Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
1017/07.0TVLSB.L1.S1
Nº Convencional: 1.ª SECÇÃO
Relator: ALVES VELHO
Descritores: SEGURO DE ACIDENTES PESSOAIS
CARTÃO DE CRÉDITO
CLÁUSULAS CONTRATUAIS GERAIS
INTERPRETAÇÃO
Nº do Documento: SJ
Data do Acordão: 09/21/2010
Votação: UNANIMIDADE
Referência de Publicação: CJASTJ, ANO XVIII, TOMO III/2010, P. 101
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA
Área Temática: DIREITO CIVIL - CLAUSULAS CONTRATUAIS GERAIS
Doutrina: - MOTA PINTO, "Teoria Geral do Direito Civil", 3.ª ed., 450/1.
Legislação Nacional: CÓDIGO CIVIL (CC): - ARTIGOS 236.º, 237.º, 238.º
CÓDIGO COMERCIAL (CCOM): - ARTIGOS 426.º E 427.º
CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL (CPC): - ARTIGOS 26.º, N.º1, 66.º.
DL N.º 176/95, DE 26/7: - ARTIGOS 1.º, 8.º, 10.º, 13.º.
DL N.º 446/85, DE 25/10, COM AS ALTERAÇÕES QUE LHE FORAM INTRODUZIDAS PELOS DL 220/95, DE 31/8 E 249/99, DE 7/7: - ARTIGOS 1.º, 10.º, 11.º.
Sumário : I- O seguro de acidentes pessoais associado a cartão de crédito apresenta-se como um seguro de cobertura mista e múltipla, com notas do denominado “seguro de grupo”, em que o subscritor do cartão de crédito foi Aderente e se tornou Segurado e Beneficiário, sendo Tomador o Banco.
II- Apesar de ao acordo celebrado entre o Banco (Tomador) e a Seguradora, enquanto empresas, não ser aplicável o Regime das Cláusulas Contratuais Gerais, não pode, sem mais, estabelecer-se uma relação de identidade entre esse contrato de seguro e a adesão, numa segunda fase, como Beneficiários, dos subscritores do cartão de crédito.
III- Nas relações entre Tomador e Seguradora não há contrato de adesão: - os termos do contrato de seguro são negociados entre ambas as entidades, podendo cada uma delas, em todas as cláusulas, discutir o respectivo conteúdo.
IV- Porém, ao celebrar o contrato de emissão do cartão de crédito, o cliente do banco adere a todo um conjunto de cláusulas pré-formuladas, para serem objecto de simples subscrição ou aceitação, em cuja elaboração intervieram apenas a seguradora e o tomador, situação que se ajusta à previsão do DL n.º 446/85, com a consequente submissão do contrato de seguro, nas relações do Beneficiário aderente com a Seguradora e o Banco ao Regime Jurídico das Cláusulas Contratuais Gerais, designadamente em sede de interpretação das cláusulas do contrato.
Decisão Texto Integral: Acórdão no Supremo Tribunal de Justiça:

1. - AA e BB intentaram acção declarativa contra “Caixa Geral de Depósitos, S.A.” e “Fidelidade-Mundial, S.A” pedindo que as Rés fossem condenadas a pagar-lhes a quantia de 49.879,79€, a título de indemnização por morte, e à A. CC a quantia de 1.104,84€, a título de reembolso de despesas de funeral, quantias a que acrescem juros de mora desde a data da interpelação, em 08.4.2004, até efectivo e integral pagamento.
Alegaram, em síntese, serem filhas e únicas herdeiras de DD, que faleceu em 12.10.2001, vítima de um acidente de viação quando, tendo saído de Lisboa, regressava a Castelo Branco, onde residia. A falecida DD era titular de um cartão de crédito “Classic”, emitido pela 1ª R., que, por sua vez, tinha celebrado com a 2.ª R. um contrato de seguro, mediante o qual os titulares do aludido cartão de crédito beneficiariam de um seguro que cobriria, entre outros, o risco de morte e invalidez permanente, quando deslocados em viagens de férias ou negócios, além de 50 km da residência, sempre que o tempo de permanência fora da mesma não excedesse 60 dias por deslocação. Nos termos dessa apólice, as AA. têm direito a receber as quantias que peticionam.

