Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça | |||
Processo: |
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Nº Convencional: | JSTJ000 | ||
Relator: | RAÚL BORGES | ||
Descritores: | HOMICÍDIO QUALIFICADO «ATÍPICO» CÔNJUGE APLICAÇÃO DA LEI PENAL NO TEMPO CULPA ESPECIAL CENSURABILIDADE ESPECIAL PERVERSIDADE FRIEZA DE ÂNIMO EXALTAÇÃO INJÚRIA | ||
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Nº do Documento: | SJ200804020047303 | ||
Data do Acordão: | 04/02/2008 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
Privacidade: | 1 | ||
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Meio Processual: | RECURSO PENAL | ||
Decisão: | NEGADO PROVIMENTO | ||
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Sumário : | I - A doutrina e a maioria da jurisprudência nunca consideraram que a relação conjugal pudesse ser encarada como abrangida pela al. a) do n.º 2 do art. 132.º do CP. II - A nova formulação deste preceito [ao qual a Lei 59/2007, de 04-09, aditou a circunstância qualificativa que passou a integrar a sua alínea b) – praticar o facto contra cônjuge, ex-cônjuge, pessoa de outro ou do mesmo sexo com quem o agente mantenha ou tenha mantido uma relação análoga à dos cônjuges, ainda que sem coabitação, ou contra progenitor de descendente comum em 1.º grau] vem consagrar a inserção de forma autónoma do conjugicídio e situações paralelas, para além de outras, o que se justificará atendendo à evolução legislativa, que tem tido em vista o fenómeno da violência doméstica (conjugal), da violência familiar e dos maus tratos familiares, como mais especificamente ocorre com a Lei 61/91, de 13-08, a Resolução da AR 31/99, de 14-04, o Plano Nacional Contra a Violência Doméstica (RCM 55/99, de 15-06, DR n.º 137/99, Série I - B), a alteração ao CP, com a nova redacção do art. 152.º, e a dos arts. 281.º e 282.º do CPP (Lei 7/2000, de 27-05), a Resolução da AR 17/2007 (in DR I Série, de 26-04-2007) sobre a iniciativa “Parlamentos unidos para combater a violência doméstica contra as mulheres”, e a Lei 51/2007, de 31-08, que define os objectivos, prioridades e orientações de política criminal para o biénio de 2007-2009, em cumprimento da Lei 17/2006, de 23-05, que aprova a Lei Quadro da Política Criminal, com referência, nomeadamente, aos arts. 3.º, al. a), e 4.º, al. a), e respectivo Anexo. III - Tal agravativa será de ter em conta apenas para o futuro, atento o princípio ínsito no comando constitucional expresso no art. 29.º, n.º 4, da CRP e concretizado nos arts. 1.º, n.º 1, e 2.º, n.º 4, do CP. IV - A jurisprudência do STJ tem mantido uma interpretação do tipo do art. 132.º como sendo baseado estritamente na culpa mais grave revelada pelo agente, tendo como fundamento o facto de este revelar especial censurabilidade ou perversidade no seu comportamento. V- E é entendimento uniforme deste Supremo Tribunal o de que as circunstâncias previstas no n.º 2 do art. 132.º do CP, os chamados exemplos-padrão, são meramente exemplificativas, não funcionando automaticamente, e devem ser compreendidas enquanto elementos da culpa. VI - Tendo resultado provado, para além do mais, o seguinte: - «por volta das 20h00, o arguido regressou a casa vindo do restaurante que habitualmente frequenta, apresentando, devido a anterior consumo de bebidas alcoólicas, uma taxa de álcool no sangue de 1,98 g/l, tendo-se dirigido à cozinha onde se encontrava a MA e a filha do casal; - a certa altura e por influência do estado de embriaguez do arguido, gerou-se de imediato uma discussão entre este e a MA; - na sequência da discussão, a MA, aborrecida pelo facto de o arguido chegar frequentemente a casa embriagado e a altas horas da madrugada, dirigiu-lhe a seguinte expressão “Não sei porque chegas todos os dias a casa às 8 da manhã, deves ser paneleiro”; - logo de seguida o arguido, exaltado, resolveu atentar contra a vida da sua mulher tendo-se, para concretizar tal propósito, dirigido ao quarto onde pegou numa arma caçadeira de marca Pietro Beretta, com o número L… semi-automática e com capacidade para carregamento de duas munições – cartuchos – simultâneas que se encontrava ao lado do roupeiro onde costumava ficar guardada, municiou-a com cartuchos intactos de calibre 12, e regressou à cozinha empunhando a arma; - a filha do casal que entretanto e devido à discussão dos pais se havia ausentado para o seu quarto, voltou à cozinha para contar à mãe, MA, que ouvira o arguido a carregar a caçadeira com munições; - na altura apenas se encontravam naquele local, junto a uma mesa ali existente, a filha do casal e a MA; - uma vez na cozinha, o arguido apontou a arma caçadeira na direcção das duas, tendo a MA deitado a mão à arma que o arguido empunhava e entrado os dois em luta pela posse da arma; - a filha, por medo, afastou-se e dirigiu-se para um terraço a que dá acesso a porta da cozinha; - na sequência da luta pela posse da arma o arguido disparou um tiro que atingiu o tecto da cozinha e acto de imediato apontou a arma em direcção ao corpo da esposa que então se encontrava a cerca de um metro de distância; - nessa altura a filha de ambos, por ter ouvido o tiro, regressou à cozinha tendo-se deparado com o seu pai a apontar a arma à mãe a cerca de um metro de distância, e esta a implorar-lhe que não disparasse; - todavia o arguido ignorando tais apelos, apontou a referida arma ao corpo da esposa, que se encontrava a cerca de um metro de distância, e disparou um tiro, atingindo-a nos membros inferiores, no terço inferior de ambas as coxas, onde se situam artérias essências à irrigação sanguínea, o que fez com que a MA tombasse de imediato no chão; - o arguido disse então à filha para ir ligar para o irmão, o que esta fez, tentando pedir ajuda; - passados cerca de 3 a 4 minutos, quando a esposa se encontrava prostrada no chão ensanguentada por força do tiro que a atingiu, embora consciente, e sua a filha na divisão ao lado a telefonar procurando socorro, o arguido ao invés de lhe prestar a ajuda e socorro que sabia que a mesma precisava urgentemente de forma a poder evitar a sua morte, resolveu com (ver supra) e para se certificar de que a esposa ficaria sem vida, carregar de novo a arma introduzindo-lhe novos cartuchos na câmara e desferir um segundo disparo no corpo da MA, o que fez a uma distância não superior a um metro desta, atingindo-a novamente nos membros inferiores, na zona das coxas»;é de afastar a qualificativa «frieza de ânimo», por a mesma não ser compatível com estado de irritação (justificado do ponto de vista do arguido, na sequência da expressão injuriosa). VII - Por outro lado, para que exista «frieza de ânimo» a acção deve sobrevir a uma ideia, a uma tomada de posição pensada, com um mínimo de reflexão antecipada, meditada, amadurecida, a algo que segue a necessário planeamento, a uma previsão e predisposição no sentido de levar por diante a intenção homicida, o que não acontece aqui. É fora de dúvida que se está perante o desenvolvimento de uma acção com duas etapas, e que se verificou um compasso de espera determinado pelo facto de o arguido ter dado dois tiros e assim ter já esgotado a capacidade de disparo por ter usado os dois cartuchos disponíveis. Esta pausa poderia/deveria ser usada pelo arguido para reflectir no que fizera, abster-se de continuar e socorrer a mulher, procurando evitar a morte, o que ainda era possível. Em vez disso, optou por prosseguir, recarregando a arma, mostrando insistência e persistência na acção, mas que não corresponde propriamente ao estádio final de todo um processo de sedimentação de um propósito no sentido de dar a morte a alguém. Não houve, em suma, a formação de uma intenção prévia tendo em vista esse resultado. VIII - Um caso especialmente grave pode ser admitido como incluso no critério orientador ou cláusula geral da especial censurabilidade ou perversidade quando a gravidade do facto equivalha à gravidade dos casos mencionados nos exemplos típicos, devendo o julgador orientar-se a partir dos sinais fornecidos na exemplificação da norma constante de cada alínea, ou seja, perspectivar os factos através das diversas alíneas do n.º 2 do art. 132.