crédito da D sobre si mesma a embargante; 5.13. «Enquanto o crédito da D sobre os embargados se encontra reconhecido por sentença, nenhum crédito da D sobre a embargante está reconhecido; 5.14. «A douta sentença recorrida faz com que seja reconhecido neste processo, em que são partes a embargante e os embargados, uma dívida da embargante para com a D; 5.15. «Esta situação não é possível, pois violaria o princípio do caso julgado; 5.16. «A noção, errada, que houve pagamento da dívida pela embargante, é que fundamenta o acórdão recorrido. mas não existiu pagamento porque nem a D se considera credora da embargante, nem esta devedora daquela; 5.17. «O contrato celebrado entre a D e a embargante tem de ser considerado nos seus precisos termos; 5.18. «É certo que nos autos a exequente não logrou provar que esta fiança não era uma obrigação subsidiária e acessória do contrato principal; ou seja, não ficou provado que da ‘fiança’ não advinham direitos contra a exequente - forçosamente esse contrato celebrado entre a D e os embargados não será uma fiança logo que se mostre que o contrato principal não é válido; 5.19. «Todavia, esse facto não impede a exequente de o poder demonstrar noutro processo; 5.20. «Se a questão do valor do contrato celebrado entre a D e a exequente está em aberto, e se a questão da validade do contrato de fiança - e se sob o mesmo contrato não subsistia o contrato principal - também está, da presente acção não decorre nem pode decorrer que ao embargado, enquanto fiador, é lícito recusar o cumprimento enquanto o credor não tiver excutido todos os bens do devedor sem obter a satisfação do seu crédito; 5.21. «O embargado no processo em que foi condenado a pagar à D, e perante a desistência da instância no processo contra a aqui embargante, não o fez; 5.22. «E na execução para pagamento da quantia em que foi condenado, de Esc.: 7 441 026$00, acrescida de juros de mora até total pagamento também não veio exercer esse direito; 5.23. «Mas, se está certo do seu direito nada o impedirá de o ver reconhecido perante as três partes: D, embargante e embargados; 5.24. «Verificam-se os requisitos dos artigos 847.° e segs. do Código Civil, para que tenha lugar a compensação; 5.25. «O crédito da embargante é exigível judicialmente e não procede contra ele excepção peremptória ou dilatória de direito material; 5.26. «Na verdade, não se verifica qualquer excepção dilatória que o tribunal deva conhecer oficiosamente; 5.27. «Quanto às peremptórias - que consistem na invocação de factos que impedem, modificam ou extinguem o efeito jurídico dos factos articulados pelo autor - o tribunal apenas conhece oficiosamente aqueles factos cuja invocação a lei não torne dependente da vontade do interessado; 5.28. «Não cabem, precisamente, neste conhecimento oficioso, pois dependem da vontade do interessado, a recusa do cumprimento pelo fiador, enquanto o credor não tiver excutido todos os bens do devedor sem obter a satisfação do seu crédito, ou a apreciação dos direitos do credor, relativamente à sub-rogação; 5.29. «Acresce que ambos os créditos são em dinheiro, sendo o do embargado de maior valor; 5.30. «O artigo 851.° afasta do âmbito da compensação, no n.° 1, as dívidas de terceiros ao declaratário e, no n.° 2, os créditos do declarante sobre terceiros (cfr. STJ, 26-06-1980; BMJ, 298.° - 293); 5.31. «No caso dos autos, há reciprocidade de créditos pois o crédito da D sobre o declaratário, nem é uma coisa nem a outra: era um crédito de terceiro sobre o declaratário, que o declarante adquiriu de modo a poder efectuar a compensação; 5.32. «Dizem os embargados que efectuado esse pagamento terão direito de regresso sobre a embargante: esse direito de regresso terá de ser declarado em acção própria, uma vez que na acção em que o mesmo foi apreciado houve absolvição da instância por parte da embargante, ora recorrente; 5.33. «Não podem é os embargados querer beneficiar nestes autos do que nunca foi apreciado em acção em que estivessem como partes a D e a ora embargante; 5.34. «Na verdade, não há identidade de sujeitos, nem de pedido, apenas da causa de pedir; e quanto a esta, tendo as respostas aos quesitos sido ‘não provados’, há a possibilidade de se apurar a efectiva realidade da relação jurídica controvertida; 5.35. «O douto acórdão recorrido violou, consequentemente, o disposto nos artigos 96.º, n.° 2. do Código de Processo Civil, o princípio do caso julgado, 236.° e segs., 577.°, e 847.° e segs. do Código Civil; 5.36. «Consequentemente, deve ser dado provimento ao presente recurso de revista e declarada a procedência dos presentes embargos; ou, pelo menos, mandar seguir os embargos de modo a ser determinado se contra o crédito invocado pela embargante procede alguma excepção de direito material». 