Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça | |||
Processo: |
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Nº Convencional: | 5ª SECÇÃO | ||
Relator: | RODRIGUES DA COSTA | ||
Descritores: | COOPERAÇÃO JUDICIÁRIA INTERNACIONAL EM MATÉRIA PENAL CUMPRIMENTO DE PENA ESTRANGEIRO EXTRADIÇÃO NACIONAL RECUSA FACULTATIVA DE EXECUÇÃO RECUSA OBRIGATÓRIA DE EXECUÇÃO RESIDÊNCIA PERMANENTE UNIÃO DE FACTO | ||
Data do Acordão: | 11/21/2013 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
Privacidade: | 1 | ||
Meio Processual: | EXTRADIÇÃO | ||
Área Temática: | DIREITO PENAL - CONSEQUÊNCIAS JURÍDICAS DO FACTO / PENAS. DIREITO PROCESSUAL PENAL - COOPERAÇÃO JUDICIÁRIA EM MATÉRIA PENAL / MANDADO DE DETENÇÃO EUROPEU / EXTRADIÇÃO. | ||
Doutrina: | | ||
Legislação Nacional: | CÓDIGO CIVIL (CC): - ARTIGO 10.º. CÓDIGO PENAL (CP): - ARTIGO 40.º. CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA PORTUGUESA (CRP): - ARTIGOS 67.º, 69.º. LEI N.º 144/99, DE 31 DE AGOSTO: - ARTIGO 18.º, N.º2. LEI N.º 65/2003, DE 23-08: - ARTIGOS 1.º, N.º1, 2.º, 3.º, 4.º, 11.º, 12.º, 28.º. | ||
Jurisprudência Nacional: | ACÓRDÃOS DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA: -DE 27/04/2006, PROC. N.º 1429/06, DA 3.ª SECÇÃO; -DE 12/11/2008, PROC. N.º 3709/08, DA 3.ª SECÇÃO; -DE 10/09/2009, PROC. N.º 134/09.6YREVR, DA 3.ª SECÇÃO; -DE 09/10/2013, PROC. N.º 754/13.4YLRSB. | ||
Sumário : | I - O MDE, constituindo uma decisão de uma autoridade judiciária de um Estado-membro dirigida directamente a outra autoridade judiciária de outro Estado-membro, prescinde das formalidades que estavam ligadas à antiga extradição, que foi suprimida, a benefício de um processo mais ágil, intermediado pelas próprias autoridades judiciárias e de execução mais simplificada, bastando que o MDE contenha certos elementos considerados fundamentais, em regra constantes de um formulário (arts. 3.º e 4.º da Lei 65/2003, de 23-08). II - A recusa de execução do MDE é obrigatória nos casos do art. 11.º da Lei 65/2003, que têm a ver com princípios fundamentais, tais como a amnistia, o princípio ne bis in idem, a inimputabilidade em razão da idade, a punição da infracção com pena de morte ou outra pena de que resulte lesão física irreversível ou a motivação política subjacente. III -Nos casos do art. 12.º, a recusa é facultativa (dupla incriminação fora dos casos do catálogo constante do n.º 2 do art. 2.º, competência para o procedimento do Estado português, nacionalidade portuguesa da pessoa procurada ou encontrar-se em território nacional ou tiver neste a sua residência), tendo mais a ver com o princípio da soberania penal. IV -Quando a pessoa procurada se encontre em território nacional, tenha nacionalidade portuguesa ou resida em Portugal, o Estado português pode recusar a sua entrega ao Estado emitente, mas compromete-se a executar em território nacional, de acordo com a lei portuguesa, a pena ou a medida de segurança a que a pessoa procurada foi condenada. V - A razão de ser desta recusa facultativa está na ligação da pessoa procurada ao território nacional, ligação esta que pode ter vários graus de intensidade, desde a simples permanência, à residência ou à nacionalidade portuguesa. VI -Esta recusa compreende-se por razões ligadas às próprias finalidades das penas, de que a reinserção social é objectivo fundamental (art. 40.º, n.º 1, do CP), por ser mais adequada a reintegração do condenado através do sistema de execução da pena do próprio país onde reside, de que é nacional ou onde se encontre temporariamente, mas também por ser menos penosa para o mesmo, tendo em vista o seu enraizamento social, familiar e nacional. VII - Mas outras razões podem justificar a recusa da execução do MDE: como se defendeu no Ac. do STJ de 27-04-2006, que estabelece uma aproximação sistemática com o n.º 2 do art. 18.º do 144/99, de 31-08, pode ser negada a cooperação quando o deferimento do pedido possa implicar consequências graves para a pessoa visada, em razão da idade, do estado de saúde ou de outros motivos de carácter pessoal. VIII - O Estado português deve recusar a execução do MDE quando o recorrente tem em Portugal a companheira de nacionalidade portuguesa e os filhos, que foram institucionalizados após a detenção de ambos, por terem sido co-autores do mesmo crime, havendo, por isso, evidentes vantagens no cumprimento da pena em Portugal. | ||
Decisão Texto Integral: | 1. O Ministério Público junto do Tribunal da Relação de Lisboa promoveu a execução de Mandado de Detenção Europeu (MDE) emitido pelas autoridades judiciárias francesa e italiana contra AA, identificado nos autos, para os seguintes fins: - no caso da França (MDE emitido pela Procuradoria-Geral de Aix-en-Provence em 11/04/2011, inserção no sistema Shengen F185459181112200001), para cumprimento de uma pena de 18 meses de prisão que lhe foi aplicada por decisão do Tribunal de Aix-en-Provence, transitada em julgado em 05/01/2011, com o n.º 10/00313, pela prática de um crime de simulação relativa ao estado civil de uma criança (declaração falsa quanto à maternidade da sua filha), crime previsto e punido pelos artigos 227º/13, 227º/9 e 227.º/30, do Código Penal da República Francesa; - no caso da Itália (MDE emitido em 9/07/2013, pelo Tribunal da Relação de Milão, inserção no sistema Shengen IRMACPNCBFLGBD0001), para cumprimento do remanescente de 18 meses de prisão, de uma pena de 4 anos e 6 meses de prisão, que lhe foi aplicada por decisão transitada em julgado em 08/07/2011, com a referência n.º 1663/2009 Reg. Gen. – N. 794/2010, SENT., pela prática de um crime de tráfico de estupefacientes, previsto e punido pelos artigos 110.º, 61.º/2 e 56.º, do Código Penal de Itália e art. 73.º do DPR 309/1990. 2. O referido AA (pessoa procurada) foi detido no dia 3 de Julho de 2013, no Estoril, e apresentado no dia seguinte ao Tribunal da Relação de Lisboa, tendo a detenção sido validada e mantendo-se o mesmo na situação de prisão preventiva, até que o seu interrogatório fosse retomado, uma vez que ficara suspenso para continuar no dia 9 de Julho, dado não ter prescindido do seu advogado e de intérprete de língua do seu país (Itália). 3. Continuando a audiência no referido dia 9 de Julho, a pessoa procurada opôs-se à entrega em execução de qualquer dos mandados, pelo que foi concedido o prazo de 10 (dez) dias para a dedução de oposição e mantida a medida de coacção de prisão preventiva. 