º e, através da ponderação do pleno das circunstâncias enformadoras do facto e da personalidade do agente, definida que seja a imagem global do facto, averiguar e avaliar se se está ou não perante um especial e acentuado desvalor de atitude, que se encontra dentro das fronteiras marcadas pela estrutura de sentido que modela o exemplo, ou se o caso se reconduz a uma situação análoga, paralela ou equivalente, se estamos perante circunstâncias de estrutura análoga, que exprimam um grau de gravidade e possuam uma estrutura valorativa correspondente à imagem de um dos exemplos-padrão, que marquem uma diferença, distanciamento e dissociação, relativamente ao padrão normal de actuação, ao tipo matriz, no sentido de um maior ou acentuado desvalor de atitude, na forma de especial censurabilidade ou perversidade e que possa, por isso, ser valorada em termos de conformar especial juízo de censura e especial tipo de culpa, agravada. IX - Tendo em consideração que: - o arguido tinha, em relação à vítima, pelos laços que a ela o ligavam, pela relação de proximidade, especiais deveres de se abster de assumir comportamentos violentos, pois aquela era sua mulher e mãe dos seus filhos, facto que faz acrescer a intensidade dos deveres abstencionistas, sendo a conduta reveladora da especial intensidade da culpa do arguido, por não ter sabido e conseguido estancar as contramotivações éticas relacionadas com os laços do casamento; - é de atentar na opção pela zona do corpo atingida – o terço inferior de ambas as coxas –, onde se situam artérias essenciais à irrigação sanguínea, em que o resultado não se produz com o mesmo grau de imediatismo e de eficácia como seria em outras zonas vitais do corpo, antes se processa com graves hemorragias, pretendendo o arguido uma morte lenta, sofrida, com longa percepção por parte da vítima do seu estado e da aproximação do fim, que teve lugar 6 horas depois, manifestando o arguido falta de piedade, com assunção de comportamento onde se misturam frieza e crueldade, insensibilidade perante a vítima, indefesa, desprotegida, completamente impossibilitada de resistir ao agressor armado, incapaz de se opor ao primeiro tiro e mais ainda ao segundo, em situação de extrema vulnerabilidade, numa altura em que estava prostrada no chão e ensanguentada, agonizante; - a persistência na resolução e na produção do resultado típico está patente no segundo tiro, na insistência, repetição da acção, com vista a certificar-se do êxito da conduta, da consumação; - a actuação do arguido revela completa insensibilidade e absoluta indiferença e desprezo pelo valor da vida humana, pela integridade física e vida da mulher, pela sua sorte, pois podendo parar, não o fez, não prestando socorro, que ainda poderia evitar o resultado fatal; - o arguido mostrou-se insensível aos apelos e ao temor da mulher, que lhe implorava para não disparar, não recuando perante o resultado do 1.º tiro e suas consequências, municiando de novo a arma e desferindo o 2.º disparo, à mesma curta distância, atingindo-a de novo na mesma zona; - actuou com manifesta superioridade em razão da arma; - o facto de ter tirado a vida à mulher disparando contra esta na presença da filha menor indicia uma maior capacidade criminosa, pelo não respeito dos motivos inibitórios do crime que à relação conjugal e laços de família devem andar ligados; - toda a actuação se processa no interior da residência, em espaço fechado; - os disparos foram efectuados a curtíssima distância – cerca de um metro; - o arguido sabia manusear armas, pois era caçador, sendo detentor de duas armas; - o compasso de espera, o hiato temporal entre os disparos, determinado pela necessidade de municiar de novo a arma, que o arguido não aproveitou para reflectir e voltar atrás, prestando o socorro urgente de que necessitava a vítima, antes desferindo segundo disparo contra a mulher que se encontrava prostrada no chão ensanguentada, mas consciente, e que não teve direito a uma morte com dignidade; - a firmeza da intenção criminosa, tratando-se de uma acção repetida, denotando conduta implacável, com determinação, não hesitando em suprimir a vida da mulher, sendo que a insistência em consumar a morte não deixa de traduzir culpa acrescentada; - a insensibilidade manifestada na execução do crime, a ausência de motivo forte mitigador da culpa, o desvalor da personalidade do arguido mostram que este revelou na prática do crime um grau de censurabilidade maior do que o juízo de censura subjacente ao homicídio simples; é de concluir que a conduta do arguido, embora não substanciando nenhuma das situações enunciadas nas als. do n.º 2 do art. 132.º do CP, revela completa insensibilidade e mesmo desprezo pela vida do semelhante, acentuado desvalor da acção e da conduta; e que, com a forma de cometimento do crime, no facto estão documentadas qualidades da personalidade do agente especialmente desvaliosas, pelo que se mostra preenchido o tipo de crime de homicídio qualificado (atípico), p. e p. pelo art. 132.º, n.º 1, do CP. X - A expressão proferida pela vítima [«Não sei porque chegas todos os dias a casa às 8 da manhã, deves ser paneleiro»] deve ser entendida como uma reacção a uma conduta continuada do marido, que chegava sempre a horas tardias a casa e alcoolizado, traduzindo-se a sua forma de estar na vida em absoluto absentismo e distanciamento relativamente a tudo o que dizia respeito à sua família, numa atitude de puro egoísmo, em nada contribuindo para aquela, quer em termos afectivos quer económicos, dando azo a frequentes discussões. Estaremos assim face a uma razão subjectiva, um começo de explicação de conduta por causa de discussão ou como reacção a insulto, que não pode razoavelmente explicar a gravíssima conduta do arguido, por ser motivo notoriamente desproporcionado para o comportamento assumido por aquele: é patente a enorme, inadequada, desajustada, manifesta desproporção entre a ofensa da vítima – com natureza e intensidade diversas das perspectivadas pelo agente – e a reacção do recorrente, não podendo o condicionalismo que a despoletou explicar, e muito menos, obviamente, justificar, reacção com tal amplitude e efeitos | ||
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Decisão Texto Integral: | No âmbito do processo comum colectivo nº 27/06.9GBPRD do 2º Juízo Criminal do Tribunal Judicial da Comarca de Paredes foi submetido a julgamento o arguido AA, melhor identificado nos autos. Por acórdão do Colectivo do Círculo Judicial de Paredes, de 23 de Março de 2007, foi o arguido condenado pela prática de: Um crime de homicídio qualificado, p. p. pelos artigos 131º e 132º, n.ºs 1 e 2, alínea i) do Código Penal, na pena de 20 anos de prisão; Um crime de detenção de arma, p. p. pelo artigo 6º, n.º 1, da Lei nº 22/97, de 27-06, na pena de 6 meses de prisão. Em cúmulo jurídico, na pena única de 20 anos e 3 meses. Foi ainda condenado a pagar aos seus filhos e da vítima, a título de indemnização por danos: a BB, a quantia de € 73.133, 33 e a CC, a quantia de € 54. 133.33, acrescidas de juros de mora. Inconformado, o arguido interpôs recurso circunscrito à parte criminal do acórdão para o Tribunal da Relação do Porto. Por acórdão de 26 de Setembro de 2007, o Tribunal da Relação do Porto deliberou: - Eliminar do ponto 18 da matéria de facto a expressão “frieza de ânimo”; - Reduzir para 18 anos de prisão, a pena que foi cominada pelo crime de homicídio qualificado; - Fixar em 18 anos e 3 meses de prisão a pena única resultante do cúmulo jurídico a efectuar com a pena que foi aplicada pelo crime de detenção ilegal de arma; - Confirmar o mais decidido. De novo irresignado, o arguido interpôs recurso para este Supremo Tribunal, apresentando a motivação de fls. 1165 a 1175, que remata com as seguintes conclusões (em transcrição): 1) 0 crime dos autos só aconteceu devido ao estado de exaltação e de embriaguez do arguido, no contexto de uma intensa discussão que teve com a vítima e na sequência do insulto que esta lhe dirigiu. 2) Não se pode considerar que tivesse existido perversidade e censurabilidade na conduta de alguém que se encontrava embriagado e exaltado no momento do acto, privado das suas faculdades psicológicas, sem capacidade para reflectir ou discernir. 3) Foi o estado de espírito do recorrente que influiu decisivamente o seu comportamento, não se vislumbrando qualquer aparência calculista, reflexiva e insensível da conduta assumida. 4) Nos factos dados como provados não se descortina especial perversidade na conduta do arguido, e também nada foi provado que permita concluir que o arguido tenha agido de modo frio, calculista, reflexivo, deliberado e perverso. 5) Todos os factos apurados são manifestamente insuficientes para se deduzir e muito menos para se concluir que o recorrente actuou de forma perversa. 6) O arguido não deveria, pois, ter sido condenado pela prática de um crime de homicídio qualificado p.p. pela alínea i) do no nº2 do artigo 132º, do C. P. por manifesta ausência dos pressupostos de facto, mas apenas e tão só pelo crime de homicídio simples previsto no artigo 131º do mesmo código. 7) A pena aplicada ao arguido é manifestamente excessiva e incompatível com o crime que cometeu, já que não deve ser qualificado por não se verificar o elemento agravante previsto na alínea i) do nº 2 do artigo 132° do C. P. devendo o recorrente responder apenas por crime de homicídio simples, tal como se prevê no artigo 131° do C. P., aplicando-se-lhe uma pena de 14 anos. 8) Caso se mantenha a qualificação, - o que só por mera hipótese de raciocínio se admite - sempre a pena deve ser reduzida para os referidos 14 anos, assegurando-se assim também os fins de prevenção geral e especial, tendo em conta que o arguido não tem quaisquer antecedentes criminais, manifestou sentimentos sinceros de arrependimento, de culpa e de desespero, exteriorizados no próprio acto que atentou contra a sua vida logo após o crime que praticou, o que demonstra que se tratou de um acto irreflectido e imponderado. 9) O arguido tem tido um comportamento adequado ao meio prisional e está laboralmente activo, trabalhando na lavandaria e frequentando um curso de máquinas e ferramentas tendo em vista a sua reintegração na sociedade, quando cumprir a respectiva pena, facto que deveria ter sido levado em conta na sentença recorrida para determinar a medida da pena e não o foi. 10) Na determinação da medida da pena devia ainda ter-se ponderado as circunstâncias em que o crime foi cometido: o arguido revelou uma perturbação mental e psicológica, por força do seu estado exaltado na sequência da vítima lhe ter dirigido a expressão injuriosa de "paneleiro" e se encontrar embriagado com uma taxa de álcool de 1,98 g/l, facto que não foi levado em conta na sentença recorrida 11) A pena não superior a 14 anos é compatível com os fins de prevenção geral e especial, sendo certo que esta serve essencialmente o escopo da reintegração, tentando evitar a quebra de reinserção do arguido na sociedade. 