As RR. contestaram invocando, ao que ainda interessa, a inclusão do sinistro em causa na franquia quilométrica contratualmente estabelecida, que exclui da garantia sinistros ocorridos dentro de uma área geográfica de 50 km medidos a partir da residência da pessoa segura, sendo que aquele ocorreu a cerca de 33km, pelo que devem ser absolvidas do pedido.

Após completa tramitação da acção, foi proferida sentença em que a R. Caixa foi absolvida do pedido e a R. Seguradora condenada nos termos peticionados.

A Ré condenada apelou, com sucesso, pois a Relação absolveu-a também do pedido.

Agora são as Autoras a pedir revista, com vista à reposição do sentenciado na 1ª Instância, para o que, em termos úteis, argumentam nas conclusões da respectiva alegação:
“(…)
8. Ao contrário do sustentado pelo Acórdão recorrido, o banco (CGD) e a seguradora (Fidelidade Mundial), ao elaborarem o contrato de seguro em questão, não celebraram qualquer contrato a favor de terceiro; procederam, isso sim, a um expediente destinado a aumentar o volume de negócios do grupo Caixa Geral de Depósitos, de que ambos fazem parte;
9. Os bancos e as seguradoras não celebram contratos entre si a favor de ninguém, a sua própria capacidade jurídica não o permite (cfr. artigo 160.° do CC), o que bancos e seguradoras fazem é vender seguros, é vender cartões de crédito, é vender capital em troca de juro;
10. É este o motivo pelo qual, seja qual for a nomenclatura que bancos e seguradoras conferirem a este tipo de contrato de contrato de cartão de crédito com seguro acoplado, o mesmo nunca pode deixar de se reger pelo regime dos contratos de adesão ou cláusulas contratuais gerais, uma vez que ninguém questiona que o consumidor não negoceia qualquer cláusula, seja do cartão de crédito, seja do seguro;
11. Não considerar aplicável o regime das cláusulas contratuais gerais ao caso em apreço é desatender à protecção do consumidor, criando uma forma dos grandes grupos económicos tornearem as disposições de defesa do consumidor;
12. A tese da aplicabilidade das cláusulas contratuais gerais aos contratos de emissão de cartão de crédito com o acoplado seguro foi acolhida pelo Venerando Tribunal da Relação do Porto de 19/3/2001, processo n.º 0150178, disponível em dgsi.pt, bem como pelo Venerando Supremo Tribunal de Justiça, no douto Aresto de 29/1/2008, processo n.º 07B4422, disponível em dgsipt;
13. Assim, salvo melhor e mais sábia opinião, deve ser revogada a decisão do Acórdão recorrido, que sustentou que um contrato celebrado entre um banco e uma seguradora, com o objectivo de proporcionar aos titulares de um cartão de crédito seguros de vida ou de acidentes pessoais, não configura um contrato de adesão, sendo-lhe inaplicável o artigo 11.°/2 do DL n.º 446/85, de 25/10, que estabelece a prevalência do sentido mais favorável ao aderente em caso de dúvidas quanto ao sentido de determinada cláusula contratual, sendo substituída por decisão que considere que o já referido contrato efectivamente configura um contrato de adesão;
14. Ao não ter decidido como referido, violou o Tribunal a quo os artigos 236.°, 238.°, 443.°, todos do CC, e 11.°/1 e 2 do DL n.º 446/85, de 25 de Outubro;
15. Acresce que o objecto da protecção do seguro em questão nos autos não é os acidentes pessoais fora ou para além do raio de 50 km da referida residência; são sim os acidentes pessoais ocorridos em viagem de ou para a residência da pessoa segura;
16. Assim, mais que a localização física do sinistro, releva o enquadramento deste em determinada deslocação (viagem) e a extensão quilométrica desta relativamente à residência da pessoa segura, pois que o objecto do seguro são os acidentes pessoais em viagem, quer dizer, no decurso de uma deslocação. Sendo a extensão desta a partir da, ou até à, residência da pessoa segura que deve ser convocada para aferir a franquia;
17. O objectivo da franquia é a exclusão, da garantia do seguro, das deslocações do dia a dia mais curtas e frequentes - normalmente os percursos casa/trabalho e vice-versa - e não a delimitação de um perímetro espacial, "cego ", a partir da residência da pessoa segura onde as garantias do seguro não funcionam;
18. É, aliás, esta a orientação maioritária na jurisprudência que tem apreciado cláusulas de teor semelhante (cfr. os doutos Acórdãos do Venerando Supremo Tribunal de Justiça de 19/02/2004, processo n.º 03B4155; de 4/4/2006, disponível na CJSTJ, Ano XIV, tomo II, pág. 42; do Tribunal da Relação do Porto, de 19/03/2001, processo n.º 0150178; do Tribunal da Relação de Lisboa, de 02/06/2005, processo n. ° 2081/2005-6; do Tribunal da Relação de Évora, de 15/2/2007, processo nº 2696/06-3, estes três em dgsi.pt);
19. É que, como se disse, é erróneo considerar que o contrato de cartão de crédito com seguro acoplado a que o cliente totalmente adere, e perante o qual formula a sua decisão de contratar, só é parcialmente um contrato de adesão, pelo que não se pode excluir o consumidor do processo interpretativo das cláusulas relativas ao seguro;
20. A única interpretação verosímil e, diga-se, razoável, é que foi considerada na douta Sentença proferida, em 1.a instância, isto é, “··excedendo a viagem os 50 kms previstos na franquia, é indiferente o local onde se verifique o sinistro (dentro ou fora da área da franquia); o seguro de acidentes pessoais em viagem de extensão superior a 50 km vigora em toda a extensão do seu percurso desde a residência da pessoa segura até ao destino projectado (ou na inversa, desde o ponto de partida, início do regresso, até à residência) e não após os primeiros 50 kms (ou, até aos últimos 50 kms) ";
21. De qualquer forma, mesmo que se permaneça na dúvida quanto ao conteúdo desta cláusula, pelos motivos referidos e atendendo ao artigo 11.°/2 do DL 446/85, de 25 de Outubro, tal dúvida deverá ser resolvida no sentido que favoreça o aderente e, neste caso, as Recorrentes;
22. Ao não ter decidido como referido, violou o Tribunal a quo os artigos 236.°, 238.°, 443.°, todos do CC, e 11.°/1 e 2 do DL n.º 446/85, de 25 de Outubro.