4. Tendo sido deduzida oposição, nela colocou uma questão prévia relacionada com o pedido de informações promovido pelo Ministério Público, requerendo a prorrogação do prazo para cabal exercício da defesa, e aduzindo, apesar disso, os seguintes factos: Quanto ao MDE emitido pela autoridade judiciária francesa: 6. O Tribunal de Apelação de Aix en Provence, a 31 de Março de 2010, manteve os efeitos do Mandado de Detenção Europeu, emitido pelo tribunal de Draguignan a 16 de Abril de 2009, por confirmação da Sentença que condenou o Detido por Simulação conduzindo uma violação do estado civil de uma criança, na pena de 18 meses de prisão. . 7. Com idêntica Decisão, e no mesmo processo, foi condenada sua companheira BB, com Mandado de Detenção também emitido e que corre termos neste mesmo Tribunal. 8. Porém, o Detido não reconhece a existência do crime pelo que foi condenado, pois, a sua companheira de há 20 anos, recorreu à Procriação Medicamente Assistida, mais concretamente à técnica de fertilização in vitro para engravidar de sua filha CC, com óvulos doados. 9. Mais, tal recurso à fertilização in vitro, para posterior transferência para o útero de sua companheira BB, foi motivado por questões de saúde, uma vez que na família desta existem graves problemas genéticos. 10. Como tal, na Suíça, procederam ao tratamento acima exposto. 11. A 26 de Maio de 1998 a menor CC , nasceu em Nice. 12. Assim, nos termos do Art. 8.0, nº. 2 da Lei 32/2006, de 26 de Julho, referente à Procriação Medicamente Assistida, “A mulher que suportar uma gravidez de substituição de outrem é havida, para todos os efeitos legais, como a mãe da criança que vier a nascer', 13. Desta forma, de acordo com a Lei Portuguesa, não estamos perante facto ilícito, praticado pelo Detido, pois este apenas declarou como Mãe de CC quem a deu à luz. 14. Sendo natural que a menor CC, não partilhe do mesmo material genético que BB. 15. Pelo que, nos termos dos Art. 12.°, n,º. 1, a) e 2.°, n.o 3 ambos da Lei 65/2003, o Detido se opõe à execução do Mandado de Detenção Europeu. 16. Mais, o ora Detido recusa a aplicação do mandado em causa, nos termos do Art. 11.°, e) da Lei 65/2003, isto é, recusa a aplicação por motivos políticos e humanitários, pois, em França, a sua companheira foi alvo de torturas; factos que se encontram descritos no DOC. Nº 1, que atendendo à grande dificuldade na obtenção do mesmo, desde já se protesta juntar a devida tradução em língua portuguesa. Quanto ao MDE emitido pela autoridade judiciária de Itália: 17. O Tribunal de Apelação de Milão confirmou a Sentença que aplicou pena privativa da liberdade pelo período de 1 ano e 6 meses de reclusão por tentativa para venda em concurso de estupefacientes. 18. Porém, o ora Detido recusa a aplicação do mandado em causa, nos termos do Art. 11.°, e) da Lei 65/2003, isto é, recusa a aplicação por motivos políticos e humanitários, porquanto, 19. Desde há sensivelmente 20 anos que o Detido e a sua companheira BB, se encontram a ser perseguidos por grupos organizados de interesses - ilícitos - relacionados com Silvio Berlusconi e Enzo Alberto Tana - ex-marido da sua companheira. 20. Tal perseguição ocorre mesmo fora de Itália, havendo ocorrências e Queixas-Crime apresentadas por BB, nomeadamente em Espanha, conforme Doc. Nº. 2 e 3, que atendendo à grande dificuldade na obtenção dos mesmos, desde já se protestam juntar as traduções em língua portuguesa. 21.º Tendo, pessoalmente, conhecimento da identidade de ordenantes e/ou pessoas contratadas para executar, ou seja, matar, quem contra eles actuou. 22. Como tal, não pode o Estado português executar o referido mandado de detenção europeu, pois, a ser assim, 23. Estaria a condenar à morte o Detido, bem como à sua família, que há muitos anos procura um refúgio para viver. Alegou ainda relativamente à recusa facultativa da execução do MDE. 25. A sua companheira BB é nacional de Portugal. 26. Os seus dois filhos, menores, encontram-se institucionalizados em dois estabelecimentos nacionais, conforme informação que consta no Auto de Notícia por Detenção, a fls. 23, dos presentes Autos, e, 27. Tem como objectivo primordial, manter a maior proximidade possível com os mesmos, sendo que a manutenção dos mesmos em instituições nacionais e, 28. O envio do Detido para França ou Itália, acarretaria maiores danos emocionais aos menores. 29. De salientar, ainda que, os Mandados emitidos destinam-se a cumprimento de pena. 30. Como tal, de acordo com o Art. 12.°, g), o Detido pretende cumprir, as penas em que foi condenado, em Portugal. Em síntese final, concluiu, pedindo para: - SER PRORROGADO O PRAZO PARA APRESENTAÇÃO DE DEFESA DO DETIDO, NOS TERMOS DOS ART. 21.°, N.º 4 DA LEI 65/2003, DE 23 DE AGOSTO; ART. 32." DA CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA PORTUGUESA E ALÍNEA D), N." 3 DO ART. 6.° DA CONVENÇÃO PARA A PROTECÇÃO DOS DIREITOS DO HOMEM E DAS LIBERDADES FUNDAMENTAIS; CASO ASSIM NÃO SE ENTENDA, - SER ADMITIDA A RECUSA FACULTATIVA DA EXECUÇÃO DO MANDADO EMITIDO POR FRANÇA, NOS TERMOS DOS ART. 12.", N." 1, A) E 2, N.º 3, BEM COMO DO ART. 12.°, G). TODOS DA LEI 65/2003; E - SER ADMITIDA A RECUSA FACULTATIVA DA EXECUÇÃO DO MANDADO EMITIDO POR ITÁLIA, NOS TERMOS DOS ART. 11.°. E) E DO ART. 12.", G), AMBOS DA LEr 65/2003; 5. Respondeu o Ministério Público junto do Tribunal da Relação de Lisboa, sustentando a improcedência da recusa de execução dos mandados de detenção formulada pela pessoa procurada, mas não se opondo à concessão do prazo requerido. 6. Após a concessão do prazo, a pessoa procurada veio complementar a sua defesa, aduzindo, para além do que já antes alegara, relativamente ao MDE emitido pela autoridade judiciária francesa, que apenas lhe restavam para cumprir 4 meses de prisão, visto que esteve detido durante 14 meses, pelo que o MDE só podia ser validamente emitido e admitido para cumprimento daqueles 4 meses; e - relativamente ao MDE emitido pela autoridade judiciária italiana, que a 1 de Julho de 2013, foi aprovado o Decreto Legge n.º 78 – legge suota carceri 2013, relativa à execução da pena, alterando diversos diplomas e que substitui penas privativas de liberdade em estabelecimento prisional por penas alternativas, requerendo, nessa conformidade, que se solicitasse informação sobre tal diploma legal e influência sobre a execução da sua pena, - requerendo ainda que se solicitasse às autoridades francesas informação sobre possíveis medidas de clemência que tivessem aplicação ao seu caso, e ainda várias traduções, - insistindo pela recusa facultativa em ambos os casos. 7. Por despacho de 27/08/2013, foi indeferida a requerida prorrogação e, por despacho de 28/08/2013, face à premência dos prazos, foi decidido substituir a medida de coacção de prisão preventiva por apresentações diárias no posto policial da área onde foi detida a pessoa procurada. 