Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça | |||
Processo: |
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Nº Convencional: | 3ª SECÇÃO | ||
Relator: | MAIA COSTA | ||
Descritores: | ADMISSIBILIDADE DE RECURSO COMPETÊNCIA DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA CÚMULO JURÍDICO DUPLA CONFORME FINS DAS PENAS IMAGEM GLOBAL DO FACTO MEDIDA CONCRETA DA PENA MENOR PENA PARCELAR PENA ÚNICA VIOLAÇÃO | ||
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Data do Acordão: | 03/18/2015 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
Privacidade: | 1 | ||
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Meio Processual: | RECURSO PENAL | ||
Decisão: | NEGADO O RECURSO | ||
Área Temática: | DIREITO PENAL - CONSEQUÊNCIAS JURÍDICAS DO FACTO / ESCOLHA E MEDIDA DA PENA / PUNIÇÃO DO CONCURSO DE CRIMES - CRIMES CONTRA AS PESSOAS / CRIMES CONTRA A LIBERDADE SEXUAL. | ||
Legislação Nacional: | CÓDIGO DE PROCESSO PENAL (CPP): - ARTIGO 400.º, Nº 1, F). CÓDIGO PENAL (CP): - ARTIGOS 71.º, 77.º, N.ºS 1 E 2, 77.º, N.º2, 164.º, N.º 1, A), E 177.º, N.ºS 1, A), 4 E 6. | ||
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Sumário : | I - O arguido foi condenado em 1.ª instância por 6 crimes de violação agravada p. e p. pelos arts. 164.º, n.º 1, al. a), e 177.º, n.ºs 1, al. a), 4 e 6, ambos do CP, na pena de 4 anos e 6 meses de prisão para cada um deles. II - Como esta decisão foi confirmada pela Relação e, por isso, se verifica dupla conforme, as penas parcelares são insuscetíveis de recurso para o STJ, por força do art. 400.º, n.º 1, al. f), do CPP. III - A determinação da medida concreta da pena única deve atender aos critérios gerais da prevenção e da culpa (art. 71.º do CP) e ainda ao critério especial previsto pelo n.º 1 do art. 77.º do CP: a consideração conjunta dos factos e da personalidade do agente, na sua relação mútua. IV - Ao tribunal impõe-se uma apreciação global dos factos, tomados como conjunto, e não enquanto somatório de factos desligados, na sua relação com a personalidade do agente. Essa apreciação deverá indagar se a pluralidade de factos delituosos corresponde a uma tendência da personalidade do agente, ou antes a uma mera pluriocasionalidade, de carácter fortuito ou acidental, não imputável a essa personalidade. V - A determinação da pena única, quer pela sua sujeição aos critérios gerais da prevenção e da culpa, quer pela necessidade de proceder à avaliação global dos factos na ligação com a personalidade, não é compatível com a utilização de critérios rígidos ou com formulas matemáticas ou abstratas de fixação da sua medida. VI - O arguido, depois de praticar a primeira violação na pessoa da ofendida, sua filha menor de 12/13 anos, repetiu a conduta mais 5 vezes, ao longo de 1 ano, sempre mediante a ameaça de represálias, até que foi surpreendido pela mãe da ofendida e sua mulher, em flagrante delito. VII - O arguido revela uma personalidade violenta no meio familiar, incapaz de respeitar a filha, como também a mulher, mostra-se completamente indiferente aos valores que o direito protege, não está demonstrada a atenuação da necessidade da pena e são enormes as necessidades de prevenção geral e de prevenção especial. VIII - Nestes termos, a pena conjunta fixada de 9 anos e 6 meses de prisão não se mostra excessiva e satisfaz as exigências de prevenção geral e especial, sem exceder a medida da culpa. | ||
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Decisão Texto Integral: |
Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:
I. Relatório
AA, com os sinais dos autos, foi condenado, por acórdão de 24.2.2014 do tribunal coletivo do 1º Juízo da extinta comarca de ..., pela prática de seis crimes de violação agravada, p. e p. pelos arts. 164º, nº 1, a), e 177º, nºs 1, a), 4 e 6, ambos do Código Penal (CP), na pena de 4 anos e 6 meses de prisão por cada um deles e, em cúmulo jurídico, na pena única de 9 anos e 6 meses de prisão. Dessa decisão recorreu o arguido, de facto e de direito, para o Tribunal da Relação do Porto, que, por acórdão de 15.10.2014, negou provimento ao recurso. Novamente inconformado, recorre agora o arguido para este Supremo Tribunal, concluindo: 2º - Pese embora o arguido ter confessado a prática do crime, não resulta das suas declarações que tenha confessado ter violado a sua filha por seis vezes, em datas indeterminadas dos anos 2005 e/ou 2006. 3º - Pelo que, face à ausência de prova, o Tribunal não deveria ter valorado a matéria constante no ponto 8º para efeitos da pena aplicada ao arguido, pelo que violado foi o Princípio do “in dubio pro reo”, consagrado no art. 32º, n.º 2, 1ª parte da C.R.P. Respondeu a sra. Procuradora-Geral Adjunta na Relação, dizendo:
Nas conclusões da motivação de recurso que apresenta o arguido limita-se a retomar e a repetir, quase ipsis verbis, toda a argumentação que expendeu no recurso da condenação na 1ª instância - aliás, tão pouco se dignou tentar rebater os argumentos e fundamentação do acórdão de que ora recorre. Porém, ao voltar a recorrer e reeditando os argumentos com que não logrou convencer o Tribunal da Relação - o qual rebateu, ponto por ponto, todas as questões pelo recorrente suscitadas - volta agora a ousar pedir não só a diminuição de cada uma das penas parcelares e da pena única e, ainda, que a mesma fique suspensa na sua execução. Face ao exposto, cumpre dizer que o acórdão recorrido deu resposta clara e proficiente às teses do recorrente. Evidentemente que entendemos que o recurso não merece provimento, muito em especial no que ao doseamento da mesma respeita e, sobremaneira, quanto ao pedido de suspensão da execução da mesma. Face à factualidade dada como provada é manifesto que é elevadíssimo o grau, quer da ilicitude, quer da culpa. São inúmeras as circunstâncias agravantes descritas no acórdão da 1ª Instância e, em nosso entender foram sobrevalorizadas as atenuantes, as quais se cingem à “confissão” e ao “decurso do tempo", parecendo, aliás, que estas funcionaram em exclusividade. Com todo o respeito por outros entendimentos, cremos que a condescendência e complacência para com os agressores deste tipo de criminalidade e em concreto para o recorrente, transcende a razoabilidade admissível. Na verdade, dificilmente se compreende que, o desvalor das condutas do arguido relativamente a uma menor na pré-adolescência, que, para mais, era sua filha, tenha, na prática, sido doseado da mesma forma, ou até mais benevolamente, que a grande maioria das penas aplicadas, em cúmulo jurídico, por crimes contra o património. Por nos parecer manifestamente desadequada e desproporcional, nomeadamente a pena resultante do cúmulo jurídico, "junto ao limite mínimo", como salientou este Tribunal da Relação, entendemos, por maioria de razão, que o recurso deve ser julgado improcedente, nomeadamente no que respeita ao pedido “desagravamento" da pena única e bem assim de cada uma das parcelares. A amplitude de um mínimo de 04 anos e um máximo de 13 anos e 4 meses permitia e no caso concreto exigia, e sem esquecer a almejada ressocialização, uma diferente e concreta medida das penas parcelares e muito em especial da pena única, em que as circunstâncias agravantes funcionassem efectivamente, ao invés do que cremos ter sucedido, com o pendor das atenuantes. Diga-se, aliás, que o dito decurso do tempo já beneficiou duplamente o arguido porque, não só esteve todos estes anos em liberdade e sem sentir a mínima penalização, como porque beneficiou de uma atenuante que funcionou como se de uma especial atenuação da pena se tratasse, ou seja, como se fosse merecedor de uma especial benevolência. Obviamente que, também no que respeita ao pedido de suspensão da execução da pena, entendemos que deve o recurso ser julgado improcedente, atentos os fins das penas com vista à satisfação das exigências de prevenção geral e especial que no caso se fazem sentir. Aliás, não fora a ausência de recurso por banda do Ministério Público e a proibição da reformatio in pejus, caberia aqui pedir a agravação de cada uma das penas parcelares e obviamente, da resultante do c. j. Posto, sumariamente, o nosso entendimento (e barrado que o mesmo está, no momento pelo disposto no art. 409º do CPP) e porque, na verdade, o acórdão desta Relação não merece qualquer censura, dado que analisou, em todos os seus aspectos, a natureza, o sentido e a extensão de cada uma das questões suscitadas pelo recorrente, fazendo-o de forma detalhada, profunda e exaustiva, nada mais nos resta dizer do que para a respectiva fundamentação remeter. Pelo exposto, não se vendo que o acórdão deste Tribunal da Relação padeça de qualquer vício que justifique a alteração da decisão, entendemos que o mesmo deve ser integralmente mantido.
