Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
08A785
Nº Convencional: JSTJ000
Relator: MÁRIO CRUZ
Descritores: CONTRATO-PROMESSA
APLICAÇÃO DA LEI NO TEMPO
VENDA DE COISA FUTURA
TRADIÇÃO DA COISA
RECUSA
DIREITO DE RETENÇÃO
CAUÇÃO
Nº do Documento: SJ200805060007851
Data do Acordão: 05/06/2008
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA.
Decisão: NEGADA A REVISTA.
Sumário :
I. O DL n.º 236/80, de 18/07, previa logo no art. 2.º que o regime jurídico nele previsto e que alterava a redacção dos arts. 442.º e 830.º do CC. se aplicava a todos os contratos promessa cujo incumprimento se viesse a verificar após a sua entrada em vigor.

II. Os arts. 442.º e 830.º do CC. vieram no entanto a ser alterados posteriormente pelo DL n.º 379/86, de 11/11, não tendo este último diploma preceito correspondente àquele.

III. Tendo em conta que o contrato promessa dos autos foi celebrado em Novembro de 1980, havendo-se nos termos do referido contrato produzidos efeitos antes e depois da alteração operada pelo DL 379/86, mas verificando-se o incumprimento definitivo do contrato, por culpa do promitente vendedor só no domínio da lei nova, deve aplicar-se o regime da lei antiga no tocante aos efeitos produzidos na lei antiga, mas o regime da lei nova relativamente aos efeitos produzidos após a entrada em vigor desta.

IV. Versando o contrato promessa sobre uma moradia construída a expensas do casal, em prédio do qual o promitente vendedor ainda não era dono (terreno alheio) e que veio a ser benfeitoria dele, mas havendo sido ela construída com dinheiro do casal e o assentimento do (então ainda) dono e da pactuação da esposa do promitente vendedor (com quem estava casada com regime de comunhão de adquiridos) e dos demais interessados em futuras partilhas, o contrato promessa terá de ser enquadrado como respeitando a promessa de venda de coisa futura (arts. 410.º e 893.º do CC.)

V. O facto de o promitente vendedor ter celebrado o contrato promessa desacompanhado da esposa nem por isso tornaria a promessa inválida, passando aquele a ficar obrigado a obter o consentimento desta para a celebração do contrato definitivo.

VI. Se não obtivesse a autorização do cônjuge para a celebração do contrato definitivo, incorreria em responsabilidade civil contratual, já que não podia alienar a referida casa, um bem comum do casal, sem a autorização da esposa, nem obrigá-la a outorgar nesse contrato, sendo ela a herdeira.

VII. A simples entrega das chaves relativamente a imóveis prometidos vender, só em condições muito excepcionais integram a “traditio” como correspondente a efectiva transferência de posse e propriedade, pois que nos contratos promessas, a “traditio” da coisa não pretende corresponder à transmissão da posse, que só ocorre quando se verifique simultaneamente a verificação do “corpus” e do “animus.”

VIII. A entrega das chaves e autorização para ocupação, quando falta pagar ainda metade do preço da compra do imóvel (como foi o caso), não havendo cláusula no contrato em que fique estipulado que com ela se pretende significar desde logo a transmissão definitiva dos poderes reais sobre a coisa, só podem por isso traduzir a detenção ou posse precária, modalidade insusceptível de poder fazer triunfar o constituto possessório, porque nesse contrato promessa só se quer fazer a transmissão sobre a titularidade da coisa com a celebração do contrato definitivo.

IX. Não havendo posse, também não há usucapião por parte dos RR., apesar do tempo já decorrido.

X. Havendo o contrato sido incumprido culposamente pelo promitente vendedor, assiste aos promitentes compradores o direito de retenção sobre o imóvel, enquanto lhes não for paga a indemnização atribuída.

XI. A única forma que o promitente vendedor tinha disponível para fazer com que o direito de retenção não operasse e de obter imediatamente o imóvel antes do pagamento da indemnização, seria a de ter prestado caução suficiente – art. 756.º-d) do CC.
Decisão Texto Integral:
Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:


I. Relatório

AA e marido BB, CC e esposa DD, EE e marido FF, GG, HH e II
intentaram acção declarativa com processo ordinário
contra
JJ e esposa KK, a que associaram o pedido de intervenção principal provocada de
LL e MM, por serem herdeiras dos falecidos NN e esposa,.

pedindo que
- seja declarado que eles AA. e os intervenientes LL e MM são os únicos herdeiros dos falecidos NN e esposa
- seja reconhecido que a parcela de terreno e vivenda nela construída, identificadas na p.i., fazem parte da herança indivisa dos falecidos NN e esposa,
- seja reconhecido aos AA. e intervenientes o direito de propriedade sobre a parcela de terreno e vivenda, que dela faz parte
- se ordene o cancelamento de quaisquer registos que eventualmente hajam sido feitos pelos RR.,
- se condenem os RR. a reconhecer tal direito de propriedade e consequente restituição da vivenda, com desocupação da mesma,
- se condenem os RR. a pagarem aos AA. e intervenientes a quantia de 24.000.000$00 pela ocupação da vivenda desde 1980 até à data da entrada desta acção em juízo (Junho de 2000),
- se condenem os RR. a pagar aos AA. e intervenientes a indemnização de 100.000$00 mensais desde 2000.07.01 até desocupação efectiva da vivenda.