8. Respondendo á defesa complementar, o Ministério Público voltou a pugnar pela improcedência da recusa de execução do MDE em ambos os pedidos e pela execução prioritária do MDE emitido pela autoridade judiciária francesa. 9. Por acórdão datado de 26/09/2013, o Tribunal da Relação de Lisboa decidiu não haver qualquer causa de recusa facultativa, nomeadamente que a pessoa procurada tivesse suficiente ligação a Portugal que justificasse ser considerada residente, para efeitos do disposto no art. 12.º, n.º 1, alínea g) da Lei n.º 65/2003, de 23 de Agosto, reconhecendo não haver qualquer obstáculo à execução de ambos os MDE. Havendo, no entanto, que dar prioridade a um deles, decidiu-se, na ponderação do critério enunciado no art. 23.º, n.º 1 da Lei n.º 65/2003, começar por dar execução ao MDE emitido pela autoridade judiciária francesa, considerando serem os factos respectivos mais antigos, embora menos graves do que os constantes do MDE de Itália, e a decisão ter transitado primeiro. 10. Inconformada com o decidido, a pessoa procurada veio interpor recurso para o Supremo Tribunal de Justiça, concluindo a sua motivação da forma seguinte: 1. O Recorrente tem residência em Portugal desde o dia 15 de janeiro de 2013, verificando-se a causa de recusa facultativa de cumprimento dos Mandados de Detenção Europeu, nos termos do disposto no Artigo 12°, n." 1, alínea g) da Lei 65/2003, de 23 de agosto. 2. O acórdão recorrido está ferido de nulidade pelas contradições insanáveis em que incorre e pelo erro de interpretação que faz da norma legal prevista no Artigo 12°, nº. 1, alínea g) da Lei, Lei 65/2003, de 23 de agosto. 3. Com o respeito merecido, a decisão recorrida ostenta uma contradição insanável com a fundamentação de facto provada, por duas ordens de razão principais: A primeira, porque a alínea g) do n." 1 do Artigo 12 prevê como causa de recusa, a par da nacionalidade e da residência, a pessoa procurada encontrar-se em território nacional. A este respeito não pode subsistir qualquer dúvida, em razão de ser facto provado que o recorrente, aquando da sua detenção, em 3 de julho de 2013, encontrava-se em território nacional, mais concretamente na sua residência, sita em Estoril. (a este respeito confrontar com conclusão ínsita no parte final da pagina 7 da decisão recorrida.] Este facto, por si só, e à luz de uma interpretação conforme às regras interpretativas previstas no disposto no artigo 9º, nºs, 1, 2, 3 do Código Civil, deveria conduzir, sem mais, à aplicação do citado artigo 12, n." 1, alínea a), do RJMDE, em razão de se verificar um dos pressupostos para o efeito: O recorrente, aquando da sua detenção, em 3 de julho de 2013, encontrava-se em território nacional. A segunda, o facto dado como provado na decisão recorrida, sob o número 5, que recorrente reside em Portugal desde o dia 15 de janeiro de 2013. 4. A aplicação do artigo 12°, n.º 1, alínea g) do RJMDE, não precisa que a residência dure há 4 anos ou se o recorrente tem, ou não, suficiente ligação ao nosso pais. 5. O conceito de residência defendido na decisão recorrida não tem qualquer correspondência com o artigo 12°, n.º 1, g) e viola as normas do nosso ordenamento jurídico que definem o conceito de "residência", mormente os artigos 14° e 82° do Código Civil e artigo 16°, n.º. 1, alínea a) CIRS, que adiante o recorrente desenvolverá. 6. Tal como a "suficiente ligação" é sopesada apenas para efeitos de aquisição de nacionalidade por naturalização, nos termos do disposto no Artigo 6°, n.º. 1 da Lei da Nacionalidade e Artigo 19o do Regulamento da Nacionalidade. 7. O facto do recorrente ter pedido um intérprete não significa que não conheça suficientemente a língua portuguesa mas, sim, atendendo à linguagem jurídica, técnica, específica, usada no presente processo o recorrente pretendeu, tão só, assegurar que ele próprio não colocaria as suas garantias de defesa em causa. 8. Os requerimentos manuscritos em língua portuguesa pelo recorrente, de fls. 280/2, 297/9 e 337/8 demonstram que o recorrente conhece, entende, de forma suficiente a língua portuguesa. 9. Acresce que para a decisão a proferir o tribunal não necessita de se pronunciar sobre a questão relativa à ligação do recorrente a Portugal. 10. A decisão recorrida tem o vício da contradição insanável da fundamentação e, notoriamente, da contradição insanável entre a fundamentação e a decisão, tal como erra na apreciação da prova e na aplicação do direito, previstos no disposto no artigo 410°, n.º 2, alíneas b) e c) do CPP, sobre os quais o Supremo Tribunal de Justiça pode pronunciar-se. 11. O Tribunal da Relação de Lisboa considerou provada matéria de facto que justifica uma decisão contrária à proferida, i.e., que permite não executar o MDE, em razão de verificar-se a causa de recusa facultativa, prevista no artigo 12°, n.º 1, alínea g) da Lei 65/2003 de 23 de agosto. 12. A decisão recorrida ao dar como provado que o Requerido reside em Portugal, pelo menos, desde 15/01/2013 com a sua companheira BB há mais de 20 anos, para depois julgar que não reside e que não tem suficiente ligação, denota uma manifesta e insanável contradição da fundamentação e entre esta, concretamente, e a decisão. 13. Da relação de concubinato existente entre o recorrente e BB, presume-se presunção legal - que entre ambos existe uma vida estável e continuamente comum, uma economia de vida, também integrada pelo filho de ambos, o DD e, pela filha do recorrente CC e, sobre a qual há dúvidas sobre a sua maternidade, e que dá causa aos presentes autos, e concluir que a casa arrendada por BB, em Almancil, foi, desde o inicio, desde o ano de 2010, residência do recorrente. 14. BB ou BB, trata-se, certamente, de um erro de escrita ou de declaração, estando vedado ao tribunal extrair conclusão no sentido de que a diferente identificação é premeditada ou com fim ilícito, não podendo desconhecer que se trata de BB, com sinais nos autos, companheira do recorrente, desde logo, porque foi detido em simultâneo com BB. 15. Nos termos e para os efeitos da Declaração Universal dos Direitos do Homem e da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, o tribunal devia proporcionar, ou pelo menos não impedir, que ao recorrente, com alegadas dificuldades no português, fosse dada a oportunidade de provar que residiu em Almancil, perante a importância, desnecessária, que foi dada a esta questão na decisão recorrida. 