2. - A questão única a apreciar e decidir consiste na fixação, por via interpretativa, do sentido com que deve valer a exclusão da garantia (produção de “efeitos” de “âmbito territorial”) do seguro de acidentes pessoais – viagens dos cartões de crédito Classic - CGD, consubstanciada na denominada “franquia quilométrica”, constante da respectiva apólice.





3. - Factualidade a considerar.
1. As autoras são únicas filhas e herdeiras de DD, que faleceu em 12 de Outubro de 2001;
2. DD era cliente da Caixa Geral de Depósitos, balcão de Castelo Branco, titular da conta n. ° 0------------ e titular de um cartão de crédito classic, emitido pela Caixa Geral de Depósitos, com o n.º ---------------;
3. Por acordo escrito, titulado pela apólice n.º --/-.--- "Caixa Classic", cujas condições gerais da apólice constam do documento de folhas 17 dos autos, a Caixa Geral de Depósitos acordou com a segunda ré que esta garantia às pessoas titulares daquele cartão a cobertura, entre outros, do risco de morte e invalidez permanente, quando se encontrem em viagem;
4. Nos termos do acordo referido em 3, o valor da indemnização seria no valor de € 49.879,79 e a segunda ré garantia ainda o reembolso das despesas de funeral, no valor de € 2.493,99;
5. Ainda nos termos do referido acordo, nas respectivas condições gerais, franquia quilométrica é definida como "área geográfica medida a partir da residência da pessoa segura, dentro da qual não funcionam algumas das garantias contratadas" e de acordo com a cláusula 3ª e quadro anexo das referidas condições gerais, é estabelecida uma franquia quilométrica de 50 km, no caso de acidentes pessoais, causados por viagens;
6. Lisboa situa-se a uma distância superior a 200 km de Castelo Branco;
7. Em 12 de Outubro de 2001, DD tinha residência na Av. N... A..., ...M – ....° Esq. B, 6000-083, em Castelo Branco;
8. No dia 12 de Outubro de 2001, DD seguia no autocarro de passageiros, matrícula ...-...-AL, da empresa “J... Rodoviária das B..., Ld.ª”, de Lisboa com destino a Castelo Branco;
9. …Regressando de uma visita de dois dias que fizera às autoras;
10. O aludido autocarro foi embatido por outro veículo pesado;
11. Foi na sequência e por causa do referido embate que faleceu DD;
12. A autora Maria Isabel despendeu a quantia de € 59,86 com o funeral de DD;
13. ...E teve, ainda, despesas no valor de € 1.044,98 com o aludido funeral;
14. O embate referido ocorreu em Peroledo, IP2, ao km 138,7;
15. ...Local esse que fica situado a cerca de 33 km da residência referida em 8.