12) A pena não superior a 14 anos de prisão será suficiente para se atingir os fins insertos nas normas incriminadoras e contribui para a plena socialização do recorrente. 13) A decisão recorrida violou, para além de outros, os artigos 71°, 72°, 131°, 132°, do Código Penal. Pede a procedência do recurso, traduzida na convolação do crime de homicídio qualificado para homicídio simples e redução da pena para 14 anos de prisão. Os assistentes CC (filho do arguido e da vítima) e DD, na qualidade de representante da menor BB (igualmente filha do arguido e da vítima) responderam, conforme fls. 1197 a 1207. O Exmo. Procurador Geral - Adjunto no Tribunal da Relação do Porto apresentou a resposta de fls. 1210 a 1213, no essencial dizendo que os factos provados integram a prática de um crime de homicídio qualificado e não simples, por a conduta do arguido ser reveladora de especial censurabilidade e perversidade e especificando: “Parece inquestionável que o arguido demonstrou uma exacerbada intolerância, um egoísmo prepotente e mesquinho, uma insensibilidade moral e uma brutal malvadez, uma acção perfeitamente gratuita, no quadro dos parâmetros éticos e morais dominantes na comunidade em que vivemos, tendo sido uma conduta extremamente violenta e desconforme face a um “motivo” já gasto. A sua conduta repugna ao pensamento e ao agir do homem-médio-padrão, revelando uma profunda insensibilidade e desprezo pela vida humana e pelos valores e princípios estabelecidos e defendidos”. No que respeita à pena aplicada considera-a justa, não se justificando a sua redução para 14 anos. O Exmo. Procurador-Geral Adjunto neste Supremo Tribunal de Justiça, a fls. 1220, colocou visto. No exame preliminar, afigurando-se-nos poder eventualmente vir a afastar-se a qualificativa da alínea i) do n.º 2 do artigo 132.º do Código Penal, integrando-se a conduta do recorrente em crime de homicídio qualificado atípico, p. p. pelo artigo 132º, nº 1, do mesmo Código, foi ordenada a notificação do recorrente para no prazo de 10 dias se pronunciar sobre a questão, nos termos do artigo 424º, nº 3, do CPP. O recorrente pronunciou-se, a fls. 1227, no sentido de corroborar a posição constante da minuta de recurso, onde sustentara que a circunstância do acórdão recorrido ter mandado eliminar dos factos provados a expressão “frieza de ânimo” implicaria a desqualificação do homicídio, considerando que a eliminação da referida expressão exclui a possibilidade de se descortinar, pelo menos, com rigor o grau de perversidade e censurabilidade da sua conduta. A não se entender assim e pressupondo o afastamento da qualificativa prevista na alínea i) do n.º 2 do artigo 132.º do C. Penal, deverá considerar-se a integração da conduta do arguido no crime de homicídio qualificado atípico, p. e p. pelo artigo 132.º, nº 1, do Código Penal e ter-se em conta a diminuição do grau de perversidade e de censurabilidade, para efeitos de mitigação da pena aplicada. A decisão recorrida foi proferida em 26 de Setembro de 2007 tendo o recurso sido interposto em 22 de Outubro de 2007, já, pois, no domínio da nova redacção dada ao Código de Processo Penal pela Lei nº 48/2007, de 29 de Agosto, entrada em vigor em 15-09-2007, sendo que não foi requerida audiência. Passou a dispor o n.º 5 do artigo 411º, do CPP: “No requerimento de interposição de recurso o recorrente pode requerer que se realize audiência, especificando os pontos da motivação que pretende ver debatidos”. Não tendo sido requerida audiência, o processo prossegue com julgamento em conferência, nos termos do artigo 419º, n.º 3, alínea c), do CPP. Colhidos os vistos, cumpre apreciar e decidir. Como é jurisprudência pacífica e assente, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso, é pelas conclusões que o recorrente extrai da motivação apresentada, em que resume as razões do pedido (artigo 412.º, n.º 1, do CPP), que se define e delimita o objecto do recurso. O recurso vem circunscrito à parte criminal do acórdão recorrido, limitação possível, face ao disposto no artigo 403.º, n.ºs 1 e 2, alínea a), do CPP, como de resto ocorrera com o interposto do Colectivo. Questões a decidir Face ao teor das conclusões são as seguintes as questões a resolver: 1 - Enquadramento jurídico-criminal dos factos provados: estar-se-á perante um homicídio qualificado, com integração da alínea i) do nº 2 do artigo 132º do Código Penal, como firmado no acórdão recorrido, ou um homicídio simples, como pretende o recorrente, ou um homicídio qualificado atípico? 2 - Atenuação especial da pena. 3 - Medida da pena. Factos Provados Foi dada como provada a seguinte matéria de facto, que é de ter-se por imodificável e definitivamente assente, já que da leitura do texto da decisão, por si só considerado ou em conjugação com as regras de experiência comum, não emerge a ocorrência de qualquer vício ou nulidade de conhecimento oficioso, mostrando-se o acervo fáctico adquirido suficiente para a decisão, coerente, sem contradição, harmonioso e devidamente fundamentado. Apenas se excluirá, na natural decorrência do decidido pelo Tribunal da Relação do Porto do ponto 18, na 5ª linha, entre as expressões “resolveu com” e “e para se certificar” a expressão “frieza de ânimo”, mandada retirar pelo acórdão recorrido. Seguem-se os factos dados por provados: 1. O arguido foi casado com EE. 2. Na constância do casamento, o arguido e EE discutiam por diversas vezes em virtude do excessivo consumo de bebidas alcoólicas por parte daquele, sendo frequente em tais discussões a troca de expressões injuriosas que se dirigiam mutuamente. 3. Devido ao mau relacionamento entre o casal, há cerca de um ano e meio, a EE disse ao arguido que pretendia divorciar-se dele, ao que este disse nada ter a opor. 4. Porque pretendia primeiro acabar com a sua participação na empresa da família, EE adiou o início do processo de divórcio até que o arguido regularizasse a situação junto das Finanças, o que nunca veio a acontecer. 5. No dia 9 de Janeiro de 2006, cerca das 19h30, a EE encontrava-se na cozinha da residência onde vivia com o arguido e com a filha do casal, BB, a qual se encontrava no seu quarto a ver televisão. 6. Por volta das 20h00, o arguido regressou a casa vindo do restaurante que habitualmente frequenta, apresentado, devido a anterior consumo de bebidas alcoólicas, uma taxa de álcool no sangue de 1,98 g/l, tendo-se dirigido à cozinha onde se encontrava a EE e a filha do casal. 7. A certa altura e por influência do estado de embriaguez do arguido, gerou-se de imediato uma discussão entre este e a EE. 8. Na sequência da discussão, a EE, aborrecida pelo facto de o arguido chegar frequentemente a casa embriagado e a altas horas da madrugada, dirigiu-lhe a seguinte expressão" Não sei porque chegas todos os dias a casa ás 8 da manhã, deves ser paneleiro". 9. Logo de seguida o arguido, exaltado, resolveu atentar contra a vida da sua mulher tendo-se, para concretizar tal propósito, dirigido ao quarto onde pegou numa arma caçadeira de marca Pietro Beretta, com o número L58661E, semi-automática e com capacidade para carregamento de duas munições - cartuchos - simultâneas que se encontrava ao lado do roupeiro onde costumava ficar guardada, municiou-a com cartuchos intactos de calibre 12, e regressou à cozinha empunhando a arma. 10. A filha do casal que entretanto e devido à discussão dos pais se havia ausentado para o seu quarto, voltou à cozinha para contar à mãe, EE, que ouvira o arguido a carregar a caçadeira com munições. 11. Na altura apenas se encontravam naquele local, junto a uma mesa ali existente, a filha do casal e a EE. 12. Uma vez na cozinha, o arguido apontou a arma caçadeira na direcção das duas, tendo a EE deitado a mão à arma que o arguido empunhava e entrado os dois em luta pela posse da arma. 13. A filha, por medo, afastou-se e dirigiu-se para um terraço a que dá acesso a porta da cozinha. 14. Na sequência da luta pela posse da arma o arguido disparou um tiro que atingiu o tecto da cozinha e acto de imediato apontou a arma em direcção ao corpo da esposa que então se encontrava a cerca de um metro de distância. 15. Nessa altura a filha de ambos, por ter ouvido o tiro, regressou à cozinha tendo-se deparado com o seu pai a apontar a arma à mãe a cerca de um metro de distância, e esta a implorar-lhe que não disparasse. 16. Todavia o arguido ignorando tais apelos, apontou a referida arma ao corpo da esposa, que se encontrava a cerca de um metro de distância, e disparou um tiro, atingindo-a nos membros inferiores, no terço inferior de ambas as coxas, onde se situam artérias essências à irrigação sanguínea, o que fez com que a EE tombasse de imediato no chão. 17. O arguido disse então á filha para ir ligar para o irmão, o que esta fez, tentando pedir ajuda. 18. Passados cerca de 3 a 4 minutos, quando a esposa se encontrava prostrada no chão ensanguentada por força do tiro que a atingiu, embora consciente, e sua a filha na divisão ao lado a telefonar procurando socorro, o arguido ao invés de lhe prestar a ajuda e socorro que sabia que a mesma precisava urgentemente de forma a poder evitar a sua morte, resolveu com (ver supra) e para se certificar de que a esposa ficaria sem vida, carregar de novo a arma introduzindo-lhe novos cartuchos na câmara e desferir um segundo disparo no corpo da EE, o que fez a uma distância não superior a um metro desta, atingindo-a novamente nos membros inferiores, na zona das coxas. 