Para tanto alegaram, em suma, que são os únicos herdeiros, representantes e sucessores de NN e esposa OO
O falecido NN era dono de um terreno, no qual, em vida do mesmo, um genro deste, de nome PP (que foi casado com a A. HH, filha daquele) construiu numa parte dele uma vivenda, a qual foi inscrita na matriz sob o art. 11.344 como mera benfeitoria sobre o terreno do sogro; o referido genro sabia estar a implantar a vivenda em terreno alheio, e sabia que a mesma passava a fazer parte integrante do prédio do sogro; os RR. ocupam tal vivenda desde 1980, recusando-se a entregá-la e nada pagando pela sua ocupação, tendo valor locativo de 100.000$00 por mês.
Juntaram Docs.

Os RR. contestaram e deduziram reconvenção,
pedindo, principalmente,
- que sejam eles declarados proprietários da vivenda construída sobre uma parcela de terreno, procedendo-se a desanexação e ordenando-se o cancelamento da actual inscrição da propriedade,
- e subsidiariamente que seja reconhecido que gozam do direito de retenção sobre o mesmo prédio,
- que deve ser declarado vendido aos RR. pelos sucessores de PP, genro do NN, pelo preço de 1.000.000$00 a referida moradia livre de ónus ou encargos, se se entender que é uma benfeitoria,
e caso sucumbam tais pedidos devem os sucessores do PP pagar aos RR. a indemnização de 13.500.000$00, e juros desde a citação.

Para tanto alegaram, em suma, ocupar a moradia há mais de 20 anos por a terem comprado ao PP que se arrogava a qualidade de proprietário e que a entrega da moradia foi autorizada pelo cônjuge do PP ( a A. HH) , pelo que a adquiriram por usucapião; estando em dívida apenas 500.000$00 aos donos da moradia, gozam do direito de retenção sobre ela, por virtude de contrato-promessa de compra e venda celebrado entre o R. e o PP, ficando em dívida apenas 500.000$00 a pagar no acto da escritura, nunca tendo sido resolvido tal contrato-promessa; disseram, por fim, que a moradia vale actualmente 14.000.000$00 e que o valor locativo da casa não é superior a 3.000$00 mensais.
Juntou Docs.

Os AA. replicaram e alegaram, em suma, que a A. II não teve intervenção na promessa de compra e venda, nunca tendo o PP administrado a moradia.
Impugnaram a restante matéria.

Julgou-se procedente o incidente de Intervenção Principal.

Admitida a Reconvenção

Saneado, condensado e instruído o processo, seguiu ele para julgamento.
Foi indeferido o depoimento de parte dos intervenientes, decisão de que os RR. recorreram. (agravo)

Após incidente de habilitação passou a acção a ter esta como AA. apenas HH e II (esposa e filha do já referido PP)

Efectuou-se Audiência de Julgamento, e a fls. 382 a 384 respondeu-se à Base Instrutória.
A Sentença veio a julgar parcialmente procedente o pedido das AA. HH e II,
- reconhecendo-lhes o direito de propriedade sobre a vivenda (integrada no prédio composto por 7.870 m2 de terreno de cultura hortícola, sito no Faralhão, freguesia do Sado, concelho de Setúbal, confrontando a Norte com Estrada da Chamburguinha, Sul com CC e Mulher, Nascente com CC e Poente com Estrada da Mourisca, inscrito na matriz cadastral da freguesia de S. Sebastião, sob parte do Artº. 4º., da Secção H) inscrito na matriz predial urbana da freguesia do Sado, sob o Artº. 1486,
- julgando também parcialmente procedente a Reconvenção dos RR. JJ e esposa KK, e em consequência
- condenou as referidas AA. a pagar aos RR. o montante de 13.500.000$00 (treze milhões e quinhentos mil escudos) – o seu equivalente em Euros – acrescido de juros a contar desde 2000.12.08, à taxa de 7% até 2003.04.30, e à taxa de 4% desde 2003.05.01 até integral pagamento,
- e declarou que os RR. gozam de direito de retenção, sobre a aludida vivenda, até pagamento da indemnização ora arbitrada, não tendo de proceder à restituição da aludida vivenda até ao referido pagamento.

Desta vez foram as actuais AA. que não se conformaram, tendo interposto recurso (apelação)

A Relação veio no entanto a julgar improcedente a apelação, pelo que não chegou sequer a tomar conhecimento do agravo. (fls. 500-518 e 521), ficando assim plenamente confirmada a Sentença proferida na primeira instância.

Voltam agora as AA. a recorrer, pedindo Revista

II. Âmbito do recurso

Tendo em conta o disposto nos arts. 684.º-3 e 690.º-1 do CPC vamos começar por transcrever as conclusões apresentadas pelas recorrentes nas suas alegações de recurso, já que é nelas que devem condensar-se os fundamentos para o seu inconformismo, assim se delimitando o respectivo âmbito:

“1 - É ponto assente que as questões por resolver nos presentes autos têm como pano de fundo, e seu elemento essencial, um escrito denominado pelas partes "Promessa de Venda", datado de 6 de Novembro de 1980, assinado, por um lado, por PP e, por outro, por JJ e QQ, documento que foi pelas Instâncias interpretado como uma promessa de compra e venda outorgada pelo primeiro a favor dos segundos, relativa a uma moradia, pelo preço de mil contos, com pagamento de metade, tendo o resto do preço sido remetido para o acto da realização da escritura definitiva de compra e venda.
2 - Provou-se nos autos, com toda a segurança, que a referida moradia tem sido habitada, desde, pelo menos, 1980 por um dos promitentes compradores, referido JJ e sua mulher KK que não consta nem é referida na promessa.
Contexto em que,
3 - A primeira questão que o contrato levanta consiste em saber, havendo, como há, dois promitentes compradores e tendo a moradia passado a ser habitada só por um e sua mulher, com exclusão do outro, se pode considerar-se ter havido tradição susceptível de desencadear o mecanismo indemnizatório previsto na parte final do n.º 2 do art. 442.º do CC (indemnização correspondente ao valor ao tempo do incumprimento).
4 - Parece evidente que o requisito tradição consubstanciado, no caso do autos, pela entrega e recebimento da moradia, para ser operante, teria que ser feito a favor dos promitente compradores, não bastando que o seja apenas a favor de um deles com exclusão do outro.
5 - Nem sequer é lícita a fixação da totalidade da indemnização a favor do Réu JJ e de sua mulher, omitindo- se, como se não existisse, a outra promitente compradora, referida QQ, contraente que, a nível da promessa, tem posição em tudo idêntica ao Réu JJ, mas que, em hipótese alguma, poderia beneficiar, no todo ou em parte, da indemnização arbitrada pela instância, por que, a seu favor, nunca houve tradição, nem ela, como dos autos emerge com clareza, alguma vez, habitou, permaneceu ou, por qualquer forma, ocupou a moradia.
6 - Motivo que seria, só por si, suficiente para indeferir o pedido reconvencional de indemnização correspondente ao valor da moradia ao tempo do incumprimento e, bem a sim, o pedido de reconhecimento do direito de retenção que garantiria o pagamento dessa indemnização.
7 - De notar que a promitente compradora QQ não só nunca habitou a moradia, como não é parte no processo, nem dela há qualquer notícia nos autos, o que igualmente levanta um problema de legitimidade em sede de pedido reconvencional, por se tratar de uma hipótese nítida de litisconsórcio necessário - art. 28.º do CPC.
Por outro lado,
8 - Tendo presente que o promitente vendedor PP era, ao tempo da promessa, casado com a Autora, aqui Recorrente, HH no regime da comunhão geral, conforme certidão junta com a p.i. sob o n.º 16, e resultando da promessa, e da matéria provada, que a referida II não teve qualquer intervenção na prometida compra e venda, coloca-se, naturalmente, a questão de saber se, nestas circunstâncias, poderia ter havido tradição no sentido técnico jurídico do termo.
9 - A este propósito recorda-se o recente Acórdão desse Venerando Douto Supremo Tribunal de 13 de Janeiro de 2005, relatado pelo Ex.º Senhor Juiz Conselheiro Neves Ribeiro que, em caso em tudo idêntico ao dos autos, se pronunciou acertada e claramente pela negativa, tendo decidido no essencial que:
- O contrato relativo a um bem imóvel comum do casal só assinado pelo marido produz efeitos meramente obrigacionais;
- Não produz efeitos reais designadamente a transferência de posse a favor do promitente comprador;
- Não constitui título legítimo do direito de retenção;
- O imóvel, objecto mediato da promessa, pode ser reivindicado pelo dono.
10 - Este douto Acórdão que define lapidarmente os termos em que a questão do auto deve ser resolvida, encontra-se disponível na Internet (www.dgsi.pt), mas, para facilidade de consulta, vai junto às presentes alegações por fotocópia.
Finalmente,
11- As Autoras da acção, aqui recorrentes, deduziram pedido indemnizatório correspondente ao tempo em que a moradia dos autos foi, sem qualquer pagamento, utilizada pelos Réu, aqui recorridos – arts. 18.º a 22.º da p.i. e alíneas h) e t) do pedido. No Tribunal da Relação, e com base nos elementos dados como provados na 1.ª instância, refizeram-se os cálculos – n.ºs 25 e seguintes das alegações e conclusão 13.ª - concluindo-se, pelas razões supra aduzidas, que aqui e dão por integralmente reproduzidas , que as Autoras têm direito a ser indemnizadas pelos Réus, relativamente ao período compreendido entre 1980 e 31 de Dezembro de 2007, pelo valor de € 75.980,00, acrescido do que e apurar a partir de 1 de Janeiro de 2008 à razão de € 400,00 mensais, valor claramente superior ao montante indemnizatório fixado a favor dos Réus pelo Tribunal da Relação - € 67 337,99.
Assim,
12 - E para além da questão da nulidade resultante de nunca ter havido decisão sobre esta questão, ainda que porventura tenha a entender-se, o que te admite por mera hipótese em conceder, que os Réus, com base na tradição da moradia, teriam direito a indemnização correspondente ao valor da mesma moradia ao tempo do incumprimento da promessa, mesmo assim, haveria que proceder-se à compensação de indemnizações a qual se mostra claramente favorável às Autoras, com preclusão do direito de retenção e condenação dos Réus a entregarem às Autoras a moradia dos autos e a pagarem-lhe o valor residual correspondente à diferença dos montantes indemnizatórios.
13 - O douto Acórdão recorrido desrespeitou, pelo menos, os arts. 410°, 422°, 755°, 1682°-A do CC e os arts. 28° e 668°do CPC.
Termos em que,
Deve ser concedido provimento ao presente recurso com anulação ou revogação do douto Acórdão recorrido”

Da leitura destas conclusões vemos que as questões que nos estão colocadas e sobre as quais pretendem as recorrentes que nos pronunciemos são as seguintes:

a) Dos efeitos do contrato promessa em que o promitente vendedor, casado em regime de comunhão geral de bens, outorgou no contrato desacompanhado do cônjuge
b) mecanismo indemnizatório decorrente do contrato promessa de imóvel quando há dois promitentes compradores, mas só há conhecimento de que um deles veio a ocupar o imóvel prometido
c) preterição de litisconsórcio necessário e inadmissibilidade da reconvenção
d) inexistência do direito de retenção