4. - Mérito do recurso.


4. 1. - O contrato de seguro é um negócio jurídico que, por imposição da lei, está sujeito à forma escrita, regulando-se, em primeiro lugar, pelas disposições da respectiva apólice, instrumento que o formaliza – arts. 426º e 427º C. Comercial.
Situando-se fora do âmbito dos seguros obrigatórios o contrato ora em causa, não se coloca qualquer dúvida quanto à validade e eficácia do respectivo clausulado.

Consequentemente, o problema é, tal como qualificado, de interpretação e integração da declaração negocial, rectius das cláusulas que constituem as Condições Gerais da Apólice, e a questão a decidir é a de saber qual dos resultados interpretativos a que chegaram as instâncias deve aqui sufragar-se.

Em causa, pois, como avançado já, está saber se as Autoras, enquanto sucessoras e beneficiárias do pagamento da indemnização por morte da pessoa segurada, estão em condições de reclamar o pagamento do respectivo capital, em razão da respectiva cobertura pela garantia do seguro, com referência ao local da verificação do sinistro, questão em que dissentem as Partes e as Instâncias.

Assim, enquanto as Autoras, ora Recorrentes, com acolhimento na sentença, defendem que a “franquia quilométrica” de 50 km., que restringe a responsabilidade da seguradora a uma “área geográfica medida a partir da residência da pessoa segura”, garante o risco de acidentes que se verifiquem durante deslocações ou viagens que efectivamente excedam a distância de 50 km. desde a residência, independentemente do concreto local do acidente, a Recorrida, acompanhada pela Relação, sustentam que o raio de 50 km. contado da morada do segurado corresponde a uma zona onde não se aplicam as coberturas do contrato, não produzindo este efeitos, independentemente da extensão da viagem, destino ou proveniência da pessoa segura.



4. 2. - Pacífico o entendimento segundo o qual é matéria de direito a interpretação do negócio jurídico quando se não dirija ao apuramento da vontade real das Partes, mas, desconhecida esta, se devam seguir os critérios previstos nos citados arts. 236º-1 e 238º-1, compete a este Tribunal, no quadro legal enunciado, determinar o sentido com que deve ser fixado o objecto contratual.

O n.º 1 do art. 236.º acolhe a denominada "teoria da impressão do destinatário", de cariz objectivista, segundo a qual a declaração vale com o sentido que um declaratário normal, medianamente instruído, sagaz e diligente, colocado na posição do concreto declaratário, a entenderia.
Entre as circunstâncias atendíveis, apontam-se os termos do negócio, os interesses em jogo, a finalidade prosseguida pelo declarante, as negociações prévias, os usos e os hábitos do declarante, a conduta das partes após a conclusão do negócio, os usos da prática em matéria terminológica, além de outras (MOTA PINTO, "Teoria Geral do Direito Civil", 3.ª ed., 450/1).
Nos casos duvidosos, será de fazer apelo à natureza gratuita ou onerosa do negócio e ao princípio do equilíbrio das prestações, previsto no art. 237º.