Neste Supremo Tribunal, a sra. Procuradora-Geral Adjunta emitiu o seguinte parecer:
1 – AA foi julgado no Tribunal Judicial de ..., 1º Juízo, que, por Acórdão, de 24/2/2014, o condenou, pela prática, em concurso real, de seis crimes de violação agravada, pp. e pp. pelos arts. 164.º, n.º 1, al. a) e 177.º, n.ºs 1, al. a), 4 e 6, ambos do C.P., nas penas de 4 anos e 6 meses de prisão por cada um deles e, em cúmulo jurídico, na pena única de nove anos e seis meses de prisão. 2 - Inconformado, recorreu o arguido para o Tribunal da Relação do Porto que, por Acórdão de 15/X/2014, negou provimento ao recurso, confirmando a decisão recorrida nos seus precisos termos. 3 – Recorre, agora, o arguido para este Supremo Tribunal de Justiça, defendendo, em súmula: o Acórdão recorrido errou ao condená-lo por 6 crimes de violação agravada, quando deveria tê-lo sido apenas por um crime de violação agravada, porquanto o mesmo só confessou a prática de 1 crime (conclusões 1ª a 3ª, inclusive); Sem conceder, mostram-se excessivas as parcelares de 4 anos e 6 meses aplicadas por cada um dos 6 crimes de violação agravada (conclusão 4ª); A pena única aplicada deve ser reformada e substancialmente reduzida, em pena cuja execução seja suspensa, por desproporcional e desadequada (conclusão 5ª a 11ª). 4 - Questão prévia – Rejeição parcial do recurso 4.1 - O arguido foi condenado, na 1ª instância, por cada um dos 6 crimes de violação agravada, na pena de 4 anos e 6 meses de prisão, cuja pena única foi fixada em 9 anos e 6 meses de prisão. No Tribunal da Relação do Porto, aquela decisão foi confirmada nos seus precisos termos. Dispõe o art. 400.º, n.º 1, al. f), do CPP, não haver recurso de “acórdãos condenatórios proferidos, em recurso, pelas relações que confirmem decisão da 1ª instância e apliquem pena de prisão não superior a 8 anos”. É a chamada dupla conforme, que também se verifica no recurso ora sub judice. Por outro lado, é jurisprudência largamente maioritária deste Supremo Tribunal que “(…) a interpretação da (…) norma da alínea f), do número 1, do artigo 400.º, do Código do Processo Penal, no sentido de que, havendo uma pena única de medida superior a 8 anos, não pode ser objecto de recurso para o Supremo Tribunal de Justiça a matéria decisória referente aos crimes e pena parcelares inferiores a 8 anos de prisão, contém-se, ainda, no sentido possível das palavras usadas na lei, sem que isso comporte analogia proibida, e observa uma das declarações finalidades do regime de recursos em processo penal, vigente a partir da Lei n.º 59/98, de 25/8, de restrição do recurso para o Supremo Tribunal de Justiça (…) Ac. do STJ de 17/7/2013, proc. 631/06.5TAEPS.G1.S1, 5ª secção. No mesmo sentido, entre outros, Acs. do STJ, de 25/6/2014, proc. 2/12.4GALLE.E1.S1-3ª, de 13/11/2014, proc. 2296/11.3JAPRT.P1.S1. Com efeito, se assim não forem interpretados aqueles normativos, temos o STJ a decidir de penas irrisórias ou de média gravidade apenas porque o arguido cometeu tal quantidade de crimes que se impõe a fixação de uma pena única de prisão superior a 8 anos, revertendo ao mais Alto Tribunal a quantidade de recursos de menor gravidade que o legislador quis substituir pela qualidade das questões de direito colocadas nos processos de criminalidade grave. Aplicando ao caso ora sub judicea jurisprudência que vimos de citar, deve rejeitar-se o recurso interposto das medidas parcelares de 4 anos e 6 meses de prisão, aplicadas em cada um dos seis crime de violação agravada em que o arguido foi condenado. Nos termos e para os efeitos dos artigos 417.º, n.º 6 al. b) e 420.º, n.º 1, al. a), tendo em consideração o disposto nos arts. 400.º, n.º 1, al. f) e 432.º, n.º 1. al. c), todos do CPP, deve ser rejeitado parcialmente o recurso, ora sub judice, no que concerne à matéria levada às conclusões 1ª a 4ª da respectiva motivação. 