Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
02P1205
Nº Convencional: JSTJ000
Relator: SIMAS SANTOS
Descritores: BURLA
MOEDA FALSA
MEDIDA DA PENA
Nº do Documento: SJ200205230012055
Data do Acordão: 05/23/2002
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: 1 J CR LEIRIA
Processo no Tribunal Recurso: 686/96
Data: 11/14/2001
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Sumário : I - Na burla do conto do vigário - no caso mediante promessa de venda de notas falsas de escudos - a falta de probidade do burlado é frequentemente igual à do próprio burlão, sem que, no entanto, se possa afastar a culpabilidade do agente, e que o sujeito passivo sofre um efectivo prejuízo no seu legítimo património.

II - Com efeito, nessa hipótese, independentemente do eventual concurso de outras infracções,  designadamente com o crime tentado de aquisição de moeda falsa para a pôr em circulação, ocorre um efectivo dano patrimonial e, desde que verificados os demais requisitos do tipo legal, um delito de burla, sem que o burlado possa exigir, em caso algum, que se realize o negócio ilícito.
III - Para escolha da medida da pena examina-se o conteúdo dos art.ºs 70.º, 71.º a 74.º, e 77.º, do C. Penal, tendo como pano de fundo as finalidades das penas: a protecção dos bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade (art. 40.º do C. Penal), em caso algum a pena podendo ultrapassar a medida da culpa.

IV - Nesse domínio releva cupidez do lesado que visava ele mesmo um projecto criminoso, atendível no quadro da prevenção geral de integração.

Decisão Texto Integral: Supremo Tribunal de Justiça
I

1.1. Os arguidos A...., B...., C...., D....e E...., todos com os sinais nos autos, foram julgados, no 1º Juízo Criminal de Leiria (processo comum colectivo, n.º 686/96.9), com base nos factos descritos na acusação de fls. 1339 e seguintes, como co-autores de um crime de burla qualificada dos art.ºs 217.º e 218.º, n.º 2, al. a), do C. Penal, tendo o demandante F, formulado pedido de indemnização civil.

E por acórdão de 14.11.2001, foi a acusação julgada improcedente e os arguidos absolvidos e igualmente julgado improcedente o pedido de indemnização civil e os arguidos  absolvidos do pedido.

1.2. O Ex.mo Procurador da República recorreu dessa decisão para este Supremo Tribunal de Justiça, concluindo na sua motivação:

1 - Face à factualidade dada como provada, a conduta dos arguidos deveria ter sido considerada como integradora da prática, em co autoria, do crime de burla qualificado e em relação a todos eles;
2 - Porquanto ao enriquecimento, ilegítimo, obtido pelo arguidos corresponde a efectivo prejuízo no legitimo património do lesado F....;

3 - Ao ser proferido acórdão absolutório o Tribunal, "a quo" violou, por erro de apreciação e de valoração da factualidade dada com provada e de interpretação os art.ºs 217.º, n.º 1 e 218.º do Código Penal;

4 - Deve, em consequência, o douto acórdão recorrido ser revogado e em sua substituição ser proferido acórdão condenatória e com aplicação, em função da factualidade apurada e da previsão legal cominada para o crime de burla qualificada, das penas tidas por adequadas ao envolvimento de cada um dos arguidos.

1.3. Também o demandante civil recorreu para este Tribunal, pedindo a revogação do acórdão recorrido e a procedência do pedido de indemnização civil formulado.
Para tanto concluiu na sua motivação:

I - Entrou o Tribunal "a quo" em contradição insanável da fundamentação e entre esta e a decisão, nos termos do artigo 410 n.º 2, alínea b) do Código do Processo Penal, daí a razão de ser do presente recurso.

II - No nosso ordenamento jurídico vinga e vigora a via de adesão obrigatória da acção civil na acção penal - artigo 71 do Código do Processo Penal, só deste modo podendo os interessados deduzir o pedido de indemnização civil e obter compensação para os prejuízos havidos. E,

III - A indemnização de perdas e danos emergentes de crime é regulada pela lei civil quantitativamente e nos seus pressupostos; porém, processualmente, é regulada pela lei processual penal - artigo 129 do Código Penal.

IV - O artigo 129 do Código Penal significa que havendo condenação penal nos termos do artigo 377 n.º 1 do Código do Processo Penal, nada obsta a que o pedido de indemnização civil seja conhecido e julgado procedente.

V - Seguindo a nossa lei a via da adesão obrigatória, como tal consagrada no artigo 71 do Código do Processo Penal, mesmo no caso de absolvição pelo crime de que o arguido é acusado, o Tribunal condena o mesmo arguido em indemnização civil sempre que o pedido respectivo vier a revelar-se fundado.

VI - Assim, se a lei já impõe, no caso de absolvição, a condenação do pedido civil, é porque evidentemente impõe, como pressuposto, a sua apreciação, ou seja, não pode, de facto, haver condenação naquele pedido se o mesmo não for apreciado previamente.

VII - No caso sub iudice, o Tribunal "a quo" apreciou tal pedido e apreciou de tal modo que deu como provados os factos subjacentes a tal pedido e nele indicados, ou seja os indicados em 1.54, 1.55, 1.59 e 1.72 a 1.76 no douto acórdão e supra referidos nas presentes alegações.

VIII - A decisão recorrida violou, por contradição da fundamentação e entre esta e a decisão, o disposto nos artigos 129 do Código Penal, 71 e 377, n.º 1 do Código do Processo Penal, porquanto entendeu que tais disposições apenas eram de aplicar nos casos de responsabilidade civil extra-contratual ou pelo risco, devendo, no entanto, conforme se expôs, tais normas aplicarem-se independentemente do tipo de responsabilidade civil em causa, desde que o pedido tenha sido apreciado e os seus fundamentos fácticos dados como provados, como o foram no caso sub iudice.

1.4. Respondeu a ambas as motivações o arguido C...., propugnando a manutenção da decisão recorrida.

   III
Neste Supremo Tribunal de Justiça a Ex.ma Procuradora-Geral Adjunta apôs o seu visto.

          Colhidos os vistos legais teve lugar a audiência no decurso da qual foram produzidas alegações orais. Nelas o Ministério Público referiu-se às duas posições presentes na doutrina sobre a punibilidade da burla quando o lesado visa com a aquisição um fim criminosos, mas realçou que a jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça é no sentido de proteger todo o prejuízo do património legítimo, como é o caso. Uma vez que não só estão presentes todos os elementos do tipo legal da burla, que não foram sequer discutidos, deve ser dado provimento ao recurso.

O lesado acompanhou as alegações da Ex.ma Procuradora-Geral Adjunta e concluiu que se impunha assim a condenação no pedido cível. Que de todo o modo sempre deveria conhecer-se e julgar-se procedente tal pedido.

Por seu turno, a defesa sustentou o acórdão recorrido.

Cumpre, assim, conhecer e decidir.

   IV
E conhecendo.

