Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
205/07.3TBOFR.C1.S1
Nº Convencional: 6ª SECÇÃO
Relator: SALAZAR CASANOVA
Descritores: ÁGUAS
ÁGUAS PÚBLICAS
DOMÍNIO PÚBLICO HÍDRICO
OCUPAÇÃO
OBRAS
Data do Acordão: 12/18/2012
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA
Área Temática: DIREITO CIVIL - RELAÇÕES JURÍDICAS / COISAS / PROVAS - DIREITOS REAIS / DIREITO DE PROPRIEDADE / PROPRIEDADE DAS ÁGUAS
Doutrina: - Antunes Varela e Pires de Lima, "Código Civil Anotado", Vol III, 1984, 2ª edição, p.296.
- Guilherme Moreira, As Águas no Direito Civil Português, Livro I, 2ª edição, 1960, pp. 107/108.
- Revista de Legislação e de Jurisprudência, Ano 96.º, 1963/1964, pp. 26/27, anotação ao Ac. do S.T.J. de 12-6-1962.
- Revista de Legislação e de Jurisprudência, Ano 88.º, 1955/1956, pp. 198/199.
Legislação Nacional: CÓDIGO CIVIL (CC): - ARTIGOS 204.º/1, ALÍNEA B), 349.º E 351.º, 1386.º, 1387.º .
CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL (CPC): - ARTIGO 26.º-A.
LEI N.º 54/2005, DE 15-11: - ARTIGOS 5.º, ALÍNEA C), 6.º/1 E 4.
LEI N.º 83/95, DE 31-8.
Jurisprudência Nacional: ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE COIMBRA:
-DE 17-3-1978, C.J.,1978, II, P. 730.
Sumário :
I - A Lei n.º 54/2005, de 15-11, que estabelece a titularidade dos recursos hídricos, continua a ressalvar do domínio público do Estado ou das Regiões Autónomas as águas originariamente públicas que tenham entrado no domínio privado até 21-11-1868, por preocupação, doação régia ou concessão (art. 6.º, n.ºs 1 e 4 dessa Lei e art. 1386.º, n.º 1, al. d) do CC).

II - Assim, a preocupação, ou seja, a ocupação primeira das águas públicas, por meio de obra de represamento, constitui título hábil para adquirir o direito de presa ou direito de derivar uma certa massa de água de rio público que, uma vez entrada no prédio ou prédios a cuja irrigação se destinava, deixa de ser pública para passar a ser particular sobre ela se exercendo o direito real de propriedade sobre imóveis (cf. atual art. 204.º, n.º 1, al. b) e 1385.º e segs. do CC).

III - O melhoramento ou reparação de obra existente com base em preocupação destinada à apropriação das águas públicas não é em si violador do domínio público sobre águas públicas; sê-lo-á a captação de águas para além das que sejam necessárias para a irrigação das propriedades beneficiárias, critério a considerar caso não esteja fixado o volume das águas represadas por preocupação (art. 1386.º, al. d) e n.º 2 do CC de 1966).

IV - E nem sequer se provando que houve diminuição do caudal com origem na obra de represa das águas públicas, não pode, apenas porque foi melhorado o modo de preocupação ou captação das águas, considerar-se que houve apropriação de águas públicas em benefício dos respetivos prédios com prejuízo do domínio público hídrico.
Decisão Texto Integral:

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça

1. AA e BB, CC e DD e EE intentaram em 12 de junho de 2007 ação popular sob a forma ordinária contra FF pedindo a condenação do réu nos seguintes termos:

A- Reconhecer a dominialidade pública sobre o Rio ou Ribeira que atravessa as povoações da S... e do C..., designadamente do local denominado a P....

B- Demolir todas as obras por si ali realizadas, restituindo o respetivo leito à morfologia que tinha antes delas e permitindo o curso das águas e o aproveitamento público e privado que antes elas tinham.

C- A indemnizar os AA pelos prejuízos por estes sofridos ou que venham a sofrer ainda, em virtude da ausência de águas para regar os seus campos.

2. Alegaram os AA que são proprietários, a jusante da referida P..., de prédios rústicos que têm vindo a ser irrigados através de presas existentes no rio, as presas do C... e do S…, complementadas por aquedutos e levadas que até eles transportam as águas represadas.