Quando, como é o caso, estejam em causa negócios formais, o objectivismo exigido ao intérprete vai ainda mais longe.
Com efeito, estatui-se no art. 238.º-1, o sentido correspondente à impressão do destinatário não pode valer se não tiver um mínimo de correspondência, embora imperfeita, no texto do respectivo documento.

Só assim não será, como especialmente previsto no n.º 2 do mesmo art. 238.º, quando, não se encontrando, embora, na declaração uma expressão minimamente adequada, esse sentido não traduzido corresponda à vontade real das partes e as razões determinantes da forma do negócio se não oponham «à validade de um sentido que, no ponto considerado, exorbite da declaração».



4. 3. - Dada a natureza das cláusulas interpretandas serão de convocar ainda, em especial, a norma constante dos arts. 10º do DL n.º 446/85, de 25/10, com as alterações que lhe foram introduzidas pelos DL 220/95, de 31/8 e 249/99, de 7/7 e, se for caso disso, as acolhidas pelo art. 11º do mesmo diploma.

Entende-se, com efeito, divergindo do entendimento declarado no acórdão recorrido, que estamos no campo dos contratos de adesão, em que vale o regime jurídico das Cláusulas Contratuais Gerais, designadamente no que respeita às cláusulas ambíguas, que devem valer com o sentido que lhes atribuiria um aderente normal colocado na posição do aderente real – art. 11º do DL n.º 446/85 – e que as Seguradoras estão obrigadas a redigir “de modo claro e perfeitamente inteligível” as cláusulas gerais e especiais das apólices que emitem (DL n.º 176/95, de 26/7 – art. 8º).
Das condições gerais e especiais dos contratos de seguro dos ramos «Vida» e «Não Vida» devem constar, entre outros, elementos como a “definição dos conceitos necessários ao conveniente esclarecimento das condições contratuais” e o “âmbito do contrato” (arts. 10º e 13º do mesmo DL).

Na verdade, a situação que se apresenta é a de um seguro de cobertura mista e múltipla, com notas do denominado “seguro de grupo”, em que a mãe das AA., como subscritora do cartão de crédito foi Aderente e se tornou Segurada e Beneficiária, sendo também Beneficiárias as AA. (no caso de morte), sendo Tomador a “CGD” e Seguradora a Ré-recorrente.

Sendo a instituição bancária o Tomador do seguro é ela a responsável pelo pagamento do prémio à Seguradora, prémio que cobrará ao Segurado, no todo ou em parte, ou, sendo o seguro «não contributivo» suportará na totalidade - art. 1º do DL n.º 176/95.

Assim, se é verdade que ao acordo celebrado entre a “CGD” (Tomadora) e a Recorrente Seguradora, enquanto empresas, não é aplicável o regime das Cláusulas Contratuais Gerais, não pode, sem mais, estabelecer-se uma relação de identidade entre esse contrato de seguro, a adesão, numa segunda fase, como Beneficiários, dos subscritores do cartão de crédito.


Não está em causa, note-se, o clausulado do contrato celebrado entre a Seguradora e o Tomador, sua validade e eficácia nos exactos termos em que foi negociado, formalizado em apólice e entrou em execução entre essas Partes, ao que tudo foi completamente alheia a “Pessoa Segura”.

Nas relações entre Tomador e Seguradora não há contrato de adesão: - os termos do contrato de seguro são negociados entre ambas as entidades, podendo cada uma delas, em todas as cláusulas, discutir o respectivo conteúdo. É o que, de resto, resulta do artigo preliminar da apólice.

Mas, ao celebrar o contrato de emissão do cartão de crédito, o cliente do banco adere a todo um conjunto de cláusulas pré-formuladas, constantes de modelos ou formulários, para serem objecto de simples subscrição ou aceitação, sem concessão de oportunidade de discussão ou negociação do respectivo conteúdo, nas quais se incluem as referentes ao contrato de seguro, em cuja elaboração intervieram apenas a seguradora e o tomador.
Ao requisitante do cartão de crédito apenas é dada a possibilidade de aceitar ou de rejeitar em bloco o conjunto das cláusulas que lhe são apresentadas pré-elaboradas, refiram-se elas às condições de utilização do cartão ou às de beneficiário do seguro associado.