4.1. O Ministério Público coloca no seu recurso a questão da subsunção da conduta apurada  entendendo que a mesma integra a prática, em co-autoria, do crime de burla qualificado quanto a todos os arguidos (conclusão 1.ª), pois que o enriquecimento, ilegítimo, obtido por estes corresponde a efectivo prejuízo no legitimo património do lesado (conclusão 2.ª)
Por seu lado, o lesado sustenta que o acórdão recorrido padece de contradição insanável da fundamentação e entre esta e a decisão [art. 410 n.º 2, al. b) do CPP] (conclusão 1.ª).

Dado o princípio da adesão obrigatória da acção civil na acção penal (art. 71.º do CPP) (conclusão 2.ª), nada obsta a que a indemnização de perdas e danos emergentes de crime (conclusão 3.ª), mesmo em caso de absolvição (conclusão 6.ª).

A decisão recorrida violou, por contradição da fundamentação e entre esta e a decisão, o disposto nos art.ºs 129.º do C. Penal, 71.º e 377.º, n.º 1 do CPP, porquanto entendeu que tais disposições apenas eram de aplicar nos casos de responsabilidade civil extra-contratual ou pelo risco, devendo, no entanto, conforme se expôs, tais normas aplicarem-se independentemente do tipo de responsabilidade civil em causa, desde que o pedido tenha sido apreciado e os seus fundamentos fácticos dados como provados, como o foram no caso sub iudice (conclusão 8.ª).

Desta síntese resulta que embora o lesado invoque a contradição insanável, o que deslocaria a competência para o conhecimento do recurso para a 2.ª Instância, o certo é que o faz fora do quadro no convocado art. 410.º, n.º 2, al. b) do CPP, pretendendo  tão só impugnar a interpretação feita das normas jurídicas invocadas e que conduziu ao não conhecimento do pedido de indemnização, questão de direito a conhecer por este Supremo Tribunal de Justiça.

4.2. Isto posto, vejamos quais os factos provados:

"1.1 Em princípios de Março de 1996, F.... foi contactado na sua residência, sita em Samuel, Soure, por G...., seu conhecido.

1.2 Este propôs-lhe a participação na aquisição de notas falsas.

1.3 Para tal referiu conhecer pessoas que tinham em seu poder notas falsas, de óptima qualidade, para vender.

1.4 Afirmou o A.... que os indivíduos indicados como donos das notas falsas, estavam vendedores do montante de oitenta milhões de escudos, em notas falsas de 10000 escudos (dez mil escudos), 5000 escudos (cinco mil escudos) e 2000 escudos (dois mil escudos), semelhantes às emitidas pelo Banco de Portugal.

1.5 A aquisição deste valor em notas falsas importaria, segundo aquele, em vinte e quatro milhões de escudos.

1.6 Quantia elevada para si, mas que admitia partilhar com o F...., ficando, caso este aceitasse, com o encargo de arranjar doze milhões de escudos.

1.7 Sendo que posteriormente receberia, em notas falsas, a quantia correspondente a quarenta milhões de escudos.

1.8 O A.... passou a visitar o F.... com frequência, com vista a obter a sua adesão ao negócio.

1.9 Sempre lhe falando das vantagens patrimoniais que ele obteria, caso aceitasse a proposta, adquirindo as notas falsas em conjunto com o G.....

1.10 O F.... acedeu a contactar os vendedores das notas falsas.

1.11 Com esse propósito, F.... e A...... encontraram-se com os arguidos B.... e D....., em diferentes ocasiões e com eles se deslocaram a diversos locais, nomeadamente à Curia, Luso, Mealhada e Coimbra.

1.12 Os arguidos B...... e D....., para esses encontros, deslocavam-se num veiculo da marca Toyota, modelo Celica, cor vermelha, com a matrícula NQ.

1.13 O arguido D....apresentava-se nos encontros como sendo Dr. António.

1.14 Nesses encontros, F.... recebeu das mãos dos mesmos arguidos notas de 10.000$00 (dez mil escudos), 5.000$00 (cinco mil escudos) e 2.000$00 (dois mil escudos), que estes diziam serem falsas.

1.15 Apresentavam-se tais notas como novas e, relativamente a cada série, com a respectiva numeração seguida.

1.16 Num desses encontros, foram jantar num restaurante sito nas imediações.

1.17 No final da refeição, o arguido D.... referiu para F..... que iria pagar a despesa do jantar utilizando notas falsas, retiradas das que antes lhe mostrara.

1.18 O empregado do restaurante recebeu as notas entregues pelo arguido, aceitando as mesmas sem qualquer reclamação ou reparo.

1.19 Em face disso, F.... começou a convencer-se que as aludidas notas, embora falsas, eram de tal qualidade que, se as tivesse em seu poder, facilmente as passaria.

1.20 Desconhecia este que as notas que lhe foram exibidas e as que serviram para pagar a despesa do restaurante não eram falsas, mas sim originais e legitimas.

1.21 Entretanto, o arguido D... entregou a F.... notas verdadeiras e originais de 2.000$00 (dois mil escudos), afirmando que as mesmas eram falsas, para que este apreciasse a qualidade da falsificação.

1.22 Num dos referidos encontros com os arguidos, o arguido D....afirmou que o F.... e o A..... deveriam abrir, cada um, contas bancárias no Banco Comercial Português e na Caixa de Crédito Agrícola Mútuo, referindo que ali havia pessoas da sua organização a trabalhar.

1.23 E que, nessas contas, seriam depositados vinte milhões de escudos, a cada um dos compradores.

1.24 Sendo que os restantes 40000000 escudos (quarenta milhões de escudos) seriam entregues a F.... e A..... quando estes lhe entregassem os 24000000 escudos (vinte e quatro milhões de escudos), correspondendo a 12000000 escudos (doze milhões de escudos) a obter de cada um.

1.25 Na ocasião, A....... e F...... declararam aceitar tal condição.

1.26 No dia 18 de Março de 1996, encontraram-se em Soure, F....., A...... e B......, local onde aquele pretendia abrir as contas bancárias exigidas.

1.27 Nessa ocasião, F...... recebeu do arguido B...... dinheiro em notas pretensamente falsas.

1.28 Com este valor, F.... abriu uma conta, em seu nome, na Caixa de Crédito Agrícola Mútuo de Vila Nova de Anços, balcão de Soure, em 18 de Março de 1996 e outra no Banco Comerciai Português/Nova Rede, agência de Soure, na mesma data, cada uma com valor de abertura de 150000 escudos (cento e cinquenta mil escudos).

1.29 Não tendo sido levantada qualquer objecção, por parte das entidades bancárias, à recepção das aludidas notas, para abertura de conta.

1.30 Para reunir os 12000000 escudos (doze milhões de escudos) necessários, F..... pediu emprestados 10000000 escudos (dez milhões de escudos) a um seu cliente, tendo entretanto efectuado o pagamento da mesma, descontado em fornecimentos feitos.

1.31 Reunido o dinheiro, combinou-se então realizar um encontro em Coimbra, junto ao Estádio Universitário, para concretizar a entrega dos 40000 (quarenta mil) contos de nota falsa e o recebimento de 24000 (vinte e quatro mil) contos, a entregar por F........