19. A filha do casal, alertada pelo novo tiro, voltou á cozinha tendo-se deparado com o seu pai com a caçadeira empunhada e a mãe prostrada no solo sangrando abundantemente e sem nada dizer, pelo que em pânico telefonou a uma prima de nome FF a pedir ajuda e saiu da casa dirigindo-se para casa da avó. 20. Minutos depois e arguido convencido de que tinha tirado a vida à sua mulher, resolveu suicidar-se, tendo para o efeito encosta a boca do cano da caçadeira á zona dos maxilares e desferido um tiro sobre si próprio, que o atingiu na face do lado esquerdo, ao nível dos maxilares. 21. Além dos já referidos, foi ainda efectuado pelo arguido um quinto disparo em circunstâncias não concretamente apuradas. 22. Momentos após, a filha do casal voltou a casa acompanhada da avó, tendo-se deparado com a mãe deitada no chão envolta numa grande poça de sangue, bem visível. 23. Mais viu o arguido deitado, com as costas apoiadas no armário que fica por baixo do lava-lo iças e com a caçadeira encostada nas pernas, constatando então que o mesmo disparara sobre si próprio e que se encontrava ferido na face do lado esquerdo, ao nível dos maxilares, não conseguindo falar. 24. Alertada pela BB do sucedido, a prima FF deslocou-se imediatamente à residência do arguido, a qual fica a cerca de cinquenta metros da sua casa, logo seguida do seu marido, GG, o qual, a pedido da BB, chamara entretanto os Bombeiros, deparando-se ambos com o cenário acima descrito. 25. Quando ia a ser transportada para ambulância, a EE que ainda estava consciente disse a uma outra sobrinha, HH, que entretanto também aí havia chegado, "Olha pelos meus filhos e chama a guarda". 26. Os dois tiros disparados pelo arguido que atingiram a EE causaram-lhe as lesões descritas no relatório de autópsia junto a fls. 199 a 208, que aqui se dá por reproduzido, nomeadamente lesões traumáticas vasculares dos membros inferiores; vários chumbos, incrustados nos tecidos moles, do terço inferior de ambas as coxas; fractura de bordos irregulares e infiltrados de sangue, ao nível do terço inferior dos fémures direito e esquerdo; infiltração sanguínea dos músculos e tecidos adjacentes; lacerações, de forma irregular, dos vasos femorais direitos (artéria e veia) e esquerdos (veia), ao longo do terço inferior do seu trajecto. 27. Em virtude dos graves ferimentos apresentados, EE foi socorrida e transportada para o Hospital Padre Américo, em Penafiel e posteriormente para o Hospital de S. João no Porto, onde foi submetida a várias intervenções cirúrgicas, que não foram suficientes para evitar a sua morte. 28. Dada a gravidade dos ferimentos sofridos e os órgãos atingidos, a vítima não conseguiu resistir, vindo a falecer no Hospital de São João, cerca de 6 horas após a 1ª agressão de que foi vitima em consequência das lesões provocadas pelos disparos efectuados pelo arguido. 29. A morte de EE, foi devida a hemorragia consecutiva às lesões traumáticas vasculares dos membros inferiores causadas pelos referidos disparos que lhe foram desferidos pelo arguido. 30. Tais lesões determinaram de forma directa e necessária a morte da EE. 31. Ao disparar cada um dos dois tiros na direcção do corpo da EE, agiu o arguido com o propósito deliberado e concretizado de lhe tirar a vida, utilizando para o efeito uma arma caçadeira. 32. O arguido tinha perfeito conhecimento, além do mais porque era caçador e já a tinha utilizado na caça, da natureza das características e poder de fogo da arma por si utilizada que sabia constituir meio idóneo para um seu disparo produzir no corpo humano, nomadamente na zona atingida dos membros inferiores, lesões graves ou mesmo a morte. 33. Apesar da embriaguez consequente à taxa de álcool no sangue de 1,98g/1 que apresentava, o arguido agiu sempre de forma livre, deliberada e consciente, durante toda a sequencia da sua conduta nos termos acima referidos, bem sabendo que a mesma era proibida e punida por lei criminal. 34. A taxa de álcool no sangue de 1,98g/1 que apresentava contribuiu todavia para a desinibição do arguido e consequente agressividade e impulsividade com que actuou. 35. Embora fosse titular de licença de uso e porte desta arma caçadeira válida para os anos de 1983 a 2001, à data dos factos o arguido não possuía licença válida para o seu porte e uso. 36. Além da arma acima referida, o arguido detinha também na sua posse a arma de defesa marca Vicenso Bemardelli, n.º 116254, calibre 6,35mm., manifestada pelo Livrete nº …….., sem a necessária licença de uso e porte de arma de defesa válida para a sua detenção, apesar de ser conhecedor das características da mesma e que para poder utilizá-la necessitava de referida licença, embora tivesse sido titular de licença válida para os anos de 1993 a 1997. 37. O arguido sabia manusear armas. 38. Sabia o arguido que o porte e uso das referidas armas sem a devida licença é conduta proibida e punida por lei e mesmo assim quis usá-las. 39. O arguido não tem antecedentes criminais. 40. À data da prática dos presentes factos o arguido integrava o seu agregado familiar composto pela esposa e dois filhos, de 14 e 19 anos de idade. 41. A relação do arguido com os filhos era marcada pelo distanciamento mútuo e alguma conflituosidade com o filho mais velho, sendo a falecida esposa, a única que revelava preocupação e se encarregava com a educação, sustento e acompanhamento das demais necessidades dos filhos, os quais afirmaram manter grande afecto e carinho pela mãe. 42. Actualmente, devido ao anterior distanciamento e ao sucedido com a morte da mãe, verificam-se sinais de rejeição do arguido pelos seus filhos que afirmaram não terem qualquer afectividade perante o pai nem perspectivas ou interesse de a virem a ter de futuro. 43. A relação conjugal do arguido era marcada pela conflituosidade recorrente, agravada desde há cerca de 3 anos, devido, particularmente, ao comportamento adoptado pelo arguido, traduzido em constantes saídas nocturnas até de madrugada, á não comparticipação para o orçamento familiar e ainda ao abuso de bebidas alcoólicas, embriaguez, agressividade e discussões frequentes. 44. A este quadro acrescia um agravamento da instabilidade emocional do arguido verificada nos últimos anos prejudicando o seu percurso profissional e o relacionamento interpessoal. Assim, foram sucessivas as mudanças de entidades laborais, o desinteresse pela família e interesse em fazer-se acompanhar de indivíduos de conotação social negativa, desprovidos de qualquer ocupação laboral. 45. No meio social de residência o arguido é caracterizado por ser problemático devido á instabilidade apresentada e por não lhe serem reconhecidos hábitos de trabalho. No entanto não se registam sentimentos de rejeição à sua presença. 46. A vítima EE tinha um filho maior, CC, nascido a 12 de Fevereiro de 1987 e uma filha menor BB nascida a 09 de Novembro de 1992. 47. A EE, apesar de exercer a actividade de auxiliar de acção educativa na escola Secundária de Vilela, era quem realizava as lides domésticas, cuidava, educava e acompanhava diariamente os filhos à escola, e ás actividades de desporto e lazer que estes frequentavam. 48. Era a vítima quem preparava as refeições da família, bem como cuidava da roupa de todos. 49. À data dos factos a EE tinha 42 anos de idade, pois que nascera no dia 19 de Julho de 1963. 50. Gozava de boa saúde, era enérgica e trabalhadora. 51. Tinha um feitio bem disposto, era muito ligada à sua família, sendo extremamente dedicada e carinhosa para com os seus filhos. 52. Quer no momento em que foram realizados os disparos, quer no espaço temporal que mediou até ao seu falecimento, e relativo aos cuidados médicos prestados, a Maria Antónia passou por dor, sofrimento e angústia, pois teve plena consciência que iria ser alvejada, sentindo-se impotente para alterar o rumo dos acontecimentos. 53. À data dos factos, os demandantes CC e a sua irmã menor BB, aqui Representada pela sua avó materna DD, tinham 18 e 13 anos, respectivamente. 54. Sendo que a ligação afectiva de maternidade entre os demandantes e a vitima EE sempre foi forte, intensa e extremamente cuidada. 55. Sendo o amor entre ambos, e de Mãe para filhos, verdadeiro e sincero. 56. Os demandantes e a sua Mãe conviviam diariamente na residência de ambos, sita na Rua ……, n.º ……, Rebordosa, Paredes, onde também residia o aqui arguido. 57. E aí tomavam as suas refeições e também dormiam. 58. A demandante BB presenciou todos os factos descritos na acusação, ou seja presenciou a morte sofrida da sua mãe em consequência dos efectuados pelo seu pai que lhe causaram a morte, pelo que ficou muito abalada, perturbada e em sofrimento que irá se prolongar no futuro. 59. A menor BB sentiu medo e terror quando se encontrava junto da sua mãe e o arguido apontou na direcção de ambas. 60. Ambos os demandantes que são filhos da vitima e do arguido, desde essa data que se encontram profundamente abalados, atormentados e por vezes com sintomas depressivos, tendo tido necessidade de acompanhamento por um psicólogo. 61. Após o falecimento da mãe, vivem com os seus tios, os quais asseguram, com a ajuda da avó materna, o seu sustento. 62. A falecida EE vitima era auxiliar de acção educativa de Nível 1, exercendo funções na Escola Secundária de Vilela, Paredes, auferindo um rendimento mensal de € 526,97 (Quinhentos e vinte e seis euros e noventa e sete Cêntimos). 63. Ambos demandantes, filhos da vítima, são estudantes não tendo, na presente data, qualquer meio de subsistência, pelo que, são os seus familiares, nomeadamente os seus tios e a avó materna quem asseguram o seu sustento. 