4.2 - Por outro lado, sendo passível de recurso para este Supremo Tribunal o quantum da pena única aplicada, 9 anos e 6 meses de prisão, o recorrente centrou o pedido de diminuição desta pena, exclusivamente na procedência das conclusões 1ª a 4ª, relativamente às quais o recurso deve ser rejeitado pelas razões expuseram supra. Com efeito, resulta da matéria constante das conclusões 5ª a 8ª, nomeadamente, que o arguido entende dever ser diminuída a pena única de prisão, porque só cometeu um crime de violação agravada ou porque, em seu entender, são excessivas as penas parcelares impostas, devendo ser reduzidas para medidas que se aproximem dos limites mínimos (conclusões 1ª a 4ª). Ficou, assim, sem objecto o recurso interposto da pena de prisão única aplicada, pelo que, também nesta parte, deve o mesmo ser rejeitado. 5 – Questão de fundo Na mera hipótese de raciocínio de, doutamente assim não ser entendido, carece o recorrente de razão na sua pretensão de ver diminuída a pena única de prisão de 9 anos e 6 meses aplicada. Os factos são muito graves. A ilicitude é elevadíssima e a culpa de grau muito intenso. O arguido confessou apenas a prática de um dos seis crimes de violação agravada que cometeu. Estatui o art. 40.º do CP que a aplicação de penas visa a protecção de bens jurídicos e a reintegração social do delinquente, não podendo nunca a pena ultrapassar os limites da culpa. O art. 71º do mesmo CP dispõe que a determinação da pena concreta dentro dos limites definidos na lei é efectuada em função da culpa e das exigências de prevenção, considerando-se todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo, disponham a favor ou contra o arguido. Assim que a medida concreta da pena a aplicar, nos termos do art. 70.º, do mesmo diploma, tendo sempre como primeira referência e balizamento a culpa, aquela perseguirá a prevenção geral e especial consentânea com a sua aceitação pela comunidade, com a necessária tutela do direito, e com a sua adequação para repor a confiança comunitária na aplicação da justiça, por um lado, sem esquecer, por outro, os objectivos pedagógicos e ressocializadores das penas. Citando do Acórdão do STJ, de 24/11/1993, proc. 45742, “a pena deve resultar da retribuição justa do mal praticado, da satisfação do sentimento de justiça, de elemento dissuasor relativamente aos elementos da comunidade e de contribuição para a reinserção social do agente, embora por forma a não prejudicar a sua situação senão naquela que é necessário (…). Tendo por referência a disciplina legal e a jurisprudência vindas de referir, considerando a factualidade criminosa grave dada como provada, bem assim as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo dos crimes cometidos pelo arguido, depõem a seu favor, assente que se mostram as penas parcelares de 4 anos e 6 meses de prisão aplicada, a decisão recorrida a merecer qualquer censura, é a da sua bondade. As condutas do arguido assumem um grau de ilicitude elevadíssimo, suscitando forte reprovação e alarme social, pelo que as exigências de prevenção geral impedem a diminuição da pena única aplicada, enquanto tutela do direito e a sua aceitação pela comunidade. A validade da norma violada e a fiabilidade da aplicação da justiça impõem-se e sobrelevam às necessidades da ressocialização e integração do arguido, que agiu com culpa intensa. Neste tipo de crimes, levados a cabo no seio e na privacidade familiar, colocando a vítima entre a afronta e a vergonha, há que exprimir, pela Justiça, uma reprovação enérgica e incisiva que espelhe o desvalor da acção. O grau de ilicitude da conduta e a enorme reprovação social que suscita impõem a reposição da crença da comunidade no valor da norma violada e o sentimento de confiança dos cidadãos na aplicação da justiça, nos tribunais e no efeito dissuasor da sanção – cfr. Ac. STJ, de 28/11/2013, proc. 99/12.7JALRA.L1.S1. Pelo exposto, emite-se Parecer no sentido a) Rejeição total do recurso; b) Em alternativa, rejeição parcial do recurso relativamente às questões atinentes às penas de prisão parcelares aplicadas; c) Não provimento do recurso, relativamente à parte que o STJ conhecer.