1.32 A este encontro compareceram A....., F....., B...... e D......

1.33 F...... transportava, numa pasta, a quantia de 12000000 escudos (doze milhões de escudos), em notas originais e verdadeiras do Banco de Portugal.

1.34 Dado que não tinha ainda sido depositada nas contas da Caixa de Crédito Agrícola Mútuo e no Banco Comercial Português a quantia de 20000000 escudos (vinte milhões de escudos) e porque o arguido D....quis então conferir o dinheiro que F...... trazia na pasta, este hesitou concretizar o negócio e fez menção de abandonar o local.

1.35 Marcou-se então um novo encontro em Pombal para a entrega do dinheiro.

1.36 A este compareceram os quatro acima referidos (A......, F....., D...... e D......) e um indivíduo referenciado por Henrique.

1.37 Este indivíduo era o arguido E.....

1.38 Neste encontro não se procedeu à entrega do dinheiro por F...... estar receoso com a realização da operação.

1.39 Perante a indecisão deste, os arguidos A....... e D...... propuseram-lhe um encontro com um indivíduo relativamente ao qual disseram que já tinha

1.38 Neste encontro não se procedeu à entrega do dinheiro por F..... estar receoso com a realização da operação.

1.39 Perante a indecisão deste, os arguidos A..... e D.... propuseram-lhe um encontro com um indivíduo relativamente ao qual disseram que já tinha comprado moeda falsa nas condições em que F..... se propunha fazer.

1.40 Assim, em Coimbra, num bar sito junto a um posto de abastecimento, A..... e F...... encontraram-se com um indivíduo que, junto deste, confirmou ter adquirido notas falsas e que, com as mesmas, adquirira um terreno e um veiculo e havia já concretizado outros negócios.

1.41 Este indivíduo era o arguido C.....

1.42 Actuou o mesmo com o intuito de quebrar qualquer resistência que F...... tivesse à aquisição de moeda falsa.

1.43 Posteriormente, F..... comunicou a A..... a vontade em entregar os 12000 (doze mil) contos e receber o dinheiro falso.
1.44 No dia 22 de Março de 1996, F...., A...., D....(Dr. António) e E.... (Henrique) encontraram-se junto ao Hotel Eurosol, em Leiria.

1.45 Aí, sob o pretexto de estarem muitas pessoas nas imediações, foi estabelecido que o encontro se realizaria numas bombas de gasolina existentes à saída de Leiria.

1.46 Nestas, situadas junto à Auto-Leiria, no acesso para a Estrada Nacional n.º 1, F.... entregou a D....a pasta que trazia, com 12000000 escudos (doze milhões de escudos), em notas de Banco de Portugal e que o mesmo de imediato entregou ao arguido E.....

1.47 Este, que se encontrava ao volante do veiculo da marca Mercedes-Benz, modelo 250 D, com a matrícula PE, pôs o carro em marcha e afastou-se do local.

1.48 Justificando que ia ao Hotel Eurosol buscar a moeda falsa e os talões de depósito, comprovativos da entrega do dinheiro falso nas contas de F.... na Caixa de Crédito Agrícola Mútuo e Banco Comercial Português de Soure.

1.49 Os restantes aguardaram no local pelo seu regresso.

1.50 Regressado pouco depois, E.... (............) disse que não tinha entrado no Hotel Eurosol pois a Polícia Judiciária andava a vigiar a zona.

1.51 Afirmou então que deveriam encontrar-se em momento posterior

1.52 E.... afirmou a F.... e a A.... que a "organização" exigia que os mesmos assinassem uma declaração referindo que tinham recebido o dinheiro falso e entregue, cada um 12000000 escudos (doze milhões de escudos), em notas verdadeiras.

1.53 F.... e H.... assinaram, cada um, a sua declaração, nos termos indicados, conforme teor de fís. 486 e 487.
1.54 F.... ficou desapossado do valor de 12000000 escudos (doze milhões de escudos), que havia entregue a D....

1.55 A...., B...., C...., D....e E...., estavam todos concentrados no propósito de obter do F.... a entrega da quantia de 12000000 escudos (doze milhões de escudos).

1.56 Actuavam os mesmos em execução de um plano que, previamente, haviam acordado e decidido levar à prática.

1.57 No desenvolvimento deste plano, as notas exibidas e/ou cedidas a F.... eram verdadeiras.

1.58 A prometida entrega de dinheiro falso foi concebida como um estratagema falso, visando obter daquele a entrega de dinheiro verdadeiro, no montante de 12000000 escudos (doze milhões de escudos).

1.59 Apoderaram-se desta quantia que F.... entregara a D....e este, posteriormente, a E.....

1.60 F.... contactava D....através do número de telefone 0931347232, respeitante a um telemóvel revistado em nome de B.....

1.61 Na sequência de busca efectuada, foi encontrado na residência e em poder de D....:

a) Recibo de portagem de auto estrada, referente à viagem Coimbra/Leiria, efectuada em 26 de Março de 1996, com saída em Leiria às 16 horas e 33 minutos.

b) Papel com o número de telemóvel de E.....

c) Talão de depósito do Banco Credit Lyonnais, em numerário, datado de 25 de Março de 1996, no valor de 5935000 escudos (cinco milhões novecentos e trinta e cinco mil escudos), dinheiro este proveniente do entregue pelo F...., o qual se viu desapossado do mesmo em 22 de Março de 1996.

d) Dois milhões de escudos em numerário, notas do Banco de Portugal, novas e com numeração seguida que serviram para dar credibilidade à conduta dos arguidos e que estes apresentavam como falsas.

e) Viatura automóvel da marca Citroen, modelo XM, com a matrícula DU, com o valor de 3000000 escudos (três milhões de escudos), a qual foi utilizada pelos arguidos B... e D...., em datas anteriores a Março de 1996, em deslocações, nomeadamente para contactarem G...., em ordem a obter do mesmo entregas de dinheiro verdadeiro a troco de promessa de entrega de moeda falsa.

f) Um telemóvel da marca "Bang & Olufsen", com transformador e base de carregador, utilizado pelo arguido nos seus contactos com aquele e com os outros arguidos visando a perpetração dos factos acima descritos.

1.62 Na residência de B...., foi encontrado o seguinte:

a) Uma declaração de venda do veículo automóvel "Toyota", matrícula NQ, datada de 22 de Março de 1996, a C.....

b) Folhas com os números de telefone de F.... e A.....

c) Talão de depósito emitido a favor de H...., familiar de E.....

d) Talão de depósito de valores, datado de 23 de Março de 1996, emitido a favor de M....., um passaporte em nome deste e o seu contacto telefónico.

1.63 Na residência e em poder de E...., foi apreendido o seguinte:

a) Uma declaração manuscrita por F...., na qual este refere ter comprado dinheiro falso e entregue à organização 12000 (doze mil) cantos por conta daquele e uma declaração de igual teor feita por A...., pelos mesmos redigidas com data de 22 de Março de 1996.

b) Oitenta e cinco mil escudos em notas do Banco de Portugal, provenientes do dinheiro entregue pelo F.....

c) Uma mala tipo pasta e uma bolsa de mão em cabedal.

d) Várias peças em ouro.

e) Uma arma Smith & Wesson, calibre 0.32, com cinco munições, com o número de série BPE 4582

f) Um telemóvel marca Nokia, com bateria e cabo de ligação.

g) Um veiculo Mercedes Benz, Modelo 250-D, com a matrícula PE, utilizado pelo arguido nas suas deslocações e encontros com os restantes arguidos e F...., com o valor de 2500000 escudos (dois milhões e quinhentos mil escudos).