1ª Questão Homicídio qualificado ou simples? Partindo do facto de o acórdão recorrido ter mandado eliminar dos factos provados a expressão “frieza de ânimo”, defende o recorrente na motivação do recurso, que a factualidade dada como provada implica a directa e inelutável desqualificação do homicídio, dado que aquela eliminação arreda de todo a possibilidade de descortinar perversidade e censurabilidade na sua conduta. Defende que o seu estado de espírito (estado de exaltação e de embriaguez no contexto de discussão com a vítima e na sequência de insulto que esta lhe dirigiu) não podia deixar de influir o seu comportamento, neutralizando a aparência calculista, reflexiva e insensível da conduta assumida, de forma a considerar-se não verificada a censurabilidade e perversidade. Como vimos, quando ouvido nos termos do artigo 424.º, n.º 3, do CPP, o recorrente “não se opôs” à integração da conduta provada no homicídio qualificado atípico, embora com as consequências apontadas. Vejamos se colhe a objecção constante do recurso. Muito embora o acórdão recorrido tivesse mandado eliminar a referência expressa a «frieza de ânimo», constante do ponto 18 dos factos provados, a verdade é que mantida foi a qualificação em função da mencionada alínea i) do n.º 2 do artigo 132.º, do Código Penal, a isso mesmo se referindo o recorrente nas conclusões 6ª e 7ª. O recorrente no recurso interposto para o Tribunal da Relação do Porto pretendera impugnar matéria de facto, sendo que o núcleo essencial da factualidade que se pretendia por em crise com o recurso gravitava em torno da “frieza de ânimo”, que sendo pressuposto da qualificação do homicídio, era apresentada igualmente como facto pelo Tribunal Colectivo de Paredes no ponto 18 da matéria de facto considerada provada. O recorrente, invocando então o artigo 412.º, n.º 3, alínea b), do CPP, tinha em vista discutir a plausibilidade daquela conclusão em face das circunstâncias de o agente na altura apresentar uma taxa de alcoolemia de 1,98 g/l, estar “sob forte estado de exaltação” e não ter começado a discussão que, como depois se enfatiza, apenas se terá originado após ter sido insultado pela sua mulher, sendo que por outra via, a aludida expressão poderia induzir eventual contradição entre aquela mesma conclusão e os factos referidos contidos no início do facto provado n.º 9 (exaltação do arguido), ou com o teor do inserto sob o n.º 34 dos factos provados (referência à TAS). E assim, a extirpação da referida expressão determinada pela Relação do Porto ficou a dever-se a uma tríplice ordem de razões: a sua natureza conclusiva ou de direito, e portanto não operativa; o acolhimento potenciado por um entendimento mais amplo da impugnação de facto, ficando esvaziado de conteúdo o sentido das críticas dirigidas à matéria de facto sob a égide do art. 412º, n.ºs 3 e 4, do CPP, e finalmente, por a mesma exclusão fazer desaparecer a aludida eventual contradição, ficando a matéria de facto isenta de reparos quanto à sua linearidade. A questão a averiguar é a de saber se a conduta do recorrente dada por provada integra ou não o exemplo-regra da alínea i), do nº 2 do artigo 132º do Código Penal, e se a partir desse índice ou sinal, é preenchido o critério geral da especial censurabilidade ou perversidade, denotando um especial grau de culpa do arguido. O Crime de Homicídio Qualificado Estabelece o artigo 132º do Código Penal, na redacção dada pela Lei n.º 65/98, de 2 de Setembro, vigente à data da prática dos factos: 1 – Se a morte for produzida em circunstâncias que revelem especial censurabilidade ou perversidade, o agente é punido com pena da prisão de 12 a 25 anos. No n.º 2 enumeram-se as (então), “entre outras”, onze circunstâncias, susceptíveis de revelar a especial censurabilidade ou perversidade a que se refere o número anterior, passando com a alteração de 1998 para a alínea i) o teor da antiga alínea g), cuja redacção inicial, originária de 1982, fora entretanto substituída pela que lhe fora dada pela 3ª alteração do Código Penal operada pelo Decreto-Lei n.º 48/95, de 15-03 (conferir alínea 88) do artigo 3º- B, da Lei nº 35/94, de 15-09 - Lei de autorização legislativa de que emanou aquele Decreto-Lei), sendo o seguinte o seu teor: i) Agir com frieza de ânimo, com reflexão sobre os meios empregados ou ter persistido na intenção de matar por mais de vinte e quatro horas. Com a versão conferida pela Lei nº 59/2007, de 4 de Setembro, actualmente em vigor, esta qualificativa passou para a alínea j), e para além do mais, foi aditada uma nova circunstância que passou a integrar a alínea b) do seguinte teor: b) Praticar o facto contra cônjuge, ex-cônjuge, pessoa de outro ou do mesmo sexo com quem o agente mantenha ou tenha mantido uma relação análoga à dos cônjuges, ainda que sem coabitação, ou contra progenitor de descendente comum em 1º grau. A Doutrina e a maioria da Jurisprudência nunca consideraram que a relação conjugal pudesse ser encarada como abrangida pela alínea a) do nº 2 do artigo 132º. Teresa Serra, in Homicídios em Série, Jornadas de Direito Criminal, Revisão do Código Penal, 1995/1996, CEJ, edição de 1998, pág.152, nota 31, referia-se à anacrónica qualificação do homicídio em função dos laços familiares, bem como a dificuldade e o desconforto do legislador quando é obrigado a lidar com a criminalidade no meio familiar, quando a questão que se coloca com maior acuidade é a dos maus tratos de crianças e mulheres no meio familiar. A nova formulação vem consagrar a inserção de forma autónoma do conjugicídio e situações paralelas, para além de outras, o que se justificará atendendo à evolução legislativa, que tem tido em vista o fenómeno da violência doméstica (conjugal), violência familiar e os maus tratos familiares, como mais especificamente ocorre com a Lei nº 61/91, de 13 de Agosto, a Resolução da Assembleia da República nº 31/99, de 14 de Abril, o Plano Nacional Contra a Violência Doméstica (RCM nº 55/99, de 15 de Junho, DR nº 137/99, I-B), a alteração ao Código Penal, com a nova redacção do artigo 152.º e dos artigos 281.º e 282.º do CPP - Lei n.º 7/2000, de 27 de Maio - , a Resolução da Assembleia da República nº 17/2007, in DR- Iª Série, de 26-04-07, sobre a iniciativa “Parlamentos unidos para combater a violência doméstica contra as mulheres” e a Lei n.º 51/2007, de 31 de Agosto, que define aos objectivos, prioridades e orientações de política criminal para o biénio de 2007-2009, em cumprimento da Lei n.º 17/2006, de 23 de Maio, que aprova a Lei Quadro da Política Criminal, com referência, nomeadamente, aos artigos 3.º, alínea a) e 4.º, alínea a) e respectivo Anexo. A questão em apreciação no presente recurso não será obviamente vista à luz desta nova solução legal, que alargando a listagem existente, inclui, além do mais, o uxoricídio entre os exemplos-regra, tratando-se de um novo padrão, indício, sintoma, guia, exemplo, modelo, indicador de situação, que abstractamente poderá ser susceptível de indicar que a acção do agente atinge o grau (especial) de culpa revelador de especial censurabilidade ou perversidade. A nova agravativa será de ter em conta apenas para futuro, atento o princípio ínsito no comando constitucional expresso no artigo 29.º, n.º 4, da Constituição e concretizado nos artigos 1.º, n.º 1 e 2.º, n.º 4, do Código Penal. * Segundo opinião dominante o homicídio qualificado não é mais que uma forma agravada do homicídio simples previsto no artigo 131.º, do Código Penal, que constituirá, pois, a matriz, o tipo base, fundamental. O Código Penal de 1982, em matéria de qualificação do homicídio, seguiu um método de combinação de um critério generalizador, determinante de um especial tipo de culpa, com a técnica chamada dos exemplos-padrão - Figueiredo Dias, Colectânea de Jurisprudência, 1987, tomo 4, pág. 51. Aí expende que “a agravação da culpa tem, afinal, a ver com a maior desconformidade que a personalidade manifestada no facto possui, face à suposta e querida pela ordem jurídica, em relação à desconformidade, já de si grande, da personalidade subjacente à prática de um homicídio simples”. A aceitação de utilização de cláusulas gerais, de conceitos indeterminados, a não taxatividade das circunstâncias alinhadas no n.º 2, a concepção de tipo com carácter aberto, em suma, a compatibilidade do artigo 132º do Código Penal com o princípio da legalidade tem suscitado dúvidas na Doutrina, no que toca ao respeito pelo princípio da tipicidade/legalidade e da possibilidade da analogia e interpretação declarativa. Logo no início, foram as críticas refutadas por Figueiredo Dias e Eduardo Correia, defendendo que as circunstâncias apontadas no n.º 2 não integram a ilicitude do facto, sendo antes elementos da culpa, pelo que a elas não será de opor o princípio da legalidade, que vale apenas para o tipo, e este encontra-se delimitado no nº 1. Lopes Rocha, Jornadas de Direito Criminal, Fase I - A Parte Especial do Novo Código Penal, CEJ, Abril de 1983, pág. 354, referindo-se ao artigo 132.º, diz que “O n.º 2, como se ponderou no seio da Primeira Comissão Revisora, corresponde à intenção de colocar nas mãos dos juízes alguns critérios com base nos quais possam dar aplicação ao estatuído no n.º 1. A enunciação é por isso meramente enunciativa e exemplificativa, e não taxativa. A solução foi criticada, por perigosa, e por permitir o arbítrio do juiz, se não mesmo por contrariar certos princípios gerais como o do «nullum crimen sine lege» e o da proibição da analogia. Foi respondido que o n.