16. Sendo convicção do tribunal que o recorrente não tem suficiente ligação, tinha o tribunal de oficiosamente suprir a eventual insuficiência dos elementos carreados para os autos acerca da prova da residência e "convidá-lo" a suprir a insuficiência, e não indeferir o pedido de prorrogação de prazo por despacho de 27.08.2013 e, assim, cumpriria a especial função de salvaguardar a efetiva defesa, permitindo-lhe a inquirição de testemunhas já identificadas sobre a prova de entrada e permanência e da sua companheira em território nacional no ano de 2010. 17. Por causa que não lhe é imputável, o recorrente não exerceu adequadamente o seu direito de defesa porque não arrolou testemunhas que conhecem o recorrente desde 2010, data em que reside em Portugal, com os seus dois filhos e concubina, primeiro em Almancil e, desde janeiro de 2013, em Estoril, e que poderiam depor sobre a questão fulcral e decisiva que é a "residência". 18. Em caso de dúvida, deve aplicar-se o princípio constitucional in dubio pro reo, previsto no artigo 32°, n.º 2 da CRP. 19. Salvo o devido respeito, que é muito, até que a garantia seja prestada pelo Estado membro de emissão de que «com o cumprimento da pena em Portugal consideram extinta a responsabilidade criminal da arguida», a decisão de execução do MDE não pode ser proferida uma vez que está em causa o direito fundamental do ne bis in idem consagrado no art. 29/5° da CRP que limita a aplicação do art. 33°/5 da Lei Fundamental; 20. A fase judicial do procedimento de MDE a cargo do Tribunal da Relação importa a apreciação da legalidade e substância do pedido de MDE sendo manifesto que a matéria da dita garantia é matéria sujeita a contraditório, de legalidade e substância, prévia ou prejudicial à decisão de execução do mandado, sob pena de violação do direito fundamental consagrado no cit. art. 29°/5 da CRP e da disposição do art. 15°/1 da Lei nº. 65/2003; 21. Na ausência de lei expressa, deve ser procurada e seguida a solução legal existente para resolver caso idêntico, seguindo o caminho que esse Venerando Tribunal percorre no douto Acórdão de 27 de Abril de 2006, tirado no Processo 1429/06. 22. Socorrendo-se o Tribunal da Relação do disposto no art. 96° da cit. Lei nº. 144/99 que, no quadro da cooperação judiciária internacional, exige, para o caso de execução de sentenças penais estrangeiras, que o «Estado estrangeiro dê garantias de que, cumprida a sentença em Portugal, considerará extinta a responsabilidade penal do condenado» (alinea h) do nº. 1) - garantia essa que tem de ser prestada com a instrução do pedido, ex ante, e como "condição de admissibilidade" e não após a sua apreciação -), será acautelado o referido direito fundamental da recorrente, o que não foi empreendido; 23. Foram, ainda, desconsideradas as regras relativas à troca de informações e de declarações entre os Estados membros (em particular, a do art. 22°/2 da Lei nº. 65/2003) que exigem à Relação a obtenção de tal garantia previamente à decisão; 24. A sentença é, do ponto de vista da sua eficácia, sujeita a condição (qual seja a de que o Estado membro de emissão, um dia, preste a garantia) o que é vedado pelo nosso sistema jurídico (por força do disposto no antigo art. 673° do CPCV, agora, 621°); relevando-se que se tal proibição já vale em sede cível, por maioria de razão, valerá quando estão em causa direitos, liberdades e garantias, constitucionalmente tuteladas. 25. Respeitosamente, propõe a recorrente que a interpretação que o Tribunal da Relação faz do disposto na alínea g) do nº. 1 do art. 12° da Lei nº. 65/2003 de 23 de Agosto (Mandado de Detenção Europeu) fere (ou tem a aptidão de ferir) o direito fundamental do recorrente a não responder, criminalmente, duas vezes pelos mesmos factos (que lhe é outorgado pelo cit. nº 5 do art. 29° da C.R.P.) uma vez que, por um lado, assenta no entendimento de que a prestação da garantia da extinção da responsabilidade criminal pelo Estado membro de emissão do MDE não é condição de admissibilidade da decisão do cumprimento da pena no Estado membro de execução; e, por outro, porque interpreta o disposto no nº 1 do art. 15° da Lei nº 65/2003 como conferindo competência à 1 a instância para obter e validar tal condição de admissibilidade (a dita garantia) quando tal competência tem de ser exercida pela Autoridade Judiciária de julgamento - a Relação - em momento anterior à decisão de execução do MOE. 26. A manter-se a decisão recorrida, não são respeitados os artigos 7°, n.º. 6, 8°, nº 4 da CRP, no que se refere à residência, estando ferida de inconstitucionalidade a interpretação dada aos artigos 14° e 82° do Código Civil e artigo 16°, n.º. 1, alínea a) CIRS. Termina, pedindo a revogação do acórdão recorrido e que seja determinado ao Tribunal da Relação que obtenha a garantia do Estado membro de emissão de que o cumprimento da pena em Portugal extinguirá a responsabilidade criminal do recorrente (que com o MDE se pretende fazer cumprir), e que, decorrido o contraditório, seja proferida decisão de execução do MDE. 11. Respondeu o Ministério Público junto do tribunal “a quo”, concluindo: 1.a Tendo em conta os factos provados, maxime que o arguido reside em Portugal desde 15/011/2013 - Facto 5 - e que a sua companheira tem a nacionalidade portuguesa - Facto 6 -, tudo aponta para que estejam criadas as condições para que seja dada pelo tribunal a quo a garantia prevista na parte final da ai. g) do nº 1 do artº. 12º. da Lei 65/3003, de 23 de Agosto e, dessa forma, o arguido possa cumprir em Portugal a pena imposta em França, obviamente sem prejuízo de, posteriormente, ter de cumprir a pena imposta na Itália (objecto do outro MDE constante dos autos), se as autoridades judiciais competentes desse último país (Itália) emitirem novo MDE, face à opção tomada pelo Tribunal a quo nos termos do artº. 23º., nº 1 da citada Lei 65/2003 (que corresponde ao artº. 16º. da referida Decisão-Quadro 2002/584/JAI); 2.a Não há lugar à aplicação subsidiária da Lei 144/99, de 31 de Agosto (Lei da Cooperação Judiciária Internacional em Matéria Penal) quanto à garantia de que o "procedimento criminal" (sic) em França extingue-se com o cumprimento em Portugal da pena ali imposta, na medida em que o tempo total de cumprimento da pena em Portugal, ainda que por força do disposto no artº. 10º da Lei do MDE (Lei 65/2003 citada e que corresponde ao artº 26º da Decisão-Quadro do Conselho com o º. 2002/584/JAI do Conselho, de 13 de Junho de 2002), tem sempre de ser descontado na totalidade, levando à extinção da pena ope legis. 