3. Existindo tais presas há mais de 140 anos, as águas são particulares, pois foram preocupadas em data anterior à do Código Civil de 1867.

4. Verificaram os AA que pouca ou nenhuma água chegava às suas presas, impedindo o regadio, o que resultou da construção no local da P... de uma verdadeira barragem, de pedra e betão, em lugar daquela presa, barragem erguida para fins lúdicos que impede completamente o curso normal das águas e, portanto, impede que na altura das regas sejam atingidas as presas que retêm a água que serve as propriedades dos AA.

5. Essas obras foram realizadas sem licenciamento pelo réu e sem que as autoridades administrativas providenciassem pela reposição do leito do rio ou ribeira no seu estado anterior.

6. O réu contestou alegando que, igualmente por costumes ancestrais, estão edificadas represas ao longo do ribeiro do E... que vai entroncar no Rio ...; tais represas dispunham de uma estrutura constituída por pedras toscas, dispostas umas sobre as outras, com cerca de 1,20 metros de altura cujas frestas se tapam com terra e torrões, estruturas frágeis que obrigavam a uma constante manutenção, destinadas a represar e derivar as águas.

7. Ora a P... é um dos vários açudes existentes ao longo do curso do ribeiro do E... ou dos A... ou ribeiro dos A…, açude que é utilizado no regadio por agricultores de idade e que já não podiam, sem grande dificuldade, proceder às obras de manutenção do açude que, dada aquela estrutura tosca, carecia de manutenção que anualmente se impunha.

8. Por isso, houve a necessidade de proceder nesse açude ou P... a obras de restauro  que foram executadas por todos os 40  regantes da comunidade um dos quais é o réu

9. Tais obras de restauro respeitaram o local, dimensão e funções da " Presa ou Açude do E...", não modificaram a livre e natural circulação da água, assim como a sua finalidade que é o regadio.

10. Sustentou ainda o réu que os AA, apesar de reconhecerem a existência da P... desde tempos imemoriais e a natureza das suas águas, pretendem que tais águas integrem o domínio público em prejuízo de todos os regantes que obviamente também são cidadãos nacionais, no pleno gozo dos seus direitos civis e políticos, estando, por isso, na base desta ação, o mero interesse egoístico e individual, não se justificando demandar o réu em ação popular.

11. A ação foi julgada improcedente por sentença que considerou que as águas apropriadas pela referida obra de captação são águas particulares e, por conseguinte, não pode proceder o pedido de reconhecimento de dominalidade pública do local denominado "P..., falecendo os demais pedidos por via dessa improcedência; considerou a sentença que o interesse pessoal prosseguido pelos AA não permitia o recurso procedimental à ação popular.

12. O Tribunal da Relação, apreciando o recurso interposto pelos AA, considerou que estes prosseguiram um interesse público ao verem que o curso normal das águas que alimentam as "presas" foi alterado por ato que imputam ao réu, justificando-se a ação popular; no entanto, o dito ribeiro dos A..., sendo uma corrente de água de formação natural, de caudal contínuo e permanente, não navegável nem flutuável, desde tempos imemoriais  que é objeto de preocupação, assim entrando as águas originariamente públicas, represadas para utilização na irrigação dos prédios, no domínio privado dos regantes em regime de compropriedade. Não pode, portanto, ter acolhimento o reconhecimento da dominialidade pública das mesmas, ficando prejudicada a apreciação do pedido de demolição das obras de restauro realizadas pelo réu que está dependente daquele primeiro pedido.

13. Interpuseram os AA recurso para o Supremo Tribunal, sustentando, nas conclusões, que está demonstrada à exaustão a ilegalidade do ato praticado  pelo réu - construção de uma mini barragem em betão ciclópico onde dantes existia uma simples presa de pedras e terra - ato violador de um bem do domínio público essencial, as águas da ribeira/rio na zona onde existia a P..., assim se desrespeitando os artigos 84.º da Constituição da República, os artigos 1386.º/2 do Código Civil, o artigo 4.º do Decreto-Lei n.º 93/90, de 19 de março entretanto alterado pelo Decreto-Lei n.º 180/06, de 6 de setembro, o artigo 3.º/1, alínea c) e o artigo 41.º/2 do Decreto-Lei n.º 46/94, de 22 de fevereiro e o artigo 25.º/2, alínea c) e n.º 3  da Lei n.º 54/2005, de 15 de novembro.