1.64 A.... actuava junto de F.... como elemento facilitador do convencimento deste, dando imagem de não estar ligado aos restantes arguidos, mas tão só de emparceirar com aquele na aquisição de moeda falsa.

1.65 Em datas anteriores a Março de 1996, os arguidos B.... e D....haviam tentado junto de I...., J....., G.... e L...., obter entregas de dinheiro verdadeiro a troco de entrega de moeda falsa.

1.66 Parte dos valores angariados pelos arguidos foi por eles canalizada para as seguintes contas:

Nº 60.098337.009.00.050 e n.º 60.0102817.009.00.054, do Crédit Lyonnais de Coimbra, tituladas por H.... e M..., familiares do arguido E.....

Nº 202704240008, nº 202757230007 e nº 202654180007, do Banco Espírito Santo de Coimbra, tituladas por M..... e D....(as duas últimas).

- Nº 0531-19144AOO e nº 0531-21113.630, da Caixa Geral de Depósitos da Nazaré, tituladas por N..... e E.....

Nº 14705400001, do Banco Totta 8 Açores de Coimbra, titulada por D.....

Nº 0012021442657, do BCI de Coimbra, titulada por H....., familiar de E.....

1.67 Nestas contas, algumas tituladas por pessoas relacionadas com D....e E...., se fazia o depósito de valores obtidos por estes, provenientes da entrega feita por F.....

1.68 A C...., A.... (dois), D....e B....., foram apreendidos os telemóveis marca "Bang K Olufsen", Bosch", "Nokia", "Bang & Olufsen" e "Nokia" e respectivos acessórios indicados a fls. 889 e 890, cujo teor se dá aqui por reproduzido.

1.69 Serviam estes aparelhos para os arguidos comunicarem entre si e, dessa forma, facilitarem a prática dos factos envolvendo F.....

1.70 A C.... foi apreendida, em 11 de Abril de 1996, a quantia de 5350000 escudos (cinco milhões trezentos e cinquenta mil escudos).

1.71 Representava esta quantia parte do dinheiro que havia sido entregue pelo F.... aos arguidos.

1.72 Caso F.... soubesse que não lhe seriam entregues notas falsas, por tal se apresentar como uma ficção, não teria entregue aos arguidos o valor de 12000000 escudos (doze milhões de escudos).

1.73 Os arguidos agiram de forma livre, consciente e voluntária, sabendo que as suas condutas eram contrárias à lei.

1.74 Em 30 de Janeiro de 1997, os arguidos E...., D..., C.... e B....., como primeiros outorgantes, o demandante F..... e O..., como segundos outorgantes e M...., como terceiros outorgantes, subscreveram o "Acordo de Pagamento" que faz fls. 1391 a 1394 e cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido.

1.75 No aludido documento e na parte que aqui interessa, os primeiros outorgantes consideram terem-se constituído devedores perante cada um dos segundos outorgantes no montante de 12000000 escudos (doze milhões de escudos) e juros vencidos.

1.76 Para pagamento deste valor, acordam dar aos segundos outorgantes os bens móveis e as quantias em numerário apreendidas nos autos, nas condições aí consignadas.

1.77 O arguido C.... é pessoa considerada e estimada no meio em que está inserido.

1.78 Desenvolve a sua actividade no negócio de compra e venda de automóveis, daí retirando os proventos para a sua subsistência.

1.79 O arguido B.... é empregado num estabelecimento de café, em Coimbra.

1.80 É considerado bom trabalhador, sendo ele quem sustenta o respectivo agregado familiar.

1.81 O arguido A.... é pessoa bem aceite no respectivo meio.

1.82 Desenvolve a sua actividade no negócio de compra e venda de automóveis, daí retirando os proventos para a sua subsistência.

1.83 Os arguidos D....e E.... dedicam-se à venda ambulante.

1.84 Nada consta no registo criminal, relativamente a qualquer um dos arguidos.

4.3.1. Comecemos, por imperativo lógico, pelo recurso do Ministério Público, por saber se os factos provados integram a prática, em co-autoria, do crime de burla qualificado quanto a todos os arguidos.
A decisão recorrida analisou os elementos daquele tipo legal e escreveu, ao afastar a sua corporização, o seguinte:

«Fundamentos de direito:

A acção penal.

(. . .) Resulta da conjugação destes normativos que são elementos constitutivos do crime de burla, o enriquecimento à custa de outrem. E que esse enriquecimento e consequente empobrecimento do lesado com o crime, sejam obtidos por meio de erro ou engano provocados astuciosamente pelo agente da infracção, isto é, usando de um meio engenhoso para enganar ou induzir em erro

(. . .). A burla constitui um crime de dano, definido como aquele em que se exige uma lesão efectiva de interesses significativos para o direito, na definição já antiga do Prof. Eduardo Correia ("Direito Criminal", vol. I, página 287). A sua consumação pressupõe, por isso, a ocorrência de um prejuízo efectivo no património do sujeito passivo ou de terceiros.

A noção de património, para o efeito pretendido de configuração do crime de burla, não é incontroversa, salientando a doutrina a existência de três teses fundamentais, a saber, as concepções jurídica, económica e económico-jurídica - cfr. Parecer do Prof. Dr. Figueiredo Dias, "Crime de Emissão de Cheque sem Provisão", publicado na Colectânea de Jurisprudência, tomo 3/92, página 65 e seguintes, bem como a recente publicação "Comentário Conimbricense do Código Penal", tomo II, página 277 e seguintes.

A concepção prevalecente, económico-jurídica, reconduz o património ao conjunto de todas as situações e posições com valor económico, detidas por uma pessoa e protegidas pela ordem jurídica, ou cujo exercício não é desaprovado por essa mesma ordem jurídica.

Esta concepção, ultrapassando o unilateralismo das teses jurídica (que reconduz o património relevante à lesão de direitos subjectivos) e económica (reportando-o a vantagens económicas), "arrancando de um estrito critério económico - o que, desde logo, garante uma adequação às realidades da vida moderna - introduz, em seguida, um elemento limitador de natureza axiológicojurídica, traduzido na conformidade da situação de facto com o direito, globalmente considerado" (parecer antes citado).

A incriminação do crime de burla visa, essencialmente, a protecção dos interesses patrimoniais das pessoas de boa fé, que regem os seus actos de acordo com os valores sociais dominantes, consagrados na ordem jurídica, enquanto sistema global de ordenação.