Adita-se que não está demonstrado que o seguro constitua um benefício gratuito, sem qualquer custo para a Pessoa Segura, mas apenas que esta não paga prémio à Seguradora, nem a Tomadora lho cobra directamente, ignorando-se se e em que medida o custo do prémio é repercutido nos custos de utilização do cartão (anuidade e outros).
Certo é que as entidades emitentes de cartões de crédito o fazem no exercício da actividade comercial a que é inerente o fim lucrativo e consequente onerosidade dos contratos que celebram.


A situação ajusta-se, pois, à previsão do art. 1º do Dec.-Lei n.º 446/85, com a consequente a submissão do contrato de seguro, nas relações do Beneficiário aderente com a Seguradora e o Tomador do seguro ao Regime Jurídico das Cláusulas Contratuais Gerais.



4. 4. - A interpretação das cláusulas contratuais gerais faz-se, em princípio, segundo as regras gerais de interpretação das declarações negociais com o regime previsto nos arts. 236º a 238º do C. Civil, cujas linhas se deixaram traçadas, atendendo ao circunstancialismo específico do contrato interpretando em que as cláusulas se inserem – art. 10º do DL 446/85.

O mesmo sucede quando o intérprete se depare com cláusulas contratuais ambíguas – reveladoras de mais que um sentido; com sentido indefinido ou indeterminado - em que vale o mesmo regime interpretativo acolhido pela lei geral, novamente por expressa disposição do n.º 1 do art. 11º da lei especial: - As cláusulas ambíguas devem ser entendidas com o sentido que lhes atribuiria um aderente normal, colocado na posição do aderente real, tal-qualmente se estabelece no dito art. 236º-1, salvo quando, mediante aplicação dos princípios gerais sobre interpretação, à luz da “impressão do destinatário”, se não supere a ambiguidade, permanecendo dúvidas, sendo que, então, admitido desvio ao disposto no art. 237º C. Civil, o n.º 2 do citado art. 11º faz prevalecer o sentido interpretativo mais favorável ao aderente, opção que bem se compreende tendo presente a situação de vantagem em que se encontra o predisponente no plano técnico e jurídico. É este que, com recurso aos seus meios organizacionais e técnicos, da mais diversa natureza, planeia e elabora um conjunto uniforme de regras a que o aderente vai anuir. Por isso, se delas se prevalece e tem à disposição tais meios, que põe ao serviço da satisfação dos seus interesses, não só é justo, como o exige a própria boa fé, que suporte as consequências da violação dos deveres de clareza e rigor dos quadros reguladores que coloca aos aderentes.



4. 5. - Voltando ao caso concreto, importa, antes de mais, chamar à colação as cláusulas com pertinência para a fixação do âmbito de cobertura do seguro, na parte em discussão.

Nas decisões das Instâncias o enfoque da questão incidiu sobre a cláusula que constitui o “artigo 3º - Coberturas” e a “franquia quilométrica”, definida no artigo 1º como “Área geográfica medida a partir da residência da pessoa segura, dentro da qual não funcionam algumas das garantias contratadas”, sendo que aquele artigo 3º se estipula que “Dentro dos limites e franquias fixado no Quadro Anexo, o presente contrato garante à pessoa segura as seguintes coberturas: 1. Acidentes pessoais (…)” e no Quadro se identificam as várias “coberturas”, os “capitais” garantidos (com indicação dos casos de redução e franquia), as “pessoas seguras” e “franquia quilométrica” (de 50 km. para as viagens).

Procedeu-se, pois, à interpretação da cláusula da franquia quilométrica apenas com referência ao art. 3º das Condições Gerais da Apólice, relacionando-a a 1ª Instância com a extensão das viagens para excluir apenas os percursos de extensão inferior a 50 km. enquanto a Relação conclui, a partir da definição de franquia quilométrica, estar-se perante uma cláusula “cega”, a excluir as deslocações mais curtas e a poder excluir as mais longas em que o sinistro ocorra a menos de 50 km. da residência da pessoa segura.