14. Assim - prosseguem os recorrentes - tendo em vista a salvaguarda de um bem do domínio público, pressupondo a ilegalidade das obras realizadas, pediram a condenação do réu a demolir todas as obras por si feitas, restituindo-se  o respetivo leito à morfologia que tinha antes delas, permitindo-se o curso das águas e o aproveitamento público e privado que dantes elas tinham.

15. Os recorridos requereram a ampliação do âmbito do recurso à questão do interesse e legitimidade dos autores e legitimidade do réu na presente ação e à qualificação  desta como ação popular. Referem que, uma vez reconhecida e provada a existência da P... desde tempos imemoriais, verifica-se a natureza das suas águas como águas particulares por preocupação, não tendo os recorrentes alegado quaisquer factos demonstrativos do interesse metaindividual ou supraindividual fundamentador da ação popular.

16. Sustentam, dada a resposta ao quesito 8.º, que não se provou que, por causa da obra em causa, não chegue água da ribeira aos prédios dos AA.

17. E, como resulta expressamente da matéria assente, " as obras executadas na "Presa de E..." foram executadas no mesmo local onde tal presa sempre existiu por regantes do regadio de E..., residentes na povoação de S... entre os quais o réu.

18. Ora, o curso normal das águas já se encontrava alterado com a existência dessa presa antes de tais obras aí serem executadas, assim como pelos demais represamentos  existentes ao longo do rio; as obras de reconstrução da P... não causaram portanto qualquer prejuízo ao autor nem à comunidade onde se inserem como resulta expressamente da resposta dada ao quesito 8.º

19. Factos provados:

1. Nos lugares da S... e de C... passa um ribeiro, denominado Ribeiro dos A..., que desagua no Ribeiro ..., cujas águas são transportadas no seu curso normal, sucessivamente, para o Rio A..., deste para o Rio A... e daí para o Rio V…. (resp. quesitos 1º e 11º).

2. Desde há mais de 140 anos que os prédios dos AA., bem como os localizados nos mesmos limites, têm vindo a ser regados através de presas existentes no referido Ribeiro dos A... (resp. quesito 2º).

3. O prédio da A. EE tem vindo a ser regado pela “Presa do C... “ existente na confluência dos referidos Ribeiro dos A... e Ribeiro ... (resp. quesito 3º).

4. Os prédios dos 2ºs e 3ºs AA. têm vindo a ser regados pela “Presa do S...” existente no referido Ribeiro dos A... (resp. quesito 4º).

5. As presas referidas na resposta dada ao quesito 2º estão complementadas por aquedutos e levadas construídos há mais de 140 anos, tendo em vista o aproveitamento daqueles águas na rega dos prédios também referidos na resposta dada ao quesito 2º (resp. quesito 5º).

6. Findo o período de rega, eram as águas usadas, nos mesmos prédios e outros, nos mesmos termos, para a sua merugem ( resp. quesito 6º).

7. No verão de 2006, foi construída uma estrutura de pedra e betão, no local em que se situava a “P...”. (resp. quesito 7º).

8. Esta estrutura impede o curso normal das águas (resp. quesito 8º).

9. As obras executadas na “P...” foram executadas no mesmo local onde tal presa sempre existiu por regantes do Regadio do E..., residentes na povoação de S..., entre os quais o R., com recurso a máquinas e pessoal (resp. quesitos 9º e 21º).

10. Referente à execução das obras aludidas nas respostas dadas aos quesitos 7º, 8º, 9º e 21º os representantes dos regantes da referida “P...” deram entrada, em 11.07.2006, nos Serviços da Divisão Sub-Regional de Viseu do Ministério do Ambiente, do Ordenamento do Território e do Desenvolvimento Regional, do respetivo pedido de licenciamento cuja decisão se encontra a aguardar a decisão a proferir na presente ação (resp. quesito 10º).

11. O Ribeiro dos A... é uma corrente de água de formação natural, de caudal contínuo e permanente, não navegável nem flutuável (resp. quesito 12º).

12. Na povoação de S..., onde reside o R., existe uma área agrícola composta por um determinado número de prédios rústicos que dispõe de regadios próprios proveniente de pequenas nascentes que correm para o referido ribeiro (resp. quesito 13º).