Notificado nos termos do art. 417º, nº 2, do Código de Processo Penal (CPP), o arguido nada respondeu. Colhidos os vistos, cumpre decidir.
II. Fundamentação
São as seguintes as questões colocadas pelo recorrente: a) Violação do princípio in dubio pro reo; b) Medida das penas parciais, que considera excessivas, devendo, em seu entender, aproximar-se dos limites mínimos; c) Fixação de uma pena única não superior a 5 anos de prisão, suspensa na sua execução. Para apreciação destas questões há que conhecer a matéria de facto, que é a seguinte:
1. BB nasceu a ..., na freguesia de ..., ... e é filha do arguido e de CC. 2. À data dos factos, a então menor BB vivia com os seus pais na residência sita na Rua ..., comarca de ..., sendo que aí residiu até aos seus 14/15 anos, idade em que foi institucionalizada. 3. Em data não concretamente apurada, mas num dia do ano de 2005 ou 2006, da parte da tarde, o arguido aproveitando-se do facto de se encontrar sozinho com a menor BB, sua filha, então com 12/13 anos de idade, na residência sita na Rua ..., comarca de ..., onde residiam, dirigiu-se ao quarto onde aquela se encontrava. 4. Ali, o arguido agarrou a sua filha BB, de forma não concretamente determinada, deitou-a na cama e retirou-lhe as calças e as cuecas, sendo que, de seguida, baixou as suas calças. 5. Já com a menor despida da cintura para baixo, o arguido, também despido da cintura para baixo, imobilizou a sua filha através da força física agarrando-a nos braços, deitou-se em cima daquela, e introduziu na vagina de BB o seu pénis erecto, sem preservativo, aí o friccionando em movimentos de vaivém, ejaculando no seu interior, apesar da BB se debater tentando libertar-se. 6. Antes nunca a menor tinha mantido relações sexuais, sendo, pois, esta a sua primeira experiência sexual de qualquer tipo. 7. O arguido, após o acto sexual disse à sua filha menor, para nada revelar do que ocorrera, e que se o fizesse a agrediria fisicamente. 8. Em datas não concretamente apuradas, mas situadas nos anos de 2005 e/ou 2006, quando a menor tinha entre 12 a 13 anos idade, por mais cinco vezes, no final da tarde, quando o arguido se encontrava sozinho com a menor, na aludida residência onde residiam, este mantinha com BB relações sexuais, de cópula completa, como supra descrito, ejaculando no interior da vagina daquela, nunca tendo utilizado preservativo ou qualquer outro método contraceptivo. 9. Na última destas vezes, já quando o arguido tinha concluído a cópula com a BB, foi surpreendido pela mãe daquela, CC. 10. Nessa circunstância, disse à sua filha e a CC que as matava se participassem às autoridades. 11. O arguido tinha perfeita noção da idade da vítima, sua filha, circunstância de que se aproveitou. 12. O arguido praticou os factos, aproveitando-se do ascendente que tinha sobre a sua filha BB, bem como da confiança que enquanto progenitor lhe era votada pela mãe da menor, confiança essa que possibilitava que o arguido estivesse sozinho com a mesma. 13. O arguido tinha consciência de que, à data dos factos, a sua filha era menor e, apesar disso, não se coibiu de praticar tais actos, ofendendo assim o sentimento de criança, de inocência e de vergonha da menor, bem como a integridade física e psicológica daquela. 14. Ao agir como acima descrito, o arguido procedeu de forma deliberada, livre e consciente, praticando cópula com menor de 14 anos, a fim de satisfazer a sua lascívia e os seus desejos sexuais, o que conseguiu. 15. Sabia o arguido que os factos que praticou com e sobre a sua filha eram adequados a prejudicar um livre e harmonioso desenvolvimento da personalidade desta, e que tinha reflexos na esfera sexual da personalidade da mesma. 