III. Fundamentação


III-A) Os Factos:

Estão considerados provados os factos seguintes:
“1. AA, CC e EE, são filhos do falecido NN e mulher OO, que foram casados no regime de comunhão geral de bens.
2. LL foi casado com RR, filha já falecida dos mesmos NN e OO, tendo deixado 2 únicas filhas SS e TT.
3. A A. HH é filha dos referidos NN e 00 e foi casada com PP, já falecido, tendo tido uma única filha a A. II.
4. As pessoas atrás referidas são os únicos herdeiros representantes e sucessores de NN e mulher OO.
5. Por escritura pública de 25.10.1929, NN comprou a UU uma porção de terreno que fazia parte do prédio rústico denominado Santo Ovídeo, sito em Santas, freguesia de S. Sebastião, Setúbal, descrito na Conservatória do Registo Predial de Setúbal sob o Nº. 312, a folhas 262 verso do Livro B-4, então inscrito na competente matriz predial rústica sob o Artº. 436.
6. Esta porção de terreno passou a constituir uma descrição predial autónoma – prédio Nº. 14.799, a folhas 54 verso do Livro B 51 da mesma Conservatória.
7. A aquisição foi registada definitivamente a favor de NN pela inscrição Nº. 23 056 da dita Conservatória.
8. Um genro do NN, PP, construiu em parte do terreno uma vivenda constituída por um edifício para habitação em alvenaria, com 3 compartimentos, cozinha, casa de banho e garagem, com a área coberta de 52,50 m2 e logradouro com a área de 37,56 m2 que inscreveu na matriz predial urbana da então freguesia de S. Sebastião, hoje Sado, sob o Artº. 11.344, hoje 1.486.
9. O PP promoveu a inscrição matricial da vivenda como benfeitoria sobre terreno pertença do NN.
10. Desde pelo menos 1980 que a vivenda vem sendo ocupada pelos RR. que nela residem e habitam e aí pernoitam.
11. Os RR. nunca pagaram qualquer valor relativo à ocupação da casa.
12. Sobre essa vivenda foi celebrado um contrato promessa de compra e venda, no âmbito do qual PP se obrigou a vender ao R. JJ a aludida moradia.
13. Desde a aquisição que teve lugar em 1929 e até data não concretamente apurada, mas perto da sua morte em 1978, sempre o NN na qualidade de proprietário, e com a consciência de estar a exercer legitimamente o seu direito de propriedade, explorou o prédio, cultivando-o, colhendo, consumindo e vendendo os respectivos frutos, procedendo à sua conservação e introduzindo-lhe melhoramentos.
14. O que tudo sempre fez à vista de toda a gente.
15. E sem oposição de ninguém.
16. Depois da morte sucedeu-lhe a viúva e filhos e, por óbito daquela, seus filhos, sucessores e descendentes.
17. As pessoas referidas em 4. sempre foram reconhecidas pela generalidade das pessoas como proprietários da parcela de terreno em questão.
18. Apesar de instados os RR. recusam-se a entregar a vivenda.
19. A vivenda, se não estivesse ocupada pelos RR., renderia, no mínimo no mercado de arrendamento quantia não inferior a 10 Euros mensais entre 1980 e 1990, 80 Euros mensais entre 1990 e 1999, e actualmente 400 Euros.
20. Os RR. ocupam desde há mais de 20 anos essa moradia.
21. Os RR. têm tido a disponibilidade exclusiva da moradia de forma continuada, sem interrupções, nem oposição de ninguém, sendo que a moradia confronta do Norte com Estrada da Chamburguinha, por onde mede cerca de 7,50 m, do Sul com PP, por onde mede cerca de 7,50 m, Poente com servidão de passagem e Nascente com PP, medindo nestas confrontações cerca de 13,50 m.
22. A casa foi prometida vender ao R. JJ pelo PP, que a havia construído em nome próprio em data não concretamente apurada, anterior a 6.11.80, pagando mão-de-obra e material, e dela tinha a disponibilidade exclusiva, pois detinha as chaves da mesma.
23. Arrogando-se a qualidade de proprietário da moradia.
24. A entrega da casa aos RR. foi conhecida pelo cônjuge do PP, a A. HH .
25. Os RR. executaram obras de conservação e melhoramento na casa, pintando-a, colocando mosaicos na sala de jantar e num dos quartos, e executando ainda uma arrecadação no logradouro, gastando em mão-de-obra e material, valor não concretamente apurado.
26. Os RR. não pediram autorização para essas obras.
27. Os RR. ficaram em dívida com a quantia de 500.000$00 relativamente aos donos da moradia, os referidos PP e Mulher.
28. Que haviam construído a moradia, a suas expensas e com o seu trabalho, numa parte do prédio que em partilhas verbais lhes coube em sorte, e em vida do NN assim havia sido projectado.
29. A casa construída por PP tem actualmente o valor de 16.000.000$00.
30. O aludido contrato promessa de compra e venda foi celebrado em 6.11.80 pelo preço de 1.000.000$00.
31. O R. JJ pagou a PP e Mulher, por força desse contrato, a quantia de 500.000$00.
32. Ficando em dívida a quantia de 500.000$00, que seria paga no acto da escritura.
33. Com o contrato foi entregue ao R., para nela morar, a casa em questão, e o R. requisitou luz e água, pagando o custo do respectivo ramal.
34. O contrato promessa nunca foi resolvido por nenhuma das partes.
35. Em 1980 aquela casa não seria arrendada por valor superior a 3.000$00 por mês.
36. A A. II não teve qualquer intervenção na promessa de compra e venda da casa, tendo a mesma sido apenas pactuada com o seu falecido marido.”