º 2 não pretende alargar o tipo, representado no n.º 1 com a máxima amplitude, e que as circunstâncias daquele número deveriam ser tidas como elementos da culpa e não do tipo”. Conclui: “Sendo assim, já não há lugar a arbítrio quando se segue uma enumeração não taxativa”. Fernanda Palma, O Homicídio Qualificado no Novo Código Penal Português, 1983, Revista do Ministério Público, ano 4.º, volume 15, pág. 59, relativamente à natureza da agravação do homicídio qualificado, defende tratar-se de “agravação da ilicitude e da culpa, conjuntamente. A descrição típica do homicídio qualificado não indica um conteúdo preciso para a agravação da ilicitude que prevê. Baseia a agravação da ilicitude num conceito normativo de contornos vagos «censurabilidade» ou «perversidade» do agente. Por isso ela terá de ser contrária ao princípio da legalidade, por deixar nas mãos do julgador a construção do tipo”. E no final da conferência, a págs.74, dizia que “as dificuldades que ela (técnica legislativa usada) nos anuncia devem pôr-nos já no caminho da sua reforma”. Teresa Serra, Homicídio Qualificado, Tipo de Culpa e Medida da Pena, Almedina, 1990, págs. 121/3, a este propósito escreveu: «Reprovar a existência de uma enumeração exemplificativa de circunstâncias, acusando-a de violar a proibição da analogia, conduziria, no caso em apreço, não a uma verdadeira, mas a uma falsa aporia», traduzida nas palavras do ditado popular “Preso por ter cão e preso por não o ter”. Defende uma nova leitura do preceito, porque “as duas partes do mesmo complementam-se entre si”, havendo que “atentar no preceito no seu conjunto”. «Com a conjugação de uma cláusula geral e de uma enumeração exemplificativa, a técnica dos exemplos-padrão logra atingir uma unidade nova e superior evidenciada no preceito do artigo 132º, a que, por razões óbvias, não podem já ser dirigidas as mesmas críticas”, consubstanciadas na consideração de que no carácter exemplificativo dos exemplos-padrão (com a admissibilidade da existência de outras circunstâncias, para além das que constam no n.º 2 do artigo 132.º, susceptíveis, também elas, de revelarem a especial censurabilidade ou perversidade do agente, conducente à aceitação de um homicídio atípico) residiria um convite à ampliação sem limites desses exemplos, numa instigação à analogia em direito penal - cfr. págs. 121/2. Nessa visão, a enumeração exemplificativa concretiza e determina a cláusula geral e o critério generalizador delimita a enumeração exemplificativa; cada uma das partes do preceito exerce uma interacção ou influência decisiva na outra, conduzindo a um resultado qualitativamente novo – cfr. págs. 122 e 127- conclusão 13. Prossegue, a págs. 123: “A admissão de outras circunstâncias reveladoras da especial censurabilidade ou perversidade do agente está perfeitamente delimitada aos casos em que tais circunstâncias exprimam um grau de gravidade e possuam uma estrutura valorativa correspondente ao Leitbild dos exemplos-padrão enunciados no n.º 2. Por via de uma conclusão por analogia («Analogieschlusse») ou pela verificação de um efeito de analogia («Analogiewirkung»), tais circunstâncias são susceptíveis de revelar a especial censurabilidade ou perversidade do agente, podendo, nesse caso, afirmar-se a existência de um homicídio qualificado atípico” - cfr. pág. 126 - conclusão 8, in fine. Finaliza concluindo dever “afirmar-se a inteira compatibilidade dos exemplos-padrão com o princípio da legalidade e a função de garantia da lei penal, designadamente com a exigência da máxima determinação da lei penal e da proibição da analogia em Direito Penal” – cfr. pág. 127 - conclusão 14 - e pág. 123, in fine. Alguns anos após, aquando das modificações introduzidas pela terceira alteração do Código Penal pela Lei nº 48/95, de 15 de Março, entrada em vigor em 01-10-1995, em Homicídios em Série, Jornadas de Direito Criminal, Revisão do Código Penal (30-10-1995 a 02-05-1996), CEJ, edição de 1998, Volume II, a mesma Autora retoma a defesa do entendimento de que a interpretação do artigo 132.º tem de considerar o preceito no seu conjunto: a enumeração exemplificativa concretiza a cláusula geral e a cláusula geral delimita a enumeração exemplificativa. A propósito da tendência da jurisprudência, que se abordará infra, de considerar como homicídio qualificado o facto cometido pelo agente desacompanhado de qualquer das circunstâncias previstas no nº 2, mas acompanhado de outras que eventualmente se enquadrem no nº 1 do mesmo preceito, afasta a possibilidade de aplicação da interpretação extensiva e da analogia à mais gravosa norma incriminadora prevista no Código Penal, o que seria inadmissível e, desde logo, inconstitucional - págs.155 a 157 e nota 41. Figueiredo Dias, in Comentário Conimbricense ao Código Penal, Tomo I, § 5, pág. 28, afirma que o método utilizado se revela incensurável à luz do princípio da legalidade, citando Teresa Serra nas passagens assinaladas, a fls. 17 supra, a propósito da interacção dos dois números do artigo 132º (págs. 122 e 127), sendo violador da legalidade o procedimento traduzido em fazer um apelo directo à cláusula geral. Esclarece que ao indagar-se da integração no tipo qualificado não se poderá “fazer um apelo directo à cláusula de especial censurabilidade ou perversidade, antes deve-se em primeiro lugar fazer passar o caso pelo crivo dos exemplos-padrão e a fim de comprovar a existência de um caso expressamente previsto no art. 132º ou de uma situação valorativamente análoga”. Neste sentido, Fernando Silva, Direito Penal Especial, Crimes contra as pessoas, pág. 56. João Curado Neves no ensaio Indícios de culpa ou tipos de ilícito? – A difícil relação entre o n.º 1 e o n.º 2 do artigo 132.º do Código Penal, in Liber Discipulorum para Jorge Figueiredo Dias, expende a págs. 722: «Caso se queira continuar a entender que a agravação da moldura penal prevista no artigo 132.º decorre de um teor de culpa superior ao que subjaz à forma básica do artigo 131.º, só resta a alternativa de defender que a previsão do n.º 1 constitui um tipo de culpa e não de ilícito». Relativamente à compatibilidade do artigo 132.º com o princípio da legalidade, aborda o tema de fls. 747 a 757, defendendo a págs. 749 que os problemas que têm surgido na aplicação do artigo 132.º revelam que a utilização das diversas alíneas como padrões que orientem a inclusão de casos não previstos se revela difícil ou inconvincente, e a págs. 752, que a interpretação com recurso a raciocínio analógico é contrária ao princípio da legalidade e incompatível com o n.º 1 do artigo 29.º da Constituição, pelo que deve o preceito, a ser interpretado nesse sentido, ser julgado inconstitucional. Margarida Silva Pereira, Direito Penal II - Os Homicídios, 40 e 41, expende que “quem preenche uma das alíneas do art. 132º não «entra» automaticamente no âmbito da norma”, só entrando quando , sujeito ao «crivo normativo» do nº 1, se ajuíze que “há mesmo uma culpa especial”. A Autora coloca a questão de saber até onde o julgador pode ir, criando analogicamente novos exemplos padrão, e até onde deve aceitar-se a virtualidade expansiva dos exemplos padrão e porque a proliferação dos exemplos constitui uma brecha no princípio da máxima determinação típica e um risco, entende não se dever «cometer uma vocação ampliadora às circunstâncias do art. 132º», já que não parece possível «vislumbrar um denominador comum, um tertium comparationis, ou seja, uma regra capaz de aferir da estreita compatibilidade entre uma eventual circunstância nova latente e as já patentes na lei». Augusto Silva Dias, Materiais para o Estudo da Parte Especial do Direito Penal, nº 5, Crimes contra a vida e a integridade física, 2ª edição, revista e actualizada, AAFDL, 2007, pág. 24, começa por referir que “A técnica utilizada na qualificação do homicídio consiste numa cláusula geral de agravação (nº 1), a «especial censurabilidade ou perversidade» do agente e um elenco de exemplos-padrão, exemplos-regra ou exemplos típicos (nº 2)”. Numa leitura próxima da interacção e apreciação do preceito no seu conjunto a que alude Teresa Serra expende: “A qualificação resulta de uma conexão hermenêutica entre ambos os aspectos: os exemplos típicos explicitam o sentido da cláusula agravante e esta, por sua vez, funciona como correctivo normativo da objectividade daqueles”. A págs. 25/6, exprime a opinião de que “a compatibilização da abertura possibilitada pela expressão «entre outras» com o princípio da legalidade só é assegurada se ela não conduzir à dissolução do vínculo do juiz à lei (…) e se os exemplos das diversas alíneas puderem funcionar como padrão ou regra e não como exemplificação avulsa. Para que isso suceda, ao juiz apenas é concedido integrar nas alíneas do n.