13. Conforme costumes ancestrais, há mais de 200 anos que a água que vai aparecendo nas margens do ribeiro dos A... é utilizada e aproveitada na área agrícola do regadio do E... (resp. quesito 14º ).

14. Ao longo de toda a extensão do ribeiro dos A... estão edificados represamentos, na sua maioria compostos por estruturas de pedras toscas, dispostas umas sobre as outras, cujas frestas se tapam com terra e torrões cuja localização nunca foi alterada (resp. quesito 15º).

15. Os represamentos estão ligados diretamente a “levadas” que conduzem a água para as áreas de rega (resp. quesito 14º).

16. O represamento na área de regadio do E... é realizado com o encerramento das presas, que transvazam de umas para as outras até à última (resp. quesito 17º).

17. Após o enchimento, cada regante dos prédios situados para nascente da Presa do S..., tem tempo certo de rega em função da área que possui (resp. quesito 18º).

18. Há mais de 200 anos que os regantes do regadio do E... utilizam a água represada pela designada “P...” na irrigação de várias culturas agrícolas existentes nos seus prédios, assim como na merugem (resp. quesito 19º).

19. Na Presa do S... a rega é feita em regime livre (resp. quesito 5º).

20. Estas obras (as aludidas nas respostas dadas aos quesitos 7º, 8º, 9º e 21º) consistiram na construção de uma estrutura em betão ciclópico com colocação de uma comporta de madeira, removida manualmente no início da estação da chuvas e colocada no início da época das regas, tendo em vista o armazenamento (resp. quesito 22º).

21. Foram colocadas duas válvulas de seccionamento que permitem regular o caudal ecológico (resp. quesito 23º).

22. Estas obras asseguram o seguimento das águas em caso de excesso de caudal, bem como a passagem de caudal ecológico através das duas válvulas referidas na resposta dada ao quesito 23º existentes no fundo da estrutura (resp. quesito 24º).

Apreciando

20. Os autores intentaram a presente ação popular pretendendo que se declarasse ser do domínio público a ribeira ou rio no local denominado P... e, uma vez reconhecida essa dominialidade, que  se demolissem todas as obras aí realizadas.

21. Ora não se duvida, dado o pedido deduzido, que está em causa o reconhecimento de que, naquele local, a ribeira do A... constitui um curso de água não navegável nem flutuável, com os respetivos leitos e margens, localizado em terreno público e aproveitável designadamente para irrigação. Trata-se, pois, de um bem do domínio público hídrico conforme resulta do disposto no artigo 5.º, alínea c) conjugado com o artigo 2.º da Lei n.º 54/2005, de 15 de novembro que estabelece a titularidade dos recursos hídricos que pode pertencer ao Estado, às Regiões Autónomas e aos municípios e freguesias.

22. Por isso, construída uma presa em curso de água que integra o domínio público hídrico, a Lei n.º 83/95, de 31 de agosto, em conjugação com o artigo 26.º-A do C.P.C. confere o direito de ação popular tendo em vista assegurar a defesa do domínio público.

23. A questão a dirimir, respeitante ao mérito, está em saber se a reconstruída P..., que visa o represamento de águas públicas, implicando a sua  apropriação para irrigação dos terrenos dos agricultores, deve ou não deve ser destruída e, consequentemente, impossibilitada a apropriação dessas águas pelo modo como atualmente se realiza

24. A resposta a dar seria, em primeira análise, no sentido de que a apropriação dessas águas por via de tal obra constitui ato ilícito violador do domínio público hídrico, pois as águas públicas há muito que não podem ser objeto de apropriação particular; isso não significa que, mediante acordo com o Estado ou demais entidades proprietárias do domínio público hídrico não possa ser concedida a utilização das águas públicas, aspeto que não está aqui em causa.

25. No entanto, o artigo 6.º/4 da referida Lei n.º 54/2005, de 15 de novembro que revogou o artigo 1.º do Decreto n. 5787-IIII, de 18 de maio de 1919 e os capítulos I e II do decreto-lei n.º 468/71, de 5 de novembro, prescreve o seguinte:

Artigo 6.o

Titularidade do domínio público lacustre e fluvial

1 — O domínio público lacustre e fluvial pertence ao Estado ou, nas Regiões Autónomas, à respetiva Região, salvo nos casos previstos nos números seguintes.