III-B) Análise do recurso

Comecemos por fazer um apanhado dos factos provados que se mostram relevantes para a solução do caso:

A A. HH é filha de NN e de OO.
A referida A. veio a casar com PP em regime de comunhão geral de bens.
Durante o respectivo casamento, a HH e o PP, com autorização dos pais da A., construíram, num terreno que futuramente lhes seria destinado, uma vivenda, que ficou inscrita como benfeitoria do prédio em que se inseria, mas que desde logo era considerada por todos como sendo efectivamente deste casal, já que foi construída por estes e com dinheiro próprio.
Posteriormente a essa construção, em 6 de Novembro de 1980, o PP celebrou contrato promessa de compra e venda com os RR. JJ e QQ (mãe do R. JJ, falecida em 1 de Novembro de 1991, e de quem este foi o único herdeiro- fls. 342 a 347), mediante o qual o referido PP (desacompanhado da esposa) se comprometia a vender ao R. JJ e à referida QQ, mediante 1.000.000$00 a referida vivenda, tendo recebido 500.000$00 e ficando de receber o restante no acto da escritura.
O promitente vendedor, por sua vez, procedeu à entrega da moradia ao R. JJ e esposa KK (repare-se que a outra promitente compradora não era a mulher do R., mas sim a mãe, QQ, entretanto falecida), tendo a A. HH ficado conhecedora dessa entrega.
Acontece que entretanto o PP (marido e pai das actuais AA.) também faleceu.
A escritura definitiva da compra e venda não chegou nunca a ser feita.
As aqui AA., na qualidade de esposa sobreviva e filha, são as herdeiras do PP, e a elas foi adjudicado em partilhas (por óbito de NN e OO, pais da primeira e avós da segunda, respectivamente) o prédio onde se mostra inserida a vivenda, objecto do contrato promessa.
Os RR. ocupam a vivenda há mais de vinte anos.
As AA., entre outras coisas, reivindicam o prédio ocupado, dizendo pertencer-lhes, recusando-se a celebrar o contrato definitivo, com base na circunstância de a A. HH, na qualidade de esposa do promitente vendedor, com quem estava casada em regime de comunhão geral de bens, não ter outorgado no contrato promessa.

Quid juris?

O contrato promessa foi celebrado em 6 de Novembro de 1980.
O regime jurídico então vigente para o contrato promessa era o decorrente do DL n.º 236/80, de 18/07, pois este diploma, de acordo com o art. 3.º, entrou em vigor na data da sua publicação.
Para que se não colocassem problemas a respeito da aplicação da lei no tempo do Decreto-Lei citado, é relevante trazer à colação, embora isso só indirectamente interesse para o caso presente que o legislador teve o cuidado de fazer incluir, logo no artigo 2.º, que o disposto nos arts. 442.º e 830.º do CC., na redacção que esse diploma lhes deu, se aplica a todos os contratos promessa cujo incumprimento se tenha verificado após a sua entrada em vigor.

Entretanto o Dec-Lei n.º 379/86 veio a dar nova redacção a diversos artigos do CC., entre os quais o referido art. 442.º e 830.º Este diploma, no entanto, nada referiu quanto à aplicação da lei no tempo.
No entanto, tendo em conta o disposto no art. 12.º do CC., para cuja interpretação constitui pedra basilar os ensinamentos do Prof. Baptista Machado (1), “As condições de validade de um contrato têm de aferir-se pela lei vigente ao tempo em que o negócio foi celebrado.(…)”
“O estatuto do contrato é determinado em face da lei vigente ao tempo de conclusão do mesmo contrato.(…)”
“(…) Sempre que porém, as cláusulas de um contrato celebrado na vigência da lei antiga (LA) e por estas consideradas válidas briguem com as disposições da lei nova (LN) com incidência sobre os efeitos do contrato ( e não sobre a validade do mesmo) sendo o teor de tais disposições ditado por razões atinentes ao estatuto das pessoas ou dos bens, a princípios estruturados de ordem social ou económica, estas disposições prevalecem sobre aquelas cláusulas. Enquanto ordenadoras do estatuto legal das pessoas e dos bens tais disposições regulam problemas para os quais a lei competente é a lei nova (LN)”.
E Galvão Telles (2) ensina que “O critério a usar no concernente ao conflito de leis no tempo deve partir da distinção entre situações jurídicas de execução instantânea e situações jurídicas de execução duradoura. Tem-se de seguida em atenção, a lei do facto (ocorrido à data da entrada em vigor da lei nova), a lei dos efeitos passados – quer aquela quer esta aplicam-se para ambas as referidas situações – e a lei dos restantes efeitos (ou seja, os futuros e os de um facto pretérito ainda não esgotados quando surge a lei nova). Para estes aplica-se a lei velha quanto às situações jurídicas instantâneas e no que toca à fase pretérita das situações duradouras; mas já se aplica a lei nova quanto à fase subsequente das situações duradouras.”

Decorre daqui que no tocante à validade do contrato em presença, sua natureza e efeitos produzidos até à entrada em vigência da lei nova, rege a lei antiga; quanto aos efeitos duradouros posteriormente produzidos à entrada em vigor da lei nova, deve ser esta a regê-los:
Tendo em conta que o contrato promessa foi celebrado em Novembro de 1980, aplica-se à respectiva validade e natureza e efeitos instantâneos ou duradouros produzidos até à entrada em vigor da lei nova (DL n.º 379/86, de 11), a redacção dos arts. 442.º e 830.º que lhes foi dada pela lei antiga (DL 236/80, de 18/07)
À situação dos alegados incumprimento e direito de retenção, como ocorridos já no domínio da lei nova (LN), deve aplicar-se o regime jurídico dela decorrente.

