Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça | |||
Processo: |
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Nº Convencional: | JSTJ00035629 | ||
Relator: | SOUSA GUEDES | ||
Descritores: | PRINCÍPIO DA LIVRE APRECIAÇÃO DA PROVA | ||
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Nº do Documento: | SJ199902250014583 | ||
Data do Acordão: | 02/25/1999 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Referência de Publicação: | BMJ N484 ANO1999 PAG288 | ||
Texto Integral: | S | ||
Privacidade: | 1 | ||
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Meio Processual: | REC PENAL. | ||
Decisão: | ANULADO O JULGAMENTO. | ||
Área Temática: | DIR PROC PENAL. | ||
Legislação Nacional: | CPP87 ARTIGO 127 ARTIGO 410 N2 C. | ||
Jurisprudência Nacional: | ACÓRDÃO TC DE 1996/11/19 IN DR IIS DE 1997/03/14. | ||
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Sumário : | I - A regra da livre apreciação da prova em processo penal não se confunde com apreciação arbitrária, discricionária ou caprichosa da prova, de todo em todo imotivável; o julgador, ao apreciar livremente a prova, ao procurar através dela atingir a verdade material, deve observância às regras da experiência comum utilizando como método de avaliação e aquisição do conhecimento, critérios objectivos, genericamente susceptíveis de motivação e controle. II - A consequência mais relevante da aceitação destes limites, no caso de serem infringidos, será o recurso para o STJ, com base nos fundamentos a que se reporta o artigo 410, do C.P.Penal. | ||
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Decisão Texto Integral: | Acordam no Supremo Tribunal de Justiça: 1. No Tribunal de Círculo de Gondomar respondeu o arguido A, com os sinais dos autos, acusado pelo Ministério Público da prática de um crime previsto e punível pelo artigo 21, n. 1 do Decreto-Lei n. 15/93, de 22 de Janeiro. Discutida a causa, e perante a matéria de facto que considerou provada, o Colectivo decidiu absolvê-lo do referido crime, ordenando que lhe fossem restituídos os objectos e quantia descritos a folhas 18 e 19 e declarando perdida a favor do Estado a heroína apreendida. 2. Recorreu desta decisão o Ministério Público. Na sua motivação pede o reenvio do processo para novo julgamento, porquanto: a) a versão do arguido, desacompanhada de qualquer prova, não merece credibilidade, não sendo plausível, lógico e sensato que, com a intenção confessada de fazer seu o porta-moedas achado, não procure um sítio discreto para verificar o seu conteúdo; b) o tribunal, acolhendo sem mais a versão do arguido, violou o senso comum e as regras da experiência, bem como o artigo 127 do Código de Processo Penal; c) de resto, deveria o tribunal, nos termos dos artigos 323 e 340 do Código de Processo Penal, averiguar a razão pela qual o arguido trazia consigo o dinheiro e objectos apreendidos e se trabalhava ou estava desempregado; d) omitindo qualquer referência à forma como formou a sua convicção de que tais valores não eram produto de tráfico de droga e pertenciam ao arguido, o tribunal violou o artigo 374, n. 2 do Código de Processo Penal, o que constitui o vício de insuficiência do artigo 410, n. 2, alínea a) do mesmo Código; e) o acórdão padece de contradição na medida em que, aceitando a versão do arguido, ordenou que lhe fosse restituído o porta-moedas que o mesmo disse não lhe pertencer e que devia ter sido declarado perdido a favor do Estado. Na sua resposta o arguido pugnou pela confirmação do decidido. 3. Procedeu-se à audiência com observância do formalismo legal e cumpre agora decidir. É a seguinte a matéria de facto que o Colectivo considerou provada: No dia 12 de Janeiro de 1998, pelas 17 horas, o arguido encontrava-se no interior do "Café Quebec", sito na Estrada D. Miguel, em S. Pedro da Cova, comarca de Gondomar, tendo sido submetido a uma revista por agentes da P.S.P.. O arguido tinha em seu poder, nesse momento, 43 embalagens de heroína, as quais se encontravam dentro de um porta-moedas de plástico, no bolso do blusão; a heroína contida nas embalagens tinha um peso líquido de 3,4 gramas. O arguido tinha também consigo a quantia de 21250 escudos, em dinheiro, bem como os objectos em ouro descritos a folha 18, designadamente uma cruz, uma pulseira e quatro anéis. Nas imediações do Café