Na caracterização do quadro legal relevante importa ainda considerar o disposto no artigo 266º do Código Penal que, sob a epígrafe "aquisição de moeda falsa para ser posta em circulação", incrimina e sanciona com pena de prisão ou multa quem adquirir, receber em depósito, importar ou por outro modo introduzir em território português, para si ou para outra pessoa, com intenção de, por qualquer meio, incluindo a exposição à venda, a passar ou pôr em circulação, como legítima ou intacta, moeda falsa ou falsificada, moeda metálica depreciada, pelo seu pleno valor, ou moeda metálica com o mesmo ou maior valor que o da legítima, mas fabricada sem autorização legal.

O artigo 265º do mesmo diploma incrimina quem, por qualquer modo, incluindo a exposição à venda, passar ou puser em circulação, como legítima ou intacta, moeda falsa ou falsificada.

Confrontado o quadro legal que se deixou sumariamente traçado com os factos consignados em sede própria, verifica-se que os arguidos, em consonância com um plano previamente estabelecido, encenaram uma série de actos que culminaram com a entrega aos mesmos, pelo demandante Ernesto, da quantia de 12 mil contos.

Este valor, do qual o requerente ficou desapossado, não teve qualquer contrapartida.

Verifica-se então que os arguidos agiram com intuito de enriquecerem à custa do património do requerente (desiderato que alcançaram); por outro lado, que o requerente praticou actos que se repercutiram negativamente no seu património, determinando uma perda,

Importará então averiguar se tal resultou de erro ou engano sobre factos astuciosamente provocados pelos arguidos e se o prejuízo patrimonial sofrido pelo requerente é juridicamente relevante.

Quanto ao primeiro aspecto:

O demandante F..... procedeu à entrega, aos arguidos, da mala contendo o dinheiro, no pressuposto de que receberia como contrapartida notas falsas de grande qualidade, enquanto muito idênticas às notas verdadeiras e, por isso, susceptíveis de passar com facilidade como estas.

Os arguidos, tendo recebido o valor em causa, não entregaram - nem se propunham entregar - qualquer outro valor como contrapartida.

Apesar disso, agiram como se se propusessem fazer com o demandante o negócio ilícito em causa.

Sempre se poderá afirmar que ao demandante era exigível que previsse que, atenta a natureza ilícita do negócio (artigos 265 e 266º do Código Penal) e dispondo-se os arguidos a nele intervirem, lhe era exigível que previsse a possibilidade de ser enganado,

Salienta-se no entanto que foi o demandante quem foi contactado pelos arguidos; e que o mesmo, depois de várias hesitações e em face do cenário desenvolvido pelos arguidos, foi induzido a agir em erro, determinando este erro um prejuízo para o seu património.

Parece poder afirmar-se, em face disso, que o demandante agiu em erro e que este foi provocado astuciosamente pelos arguidos: primeiramente, predispuseram o mesmo a realizar o negócio (foi contactado pelo A...., pessoa que conhecia; foi levado - com a sua aceitação - a diversos locais onde foi apresentado aos supostos vendedores das notas falsas e onde lhe foi revelada a excelência da falsificação e a sua passagem fácil); depois, acompanharam o ulterior processo de resolução por parte do demandante, de novo agindo no sentido de o predispor ao negócio perante as hesitações demonstradas, aqui intervindo novo figurante.

A actuação dos arguidos - o modo como o fizeram - parece ter sido decisiva no processo de resolução do demandante, pelo que pode afirmar-se a existência de manipulação astuciosa no sentido de levar o demandante a agir em erro.

De qualquer modo, a procedência da acusação exige que estejamos em presença de um prejuízo patrimonial que mereça a tutela do direito.

No caso dos autos, verifica-se que o requerente, ao privar-se da quantia de doze mil contos, pretendia obter em troca moeda falsa: privando-se dessa quantia, tinha a expectativa de receber notas falsas representando o valor global de sessenta mil contos, notas que certamente utilizaria, procurando fazer passar as mesmas como dinheiro verdadeiro, propondo-se assim ludibriar terceiros e enriquecer o seu património através da prática de actos ilícitos, mais especificamente, através da prática de crimes de aquisição de moeda falsa para ser posta em circulação e de passagem de moeda falsa, sancionadas nos termos dos artigos 266º e 265º do Código Penal, anteriormente mencionados.

Daqui resulta que a lesão do património dos requerente se traduz na frustração de um lucro ilícito, que seria obtido através de actos sancionados como crime. Isto é, o desenvolvimento dos actos em discussão no sentido de se obter o efeito pretendido pelo demandante - e que não configuraria certamente o crime de burla, por parte dos arguidos - levaria à prática dos crimes de aquisição de moeda falsa para ser posta em circulação e de passagem de moeda falsa, antes referenciados e pretendidos pelo demandante.

Ora, a ser assim, não parece que a lesão patrimonial em causa possa ser considerada relevante para poder sustentar a incriminação pretendida na acusação.

A expectativa do demandante consubstanciava-se no recebimento das notas falsas, pelas quais se propunha enriquecer o seu património; nesse pressuposto ele privou-se do dinheiro que entregou aos arguidos - e de que se propunha privar para obter as notas falsas; a acção dos arguidos frustrou a concretização dessa expectativa e, nessa medida, determinou ofensa ao património do demandante: este não recebeu a prestação correspondente ao valor de que se privou.

Contudo, a concretização do seu desiderato configuraria a prática de acto ilícito, mais especifica e gravosamente, de crime, nos termos antes enunciados, configuraria um ganho patrimonial ilegítimo.

Afigura-se que seria incoerente aceitar a existência de tutela penal a uma situação que, a concretizar-se nos termos pretendidos pelo demandante, se traduziria no cometimento de um crime.

Este elementos é essencial para a configuração do crime, atendendo ao facto da burla, como antes se deixou caracterizado, ser um crime de resultado e um crime de dano que se consuma com a lesão do património do sujeito passivo do crime.

Conclui-se então no sentido da não verificação do cometimento do crime de burla, face à inexistência de lesão patrimonial relevante, enquanto protegida pela ordem jurídica.»

O Ex.mo Recorrente sustenta que se verifica um efectivo prejuízo patrimonial do lesado, de um património legítimo e como tal merecedor de tutela penal. Não chegou o mesmo - afirma - a praticar factos ilícitos, como poderia ter acontecido se lhe tivesse sido entregue a moeda falsa, numa «conduta moral e socialmente passível de censura e movido por ganância, ou ambição de ganho fácil», o que não basta para isentar os arguidos da responsabilidade penal pela prática dos seus actos comprovadamente perpetrados.
E cita em seu apoio a doutrina do Comentário Conimbricense, em anotação ao art. 217.º do Código Penal.

4.3.2. As considerações tecidas na decisão recorrida não merecem a concordância deste Supremo Tribunal de Justiça, como já se decidiu no Ac. de 21.3.2001 (1), que se acompanha inteiramente, com o seguinte sumário, no ponto em causa:  «segundo a doutrina aceite, na burla do conto do vigário - no caso dos autos mediante promessa de venda de notas do Banco de Portugal com pequeno defeito, sendo que as poucas entregues, capeando papéis cortados à medida, eram verdadeiras - a falta de probidade que o burlado revela é muitas vezes igual à do próprio burlão, sem que, todavia, se possa afastar a culpabilidade do agente, e que o sujeito passivo sofre um efectivo prejuízo no seu legítimo património.»