Dito isto, podemos avançar para a análise da situação em presença.

O contrato promessa estava sujeito às disposições legais do contrato prometido (aqui compra e venda), excepto quanto à forma e às que pela sua razão de ser não se devam considerar extensivas ao contrato promessa- art. 410.º-1 do CC.
No entanto, como a lei exigia então escritura pública para o contrato prometido.(art. 410.º-1 do CC. e art. 78.º do Código do Notariado na redacção então vigente), teria de o contrato promessa obedecer à forma escrita, e de ser assinado pelos promitentes. – art. 410.º-2 do CC.
In casu, vieram a assinar o contrato promessa os promitentes compradores e apenas o promitente vendedor (não o assinando a esposa, com quem estava casado em regime de comunhão geral de bens).
Pois bem:
A moradia prometida vender fora construída a expensas e com o trabalho do PP (promitente vendedor) numa parte do prédio que ainda em vida de NN, antes de 1978, fora convencionado vir a caber-lhe em partilhas.
A esposa do PP (ou seja a aqui A. HH), embora não tendo assinado o contrato promessa, tinha conhecimento desse facto e pactuou com o marido na sua celebração.
Mesmo que à data ainda não estivesse formalizada a adjudicação do imóvel (onde a mesma se insere) ao já referido PP e esposa (a aqui Autora HH), e portanto não tivessem ainda um título formal válido de propriedade sobre o imóvel, o facto de haver um consenso ainda que verbal sobre as partilhas e de a A. HH ter pactuado com o falecido marido na outorga do contrato promessa, vem a significar que existia já, pelo menos da parte destes, uma expectativa jurídica de virem a adquirir o título formal de proprietários sobre o imóvel, que ainda lhes faltava.
Não podem restar dúvidas, portanto, que, ao outorgar o contrato promessa de compra e venda, o VV, se comprometia, pelo menos, a uma venda de um bem do casal situado em imóvel que lhe estava destinado (coisa futura), comprometendo-se consequentemente a obter o consentimento da esposa para a realização do contrato definitivo.
A venda de bens alheios (e portanto a promessa de venda de bens alheios, ex vi do disposto no art. 410.º-1 do CC.) fica sujeita ao regime da venda de bens futuros (art. 893.º do CC), se as partes os considerarem nessa qualidade.
A este respeito, ensinava Pessoa Jorge (3), que se relativamente a determinada pessoa houvesse um direito ou uma expectativa jurídica de aquisição sobre a coisa alheia, e as pessoas contratassem nessa base, podia essa pessoa realizar o contrato como sendo de coisa futura, deixando assim de lado o regime previsto no art. 892.º do CC.

De considerar ainda, que, atento o facto de o promitente vendedor ter celebrado o contrato promessa desacompanhado da esposa (a aqui A. HH), nem por isso tornaria a promessa inválida. (4)
O VV passou a ficar obrigado a obter o consentimento da esposa para a celebração do contrato definitivo. Se não obtivesse a autorização do cônjuge para a celebração do contrato definitivo, incorreria em responsabilidade civil contratual, já que não podia alienar a referida casa, um bem comum do casal, sem a autorização da esposa.
A esposa deu-lhe esse consentimento, ainda que informalmente apenas no contrato promessa, pois pactuou com ele na celebração do dito contrato, vindo o A. marido a receber metade do valor então convencionado (500.000$00).
A manifestação por parte das ora AA. de que não pretendem celebrar o contrato definitivo traduz-se agora numa manifestação séria, peremptória, inequívoca, de que não pretendem celebrar o contrato definitivo (5), ou seja, de que não pretendem celebrar a escritura, constituindo-se em incumprimento definitivo, por sua culpa.

E incumprimento culposo por quê?

Por duas ordens de razões:

Por um lado, porque sendo ambas as AA. herdeiras do referido VV sucedem no contrato à posição que aquele havia assumido nele.- art.412.º-1 do CC.
Por outro lado, porque a A. HH, lhe não aproveita o facto de não ter outorgado no contrato promessa (para se eximir ao cumprimento do contrato promessa outorgado apenas pelo marido) já que essa situação envolveria abuso de direito.
Com efeito, ela pactuou com o então marido, promitente vendedor, na celebração do referido contrato, pelo que só agora, ao fim de mais de vinte anos, vir reivindicar o imóvel, alegando a sua não outorga no contrato promessa mas esquecendo a anuência que deu ao pacto para a celebração do contrato, constitui um actuação que ofende de forma grave, manifesta, os mais elementares princípios de boa fé, tendo em conta que durante todo este tempo o R. marido ali foi vivendo e realizou obras à vista de todos. - art. 334.º do CC.

Quais as consequências desse incumprimento?