Quebec encontram-se habitualmente inúmeros consumidores de droga, que aí acorrem para adquirir estupefacientes. O arguido conhece as características da heroína e sabia que a sua detenção era proibida por lei; não tem antecedentes criminais; vive com uma companheira; tem três filhos de casamento anterior, que vivem com a mãe e para cujo sustento contribui; trabalha como montador de andaimes, auferindo 65000 escudos por mês; é tido por respeitador, bem comportado e trabalhador entre as pessoas das suas relações, não constando entre estas que mantenha ligações a actividades de tráfico de droga. Nada mais se provou e, designadamente, que o arguido detivesse a heroína livremente e com perfeito conhecimento de que esta se encontrava no interior do porta-moedas que foi encontrado na sua posse. 4. O tribunal colectivo fundamentou assim a sua decisão: "A convicção do Tribunal sobre a matéria de facto dada por provada fundou-se nas declarações do arguido, que a declarou, incluindo no que toca às suas condições de vida. Fundou-se ainda nas declarações das testemunhas B, C, D e E, amigos e vizinhos do arguido, que testemunharam do seu comportamento e aceitação na comunidade em que vive, e foram convincentes. Fundou-se, por fim, no C.R.C. do arguido, no documento de folha 4 e no relatório de exame toxicológico constante de folha 55. A matéria não provada foi assim avaliada dada a falta de prova feita sobre a mesma. Com efeito, o arguido justificou a detenção do porta-moedas esclarecendo que o tinha encontrado momentos antes, em plena Estrada D. Miguel, quando se dirigia ao referido café. Tê-lo-ia então guardado sem verificar o que continha, por pensar que conteria dinheiro e estar perto de outras pessoas, que poderiam reclamar esse porta-moedas. Mais declarou que, ao ser interpelado sobre o conteúdo do porta-moedas pelos agentes da P.S.P. que o revistaram, logo lhes declarou desconhecer o que continha, explicando o porquê da sua posse. Ora, os agentes da P.S.P. inquiridos em audiência, F e G, sempre referindo de que pouco se lembravam e por forma que tornou os seus depoimentos muito pouco credíveis, apenas souberam dizer que tinham revistado o arguido e encontrado a heroína. Assim, não se lembraram de qualquer declaração que o arguido lhes tivesse feito como justificação da detenção do porta-moedas e da droga, designadamente da justificação dada pelo arguido ou se, pelo contrário, não foi apresentada de todo qualquer justificação. Por outro lado, também não souberam explicar por que razão, no auto de notícia de folha 3, consta que detiveram o arguido pelas 17 horas, quando o teste rápido ao produto apreendido - que é necessariamente realizado após a detenção e apreensão - foi feito pelas 16 horas e 40 minutos, acabando por ser óbvio que nem se lembravam do momento da detenção do arguido, que este declarou ter ocorrido às 13 horas. Da pobreza desta prova resulta que, apesar da probabilidade duvidosa, por forma alguma é posta em causa a versão do arguido sobre a detenção do estupefaciente, sobre a forma como se apoderou do referido porta-moedas e o motivo por que não verificou o seu conteúdo, versão essa que é pelo menos, coerente. E daqui surge a dúvida sobre se o arguido efectivamente conhecia o conteúdo do porta-moedas que tinha consigo, a qual não pode deixar de resultar em seu benefício". 5. Como se vê, o tribunal colectivo absolveu o arguido com fundamento no princípio in dubio pro reo, o qual segundo a jurisprudência dominante neste Supremo Tribunal, é um princípio relativo à prova, à matéria de facto, estando por isso a sua aplicação excluída dos poderes de cognição deste mesmo tribunal. Todavia, o digno recorrente não esgrime contra a aplicação daquele princípio, antes invocando a violação do artigo 127 do Código de Processo Penal, na medida em que o tribunal recorrido, ao formar a sua convicção, terá infringido as regras da experiência. Violação que está estreitamente ligada ao vício previsto no artigo 410, n. 2, alínea c) do Código de Processo Penal. Ora, o arguido foi encontrado com um porta-moedas que continha 43 embalagens de heroína num local habitualmente frequentado por inúmeros consumidores e adquirentes de droga. Embora não tenha antecedentes criminais e não conste que mantivesse ligações com o tráfico de droga, o certo é que a