6. Os recorridos contra-alegam, pronunciando-se pela confirmação do acórdão sub iudicio. III Nos termos expostos, coligidos os necessários elementos de apreciação, cumpre decidir.Como inicialmente se adiantou, o objecto da presente revista compreende a questão da admissibilidade da compensação fundamento dos embargos, em necessária conexão com o denominado «contrato de transmissão de crédito», pelo qual a D cedeu à embargante o crédito sobre os embargados emergente do contrato de locação financeira. 1. Na abordagem da temática assim esboçada, desde logo nuclearmente se recordará haver a 1.ª instância entendido que a embargada, ao adquirir à locadora do contrato de locação financeira um crédito emergente de rendas por ela mesma devidas como locatária, assumira em sua própria pessoa as qualidades de devedor e credor da mesma obrigação, na acepção do artigo 868.º do Código Civil, verificando-se a extinção do crédito e da dívida por confusão, e a consequente inviabilidade da compensação, visto inexistir crédito algum a compensar. A Relação de Lisboa, confirmando a sentença, foi, por sua vez, mais fundo, questionando o próprio contrato de cessão do crédito para a locatária/embargante, posto que sendo esta a principal devedora da obrigação, não se integram os requisitos delineados no artigo 577.º do Código Civil, nem, por isso mesmo, os requisitos da compensação definidos no artigo 847.º 2. A nossa propensão é também neste sentido. O denominado «contrato de transmissão de crédito», mercê do qual a embargante se pretende cessionária do crédito da D, não está na verdade em sintonia com os requisitos da cessão tipificados no aludido normativo. Elemento típico nuclear e essencial da cessão de créditos é que o cessionário seja um «terceiro», diferente, por conseguinte, do próprio devedor. Neste sentido se observa, efectivamente, que a figura da cessão consiste «na substituição do credor originário por outra pessoa, mantendo-se inalterados - frisamos - os restantes elementos da relação obrigacional», isto é, «não se produz a substituição da obrigação antiga por uma nova, mas uma simples modificação subjectiva que consiste na transferência daquela pelo lado activo» (3), pressupostos que uma cessão de crédito ao próprio devedor refutaria. Aliás, na mesma linha, é na Alemanha assaz sugestiva a expressão Gläubigerwechsel (à letra, troca, ou mudança de credor), pela qual em corrente terminologia doutrinária também se designa o instituto (4). Não é quiçá impensável um similar negócio entre credor e devedor susceptível de ser interpretado no sentido de um cumprimento da obrigação, Hipótese, realmente, em que a extinção do crédito furtaria viabilidade à compensação. Neste conspecto evocaram as instâncias a ideia - a nosso ver talvez hiperbolizada na alegação da revista - de que a embargante «não fez mais do que pagar» à D o que lhe devia. Na perspectiva, porém, que nos interessa, de uma verdadeira transmissão do crédito, em sentido técnico, para a esfera da cessionária embargante, viabilizando a compensação, como esta sustenta, das duas uma: ou a cessão é nula por contraditoriedade do seu objecto com o artigo 577.º, n.º 1, do Código Civil (artigo 280.º, n.º 1 deste mesmo diploma) - solução para que, tudo ponderado, nos inclinamos -, ou a pretensão da sua validade esbarraria necessariamente com a consequência da confusão desde cedo excepcionada na contestação e depois acolhida na sentença. Deve de qualquer modo reconhecer-se que em nenhum dos casos seria possível a compensação. Aliás, a tese da embargante acerca do contrato em apreço - transmissão/cessão negocial do crédito, repete-se, do credor para o devedor - é de tal modo inédita, que os autores nem a referem (5). 3. Não se objecte com a violação do princípio do caso julgado, nem se argumente que os embargados não podem nestes embargos prevalecer-se do contrato de locação financeira, ou que a sua validade e eficácia não pode aqui ser discutida, mas apenas noutro processo em que seja também parte a D, como a embargante procura sustentar na alegação. Quanto ao caso julgado, porque a única decisão com trânsito que de algum modo pode haver sido utilizada nestes embargos - em termos que não se vê como possam ser questionados - é a sentença proferida em 15 de Setembro de 2000 no processo principal n.º 675/94, da 4.ª Vara Cível, 3.ª Secção, movido à embargante pelos embargados, que estes presentemente intentam executar, sem qualquer projecção subjectiva extraprocessual susceptível de atingir, nomeadamente, a posição jurídica da D, ou as relações entre esta e a embargante. Quanto ao contrato de locação financeira, por seu turno, não são legítimas dúvidas de que pode e deve ser tomado em consideração nos presentes embargos, assistindo aos embargados a faculdade de a ele se reportarem na defesa dos seus direitos de exequentes. Com efeito, as soluções a que vem de se chegar, conducentes à inadmissibilidade da compensação, fluem exclusivamente das relações entre os embargados e a embargante emergentes da fiança às obrigações por esta assumidas nesse contrato, em nada implicando as relações da embargante com a D - salvo evidentemente no tocante ao contrato de cessão que integra a causa de