Há que referir, em primeiro lugar, que a simples entrega das chaves relativamente a imóveis prometidos vender, só em condições muito excepcionais integram a “traditio” como correspondente a efectiva transferência de posse e propriedade.
Na verdade, como referem Pires de Lima/Antunes Varela (6), só naqueles casos em as partes decididamente entreguem a totalidade do preço e do contrato resulte que não pretendam realizar o contrato prometido para evitar despesas, é que a traditio corresponde a transmissão de propriedade e posse.
Nos contratos promessas, a “traditio” da coisa não pretende corresponder à transmissão da posse, pois esta só ocorre quando se verifique simultaneamente a verificação do “corpus” e do “animus.”
Com efeito, os poderes que o promitente comprador exerce de facto sobre a coisa, sabendo que ela ainda não foi comprada, não são os correspondentes ao direito do proprietário adquirente, mas os correspondentes ao direito de crédito do promitente-adquirente perante o promitente alienante ou transmitente.
A entrega das chaves e autorização para ocupação, quando falta pagar ainda metade do preço da compra do imóvel (como foi o caso), não havendo cláusula no contrato em que fique estipulado que com ela se pretende significar desde logo a transmissão definitiva dos poderes reais sobre a coisa, só podem por isso traduzir a detenção ou posse precária, modalidade insusceptível de poder fazer triunfar o constituto possessório, porque nesse contrato promessa só se quer fazer a transmissão sobre a titularidade da coisa com a celebração do contrato definitivo. (7)
Não havendo posse, também não há usucapião por parte dos RR., apesar do tempo já decorrido.

A traditio pode no entanto corresponder apenas a uma entrega, correspondendo a uma posse precária ou de mera detenção, como já atrás foi enunciado, e é nesse sentido mais lato que aparece essa expressão no art. 442.º do CC.
Reza com efeito o indicado normativo. que se o não cumprimento do contrato promessa for devido ao promitente vendedor e tiver havido tradição da coisa tem o outro contraente a faculdade de (…) exigir o seu valor ou o do direito a transmitir ou a constituir sobre ela, determinado objectivamente, à data do não cumprimento da promessa, com dedução do preço convencionado, devendo ainda ser-lhe restituído o sinal e a parte do preço que haja pago.
E nos termos do n.º 3 até pode exigir, em alternativa, a execução específica do contrato, nos termos do art. 830.º.

Prosseguindo:

O Acórdão recorrido a par da procedência parcial da acção, em que reconheceu às AA. o direito de propriedade sobre a moradia, acabou por julgar parcialmente procedente a Reconvenção dos RR. JJ e esposa KK, e em consequência,
- condenou as referidas AA. a pagar aos RR. o montante de 13.500.000$00 (treze milhões e quinhentos mil escudos) – o seu equivalente em Euros – acrescido de juros a contar desde 2000.12.08, à taxa de 7% até 2003.04.30, e à taxa de 4% desde 2003.05.01 até integral pagamento,
- e declarou que os RR. gozam de direito de retenção, sobre a aludida vivenda, até pagamento da indemnização ora arbitrada, não tendo de proceder à restituição da aludida vivenda até ao referido pagamento.

Pois bem:
Os RR. não recorreram do Acórdão, pelo que o que se mostra em cima da mesa para apreciação por este Supremo Tribunal é apenas, a parte da decisão com a qual as AA. se não conformam, designadamente a atinente à indemnização, sustentando estas a inaplicabilidade do art. 442.º-2 do CC., já que, em seu entender, não podia haver traditio em sentido jurídico.
Reforçam esse argumento com o facto de haver mais que um promitente comprador e a entrega de facto só ter ocorrido relativamente a um deles, com exclusão do outro, aliado ao argumento de que no caso não havia posse efectiva (argumento este já rejeitado atrás), o que tudo impediria a operatividade desse preceito.
Consequentemente, no entender dos RR., ficaria prejudicado o direito de indemnização correspondente ao valor do bem à data do incumprimento da promessa, não podendo, por outro lado, e como corolário da primeira conclusão, haver lugar ao direito de retenção.

Permitimo-nos discordar abertamente:

A “traditio” significa essencialmente entrega.
A outra promitente compradora era a mãe do R., de quem este foi constituído único herdeiro.
Não está provado que a entrega a este tivesse sido com exclusão da mãe.
E a “tradição da coisa” a que se reporta o art. 442.º-2 do CC., como já dissemos, não pode confundir-se com a transmissão da posse efectiva. São coisas diferentes, ainda que possam conviver.
Com efeito, reforçando o que já atrás foi dito, o art. 442.º-2 ao referir-se à “tradição da coisa” pretende traduzir a realidade fáctica da entrega da coisa, mesmo que esta entrega seja precária, ou seja, havendo apenas “corpus”; não é indispensável que este esteja acompanhada do “animus” (ubi lex non distinguit neque nos distinguire debemus).
O preceito teria reduzidíssima aplicação (ao contrário dos objectivos claramente assumidos e prosseguidos pelo legislador na alteração sucessiva do preceito em causa) se quisesse apenas abranger os casos de verificação simultânea de corpus e animus na “traditio”, pois como vimos - e a doutrina ensina - , são muito excepcionais os casos em que no contrato promessa a tradição antecipada do bem se traduz na transmissão da posse efectiva.
Daí que nenhuma censura se possa dirigir ao Acórdão recorrido, pelo facto de ter aplicado o art. 442.º do CC. e condenado as AA. a indemnizar os RR. pelo valor da coisa prometida vender, ao tempo do incumprimento.

E dizemos que não discordamos do Acórdão recorrido em ter condenado as AA. a indemnizar ambos os RR. pois que está documentalmente provado que:
- os promitentes compradores eram mãe e filho (sendo aquela QQ e este o R. JJ)
- o JJ é o único sucessor daquela;
- a XX é a Ré demandada na qualidade de esposa do R.

Sendo a acção dirigida contra ambos, encontram-se estes investidos na posição processual de poder reconvir.
Na verdade, assentando a reconvenção no direito de reivindicar a moradia onde vivem como casa de morada de família há mais de vinte anos, legitimado está que ambos os cônjuges se apresentem a defender os direitos por que propugnam.