16. Sabia, também, que a vítima, por se encontrar sozinha consigo, ser sua filha de 12 ou 13 anos de idade e com ele habitar, se sentia fragilizada e assim intimidada com o mal anunciado, levando-a a praticar os actos supra descritos, sendo estas circunstâncias e males igualmente adequados a levar a menor a silenciar os factos acima descritos, como efectivamente aconteceu, pelo medo provocado, ante o espectro de que o arguido os pudesse vir a concretizar. 17. Ademais, o arguido sabia que mantinha relações sexuais de cópula completa com a menor sua filha contra a vontade daquela, apesar da resistência que aquela oferecia, que ultrapassou, aproveitando-se quer da sua força física (superior), quer do facto daquela se encontrar sozinha e assim sem possibilidade de lhe resistir. 18. O arguido agiu voluntária, livre e conscientemente, bem sabendo que tal conduta lhe estava vedada e era punida criminalmente. Mais se apurou que: 19. O arguido provém de uma família de baixa condição sócio-económica, sendo o segundo na escala de nascimentos; cresceu num contexto disfuncional, dominado por um pai autoritário, consumidor abusivo de bebidas alcoólicas que se traduzia num quotidiano conflituoso e por maus tratos infligidos ao cônjuge e aos três filhos. 20. O arguido foi penalizado pelo comportamento violento do seu pai, sendo frequentes as fugas de casas e noites ao relento, o que gerou uma relação de distanciamento entre ambos que se prolongou até à morte do pai há cerca de 3 anos. 21. O arguido, devido à sua baixa capacidade de aprendizagem e falta de motivação, estudou apenas até à 4ª classe. 22. Quando tinha cerca de 12 anos, o arguido sofreu um grave acidente pessoal com uma bomba artesanal, que o privou de vários dedos de uma mão. 23. O arguido iniciou a sua actividade laboral na agricultura, quando ainda era menor de idade, concretizando o primeiro emprego na construção civil, na região do Algarve. 24. O arguido casou com 18 anos, tendo nascido três filhos, sobrevivendo o agregado familiar com as receitas provenientes do trabalho indiferenciado executado pelo arguido e sua mulher no sector agrícola. 25. O arguido trabalhou igualmente para a Junta de Freguesia de ..., onde permaneceu aproximadamente dois anos. 26. O relacionamento intrafamiliar era afectivamente empobrecido e marcado pelos hábitos de consumo excessivo de bebidas alcoólicas por parte do arguido. 27. O agregado familiar, composto pelo arguido, pela mulher e pela filha que é ofendida, vive actualmente numa habitação social, pela qual pagam uma renda de € 48,00 por mês. 28. O filho mais velho, com 23 anos de idade, reside no Porto. 29. O filho mais novo, que conta com 10 anos de idade, está institucionalizado desde 2010 no Centro de Acolhimento Temporário da Santa Casa da Misericórdia de ..., após acordo firmado pela família com a CPCJ de .... 30. A filha do meio e ofendida nos presentes autos esteve também institucionalizada num Lar da Segurança Social em ..., onde se habilitou com o 12º ano, tendo regressado ao agregado de origem há cerca de um ano. 31. O arguido está desempregado desde Abril de 2013, após ter cessado a sua relação laboral com a Junta da freguesia da ... e depois de algum absentismo laboral relacionado com a problemática do alcoolismo. 32. O arguido recebe um subsídio de desemprego no valor de €419,00 mensais que termina no final do presente mês de Fevereiro de 2014; a mulher do arguido tem parcos rendimentos. 33. A família está desestruturada, recorrendo por vezes a mulher do arguido a instituições da cidade no fornecimento de géneros alimentícios. 34. O arguido frequentou no passado um tratamento de desintoxicação na Unidade de Alcoologia do Centro, mas que não resultou, prosseguindo a escalada de consumos até à actualidade com efeitos negativos na estabilidade familiar. 35. No último ano, foi a diversas consultas de medicina e psicologia ao CRI de ..., preenchendo parte do seu tempo na taberna a consumir álcool. 36. O arguido não tem antecedentes criminais registados.