3.a O recurso merecerá, pois, provimento quanto à possibilidade do recorrente cumprir em Portugal a pena imposta em França. II. FUNDAMENTAÇÃO 12. Factos em que assentou na decisão recorrida 12.1 Factos dados como provados: 1) Em 11/04/2011, foi emitido o MDE de fls. 228/36 (original e tradução), contra o Requerido, para cumprimento de uma pena de 18 (dezoito) meses de prisão, que lhe foi plicada por decisão transitada em julgado em 05/01/2011, com o n.º 10/00313, por, em 28/05/1998, haver falsamente declarado quanto à maternidade da sua filha, crime p. e p. pelos art.ºs 227º/13, 227º/29 e 227º/30 do CP[1] da República Francesa; 2) Em 09/07/2013, foi emitido o MDE de fls. 88/101 (original e tradução), contra o Requerido, para cumprimento do remanescente de 18 (dezoito) meses de uma pena de 4 (quatro) anos e 6 (seis) meses de prisão, que lhe foi plicada por decisão transitada em julgado em 08/07/2011, com a referência N. 1663/2009 Reg. Gen. – N. 794/2010 Sent., por, em 13/06/1995, ter tentado comprar 200 g. de cocaína e ter recebido 35 g. de haxixe, crime p. e p. pelos art.ºs 110º, 61º/2 e 56º do CP de Itália e art.º 73º do DPR 309/1990; 3) Em 18/05/2007, BB, que o Requerido afirma ser sua companheira há mais de 20 anos, escreveu ao Presidente da República Francesa a carta de fls. 148/52, em suma, denunciando ter sido vítima de violências e ameaças das autoridades policiais e de ter sido injustamente condenada, afirmando a sua inocência; 4) Em 05/11/2007, a mesma BB apresentou queixa na Polícia Judicial, em La Línea, Cádiz, Espanha, por ameaças feitas por um desconhecido, para que não publicasse um livro (fls. 154); 5) O Requerido e a referida BB foram detidos na moradia 2 sita na Rua ..., onde habitavam desde ...., no dia 03/07/2013, na companhia dos menores CC e DD , tendo estes sido institucionalizados (fls. 25, 54 e 55); 6) BB tem nacionalidade Portuguesa; 7) O Requerido tem nacionalidade Italiana; 8) O Requerido juntou o documento de fls. 292/6, cópia não autenticada, que aparenta ser uma decisão do Tribunal de Apelação de Aix en Provence, França; do qual resulta que o Requerido terá sido condenado em 28/02/2005, pelo mesmo tribunal, por violação do dever de assistência aos filhos. 12.2. Factos dados como não provados: a) Que o Requerido resida em Portugal há cerca de 4 anos; b) Que seja vítima de perseguição política em Itália e que tal tenha determinado a emisão do respectivo MDE; c) Que BB tenha sido vítima de tortura na cadeia francesa onde esteve presa; d) Que o Requerido e BB , durante a detenção em França, tenham sido vítimas de ameaças; e) Que o Requerido tenha já cumprido 14 meses da pena referida no MDE de França. 13. Questões a decidir: - A verificação dos pressupostos da recusa facultativa, em conjugação com as alegadas contradições da decisão recorrida. - A garantia prévia a prestar pela França de considerar extinta a pena, no caso de o recorrente cumprir a pena no nosso país e o princípio ne bis in idem. 13.1. O mandado de detenção europeu é uma decisão judiciária emitida por um Estado-membro da União Europeia (dito Estado da emissão), que tem como objectivo a entrega a outro Estado-membro (dito Estado da execução) de um cidadão para efeitos de procedimento criminal, cumprimento de pena ou medida de segurança privativa de liberdade (art. 1.º, n.º 1 da Lei n.º 65/2003, de 23/08). O mandado de detenção europeu tem por base a Decisão-Quadro do Conselho Europeu, de 13 de Junho de 2002, que concretizou o princípio fundamental e inovador do reconhecimento mútuo no âmbito do direito penal, constituindo um passo decisivo na implantação de uma cooperação judiciária adequada à nova realidade europeia, em cujo espaço foram abolidas as fronteiras entre os Estados e criadas novas necessidades de segurança no território da comunidade alargada, em que se tornou necessário simplificar os processos para entrega de pessoas condenadas ou suspeitas, para efeitos de procedimento criminal ou de execução de sentenças. Uma dessas formas de simplificação é a livre circulação de decisões judiciais, num espaço onde já havia sido implantada a livre circulação de pessoas e bens. Assim, o mandado de detenção europeu, constituindo uma decisão de uma autoridade judiciária de um Estado-membro dirigida directamente a outra autoridade judiciária de outro Estado-membro, na base do tal princípio do reconhecimento mútuo, prescinde das formalidades burocráticas que estavam ligadas à antiga extradição, que foi suprimida, a benefício de um processo mais ágil, intermediado pelas próprias autoridades judiciárias e de execução muito mais simplificada, bastando que o mandado contenha determinados elementos considerados fundamentais e em regra constantes de um formulário (Cf. artigos 3.º e 4.º da Lei 65-2003, diploma que transpôs para o plano do direito interno a mencionada Decisão-Quadro). Esses elementos devem ser os bastantes, segundo o princípio da suficiência que orienta o mandado de detenção europeu, para que o Estado da execução possa decidir. Isto porque o que se pretende é, como se disse, celeridade e simplicidade no âmbito de uma cooperação judiciária própria de Estados que fazem parte de uma mesma União, segundo o princípio do reconhecimento mútuo, a partir de determinados requisitos considerados essenciais, que os mandados devem conter. Por outro lado, são estritas e especificadas as causas que podem obstar à execução desses mandados, constituindo causas de recusa obrigatória ou facultativa. Tenha-se em mente que não se exige o controlo da dupla incriminação do facto, sempre que se trate de crimes incluídos no alargado catálogo do art. 2.º da Lei n.º 65/2003, de 23/08. E, por outro lado, até mesmo em relação a nacionais, desapareceu a regra da não entrega ou de não extradição de nacionais, sendo estes os dois pressupostos-base do novo regime, conforme salientam os Acórdãos deste Tribunal de 27-04-2006, Proc. n.º 1429-06 e de 12/11/2008, Proc. n.º 3709-08, ambos da 3.ª Secção. No que respeita às causas de recusa atrás referidas, regem os artigos 11.º e 12.º da Lei 65/2003. A recusa é obrigatória nos casos do art. 11.º, que têm a ver com princípios fundamentais, considerados impostergáveis, tais como os ligados à amnistia, ao principio ne bis in idem, à inimputabilidade em razão da idade, à punição da infracção com pena de morte ou outra pena de que resulte lesão física irreversível, à motivação política subjacente à procura e pedido de entrega de determinada pessoa. No caso do art. 12.º, a recusa é facultativa (dupla incriminação fora dos casos do catálogo constante do art. 2.º, n.