A objecção feita de que a reconvenção, a ser admitida, deveria ter sido instaurada também pela outra promitente compradora (QQ), havendo assim, pelo facto de não ter sido, preterição de litisconsórcio necessário, não faz qualquer sentido, porque ao que dos autos consta a mesma já havia falecido, sendo seu herdeiro exclusivo o R. JJ.

Entendem as AA. recorrentes que lhes assiste o direito a ser indemnizadas pelo tempo da ocupação do imóvel e que essa indemnização é superior inclusive àquela a que foram obrigados a pagar aos RR..
Também não perfilhamos esse entendimento.
Havendo as AA. incumprido a obrigação, ou seja, manifestando a vontade inequívoca de que não pretendem cumprir o contrato prometido, não tendo alguma vez chegado a haver resolução, são elas as únicas responsáveis pelo incumprimento do contrato.
Aos RR. nada pode ser imputado a título de incumprimento, já que a parte da prestação ainda não entregue, só seria devida no acto da escritura.
Não assiste por outro lado às AA. qualquer causa excludente de culpa no incumprimento.
Em face do exposto, não lhes assiste o direito a receber qualquer indemnização por parte dos RR., ligados à detenção do imóvel que lhes foi entregue.
Se nulidade existia no Acórdão por nada ter dito a este respeito, fica agora sanada.

Coloca-se agora a questão do direito de retenção:
Será que os RR. podem reter a entrega do imóvel?

Entendemos que sim.
Na verdade, o direito de retenção é um direito real de garantia das obrigações, que confere ao devedor que disponha de um crédito contra o seu credor do direito de não entregar a coisa que esteja em sua mão quando o seu crédito resulte de despesas feitas por causa dela ou de danos por ela causados.- art. 754.º do CC.
Como referem Pires de Mima/Antunes Varela (8)“Para que exista direito de retenção, nos termos do art. 754.º, é necessário em primeiro lugar, que o respectivo titular detenha (licitamente: cfr.art. 756.º-a)) uma coisa que deva entregar a outrem; em segundo lugar, que simultaneamente seja credor daquele a quem deve a restituição; por último, que entre os dois créditos haja uma relação de conexão (debitum cum re junctum), nas condições definidas naquele artigo – despesas feitas por causa da coisa ou danos por ela causados.(…)”
Galvão Telles (9) ensinava por sua vez, de forma explícita, que a detenção (ou posse precária) pode transformar-se em retenção legitimamente.
Calvão da Silva (10) admite que a traditio tanto pode constituir posse como mera detenção, dependendo das circunstâncias concretas em que foi feita e entrega. No contrato promessa é aliás a situação mais frequente.
Pois bem:
Tendo o crédito dos RR. emergido do direito que o art. 442.º-2 lhes confere devido ao incumprimento culposo do contrato promessa por parte das AA., e obrigados agora os RR. a devolver o imóvel àquelas, podem consequentemente estes retardar essa entrega (retendo o imóvel) enquanto aquelas lhes não pagarem a importância que o próprio art. 442.º-2 do CC. lhes reconhece como crédito, dada a existência da conexão funcional(11) entre a obrigação de devolução do imóvel e o crédito assim obtido - art. 756.º-d do CC.
A única forma que tinham disponível para fazer com que o direito de retenção não operasse e de reaverem imediatamente o imóvel antes do pagamento da indemnização, seria a de terem prestado caução suficiente – art. 756.º-d) do CC.

A Relação acabou por fixar uma indemnização dos AA. aos RR. no montante de € 67.337,99, montante inferior à importância que resultaria do cálculo decorrente do próprio art. 442.º-2, mas a que atendeu em virtude de não poder exceder o pedido formulado pelos RR.
Como nenhum crédito emerge para as AA., não há qualquer compensação a operar.
Não havendo superavit das AA. sobre os RR., cai por terra o último argumento em que pretendiam aquelas suportar a inaplicabilidade do direito de retenção.
Nenhuma censura há pois a fazer à adopção dessa medida, que se mostra de acordo com a lei.

Em face do exposto, impõe-se a conclusão de que a Revista deve ser negada.

IV. Decisão

Na negação da Revista, confirma-se o Acórdão recorrido.
Custas pelas recorrentes AA.

Lisboa,6 de Maio de 2008

Mário Cruz (Relator)
Garcia Calejo
Mário Mendes
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(1) Baptista Machado, Introdução ao Direito e ao Discurso Legitimador, 1983,pg.s 70 e ss. e 242 e ss.,
(2) Galvão Telles, Sucessões, 5.ª ed., 269 e ss.
(3) Pessoa Jorge, Obrigações, pg. 67.
(4) Vaz Serra, BMJ, 76, pg. 65
(5) Calvão da Silva, Sinal e Contrato Promessa, 91 e ss.
(6) Pires de Lima/Antunes Varela, CC Anotado,vol. III- 2.ª ed., rev. e act., pg. 6
(7) Ana Prata, O Contrato promessa e o seu Regime Civil, pg. 842.
(8) Pires de Lima/Antunes Varela, Código Civil Anotado, I, 2.ªed. rev. e act. com a colaboração de Henrique Mesquita, pg. 697.
(9) Inocêncio Galvão Telles, Direito das Obrigações, 5.ª ed, pg. 314.
(10) Calvão da Silva, Contrato-Promessa, Análise para reformulação do Decreto-lei n.º 236/80, in Sinal e Contrato Promessa, pgs. 160 e 161.
(11) J.M. Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, vol .II, pg. 574.