Como diz Almeida Costa, no referido Comentário (2), «de modo diverso se passam as coisas quando, induzido em erro acerca dos termos de um negócio ilícito (v. g., aquisição de moeda falsa ou de estupefacientes), o sujeito passivo sofre um prejuízo no seu legítimo património (v. g., em troca do pagamento da soma convencionada, o burlado recebe uma mala cheia de papel de jornal ou de farinha). Numa tal hipótese, independentemente do eventual concurso de outras infracções, observa-se um efectivo dano patrimonial e, por consequência, desde que verificados os demais requisitos da figura, um delito de burla.» (sublinhado agora).
Mas já Beleza dos Santos salientara que o facto de se estar a lidar com a promessa de troca de moeda falsa (ou imperfeita), em quantidade proporcionalmente elevada em relação à verdadeira recebida, tendo como destinatários pessoas que razoavelmente haveriam de supor que o "negócio" claudicaria pela correcção e legalidade - "burlão tenta enganar burlão" - excluiria a realização do tipo de ilícito em causa (3).
Como referiu (4) «o facto de o burlado ter também um fim ilícito em vista, quando aceita como verdadeira a falsa aparência que o burlão lhe apresenta, não altera o carácter criminoso dos factos quanto ao agente do crime. É sabido que na burla do conto do vigário a falta de probidade que o burlado revela é muitas vezes igual à do próprio burlão; ambos querem enganar. Mas não pode dar-se uma compensação de culpabilidades, de propósitos ilícitos. A malícia de um não destrói a responsabilidade do outro ..." (sublinhado agora).

Júlio Fabbrini Mirabete (5), escreve a propósito:

«Discute-se a respeito da existência do crime de estelionato quando se revela uma fraude bilateral. Em muitos casos, em especial nos denominados contos do vigário, há má fé também por parte da vítima, que pretende, evidentemente sem a menor possibilidade, obter uma vantagem indevida. No conto do legado o ofendido recebe um pacote que supõe ser de cédulas mas é papel picado (paco) para entregar a uma instituição de caridade, deixando dinheiro seu com o agente como garantia da entrega, com o intuito de se apropriar da "doação"; no conto da guitarra, a vítima adquire uma máquina, que pretensamente é utilizável na impressão de moeda (guitarra); no conto do bilhete premiado a vítima adquire um bilhete de lotaria supondo estar ele premiado por lhe ter sido apresentada uma lista falsa dos resultados da extracção, pretendendo iludir o vendedor; no conto da fábrica o lesado supondo, que vai aproveitar-se da situação difícil de um empresário, emprega numerário em uma indústria inexistente etc. (6) As razões apontadas para a impunidade, defendida veementemente por Hungria, são: a lei não deve amparar a má fé; há impossibilidade de reparação do dano no Direito Civil por ser nulo o acto ou por ser ilícito seu objecto (arts. 145, inc. II, e 971, do CC) ; é impossível a repetição de indébito para quem deu coisa com fim ilícito etc. (7) A favor da incriminação do facto são apresentados os seguintes argumentos: não se pode ignorar a má fé do autor que se locupletou; a vítima foi lesada, sofreu prejuízo; a vítima tinha a intenção criminosa mas não conseguiria jamais levá-la ao final; a reparação do dano é matéria exclusivamente civil e o direito penal visa proteger a sociedade e não simplesmente a vítima; não existe património juridicamente não protegido contra o estelionato; se a vítima age com má fé, pode-se tomar a solução de puni-lo também e não a de isentar de responsabilidade o agente; etc.»

Informa o mesmo Autor que é predominante «a doutrina, no sentido de ocorrer estelionato na fraude bilateral (8) e na jurisprudência tem-se entendido que a torpeza simultânea não exclui o delito nem pode erigir-se em causa de isenção de penal (RT 335/88, 423/419, 485/352, 486/319, 542/399, 585/316; JTACrSP 44/155 e 158, 45/207, 67/273)».
No mesmo sentido aponta Francisco Muñoz Conde (9), ao escrever: «O negócio com causa ilícita (por ex., para traficar com drogas) também pode dar origem a uma burla, se bem que não produza qualquer efeito no âmbito civil (art. 1275 do Código Civil). O que é uma boa prova da própria autonomia do Direito Penal que não pode deixar de sancionar um burlão porque o meio de que se valeu é a realização com outro de um negócio ilícito. No entanto, o burlado não pode exigir, em nenhum caso, que se realize o negócio ilícito; não pode, por ex. exigir que o traficante lhe entregue a droga, que a prostituta cumpra o seu serviço ou que lhe seja entregue a máquina de fazer notas. Esta distinção passa por vezes desapercebida à doutrina que não adverte  que uma coisa é a apreciação da pertença na burla e outra a exigibilidade da prestação».

No caso sujeito, como é expressamente referido na decisão recorrida, verificam-se todos os elementos do tipo legal de crime de burla qualificada, sendo certo que não são aventadas dúvidas, de que o património defraudado da vítima não fosse legítimo, tanto quanto resulta dos autos.
Procede, assim, o recurso do Ministério Público.
Questão em aberto é a de saber se o lesado não terá cometido um crime tentado de aquisição de moeda falsa para ser posta em circulação do art. 266.º do Código Penal, uma vez que a tal não obstará eventualmente a circunstância de não haver efectivamente moeda falsa envolvida. Com efeito, os indícios constantes dos autos parecem apontar para que não fosse manifesta a inexistência do objecto essencial à consumação do crime (moeda falsa), toda a vez que o lesado despendeu larga soma para a sua aquisição e, por outro lado não se mostra manifesta a inaptidão do meio empregue pelo agente (n.º 3 do art. 24.º do C. Penal).
Extraia-se, pois, certidão do acórdão recorrido e deste acórdão e entregue-se a mesma ao Ex.mo Magistrado do Ministério Público para fins de procedimento criminal.
4.3.3. Estabelecida a autoria do crime de burla qualificada impõe-se determinar a medida da pena.
Para escolha da medida da pena é imprescindível examinar o conteúdo das disposições dos art.ºs 70.º, 71.º a 74.º, e 77.º, do Código Penal, tendo como pano de fundo as finalidades das penas, a que o art. 40.º se refere: a protecção dos bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade, em caso algum a pena podendo ultrapassar a medida da culpa.
Pode dizer-se se atribui um significado prospectivo à protecção dos bens jurídicos e que se traduz na tutela das expectativas da comunidade na manutenção da vigência da norma violada, acoberto da ideia da prevenção geral positiva ou prevenção de integração, que se alimenta do princípio constitucional da necessidade da pena.
Mas impõe-se a aplicação, no caso concreto, de tal medida abstracta de pena destinada a assegurar a confiança da comunidade no funcionamento do sistema punitivo, ou seja, escolher a pena mais apropriada dentro do esquema previsto, como fixar o seu montante preciso entre os respectivos limites.
E a culpa, tributária da dignidade humana igualmente com assento constitucional constitui um desses limites.
Sem descurar a vertente da socialização do agente: "dentro dos limites consentidos pela prevenção geral positiva ou de reintegração - entre o ponto óptimo e o ponto ainda comunitariamente suportável de medida da tutela dos bens jurídicos -, podem e devem actuar pontos de vista de prevenção especial de socialização, sendo eles que vão determinar, em último termo, a medida da pena. Esta deve, em toda a extensão possível, evitar a quebra da inserção social do agente e servir a sua reinserção na comunidade, só deste modo e por esta via se alcançando uma eficácia óptima de protecção dos bens jurídicos". Devendo o aplicador interrogar-se sobre "qual o mínimo de pena capaz de, perante as circunstâncias concretas do caso relevantes, se mostrar ainda comunitariamente suportável à luz da necessidade de tutela dos bens jurídicos e da estabilização das expectativas comunitárias da validade da norma violada" (10).
Dentro deste esquema, a determinação da pena é feita em função da culpa e das exigências da prevenção (art. 71º), atendendo-se a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo, deponham a favor ou contra o agente, nomeadamente, considerando o grau de ilicitude do facto, o modo de execução e a gravidade das suas consequências, o grau de violação de deveres impostos ao agente, o dolo e sua intensidade, os sentimentos manifestados no cometimento do crime e os fins que o determinaram, as suas condições pessoais e a situação económica, os antecedentes e conduta posterior de reparação ou não das consequências, a preparação ou não para manter uma conduta licita, manifestada no facto, se a falta dever ser censurada pela pena.
O modus operandi seguido pelos arguidos revela já um grau elevado de sofisticação, quer no esquema montado para convencer o lesado, quer nos meios de transporte e comunicação usados, tudo com um grau elevado de eficácia, o que associado ao valor monetário significativo obtido, aponta para uma ilicitude elevada.
O grau de maturação do projecto e de envolvimento de cada um dos seus co-autores, que agiram com dolo directo, aponta igualmente para uma culpa elevada.