Como do já explanado resulta, não se acompanha o acórdão impugnado no entendimento de não ser aplicável à interpretação sob apreciação o regime das CCG, bem como na convocabilidade do princípio do equilíbrio das prestações a pretexto da ausência de encargo para a pessoa segura.


Mas concorda-se com a solução encontrada. Para tanto, relevam essencialmente dois elementos do texto das Condições da Apólice.

Em primeiro lugar, a denominada “franquia quilométrica” avulta desligada de qualquer referência a viagens ou deslocações, vale dizer, a aplicar, como cláusula de exclusão, a acidentes ocorridos em viagem; bem diferentemente, como da própria definição consta, dentro dela, não funcionam algumas das garantias, garantias estas que, como consta do Quadro Anexo, são todas as referidas no art. 3º (“acidentes pessoais, responsabilidade civil extraprofissional e saldo de conta”), apenas excepcionando os “gastos abusivos”.
Assim sendo, não se crê que faça grande sentido esgrimir argumentação relativa ao maior ou menor risco da viagem e sua extensão, ou qualquer outra circunscrita a questões especificamente atinentes a coberturas de seguro de viagem.

Depois, e decisivamente, afigura-se-nos que a solução para o problema está contida no artigo 6º das CGA.
Aí se define o “Âmbito territorial” de eficácia do contrato nos seguintes termos: “Sem prejuízo das franquias quilométricas para cada uma das garantias, no Quadro anexo às Condições Gerais, o presente contrato produz efeitos em qualquer parte do Mundo”.
Ora, se assim é, não pode deixar de entender-se que o contrato de seguro só produz efeitos fora do círculo definido como área geográfica de franquia quilométrica, ou seja, com excepção do seguro de “gastos abusivos”, em que não se aplica a franquia quilométrica, qualquer das outras coberturas só produz efeitos para além do raio de 50 km. medido da residência do titular do cartão de crédito.

Não é já e apenas uma questão de exclusão da garantia do seguro de sinistros ocorridos em viagem ou deslocações, mas de produção de efeitos do contrato e respectivas coberturas, em razão da definição do respectivo âmbito territorial de vigência, como consta do artigo 6º.


Sem perder de vista que, como assinalado, o contrato de seguro está sujeito à regra de transparência em sede de redacção do respectivo clausulado, entende-se que as cláusulas invocadas contra tal não atentam, revelando suficiente clareza e inteligibilidade a permitir a fixação do sentido normativo juridicamente relevante com que devem valer, por aplicação dos critérios estabelecidos nos arts. 236º a 238º e 10º do DL n.º 446/85.

Inexiste, por isso, ambiguidade susceptível de reclamar aplicação do critério subsidiário especial previsto no citado art. 11º do mesmo Dec.-Lei.

Poder-se-á dizer, pois, que a área definida pela “franquia quilométrica”, dentro do qual a garantia do contrato não “produz efeitos”, corresponde ao que vem denominado como uma “zona sem seguro”, entendendo-se que com outro sentido não pode contar um normal declaratário (ou um aderente indeterminado normal subscritor daquelas cláusulas) dotado de conhecimento e diligência medianos perante a leitura das Condições Gerais, maxime do seu artigo 6º.


Em conclusão, o sinistro que se traduziu na morte da mãe das Autoras ocorrido em acidente de viação a menos de 50 km. da sua residência está abrangido pela exclusão da garantia (produção de “efeitos” de “âmbito territorial”) do seguro de acidentes pessoais – viagens do cartão de crédito Classic - CGD, de que a mesma era titular, consubstanciada na denominada “franquia quilométrica”, constante da respectiva apólice.

Assim, embora por fundamentos não coincidentes, a decisão impugnada não merece a alteração pedida pela Recorrente.





5. - Decisão.

Em conformidade com o exposto, acorda-se em:
Negar a revista;
Manter a decisão impugnada; e,
Condenar as Recorrentes nas custas.


Supremo Tribunal de Justiça

Lisboa, 21 Setembro 2010

Alves Velho (relator)
Moreira Camilo
Urbano Dias