º 2, competência para o procedimento do Estado português, nacionalidade portuguesa da pessoa procurada ou encontrar-se esta em território nacional ou tiver neste a sua residência), tendo mais a ver com um princípio da soberania penal, relevando de «compromissos assumidos no âmbito da União e dos consensos possíveis na conjugação do binómio espaço único e soberania estadual», no dizer do primeiro dos acórdãos citados. Entre esses motivos de recusa facultativa, salienta-se o constante da alínea g): a pessoa procurada se encontrar em território nacional, tiver nacionalidade portuguesa ou residir em Portugal, desde que o mandado de emissão tenha sido emitido para cumprimento de uma pena ou medida de segurança e o Estado Português se comprometa a executar aquela pena ou medida de segurança, de acordo com a lei portuguesa. Quer dizer: nestas situações em que a pessoa procurada se encontre em território nacional, tenha nacionalidade portuguesa ou resida em Portugal, o Estado Português pode recusar sem mais formalidades que as previstas na lei (compromisso de executar em território nacional e de acordo com a lei portuguesa a pena ou medida de segurança a que a pessoa procurada tenha sido condenada) a entrega desta ao Estado emitente. A razão de ser da recusa está na evidente ligação da pessoa procurada ao território nacional – ligação que pode ter vários graus de intensidade: desde a simples permanência à residência e à nacionalidade portuguesa, constituindo uma espécie de contraponto ou de válvula de segurança, no dizer do acórdão de 27-04-2006, «que pretende reequilibrar o desaparecimento total ou a desvinculação, no regime do mandado de detenção europeu do princípio tradicional da não entrega (e da não extradição) de nacionais» . Compete, pois, ao Estado Português (ou seja, às autoridades que têm a seu cargo a competência legal para analisar a situação) verificar caso a caso o grau, a consistência e as consequências dessa ligação, para formular a recusa de entrega, comprometendo-se ao mesmo tempo a dar execução no território nacional à pena ou medida de segurança que são objecto do mandado de detenção europeu. Não existe qualquer bilateralidade nesta posição. A recusa tem na sua própria lógica semântica uma ideia de não aceitação unilateral. Apenas se exige que o Estado Português se comprometa, nesse caso, a dar ele próprio execução ao fim que determinou a emissão do mandado. Mas, como se assinala no acórdão deste Tribunal atrás referido, de 27-04-2006, mesmo este compromisso é unilateral, não dependendo de qualquer posição compromissória prévia que envolva ambos os Estados (o emitente e o de execução), consistindo apenas na execução da pena ou medida de segurança aplicadas, em vez da entrega da pessoa procurada, decidida somente pelo Estado de execução, no exercício da referida faculdade. Com certeza que, de um ponto de vista teleológico de interpretação, que deve nortear a hermenêutica dos textos legais, a razão de uma tal faculdade funda-se no tal princípio de reconhecimento mútuo entre Estados que fazem parte de um mesmo espaço geográfico, cultural e económico e com interesses estratégicos comuns, em que o princípio da livre circulação de pessoas, bens e serviços foi um dos objectivos mais emblemáticos que foi implementado, seguindo-se, mais recentemente, o da livre circulação de decisões judiciais em matéria penal, na criação de um espaço comum de justiça, liberdade e segurança. Este princípio do reconhecimento mútuo em que declaradamente assenta a Lei-Quadro de 13 de Junho de 2002 e, na sua esteira, a Lei n.º 65/2003, que operou a sua implementação na ordem interna, dispensa as velhas formalidades que regiam as relações entre os Estados que actualmente são membros da União Europeia, alicerçando-se tais relações, actualmente e, desde logo no plano judiciário, numa base de confiança e de cooperação, com cedências mínimas e indispensáveis ao princípio da soberania dos Estados. Uma dessas cedências é a que está corporizada na assinalada alínea g) do art. 12.º da Lei n.º 65/2003, da qual não está ausente, de todo, uma ideia de cooperação, traduzida a dois níveis: no reconhecimento colaborante da reserva de soberania do Estado de execução e no compromisso assumido, ainda que unilateralmente, de este executar a pena ou medida de segurança imposta pelo Estado emitente. Por outro lado, e esta será também uma motivação de ordem teleológica e ao mesmo tempo sistemática na interpretação do citado art. 12.º, alínea g), é compreensível esta recusa do Estado da execução, quando estejam em causa nacionais, residentes ou pessoas que se encontrem no território nacional, em primeiro lugar por razões ligadas às próprias finalidades das penas, de que a reinserção social é objectivo fundamental e impostergável, nos termos do art. 40.º, n.º 1 do CP, sendo evidentemente mais adequada a reintegração do condenado operada através do sistema de execução da pena ou da medida de segurança do próprio país onde reside ou de que é nacional, ou onde se encontre temporariamente, e mais benéfica e menos penosa para o mesmo condenado, tendo em vista o seu enraizamento social, familiar e nacional. Depois, outras razões podem existir em relação a tais pessoas (residentes, nacionais ou que se encontrem em território nacional) e que possam, na óptica do Estado da execução, justificar a recusa. O acórdão do STJ de 27-04-2006 estabelece uma aproximação sistemática com o art. 18.º, n.º 2 da Lei 144/99, de 31 de Agosto: Pode ainda ser negada a cooperação quando, tendo em conta as circunstâncias do facto, o deferimento do pedido possa implicar consequências graves para a pessoa visada, em razão da idade, estado de saúde ou de outros motivos de carácter pessoal. Na mesma linha vai o acórdão de 10/09/2009, Proc. n.º 134/09.6YREVR, da 3.ª Secção e do mesmo relator dos já mencionados (Henriques Gaspar), que considera haver uma lacuna quanto aos fundamentos ou critérios que hão-de orientar a decisão no tocante à exercitação da faculdade de recusa, lacuna essa a preencher por analogia ou por recurso a princípios gerais de direito, dentro do espírito do sistema (art. 10.º do Código Civil – CC). Como se diz aí: Neste necessário enquadramento metodológico, haverá que integrar a lacuna resultante da omissão legislativa, enunciando os fundamentos, motivos e critérios que, na perspectiva das valorações inerentes imponham ou justifiquem a execução ou, diversamente, a recusa de execução, seja por motivos de política criminal, de eficácia projectiva sobre o melhor exercício, de ponderação com outros valores, ou da realização de direitos ou de interesses relevantes que ao Estado da execução cumpra garantir. É nessa perspectiva de preenchimento da lacuna que se procuram linhas orientadoras ou de aproximação metodológica nas já referidas normas do art. 40.