pedir dos presentes embargos. Basta salientar que não se trata apenas de a locação financeira estar assente nestes autos, como aduz a recorrente (cfr. supra, II, 5.4.). Esse contrato integrou, mais do que isso, a causa de pedir (complexa) da acção declarativa principal referenciada há instantes (cfr. o ponto de facto supra, II, 1.3.), constituída pelos factos integradores do direito de regresso que os embargados aí exerceram contra a embargante na posição jurídica, precisamente, de fiadores das obrigações dela como locatária, a saber: o contrato de locação financeira, o negócio da fiança, e o pagamento efectuado pelos embargados à locadora D de rendas incumpridas pela embargante. O que tudo elucidativamente transparece da sentença exequenda - junta pela recorrente com a alegação da revista (fls. 173 /178) -, a qual, com esses fundamentos, condenou a aqui embargante a pagar aos embargados a quantia ora em execução, por, na qualidade de fiadores dela, terem ficado sub-rogados no respectivo crédito da locadora D (artigo 644.º do Código Civil). Ora, evidentemente que o direito e a obrigação accionados na acção declarativa tiveram a sua génese no contrato, não emergiram da sentença, que em razão da fonte se limitou a declará-los e a condenar no cumprimento com força executiva. Acresce que a asserção segundo a qual estão aqui em causa essencialmente as relações entre os embargados e a embargante, permanecendo intocada a relação entre esta e a D, sai inclusivamente reforçada quando se chame à colação a acção n.º 7829 da 1.ª Vara Cível, 3.ª Secção, movida pela locadora (supra, ponto de facto II, 1.4.). Como refere a sentença da 1.ª instância nestes embargos (fls. 75/76), os embargados foram ali condenados no crédito que aqui se pretende compensar, «na qualidade de fiadores da embargante». Quer isto dizer que a embargada é a principal devedora do crédito que pretende haver adquirido, sendo a obrigação dos embargados/fiadores meramente acessória dessa. A «nota importantíssima da acessoriedade, que a disposição introdutória da fiança no Código Civil (artigo 627.º, n.º 2) intencionalmente salienta», - ponderam os autores - significa que a obrigação assumida pelo fiador «é a obrigação do devedor» e não outra. Não devendo, aliás, confundir-se acessoriedade com subsidiariedade, a obrigação do fiador é acessória, em princípio, «mesmo quando não goze do benefício da excussão» (6). Também por este lado, aliás, estão unicamente em causa os direitos e obrigações recíprocos da embargante e dos embargados que uma sentença veio a reconhecer com fundamento na sua fonte contratual. Tanto basta, assim o cremos para evidenciar a inadmissibilidade da cessão do crédito com base na qual vem fundamentada a compensação. 4. Termos em que, improcedendo as conclusões da alegação, acordam no Supremo Tribunal de Justiça em negar a revista, confirmando com as precisões de fundamentação expostas o acórdão recorrido. Custas pela recorrente (artigo 446.º do Código de Processo Civil). Lisboa, 11 de Março de 2004 Lucas Coelho Santos Bernardino Bettencourt de Faria ---------------------- (1) Consta das cláusulas segunda e terceira desse contrato que a cessão é feita pelo preço de 15 000 000$00, dos quais 100 000$00 pagos no acto da celebração e o restante no prazo de 30 dias. (2) Da improcedência da litigância de má fé não recorreram, ao invés, os embargados, embora reiterassem a questão na contra-alegação. (3) Mário Júlio de Almeida Costa, Direito das Obrigações, 9.ª edição revista e aumentada, Outubro de 2001, Almedina, Coimbra, Outubro de 2001, pág. 755. (4) Cfr., por exemplo, Dieter Medicus, Schuldrecht I, Allgemeiner Teil, 14. neubearb. Auf., C. H. Beck München, 2003, págs. 345 e segs.; Hans Brox/Wolf-Dietrich Walker, Allgemeines Schuldrecht, 29. aktualis. Auf., C. H. Beck, München, 2003, págs. 358 e segs., anotando (pág. 368, nota marginal n.º 22) que «o devedor não é participante na cessão», «não podendo os seus interesses ser prosseguidos através dela». (5) Vejam-se entre nós Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, vol. II, 7.ª edição (Reimpressão da 7.ª edição de 1997), Almeida, Coimbra, págs. 294 e segs.; Almeida Costa, op. cit., págs. 755 e seguintes. Na doutrina germânica Brox/ Walker, ibidem; Medicus, ibidem; Karl Larenz, Lehrbuch des Schuldrechts, B. I, Allgemeiner Teil, 14. neubearb. Auf., C. H. Beck, München, 1987, pág. 575, nota 1, refere é certo a possibilidade, aliás, controvertida, de um contrato de cessão de crédito entre credor e devedor, mas a favor de terceiro (zugunsten eines Dritten), uma figura contratual, ademais, através da qual o terceiro se torna directamente sucessor do cedente; é, todavia, verdade que se nos depara em Palandt/Heinrichs, Bürgerliches Gesetzbuch, 44. neubearb. Auf., C. H. Beck, München, 1985, pág. 432, 2, c), a seguinte nota ao respectivo § 398 do BGB: «Se o crédito for cedido ao devedor, extingue-se por confusão». (6) No sentido exposto, Antunes Varela, op. cit., págs. 479/484. |