º 2 circunstâncias que, embora não estejam aí expressamente previstas, correspondem à estrutura de sentido e ao conteúdo de desvalor de cada exemplo-padrão. Nestes casos é absolutamente vedado o recurso ao chamado «homicídio qualificado atípico», isto é, à qualificação do homicídio sem passar por nenhum dos exemplos-padrão do nº 2, procedimento corrente na jurisprudência do STJ”. O Autor invoca como exemplos os acórdãos de 23 de Maio de 2002 e de 14 de Janeiro de 2004 - nota 22, a págs. 26. (Não obstante o esforço colocado no sentido de se verem estes acórdãos, não se conseguiu alcançar tal objectivo, devendo-se a dificuldade a eventual lapso de escrita). Prossegue a págs. 30: “…Quando se trata de saber se um dado caso preenche ou não um dos exemplos típicos a questão de se a atitude do agente é especialmente censurável ou perversa fica suspensa. Esta só é considerada uma vez resolvida aquela, pois, se não é preenchido nenhum exemplo típico, não é legítimo indagar se o agente revelou uma especial censurabilidade ou perversidade”. Fernando Silva, Direito Penal Especial, Crimes contra as pessoas, Quid Juris, 2005, pág. 52, defende que o recurso do legislador à técnica dos exemplos padrão – que funcionam para orientar o julgador, apontando factos e situações que podem fundamentar o juízo para uma culpa agravada - permite fundamentar a qualificação em factos que não estejam previstos no nº 2 sem que haja violação do princípio da legalidade. Mais à frente, a págs. 59, a propósito do carácter aberto do tipo, expende: “A forma como o tipo está construído permite que se faça uma analogia em relação ao tipo orientador, ou seja, que a partir do padrão previsto nas várias alíneas se consiga enquadrar, no âmbito do Leitbild que está presente em cada uma, circunstâncias diferentes das expressamente referidas. Neste sentido admite-se que se faça uma analogia, mas sempre a partir de um dos três tipos de circunstâncias previstas (relações agente/vítima, motivações do agente, modo de execução do facto)”. Especifica depois, a págs. 62/3, dizendo: “Admitimos a analogia para concluir que determinada circunstância, embora não prevista expressamente, também se revela susceptível de revelar especial censurabilidade ou perversidade, mas o tipo ainda não está preenchido, ele concretiza-se pelo critério da culpa mais grave. O tipo, em si, está consagrado no n.º 1 e concretiza-se pela especial censurabilidade; se o agente a revela não se chega a fazer analogia em relação ao tipo incriminador, a qualificação opera em sede de culpa que não necessita de estar tipificada como juízo de censura que é”. E finaliza, a págs. 63: “É a conjugação da técnica de um tipo de culpa agravada baseado no modelo dos exemplos-padrão que resulta uma maior clareza, que conduz à admissibilidade da compatibilidade do tipo de crime com os ditames do princípio da legalidade”. Victor Sá Pereira, Código Penal, Notas e Comentários, Livros Horizonte, 1987, págs. 176/180, comentava: «A especial ou maior gravidade é efeito da especial censurabilidade ou perversidade do agente (nº 1), tanto quanto esta decorre dos padrões (determinados) do nº 2 - ou de circunstâncias paralelas (indeterminadas) -, em clara actuação silogística. Mas, assim, a afirmação de que o tipo (sem mais) se encontra no nº 1 não se ajusta à natureza indiciária e subsidiária do nº 2, sedeado no terreno da culpa… A relação que se estabelece entre o nº 1 e o nº 2 exigem que eles disponham de natureza e posição por assim dizer comuns, no limbo do facto punível. Doutro modo, na verdade, o último seria diverso do primeiro e não poderia alimentá-lo. Por conseguinte, se o nº 2 enquadra elementos da culpa, à culpa terá de referir-se o nº 1. Dizer que o tipo (sem mais) se resolve em cláusula geral com enumeração exemplificativa poderia aparentar a vantagem de exprimir, com a segunda a interceder na abrangência da primeira, a função de garantia, em face de qualquer atitude arbitrária. Mas, sem falarmos na antítese entre ilicitude e exemplificação (ou entre elementos e exemplos), não andaríamos longe, assim, da área dos tipos abertos, que a melhor doutrina firmemente rejeita. Ademais, a tipicidade do ilícito resultaria integrada ou interferida por dados exteriores, da província da culpa e despidos da fixidez ou certeza que lhe modela o ser, na mais pura incongruência, ou com substancial agressão dos princípios da legalidade e da tipicidade, como, ao cabo, pois, da citada função de garantia». * Pesem embora todas estas críticas, a verdade é que esta técnica legislativa, com utilização de enunciados meramente exemplificativos e de conceitos indeterminados nos exemplos padrão, não só se tem mantido, como tem sido ampliada/reforçada ao longo destes mais de 25 anos de vigência do Código Penal, o que aconteceu por quatro ocasiões, com a adição não só de novos exemplos típicos, com abertura do catálogo, como também de outras previsões mais abrangentes e compreensivas dos sintomas pré-existentes. Assim aconteceu com o Decreto-Lei nº 101-A/88, de 26 de Março (no uso da autorização legislativa conferida pela Lei nº 43/97, de 28-12), que introduziu então as novas circunstâncias agravativas das alíneas h) e i), que vieram a dar origem à alínea h), na redacção de 1995, e correspondente à actual alínea l), acentuando-se no relatório desse diploma que a indicação das circunstâncias previstas no n.º 2 do artigo 132.º é meramente exemplificativa e que as mesmas não são de funcionamento automático. Justifica a inclusão por poder revestir-se de particular eficácia preventiva e proporcionar ao julgador um critério legal preciso quando tiver de se decidir pela qualificação do homicídio. Neste sentido veja-se ainda o que resultou da terceira alteração ao Código Penal operada pelo Decreto-Lei nº 48/95, de 15 de Março. No ponto 7 do exórdio do diploma lê-se: “A mais importante alteração reside no abandono do modelo vigente de recurso a conceitos indeterminados ou de cláusulas gerais de valor enquanto critérios de agravamento ou de privilégio, de modo a obviar as dificuldades que têm sido reveladas pela jurisprudência e a que o legislador não se pode manter alheio”. O legislador referia-se então ao crime de furto e criminalidade patrimonial. Mas na mesma revisão, tendo-se abandonado essa técnica quanto ao crime patrimonial, manteve-se a mesma no homicídio qualificado, condensando numa única alínea - h) - o que constava das anteriores alíneas h) e i) introduzidas pelo diploma de 1988, expandindo as previsões das alíneas d) e e) e alterando a redacção da alínea g) com a exclusão do vocábulo “premeditação”, como ainda operou “a consagração de um tipo de ofensa à integridade física qualificado por circunstâncias que revelam especial censurabilidade ou perversidade do agente, a exemplo do que sucede no homicídio”. O artigo 146.º do Código Penal (actual artigo 145.º) importou para o domínio das ofensas a técnica e o fundamento da qualificação do homicídio, passando a dispor o n.º 2: “São susceptíveis de revelar a especial censurabilidade ou perversidade do agente, entre outras, as circunstâncias previstas no n.º 2 do artigo 132.º” Teresa Serra, em Homicídios em Série, Jornadas …, 1998, supra citado, considera não muito felizes as alterações introduzidas no n.º 2 do art. 132.º, critica as soluções introduzidas e a ausência de outras (como a eliminação da expressão entre outras do corpo do n.º 2), assinalando o que em seu entender corresponde a uma tendência para a subversão da técnica dos exemplos padrão, para além da surrealista alínea h) – “acusação” não aceite por Figueiredo Dias, Comentário, pág. 41 - e de ser altamente criticável o facto do art. 146.º operar uma remissão pura e simples para as circunstâncias do art. 132.º - págs.148, 150 e 153. A redacção de 1998 – Lei nº 65/98, de 2 de Setembro - deixou intocados, quer o n.º 1, quer o proémio do n.º 2 e a alínea a), limitando-se a multiplicar e alargar o catálogo dos exemplos-padrão, o que acontece com as novas situações previstas nas então alíneas b), g) - com excepção da parte final “ou que se traduza na prática de crime de perigo comum”, já constante da parte final da alínea f) na redacção de 1995 - e alínea l), passando-se de oito para onze exemplos-padrão. Para além destes novos índices, foi expandido o exemplo típico constante da alínea d) – ex-alínea c) – com o aditamento “ou de causar sofrimento” entre matar e para excitação e alterada a alínea j) – ex-alínea h) – colocando “Praticar” em vez de “Ter praticado” e retirando o qualificativo “público” que se seguia a “docente ou examinador”. As situações – novas - constantes das alíneas b) e l), aliás, já haviam sido propostas em 1995 – cfr. Teresa Serra, Homicídios, pág. 153. A última alteração introduzida pela Lei nº 59/2007, de 4 de Setembro - para além de ter modificado a redacção da actual alínea f) – correspondente à ex-alínea e) - expandindo a agravação indiciada a (…) ódio (…) “gerado pela cor, origem étnica ou nacional, pelo sexo ou pela orientação sexual da vítima” e da actual alínea l), com extensão a “todos os que exerçam funções no âmbito de procedimentos de resolução extrajudicial de conflitos”, a “membro de comunidade escolar”, a “juiz ou árbitro desportivo sob a jurisdição das federações desportivas”, introduziu, como vimos, uma nova situação padrão com a inclusão da previsão da alínea b), susceptível de indiciar o critério orientador da especial censurabilidade ou perversidade, passando para doze os exemplos-padrão previstos no nº 2 do artigo 132º do Código Penal. * O homicídio qualificado constitui um tipo especial de culpa agravada, evidenciado nas circunstâncias enunciadas no nº 2, que têm carácter exemplificativo. O Professor Eduardo Correia, autor do Anteprojecto, como se vê das Actas das Sessões da Comissão Revisora do Código Penal, Parte Especial, edição da AAFDL, 1979, pág. 21, a propósito do artigo 138º (correspondente ao actual 132º), na sessão de 17-03-1966, na sequência de questão suscitada pelo Professor Figueiredo Dias, disse: “A inclusão do n.º 2 corresponde à intenção de colocar nas mãos do juiz alguns critérios com base nos quais possa dar aplicação ao estatuído no n.º 1. Assim, frisa-se que a enumeração de várias alíneas no n.