º do CP e no art. 18.º, n.º 2 da Lei n.º 144/99, de 31 de Agosto. 13.2. O que está em causa no presente recurso é a questão da recusa facultativa, ou seja, saber se a recusa de execução do MDE pode ter lugar ao abrigo do disposto na alínea g), do n.º 1, do art. 12.º da Lei n.º 65/2003, de 23 de Agosto, anteriormente analisada.Os vícios do art. 410.º, n.º 2 do CPP, invocados pelo recorrente são o pretexto de que se reveste a sua pretensão para viabilizar aquele objectivo. A verdade, porém, é que se não detectam esses vícios, nomeadamente a contradição entre ter-se dado como provado o facto constante do n.º 5 dos factos provados e a alínea a) dos factos não provados, havendo matéria de facto suficiente para decidir a questão de direito, pois tudo se vem a resumir a uma questão de interpretação da lei. O acórdão recorrido considerou não haver fundamento para a recusa facultativa com estes fundamentos: Para que o tribunal pudesse decidir pelo cumprimento das penas em Portugal era necessário que se tivesse apurado que o Requerido reside em Portugal e aqui tem a sua vida pessoal, familiar, profissional e social estabilizada, de tal forma que este cumprimento favorecesse a sua reintegração social. Ora, o que se apurou foi precisamente o contrário: Só sabemos que o Requerido vive em Portugal desde 15/01/2013. Tem dificuldade em entender a língua portuguesa, conforme declarou na sua primeira audição, em que solicitou a presença de intérprete. Não se provou, nem foi alegado, que cá tenha qualquer actividade profissional. Os menores que consigo viviam não frequentavam em Portugal qualquer estabelecimento de ensino (facto referido no auto de notícia e pelo senhorio, sendo que o Requerido nunca o negou). É, pois, de concluir que o Requerido, não sendo cidadão nacional, não tem suficiente ligação a Portugal que justifique que se considere residente para efeitos do disposto no art.º 12º/1-g) da Lei 65/2003, de 23/08. Vejamos, no entanto, os factos provados, em conjugação com outros elementos resultantes dos autos, nomeadamente do teor do mandado de detenção europeu emitido pela França. Nos termos do n.º 5 dos factos provados deu-se por assente que: O Requerido e a referida BB foram detidos na moradia 2 sita na Rua da Índia, n.º 8, no Estoril, onde habitavam desde ..., no dia 03/07/2013, na companhia dos menores CC e DD , tendo estes sido institucionalizados (fls. 25, 54 e 55). E, na alínea a) dos factos não provados considerou-se que não estava provado: Que o Requerido resida em Portugal há cerca de 4 anos. Está, pois, assente que o recorrente foi detido com a companheira na casa que ambos habitavam desde 15/01/2013, em companhia dos menores CC e DD . A ligação entre ambos remonta, como resulta do MDE emitido pela autoridade judiciária francesa, onde são referidos como cônjuges (os cônjuges C...), pelo menos ao tempo da prática da infracção a que se reporta tal MDE, ou seja, 28/05/98, sendo que daí resulta também que o crime de simulação relacionado com o estado civil de uma menor (falsificação de documento, como, entre nós, designaríamos o referido delito) diz respeito à menor CC, sendo esta filha do recorrente, como também decorre do mencionado MDE, onde se diz que «um teste genético de paternidade da criança CC estabelece uma filiação paterna com o Sr. C..., sem filiação possível com a Senhora P...», que, no entanto, foi declarada como mãe para efeitos de registo civil, nisso tendo consistido o crime. Por conseguinte, os dois são companheiros, embora não se saiba ao certo há quanto tempo viviam juntos, afirmando o recorrente, como se diz nos factos provados, que tal acontece há mais de 20 anos. Sabe-se é que foram detidos em 03/07/2013, na casa que ambos habitavam no Estoril desde 15/01/2013 e que as crianças que viviam com eles (a referida CC e DD ) foram institucionalizadas. Sabe-se ainda que a companheira do recorrente, BB, tem a nacionalidade portuguesa (facto provado sob o n.º 6). A referida BB, tendo sido detida com o recorrente, como consta dos factos provados, foi alvo de um MDE, emanado da autoridade judiciária francesa, com objecto idêntico ao constante destes autos, estando em causa o cumprimento de pena pela prática do mesmo crime (simulação quanto ao estado civil da menor CC – falsificação de documento por falsas declarações prestadas quanto a tal maternidade). Tal facto resulta de conhecimento oficioso, por ter decorrido nesta 5.ª Secção o processo relativo à execução do referido MDE, tendo o relator deste processo sido adjunto no acórdão proferido acerca da questão (Acórdão de 09/10/2013, Proc. n.º 754/13.4YRLSB), mandado juntar aos autos pelo relator. Nesse aresto, foi decidido confirmar a decisão do Tribunal da Relação de Lisboa, mantendo-se a recusa de execução do mandado de detenção europeu emitido pelas autoridades francesas, com fundamento na alínea g), do número 1 do artigo 12º da Lei nº 65/2003, com o compromisso de o Estado Português executar a pena de 18 meses de prisão imposta à requerida BB. Ora, este acervo factual permitir-nos-á encontrar a solução que nos parece mais adequada e que divergirá da decisão recorrida. Com efeito, a lei não exige uma ligação ao território nacional da ordem e intensidade pressupostas pelo acórdão do Tribunal da Relação, contentando-se, no seu grau menos exigente, com o facto de a pessoa procurada se encontrar em território português. Claro que não basta esse simples facto, como vimos, sendo ainda necessário encontrar razões que traduzam a existência de vantagens no cumprimento da pena no nosso país e na consequente recusa de execução do MDE. No caso, tais vantagens são evidentes, por razões de ordem familiar (a relação de união de facto que liga o recorrente à referida BB, de nacionalidade portuguesa, e aos filhos, que se encontram em Portugal, onde foram institucionalizados, após a detenção do recorrente e companheira), de unidade no processo de cumprimento das penas por parte de ambos (recorrente e companheira), tendo sido co-autores do mesmo crime, e razões de carácter pessoal, pois o recorrente tem todo o interesse, de resto manifestado por ele próprio, em cumprir a pena no nosso país, por força da ligação familiar que o une àquelas pessoas. Esses factores são importantes do ponto de vista da ressocialização do recorrente, tendo no país a companheira e os filhos. Também o Estado português tem o dever constitucional de protecção da família e da coesão familiar, bem como da protecção da infância (artigos 67.º e 69.