credibilidade da sua versão fica muito abalada quando assume ter metido ao bolso um porta-moedas que diz ter achado, não revelando quaisquer escrúpulos em fazer sua, sem mais, coisa achada (facto típico previsto no n. 209, n. 2 do Código Penal). E, nas referidas circunstâncias, fica ainda mais abalada quando se atenta no dinheiro (algo importante para quem ganha tão pouco e tem tantos encargos) e nos objectos em ouro (sobretudo nos quatro anéis) que trazia consigo. Não pode esquecer-se, por outro lado, que o arguido foi submetido a revista pela G.N.R. e que a revista é ordenada (artigo 53 do Decreto-Lei n. 15/93) quando há "indícios de que alguém oculta ou transporta no seu corpo estupefacientes". Neste condicionalismo, e sem outros indícios, contraria notoriamente as regras da experiência comum concluir que o arguido estava na posse do porta-moedas contendo 43 doses de heroína sem saber o que se encontrava dentro do mesmo porta-moedas, pois o comportamento normal e instintivo de qualquer pessoa que acha um desses objectos (e o arguido achou-o em plena estrada D. Miguel) é abri-lo para ver o que contém. E os depoimentos dos agentes da P.S.P. não interferem neste raciocínio, pois nada esclarecem por falta de memória. A versão do arguido é posta em causa por ela própria, por contrariar as regras da experiência comum (o id quod plerunque accidit) e surgir como inverosímil e inaceitável, no contexto descrito, sem quaisquer indícios que a suportem. A melhor interpretação do artigo 127 do Código de Processo Penal assenta no seguinte ensinamento de Figueiredo Dias: "Se a verdade que se procura é uma verdade prático-jurídica e se uma das funções primaciais de toda a sentença (maxime da penal) é a de convencer os interessados do bem fundado da decisão, a convicção do juiz há-de ser, é certo, uma convicção pessoal - até porque nela desempenha uma função de relevo não só a actividade puramente cognitiva mas também elementos racionalmente não explicáveis e mesmo puramente emocionais - mas, em todo o caso, também ela uma convicção objectivável e motivável, portanto capaz de impor-se aos outros. Uma tal convicção existirá quando e só quando o tribunal tenha logrado convencer-se da verdade dos factos para além de toda a dúvida razoável" (v. Direito Processual Penal, I, 205). Por outro lado, também o Tribunal Constitucional (ac tc 1166/96 de 19-11-1996, in D.R., II, 06-02-97, debruçando-se sobre o artigo 127 do Código de Processo Penal, concluíu que "a regra da livre apreciação de prova em processo penal não se confunde com apreciação arbitrária, discricionária ou caprichosa da prova, de todo em todo imotivável. O julgador, ao apreciar livremente a prova, ao procurar através dela atingir a verdade material, deve observância às regras da experiência comum utilizando como método de avaliação e aquisição do conhecimento critérios objectivos, genericamente susceptíveis de motivação e controle". E acrescentou: "A consequência mais relevante da aceitação destes limites, no caso de serem infringidos, será o recurso para o Supremo Tribunal de Justiça com base no fundamento a que se reporta o artigo 410" do Código de Processo Penal. Ora, no caso presente, a conclusão do tribunal recorrido quanto a um dos elementos subjectivos do crime (consciência do arguido de que detinha consigo 43 embalagens de heroína) surge como manifestamente irrazoável a qualquer observador comum, por contrariar abertamente não só a normalidade dos comportamentos humanos como também as regras da experiência comum. Ficam assim patentes tanto a violação do artigo 127 do Código de Processo Penal como o erro notório na apreciação da prova, vício a que se refere a alínea c) do n. 2 do artigo 410 do mesmo diploma. 6. Nestes termos, e nos dos artigos 426, 433 e 436 do Código de Processo Penal, anula-se o julgamento e o acórdão recorrido e ordena-se o reenvio do processo para novo julgamento, quanto à totalidade do seu objecto, ficando prejudicadas as restantes questões postas na motivação do recurso. Sem tributação. Fixam-se em 10000 escudos os honorários à Excelentíssima Defensora nomeada em audiência, a pagar pelos Cofres. Lisboa, 25 de Fevereiro de 1999. Sousa Guedes, Hugo Lopes, Dias Girão, Carlindo Costa. Tribunal de Círculo da Comarca de Gondomar - Processo n. 20/98, de 20 de Outubro de 1998. |