[…]

4 — O disposto nos números anteriores deve entender-se sem prejuízo dos direitos reconhecidos nas alíneas d), e) e f) do n.º 1 do artigo 1386.º e no artigo 1387.º  do Código Civil.

26. O artigo 1386.º/1, alínea d) do Código Civil prescreve que são particulares " as águas originariamente públicas que tenham entrado no domínio privado até 21 de março de 1868, por preocupação, doação régia ou concessão.

27. Estão as partes de acordo que a P... entrou no domínio privado por preocupação até 21 de março de 1868 e, por conseguinte, as águas derivadas por prévio represamento para as propriedades beneficiárias são águas particulares.

28. A preocupação dessas águas efetivada pela aludida presa ou açude constitui , pois, atuação lícita e logicamente a demolição da presa não pode ser  determinada, pois isso significaria retirar um direito que assiste ao réu e demais agricultores beneficiários dessa presa, como, aliás, assiste aos autores no que respeita às aguas preocupadas pelas outras presas que os servem.

29. A preocupação, ou seja, a ocupação primeira das águas públicas constituía título hábil para adquirir o direito de presa e, citando Lobão, lê-se na obra As Águas no Direito Civil Português de Guilherme Moreira, Livro I, 2ª edição , 1960, pág. 107/108 que ' diz-se  tê-las preocupado aquele  que primeiro designou o lugar para a obra, que preparou os materiais para ela, que de alguma maneira lhe deu princípio, que declarou e protestou judicialmente fazê-la, ou ainda extrajudicialmente por alguma convenção ou ajuste. E para preferir a outro basta que a tenha principiado primeiro por alguns dos ditos modos ou semelhantes, ainda que outro primeiro a conclua […]. O direito de preocupação estende-se a tudo aquilo que vem em necessária consequência e sem o que ficaria inútil o memo direito. E daqui vem que, se alguém preocupou toda a água de um rio, e toda ela é necessária para a obra, ou rega de prédios, o seu direito se estende a toda ela, ainda que a posse fosse tão somente em parte'.

30. Logo a seguir a esta citação de Lobão, refere Guilherme Moreira que " adquirido o direito de presa  ou de derivar uma certa massa de água do rio público, essa água logo que entrasse no prédio a cuja irrigação se destinava ou em que era aproveitado como motor, ou no canal ou aqueduto que a conduzia para o fim a que era destinada, deixava de ser pública. Era uma água que havia sido apropriada por preocupação, uma água particular". E assim, " apropriadas as águas públicas pelo direito de presa, as que por este meio eram derivadas  ficavam sendo  particulares e sujeitas aos princípios gerais relativos à aquisição, conservação e extinção dos direitos reais imobiliários e às normas especiais estabelecida por usos e costumes locais".

31. Por isso, quando se fala na sentença e no acórdão que as referidas águas são particulares não se quer dizer coisa diversa do que se citou, pois o que importa é saber se o direito de presa se constituiu a favor do réu e demais regantes e não se duvida de que a resposta é afirmativa.

32. No entanto, os autores consideram que a referida construção, não licenciada, se traduziu no exercício indevido do direito de presa.

33. A preocupação ou direito de presa constituiu-se considerado um determinado caudal de águas que é aquele a que tem direito os respetivos titulares; não estando fixado o volume das águas preocupadas, o conteúdo desse direito não deve ultrapassar o que seja necessário para as finalidades de irrigação dos imóveis beneficiários (artigo 1386.º/2 do Código Civil); as obras de reparação ou de reconstrução de presas não devem servir para aumentar o represamento de águas necessário, mas tão somente para melhorar a captação de águas necessária aos prédios beneficiários.

34. É esta a razão de ser do presente litígio, pois os autores consideram, contrariamente ao réu, que a obra realizada, sem licença das entidades administrativas, implicou uma alteração do caudal de água represada, violando-se, assim, o domínio público hídrico, pois o direito de propriedade do réu sobre as águas represadas não pode ser mais amplo do que o direito que por lei lhe assiste.

35. Salienta Pires de Lima que o direito de derivar certo volume de água de uma corrente pública que, logo que entrasse no prédio, a cuja irrigação se destinava, deixava de ser pública, constituía direito adquirido que foi ressalvado pelo Código Civil de Seabra (artigo 438.º), ressalva que o Código Civil e legislação sobre o domínio hídrico mantiveram.