º da Constituição). Esses factores são mais do que suficientes para o Estado português recusar, neste caso, a execução do MDE. 13.3 Relativamente à questão da garantia prévia a obter do Estado da emissão de que considera extinta a responsabilidade criminal e, só depois da formalização dessa garantia, é que se poderia desencadear o processo de execução da pena em Portugal, sob pena de se desconsiderar o princípio ne bis in idem, consagrado no art. 29.º, n.º 5 da Constituição da República Portuguesa, começa-se por salientar que a alegação do recorrente, nesta parte, não se adequa à decisão que foi proferida e, antes, transpõe para aqui o que foi alegado no recurso da referida BB, cuja decisão foi a de recusar a sua entrega ao Estado da emissão, com fundamento na alínea g), do n.º 1, do art. 12.º, da Lei n.º 65/2003, ao contrário do que aqui sucedeu. Por isso, essa parte da motivação do recurso não merece ser considerada, porque pressupostamente impugna uma posição que não foi adoptada pela decisão recorrida, servindo os recursos para impugnar decisões expressamente proferidas e não decisões hipotéticas. A tal respeito, contudo, lembramos o que já foi dito sobre a unilateralidade da não aceitação da execução do MDE e não dependência de qualquer vinculação compromissória prévia que envolva ambos os Estados – o da emissão e o da execução. Muito simplesmente, o Estado Português como Estado da execução, constatando estar em causa um indivíduo que se encontre no país, que nele tenha residência ou que seja seu nacional, e ponderando os valores em confronto envolvidos, por um lado, na entrega da pessoa procurada ao Estado da emissão e, por outro, na recusa dessa entrega para cumprimento da pena no país, decide qual a melhor solução de acordo com os valores que lhe parecem merecer maior protecção, como sejam os indicados relativamente à ressocialização da pessoa procurada, sacrifício desnecessário imposto no cumprimento da pena, conforme se adira a uma solução ou outra, ligação familiar, coesão dos membros da família, protecção das crianças, etc, tudo como já foi devidamente acentuado. O compromisso que tem de existir é apenas do Estado Português, como Estado da execução, no sentido de fazer executar a pena aplicada pelo Estado da emissão. Não há que obter qualquer garantia prévia por parte deste último no sentido de que considerará extinta a responsabilidade criminal com o cumprimento da pena no Estado Português, pois a Lei n.º 65/2003, que é uma lei especial, prevalece sobre outros diplomas normativos de carácter geral reguladores de matérias idênticas, como a Lei n.º 144/99, de 31 de Agosto, que aprova a cooperação judiciária internacional em matéria penal, pressupõe a confiança mútua entre os Estados da União, o respeito, na base da igualdade, pelos respectivos sistemas jurídicos e pelas decisões tomadas no âmbito da específica cooperação judiciária entre os Estados-membros. De resto, nesse reconhecimento mútuo, vai implicado o respeito dos diversos Estados da União pela afirmação, ainda que limitada a um mínimo, do princípio de soberania nacional de que o art. 12.º é expressão, traduzido nomeadamente na recusa da entrega da pessoa procurada por razões que têm a ver com a ligação dessa pessoa ao território do Estado da execução. Tal respeito, reciprocidade e confiança incutem, por seu turno, no Estado da emissão, o pleno acatamento da decisão de não entrega, com o pré-assumido recuo da sua soberania, sabendo que a sua decisão de condenação da pessoa procurada vai ser cumprida satisfatoriamente, embora nos termos da lei do Estado da execução. Para tanto basta a notificação da decisão de não entrega por parte deste Estado, prevista no art. 28.º da Lei n.º 65/2003, com a solicitação dirigida ao Estado da emissão no sentido de enviar os elementos necessários à execução da pena aplicada à pessoa procurada e no sentido de considerar extinta toda a responsabilidade criminal relativamente àquela pessoa, pelo facto que deu origem à condenação. Assim se tem decidido em casos semelhantes, de que é exemplo o já referido Acórdão de 09/10/2013, proferido no Proc. n.º 754/13.4YLRSB, relativo à companheira do recorrente e de que o aqui relator foi adjunto. III. DECISÃO 14. Nestes termos, acordam em conferência na Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça em, revogando a decisão recorrida: a) Recusar a entrega do recorrente AA pelo mandado de detenção europeu emitido pela Procuradoria-Geral de Aix-en-Provence em 11/04/2011), para cumprimento da pena de 18 meses de prisão que lhe foi aplicada por decisão do Tribunal de Aix-en-Provence, transitada em julgado em 05/01/2011, com o n.º 10/00313, mas garantir que o Estado Português fará cumprir a pena em Portugal; b) Recusar a entrega do mesmo recorrente pelo mandado de detenção europeu emitido em 9/07/2013, pelo Tribunal da Relação de Milão, para cumprimento do remanescente de 18 meses de prisão, de uma pena de 4 anos e 6 meses de prisão, que lhe foi aplicada por decisão transitada em julgado em 08/07/2011, com a referência n.º 1663/2009 Reg. Gen. – N. 794/2010, SENT., mas garantir que o Estado Português fará cumprir aquele remanescente de 18 meses no nosso país. c) Dar primazia à execução da pena relativa ao MDE emanado da autoridade francesa, nos termos do art. 23.º, n.º 1 da Lei n.º 65/2003, de 23 de Agosto, devendo seguir-se a esta a execução da pena relativa ao MDE emanado do Tribunal da Relação de Milão. d) Ordenar que o cumprimento da(s) pena(s) se faça pelos Juízos Criminais de Cascais, onde este processo será distribuído. e) Determinar que o Tribunal da Relação de Lisboa, antes da remessa dos autos ao tribunal competente para a execução da pena, providencie, no âmbito destes autos, pela obtenção, junto das autoridades da emissão, da declaração de que, uma vez cumprida a pena em Portugal, a autoridade judiciária francesa e a autoridade judiciária italiana considerarão extinta a responsabilidade do condenado, e bem assim dos demais elementos sem os quais não se poderá iniciar o cumprimento da(s) referida(s) pena(s). f) Comunicar à autoridade judiciária italiana, relativamente ao MDE emitido pelo Tribunal da Relação de Milão, para cumprimento do remanescente de 1 ano e 6 meses de prisão da pena de 4 anos e 6 meses de prisão que ao recorrente resta cumprir, pelo crime de tráfico de estupefacientes, que esse MDE aguardará o cumprimento, em primeiro lugar, do MDE emitido pela autoridade judiciária francesa. Sem custas. Supremo Tribunal de Justiça, 21 de Novembro de 2013 Rodrigues da Costa (relator) Arménio Sottomayor ------------------ |