Violação do princípio in dubio pro reo
Defende o arguido que os factos descritos no ponto 8º da matéria de facto não foram por eles confessados, ao contrário do que aconteceu com os factos referentes ao crime inicial, pelo que, em seu entender, o princípio in dubio pro reo imporia que tais factos fossem dados como não provados. Manifestamente improcedente se mostra esta questão. A matéria de facto foi definitivamente fixada pela Relação, não podendo este Supremo Tribunal alterá-la. A Relação apreciou expressamente a alegada violação do princípio em causa, afastando-a fundamentadamente. Nada há a acrescentar ao aí decidido.
Medida das penas parcelares
O arguido foi condenado em 1ª instância por seis crimes de violação agravada, p. e p. pelos arts. 164º, nº 1, a), e 177º, nºs 1, a), 4 e 6, ambos do Código Penal, na pena de 4 anos e 6 meses de prisão por cada um. Esta decisão foi integralmente confirmada pela Relação. Verifica-se consequentemente dupla conforme, pelo que as penas parcelares são insuscetíveis de recurso para este Supremo Tribunal, por força do disposto no art. 400º, nº 1, f), do CPP. A única pena recorrível é a pena única, por ter sido fixada em medida superior a 8 anos de prisão.
Medida da pena do concurso
Foi o arguido condenado na pena única de 9 anos e 6 meses de prisão. O arguido considera a pena “desproporcional e desadequada” e pede a sua redução para uma pena não superior a 5 anos, suspensa. Essa impugnação da medida da pena única baseia-se fundamentalmente na requerida atenuação das penas parcelares, que, como vimos, é matéria subtraída ao conhecimento deste Supremo Tribunal. Mas outras várias circunstâncias são invocadas no sentido da redução da pena única, que importa analisar. Assim, invoca-se a falta de antecedentes criminais, a confissão, o arrependimento, o decurso do tempo desde a prática dos crimes, a frequência de um curso de formação profissional, demonstrando assim o arguido vontade de reinserção profissional. Analisemos, pois, se alguma censura há a fazer à medida da pena do concurso. Estabelece o art. 77º, nº 1, do CP que o concurso de penas é punido com uma pena única, em cuja medida são considerados, em conjunto, os factos e a personalidade do agente. E o nº 2 acrescenta que a pena única aplicável tem como limite máximo a soma das penas parcelares (não podendo ultrapassar 25 anos de prisão) e como limite mínimo a mais elevada das penas parcelares. Como é unânime, consagra este preceito um sistema de pena conjunta, que respeita a autonomia das penas parcelares, partindo delas para a fixação de uma moldura penal, construída através do cúmulo jurídico daquelas, no quadro da qual será fixada a pena única. A determinação da medida concreta da pena única deve atender, como qualquer outra pena, aos critérios gerais da prevenção e da culpa (art. 71º do CP); e ainda a um critério especial: a consideração conjunta dos factos e da personalidade do agente, na sua relação mútua. Ao tribunal impõe-se uma apreciação global dos factos, tomados como conjunto, e não enquanto mero somatório de factos desligados, na sua relação com a personalidade do agente. Essa apreciação deverá indagar se a pluralidade de factos delituosos corresponde a uma tendência da personalidade do agente, ou antes a uma mera pluriocasionalidade, de caráter fortuito ou acidental, não imputável a essa personalidade. A determinação da pena única, quer pela sua sujeição aos critérios gerais da prevenção e da culpa, quer pela necessidade de proceder à avaliação global dos factos na ligação