36. Refere este último autor que " importa, no entanto, precisar devidamente a medida dos direitos adquiridos e ressalvados com base na preocupação. Quem fez obras de derivação numa corrente pública não adquiriu, por esse facto, um direito sobre toda a água das corrente. A medida do direito terá que determinar-se pelas necessidades do prédio ao tempo da preocupação ou, mais rigorosamente, pelo volume de água efetivamente derivado na altura […]. Sendo assim, é evidente que a existência de um direito adquirido por preocupação não podia permitir ao proprietário, a partir do momento em que entrou em vigor o Código Civil, regar novos prédios com base nesse direito ou -  a semelhança é manifesta - utilizar no prédio originariamente beneficiado maior volume de água, porque , por exemplo, foi alargada a sua área de cultura de regadio. As duas situações são absolutamente análogas. Sustentar que qualquer delas está abrangida no direito adquirido, seria permitir a alteração da participação relativa que os diversos proprietários tinham no aproveitamento de determinada água pública antes do Código Civil, seria, por outras palavras, permitir a alteração do statuo quo que o artigo 438.º pretendeu precisamente manter. Portanto, logo que um proprietário, atualmente, derive da corrente maior volume de água do que aquele que preocupou, está, em relação ao excedente, a utilizar águas públicas, devendo submeter-se ao regime jurídico que regula o respetivo aproveitamento e às respetivas sanções"  (Revista de Legislação e de Jurisprudência, Ano 96.º, 1963/1964, pág. 26/27, anotação ao Ac. do S.T.J. de 12-6-1962, rel. Amilcar Ribeiro).

37. Prescreve todavia o já mencionado artigo 1386.º,n.º2 do Código Civil que " não estando fixado o volume das águas referidas nas alíneas d), e) e f) do número anterior, entender-se-á que há direito apenas ao caudal necessário para o fim a que as mesmas se destinam". Este artigo - dizem Antunes Varela e Pires de Lima - " refere-se ao caudal de água e não à forma do seu aproveitamento, embora o artigo 33.º daquele último diploma" - Lei das Águas - " ao ressalvar os direitos adquiridos sobre águas públicas, diga que elas continuarão a ser aproveitadas nas mesmas condições"(Código Civil Anotado, Vol III, 1984, 2ª edição, pág 296).

38. Assim, " parece de toda a evidência que nenhuma destas disposições estabelece limites ou restrições à forma por que deve ser derivada a água para os prédios beneficiados. Condições de aproveitamento, para o artigo 33.º, são as condições referidas no artigo 107.º: as águas deverão ser aproveitadas pelos prédios e oficinas em cujo proveito se mostraram construídas as obras e em harmonia com os direitos adquiridos, isto é, atendendo-se ao volume da água originariamente fixado para o aproveitamento, pela preocupação ou pela concessão […]. Nada se diz , portanto, na lei, quanto ao processo técnico de derivação da água do aqueduto para o prédio, nem fazia sentido que o legislador estabelecesse , sob este aspeto, quaisquer limitações, impedindo que o aproveitamento se fizesse por processos que a técnica viesse a valorizar ou a descobrir" (ver Revista de Legislação e de Jurisprudência, Ano 88.º, 1955/1956, pág. 198/199).

39. A obra realizada pelo réu implica uma melhoria técnica no aproveitamento da água e compreende-se o interesse na sua realização logo por esta razão, mas também por se afigurar injustificado que os regantes beneficiários se vejam obrigados a manter um açude construído de forma tosca e assim mantido desde há muito tempo.

40. Está provado que a estrutura de pedra e betão está implantada no local em que se situava a P... ( ver 7 supra), não podendo, portanto, concluir-se que estamos diante de uma nova presa. Os factos apontam no sentido de a obra em causa proporcionar um mais efetivo represamento, mas isso não significa que por causa da obra o caudal tenha sido alterado por aumento do volume das águas derivadas.

41. A este propósito os autores alegaram que, na altura das regas, as águas da ribeira ficaram impedidas, por causa da aludida estrutura, de atingirem as presas do C... e do S... que servem as propriedades dos autores ( ver artigos 29.º e 30.º da petição e quesito 8.º).