A cupidez do lesado que visava ele mesmo um projecto criminoso é, no entanto, atendível no quadro da prevenção geral de integração que se referiu já, como decidiu este Supremo Tribunal de Justiça no citado Ac. de 21-03-2001 (proc. n.º 3411/00-3): «(6) - Segundo a doutrina aceite, na burla do conto do vigário - no caso dos autos mediante promessa de venda de notas do Banco de Portugal com pequeno defeito, sendo que as poucas entregues, capeando papéis cortados à medida, eram verdadeiras - a falta de probidade que o burlado revela é muitas vezes igual à do próprio burlão, sem que, todavia, se possa afastar a culpabilidade do agente, e que o sujeito passivo sofre um efectivo prejuízo no seu legítimo património. (7) - No entanto, as expectativas comunitárias imporão para validade das normas a que se referem os arts. 202.º, al. b), 217.º, n.º 1 e 218.º, n.ºs 1 e 2, al. a), do CP, em situações deste tipo, uma punição dos infractores com alguma severidade mas não podendo deixar de atender também à falta de ética revelada pelo ofendido, já detentor de património significativo, mas que não hesita em entrar num "negócio" de tal índole, revelando uma desenfreada cupidez de lucro fácil.»

Os arguidos não têm antecedentes criminais (1.84).

O arguido C.... é pessoa considerada e estimada no meio em que está inserido (1.77); desenvolve a sua actividade no negócio de compra e venda de automóveis, daí retirando os proventos para a sua subsistência (1.78).

O arguido B.... é empregado num estabelecimento de café, em Coimbra (1.79); é considerado bom trabalhador, sendo ele quem sustenta o respectivo agregado familiar (1.80).

O arguido A.... é pessoa bem aceite no respectivo meio (1.81); desenvolve a sua actividade no negócio de compra e venda de automóveis, daí retirando os proventos para a sua subsistência (1.82).

Os arguidos D....e E.... dedicam-se à venda ambulante (1.83).
A moldura penal abstracta é de prisão de 2 a 8 anos de prisão (art. 218.º, n.º 2, al. a) do Código Penal, entendendo-se que a submoldura traçada pelas considerações de prevenção de integração e a culpa dos agentes se situa entre o respectivo limite mínimo: 2 anos e 5 anos de prisão, mostrando-se equilibrada a pena de 3 anos, para cada um dos arguidos.
Atendendo à ausência de passado criminal, ao facto de se mostrarem socialmente integrados, e também por comparação extra-processual (cfr. o já citado proc. n.º 3411/2000-3) num contributo para evitar disparidades injustificadas, é de supor que a censura dos factos e a ameaça de prisão realizem de forma adequada e suficiente as finalidades da punição. Assim. Nos termos dos art.ºs 50.º, 51.º, n.º 1, al. a) do C. Penal suspende-se-lhes a execução da pena pelo período de 4 anos, com a obrigação de pagarem ao lesado a importância em que vierem a ser condenados neste acórdão, no prazo de 1 ano.
Aplicar-se-á, se for o caso, o disposto no art. 6.º da Lei n.º 29/99, de 12 de Maio.
4.4. Quanto ao recurso do lesado, sustenta ele que nada obsta a que a indemnização de perdas e danos emergentes de crime, mesmo em caso de absolvição, seja fixada no processo penal, reagindo contra o entendimento de que tal só tem lugar em caso de responsabilidade extra-contratual ou pelo risco.
Escreveu-se na decisão recorrida:

«O pedido de indemnização civil.

Nos termos do artigo 7lº do Código de Processo Penal, o pedido de indemnização civil fundado na prática de um crime é deduzido no processo penal respectivo.

O pedido de indemnização civil é deduzido pelo lesado, entendendo-se como tal a pessoa que sofreu danos ocasionados pelo crime, ainda que se não tenha constituído ou não possa constituir-se assistente - artigo 74º, n.º 1, do Código de Processo Penal.

A sentença, ainda que absolutória, condena o arguido em indemnização civil sempre que o pedido respectivo vier a revelar-se fundado - artigo 377º, n.º 1, do mesmo diploma legal.

Bem visto que tal pedido há-de fundar-se em responsabilidade civil extra-contratual, estando excluída, nomeadamente, a responsabilidade civil contratual (cfr. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 17 de Junho de 1099).

A este propósito, o artigo 483º do Código Civil estabelece que aquele que com dolo ou mera culpa, violar ilicitamente o direito de outrem ou qualquer disposição legal destinada a proteger interesses alheios fica obrigado a indemnizar o lesado pelos danos resultantes da violação.

Quem estiver obrigado a reparar um dano deve reconstituir a situação que existiria se não se tivesse verificado o evento que obriga à reparação - artigo 562º do mesmo diploma legal.

No caso dos autos, a conclusão antecedente prejudica a procedência da pretensão do demandante, quando é certo que o mesmo se propunha (ainda que sem o ter concretizado) cometer os crimes de aquisição e passagem de moeda falsa e que a intervenção no âmbito da acção penal se restringe à responsabilidade civil extra-contratual.

É certo que o demandante tem o direito a haver dos arguidos o valor que satisfez: nos termos dos artigos 280º e a 89º do Código Civil, é nulo o negócio jurídico cujo objecto seja contrário à lei, decorrendo a nulidade do negócio a obrigação de restituição de tudo o que tiver sido prestado ou, se a restituição não for possível, o valor correspondente.