com a personalidade, não é compatível com a utilização de critérios rígidos, com fórmulas matemáticas ou abstratas de fixação da sua medida. Como em qualquer outra pena, é a justiça do caso que se procura, e ela só é atingível com a criteriosa ponderação de todas as circunstâncias que os factos revelam, sendo estes, no caso do concurso, avaliados globalmente e em relação com a personalidade do agente, como se referiu. Analisados os factos na sua globalidade, sobressai de imediato o grau muito elevado de ilicitude e de culpa. Na verdade, o arguido, depois de praticar a primeira violação na pessoa da ofendida, sua filha menor de 12/13 anos, repetiu a conduta mais cinco vezes, ao longo de cerca de um ano, quando a ocasião se proporcionava, sempre mediante a ameaça de represálias, caso ela o denunciasse, até que foi surpreendido pela mãe da ofendida, e sua mulher, em flagrante delito, sendo de presumir que poderia ter continuado a sua prática criminosa se não tivesse ocorrido esse facto. O seu comportamento no meio familiar é completamente censurável. Não só se mostrou indiferente aos deveres inerentes à paternidade, violando-os superlativamente com a prática dos crimes dos autos, como vem assumindo uma conduta agressiva e por vezes violenta para com a mulher, aliada ao consumo excessivo de álcool, criando um relacionamento intrafamiliar conflituoso e sem afetividade. No fundo, o arguido vem retomando o ambiente familiar que foi o da sua infância, caracterizado pelo comportamento violento e pelo alcoolismo do pai. Contudo, tal não o isenta obviamente de qualquer responsabilidade penal, nem mesmo o pode beneficiar em termos atenuativos, pois não existe qualquer determinismo fatalista que lhe retire a sua capacidade de avaliação e de autodeterminação, nem o direito pode valorar positivamente atitudes frontalmente contrárias aos valores tutelados. A avaliação conjunta dos factos e da personalidade do arguido revela uma perfeita interligação e adequação entre aqueles e esta. O arguido revela uma personalidade violenta no meio familiar, incapaz de respeitar a filha, como também a mulher, mostrando-se completamente indiferente aos valores que o direito protege e salvaguarda no âmbito familiar. As atenuantes invocadas pelo recorrente são de escasso valor. A falta de antecedentes criminais é pouco ou nada relevante neste tipo de criminalidade. E a confissão foi apenas parcial e de valor nulo, uma vez que o arguido foi apanhado em flagrante delito. O decurso de vários anos desde a prática do último crime também não favorece o arguido, pois não está demonstrada a atenuação da necessidade da pena. As exigências da prevenção especial são enormes. E também as da prevenção geral, considerando que a violação da autodeterminação sexual, para mais quando efetuada na família, e por ascendentes sobre descendentes, merece um acentuado repúdio na sociedade de hoje. A moldura penal do concurso vai de 4 anos e 6 meses a 25 anos de prisão (nº 2 do art. 77º do CP). Nestes termos, a pena fixada (9 anos e 6 meses de prisão) não se mostra de forma nenhuma excessiva, satisfazendo, pelo mínimo, as exigências da prevenção, geral e especial, sem exceder a medida da culpa. Prejudicada fica a questão da suspensão da execução da pena, por ser superior a 5 anos de prisão (art. 50º, nº 1, do CP). Não merece, pois, provimento o recurso.
III. Decisão
Com base no exposto, nega-se provimento ao recurso. Vai o recorrente condenado em 5 UC de taxa de justiça.
Lisboa, 18 de março de 2015 Maia Costa (Relator) Santos Cabral |