42. As instâncias no âmbito dos respetivos poderes de cognição em matéria de facto não deram como provados esses factos, pois o quesito 8.º mereceu a resposta restritiva que  consta de 8 da matéria de facto supra. Essa resposta restritiva nada adianta para o ponto que se tem em vista, pois é sabido que a atual estrutura impede o curso normal das águas, tal como  o impedia a estrutura anterior. Mas é precisamente isso que resulta da existência do direito de presa de que beneficiam os agricultores beneficiários das águas represadas pela P....

43. A falta de licenciamento da obra de reparação da aludida Presa pode relevar, no plano do juízo de facto, pois uma obra desta natureza seguramente apenas seria licenciada se estivesse garantido que ela não obstaria em si à libertação do caudal de água que sempre fora libertado.

44. Mas da falta de licenciamento não se pode por si só concluir que as coisas se passam de modo diverso e os factos provados dizem-nos que a referida construção em betão dispõe de duas válvulas de seccionamento que permitem regular o caudal ecológico (ver 21 da matéria de facto supra).

45. Se o caudal tivesse diminuído como alegaram os autores -  o que não provaram - podiam as instâncias no plano de facto e com base nos demais elementos adquiridos ( v.g., o facto de os represamentos estarem ligados diretamente a " levadas" que conduzem a água para as áreas de rega - ver 15 supra - ou o facto de constar do projeto de arquitetura  que " se prevê a construção de caminhos pedonais, instalação de caleiras de rega, bancos e mesas de forma a promover uma área de lazer e também  funções de regadio coletivo":fls. 71 dos autos) concluir, por presunção judicial (artigos 349.º e 351.º do Código Civil) que a referida obra serviu para uma alteração do volume água derivada, ou seja, serviu afinal, não para melhorar o modo de aproveitamento das águas dentro dos limites que resultam da preocupação centenária, mas para proceder a um aproveitamento das águas públicas desnecessário para os fins privados assegurados por preocupação.

46. Já se decidiu que se o adquirente nunca excedeu no aproveitamento o caudal originariamente utilizado, não há lugar à caducidade do aproveitamento com devolução das águas ao domínio público, não obstando a lei que o aproveitamento se faça pelo processo técnico que melhor utilidade sócio- económica lhe confira: Ac. da Relação de Coimbra de 17-3-1978, rel. Cruz Almeida, C.J.,1978, II, pág. 730).

47. Seja como for, a destruição da presa existente seria sempre consequência de um pedido de caducidade do direito de presa nascido de preocupação ancestral e não a consequência de um mais efetivo represamento das águas mercê das obras de restauração da P... ou do reconhecimento da dominialidade pública hídrica das águas preocupadas que não existe

Pelas razões expostas a revista deve ser negada.

Concluindo:

I- A Lei n.º 54/2005, de 15 de novembro, que estabelece a titularidade dos recursos hídricos, continua a ressalvar do domínio público do Estado ou das Regiões Autónomas as águas originariamente públicas que tenham entrado no domínio privado até 21 de março de 1868, por preocupação, doação régia ou concessão (artigo 6.º/1 e 4 dessa Lei e artigo 1386.º/1, alínea d) do Código Civil).

II- Assim, a preocupação, ou seja, a ocupação primeira das águas públicas, por meio de obra de represamento, constitui título hábil para adquirir o direito de presa ou direito de derivar uma certa massa de água de rio público que, uma vez entrada no prédio ou prédios a cuja irrigação se destinava, deixa de ser pública para passar a ser particular sobre ela se exercendo o direito real de propriedade sobre imóveis (cf. atual artigo 204.º/1, alínea b) e 1385.º e seguintes do Código Civil).

III- O melhoramento ou reparação de obra existente com base em preocupação destinada à apropriação das águas públicas não é em si violador do domínio público sobre águas públicas; sê-lo-á a captação de águas para além das que sejam necessárias para a irrigação das propriedades beneficiárias, critério a considerar caso não esteja fixado o volume das águas represadas por preocupação (artigo 1386.º, alínea d) e n.º2 do Código Civil de 1966).

IV- E nem sequer se provando que houve diminuição do caudal com origem na obra de represa das águas públicas, não pode, apenas porque foi melhorado o modo de preocupação ou captação das águas, considerar-se que houve apropriação de águas públicas em benefício dos respetivos prédios com prejuízo do domínio público hídrico.

Decisão: nega-se a revista

Custas pelos recorrentes

Lisboa, 18 de dezembro de 2012

Salazar Casanova (Relator)

Fernandes do Vale

Marques Pereira