A eventual dificuldade do demandante em obter dos demandados o reembolso voluntário do valor que satisfez - ou de parte dele - pode legitimar o procedimento cível adequado, nomeadamente e desde que verificados os respectivos pressupostos, os procedimentos cautelares previstos nos artigos 481º e seguintes do Código de Processo Civil, relativamente a bens dos arguidos ou valores, incluindo bens apreendidos nestes autos.

Regista-se que, em diferentes depósitos, se mostra apreendida a quantia global de 5435000 escudos (resultante dos valores apreendidos aos arguidos E.... e C.....

Mais se demonstrou que tais valores representam parte do dinheiro que foi entregue pelo demandante F aos arguidos.

Em tais condições e pese embora a improcedência da acusação, necessariamente que se impõe a sua restituição ao demandante, a quem pertence.

O decaimento do demandante determina a sua condenação no pagamento de custas, no que concerne ao pedido de indemnização civil, face ao disposto no artigo 525º do Código de Processo Penal e no artigo 446º do Código de Processo Civil.»

 Importa notar em primeiro lugar que, dada a posição assumida no acórdão recorrido sobre o pedido de indemnização, a decisão não podia nunca ser a tomada: «julgar improcedente o pedido de indemnização civil e, em consequência, absolver os mesmos arguidos do pedido», mas sim absolvê-los da instância, deixando aberta a via cível que o acórdão recorrido expressamente considerou estar ao seu alcance.
Em segundo lugar, como se viu, aceita a decisão recorrida que o contrato de compra e venda é nulo, «nos termos dos artigos 280º e 289º do Código Civil, por objecto contrário à lei, decorrendo da nulidade do negócio a obrigação de restituição de tudo o que tiver sido prestado ou, se a restituição não for possível, o valor correspondente».

Ora, o acórdão uniformizador de jurisprudência n.º 7/99 deste Supremo Tribunal de Justiça é do seguinte teor: «se em processo penal for deduzido pedido cível, tendo o mesmo por fundamento um facto ilícito criminal, verificando-se o caso previsto no artigo 377.º, n.º 1 do Código de Processo Civil, ou seja, a absolvição do arguido, este só poderá ser condenado em indemnização civil se o pedido se fundar em responsabilidade extra-contratual ou aquiliana, com exclusão da responsabilidade civil contratual» (11).
O que significa que se pretendeu afastar tão só a responsabilidade contratual.
E se restituição do recebido num negócio nulo é imposta pela lei, não se trata, no caso, de responsabilidade contratual que à luz da jurisprudência fixada impeça o conhecimento do pedido de indemnização em processo penal, apesar da absolvição crime.

Deve, aliás, ter-se em conta que, conforme a jurisprudência fixada pelo Supremo Tribunal de Justiça, «quando o tribunal conhecer oficiosamente da nulidade de negócio jurídico invocado no pressuposto da sua validade, e se na acção tiverem sido fixados os necessários factos materiais, deve a parte ser condenada na restituição do recebido com fundamento no n.º 1 do artigo 289.º do Código Civil» (12).

De acordo com o art. 266.º é punida a aquisição de moeda falsa para ser posta em circulação, nos seguintes termos: «(1.) Quem adquirir, receber em depósito, transportar, exportar, importar ou por outro modo introduzir em território português, para si ou para outra pessoa, com intenção de, por qualquer meio, incluindo a exposição à venda, a passar ou pôr em circulação: (a) Como legítima ou intacta, moeda falsa ou falsificada; (b) Moeda metálica depreciada, pelo seu pleno valor; ou (c) Moeda metálica com o mesmo ou maior valor que o da legítima, mas fabricada sem autorização legal; é punido, no caso da alínea a) com pena de prisão até 3 anos ou com pena de multa e, no caso das alíneas b) e c), com pena de prisão até 6 meses ou com pena de multa até 60 dias. (2.) A tentativa é punível.»
O que acarreta, nos termos sobreditos, a nulidade, por objecto contrário à lei, do respectivo contrato de contrato de compra e venda, e, como se viu, a obrigação de restituição de tudo o que tiver sido prestado ou, não sendo a mesma possível, o valor correspondente.
Daí que devam os arguidos restituir ao lesado o dinheiro recebido para aquisição de moeda falsa, descontada que seja a soma que, tendo-lhes sido entregue pelo lesado, foi apreendida àqueles e se encontra à ordem destes autos (5.435.000$00).
Na decisão recorrida atendendo a que se demonstrou que tal soma representa parte do dinheiro que foi entregue pelo demandante Ernesto aos arguidos, ordenou-se a sua restituição ao demandante, a quem pertence, por se ter entendido que, pese embora a improcedência da acusação, a mesma necessariamente se que se impõe a sua restituição.

  V
Pelo exposto, acordam os juízes que compõem a Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça em conceder provimento ao recurso do Ministério Público e conceder provimento parcial ao recurso do lesado.
Custas do recurso do Ministério Público pelos arguidos com a taxa de Justiça de 5 Ucs para cada um e custas do recurso do pedido cível, em ambas as instâncias, pelo lesado e pelos demandados no respectivo decaimento, que se estabelecem em 1/5 para aquele e 4/5 para estes.
Honorários legais ao Ex.mo Defensor.


Lisboa, 23 de Maio de 2002.
Simas Santos,
Dinis da Fonseca,
Abranches Martins,
Oliveira Guimarães.

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(1) Proc. n.º 3411/2000-3, relatado pelo Cons. Lourenço Martins, que se acompanha de perto.

(2) Comentário Conimbricense do Código Penal, Parte Especial, II, pág.288, anotação ao art. 217º.
(3) Em sentido diverso para a torpeza bilateral, que não é aliás exactamente o caso, pode ver-se longamente, Nelson Hungria, Comentários ao Código Penal, VII, pág.s 191-201, como melhor se verá adiante.
(4) "In Revista de Legislação e de Jurisprudência, Ano 76, n.º 2763, fls. 325.
(5) Manual de Direito Penal, 2, pág.271-2.

(6) Sobre o assunto: Ruy Cardoso de Mello Tucunduva, Conto - Conceito e espécies. In : Justitia 102/71-101.
(7) Comentários, VII, p. 191-202.
(8) Nesse sentido: Manzzino, Trattato, v. 9, p. 644-657, § 3.383: Noronha, Direito penal, v. 2, p. 394-398 ; Fragoso, Lições, P. E., v. 2, P 73-75 ; e Bento de Faria. Código penal brasileiro, v. 5, p. 146, apud Júlio Fabbrini Mirabete, op. cit.
(9) Francisco Muñoz Conde, Derecho Penal, Parte Especial, 8ª Edição, pág. 282, em tradução do Relator.
(10) Figueiredo Dias, Consequências Jurídicas do Crime, p. 227 e segs.

(11) Ac. n.º 7/99 de 17-06-1999, DR IS-A de 3-8-99.

(12) Ac. n.º 4/95 de 28-03-1995, DR IS-A de 17-5-95.