º 2 não é taxativa, antes meramente enunciativa e exemplificativa. Referem-se nela apenas alguns indícios ou elementos que permitem revelar a censurabilidade ou a perversidade do agente. Daqui se retiram dois efeitos. Por um lado, as circunstâncias enunciadas no nº 2 não são elementos do tipo antes elementos de culpa. Portanto não são de funcionamento automático: pode verificar-se qualquer das circunstâncias referidas nas várias alíneas e nem por isso se poder concluir pela «especial censurabilidade ou perversidade do agente». Por outro lado, como a enumeração é meramente exemplificativa, outras circunstâncias não descritas são susceptíveis de revelar a censurabilidade e a perversidade pressupostas no n.º 1». Figueiredo Dias, in Direito Penal Português, As Consequências Jurídicas do Crime, Aequitas, Editorial Notícias, 1993, § 265, págs. 203 ss., a propósito da técnica dos exemplos-padrão diz: “Trata-se de circunstâncias modificativas agravantes que o legislador se não contenta com indicar através de uma pura cláusula indeterminada de valor, mas que também não descreve com a técnica detalhada que utiliza para os tipos, antes nomeia através da sua exemplificação padronizada. Com uma dupla consequência. A de que, por um lado, a descrição feita constitui exemplo indiciador das situações que devem conduzir à agravação; podendo, todavia, o juiz negar aquele efeito indiciador mesmo a uma situação coincidente com um exemplo de que o legislador se serviu, se considerar – através da valoração global do caso – que a razão de ser da agravação se não verifica em concreto. E a de que, por outro lado, não sendo a enumeração da lei esgotante, mas só exemplificativa, o juiz pode no entanto considerar que a razão de ser da agravação vale apesar de a situação do caso não integrar a enumeração legal”. “O nosso CP reconheceu claramente a técnica dos exemplos-padrão no art. 132º-2”, assinalando o autor a identificação essencial com o texto por parte da jurisprudência, a propósito da acepção de “circunstâncias exemplificativas”, de que fala aquela - § 266 e nota 55. Já em 1987 no citado parecer publicado na Colectânea de Jurisprudência, tomo 4, págs. 48 e ss., dizia o mesmo Professor que “as circunstâncias contempladas no n.º 2 do art. 132º não são taxativas, nem implicam por si só a qualificação do crime; isto é, pode o juiz considerar como homicídio qualificado a conduta do agente que não se acompanhasse de qualquer das circunstâncias descritas, mas sim de outras, e pode, por outro lado, deixar de operar tal qualificação apesar da existência clara de uma ou mais dessas circunstâncias”. Face ao seu funcionamento não automático e à sua não taxatividade, tais circunstâncias só podem ser compreendidas enquanto elementos da culpa, como aliás resultou da discussão no seio da Comissão Revisora e foi expressamente defendido pelo Autor do Projecto e por nós próprios”. Para Hans-Heinrich Jescheck, Tratado de Derecho Penal, Parte General, I, tradução espanhola, edições Bosch, 1981, de Santiago Mir Puig e Francisco Muñoz Conde, a págs. 363, 367/8, os exemplos padrão (Regelbeispiele) correspondem a modalidade especial do tipo base, a uma variante dependente do tipo básico, a elementos adicionais, expressando agravação de culpabilidade do tipo base; constituem regras de determinação judicial da pena (aplicação da pena), com um duplo significado: por um lado, a concorrência dos elementos de um dos exemplos representa apenas um indício da presença de um caso especialmente grave, que pode ser afastado pelo juiz mediante a valoração global do facto e do seu autor; por outro, pode o juiz admitir um caso especialmente grave, ainda que não se preencham os elementos de nenhum exemplo padrão. Segundo o mesmo autor, ocorre caso especialmente grave sempre que as circunstâncias objectivas e subjectivas revelam a insuficiência da “penalidade típica ordinária” para a “retribuição judicial” do ilícito e da culpa, assim se justificando a formulação de exemplos típicos, que traduzem indício da presença dum caso especialmente grave. A jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça tem mantido uma interpretação do tipo do artigo 132º como sendo baseado estritamente na culpa mais grave, revelada pelo agente, tendo como fundamento o facto do agente revelar especial censurabilidade ou perversidade no seu comportamento. O Supremo Tribunal de Justiça, no acórdão de 11-05-1983, BMJ 327, 458, pronunciou-se sobre o novo tipo, dizendo tratar-se de “homicídio qualificado, cujo tipo abarca uma série de casos que no Código de 1886 eram incriminadas autonomamente, como por exemplo, o parricídio, o infanticídio, o envenenamento…”, salientando então o seguinte: 1 - “As circunstâncias enunciadas no nº 2 do artigo 132º não são elementos do tipo, mas antes elementos da culpa e, consequentemente, não são de funcionamento automático (Actas das sessões da Comissão Revisora, BMJ, 286, p. 21). 2 - A enumeração dessas circunstâncias é meramente exemplificativa: outras circunstâncias (não indicadas) são susceptíveis de revelar a especial censurabilidade e perversidade do agente”. É entendimento uniforme deste Supremo Tribunal o de que as circunstâncias previstas no n.º 2 do artigo 132.º do Código Penal, os chamados exemplos-padrão, são meramente exemplificativas, não funcionando automaticamente e devem ser compreendidas enquanto elementos da culpa – vejam-se, a título exemplificativo, os acórdãos de 07-05-1986, BMJ 357, 211; de 26-11-1986, BMJ, 361, 283; de 08-02-1984, BMJ 334, 258 (os factos apontados no n.º 2 não são elementos constitutivos de um homicídio especial, circunstância modificativa do tipo fundamental; são apenas o indício, confirmável ou não, de uma intensa culpa); de 08-02-1984, BMJ 334, 267; de 24-10-1984, BMJ 340, 235; de 20-03-1985, BMJ 345, 248; de 25-06-1987, BMJ 368, 340; de 26-04-1989, BMJ 386, 237; de 19-04-1990, BMJ 396, 253; de 06-06-1990, BMJ 398, 264 e 269; de 20-12-1990, processo 41848; de 03-04-1991, Colectânea de Jurisprudência 1991, tomo 2, 15; de 16 e 18-10-1991, BMJ 410, 341 e 367; de 12-12-1991, processo 42640; de 06-05-1992, processo 43109; de 13-01-1993, BMJ 423, 222; de 04-02-1993, BMJ 424, 360 e CJSTJ 1993, tomo 1, 186; de 09-06-1993, BMJ 428, 284; de 23-06-1993, BMJ 428, 304; de 17-02-1994, BMJ 434, 292; de 17-03-1994, BMJ, 435, 518; de 04-07-1996, CJSTJ 1996, tomo 2, 222; de 25-06-97, processo 1253/96; de 16-12-1997, processo 102/98; de 02-07-98, processo 37/98; de 15-04-1998, BMJ 476, 238; de 21-01-1999, CJSTJ 1999, tomo 1, 198; de 17-03-1999, processo 420/98-3ª; de 07-12-1999, BMJ 492, 168 e CJSTJ 1999, tomo 3, 234 (os exemplos regra, como elementos da culpa, implicam ainda um exame global dos factos de modo a chegar (ou não) à conclusão da especial censurabilidade ou perversidade); de 15-12-1999, processo 946/99-3ª; de 11-05-2000, CJSTJ 2000, tomo 2, 188; de 13-12-2000, CJSTJ 2000, tomo 3, 241; de 10-01-2001, processo 3221/00-3ª; de 30-05-2001, CJSTJ 2001, tomo 2, 215; de 15-05-2002, processo 1214/02-3ª; de 14-11-2002, processo 3316/02-5ª; de 20-05-2004, CJSTJ 2004, tomo 2, 195; de 28-09-2005, CJSTJ 2005, tomo 3, 173; de 07-12-2005, CJSTJ 2005, tomo 3, 229; de 30-03-2006, processo 783/06-5ª, in CJSTJ 2006, tomo 1, 229; de 05-09-2007, processo 2430/07-3ª. Figueiredo Dias, Comentário Conimbricense do Código Penal, Parte Especial, Tomo I, pág. 26, refere: «…a qualificação deriva da verificação de um tipo de culpa agravado, assente numa cláusula geral extensiva e descrito com recurso a conceitos indeterminados: a “especial censurabilidade ou perversidade” do agente referida no n.º 1; verificação indiciada por circunstâncias ou elementos uns relativos ao facto, outros ao autor, exemplarmente elencados no n.º 2». Adianta que a verificação desses elementos, por um lado, não implica sem mais a realização do tipo de culpa e a consequente qualificação; por outro lado, a sua não verificação não impede que se verifiquem outros elementos substancialmente análogos (não deve recear-se o uso da palavra “análogos”!) aos descritos e que integrem o tipo de culpa qualificador. E finaliza: “Deste modo devendo afirmar-se que o tipo de culpa supõe a realização dos elementos constitutivos do tipo orientador - o Leitbildtatbestand (…) – que resulta de uma imagem global do facto agravada correspondente ao especial conteúdo de culpa tido em conta no art. 132º- 2”. O Mestre de Coimbra remete então para a situação próxima, versada in Direito Penal Português, As Consequências…, II, § 444 ss., a respeito da atenuação especial da pena. Aí, § 453, pág. 306, a propósito das circunstâncias descritas nas alíneas do artigo 72º, nº 2, do Código Penal, que constituem exemplos ilustrativos da situação especialmente atenuada contida na cláusula geral do artigo 73º, nº 1 (actual artigo 72º) diz o Professor: passa-se aqui algo de análogo - não de idêntico - ao que sucede com os exemplos padrão: por um lado, outras situações que não as descritas naquelas alíneas podem (e devem) ser tomadas em consideração, desde que possuam o efeito requerido de diminuir, por forma acentuada, a culpa do agente ou as exigências da prevenção; por outro lado, as próprias situações descritas nas alíneas não têm o efeito «automático» de atenuar especialmente a pena, mas só o possuirão se e na medida em que desencadeiem o efeito requerido. Volvendo ao Comentário, págs. 26/27, defende o Mestre de Coimbra que o método de qualificação seguido pelo legislador concede ao aplicador uma maior flexibilidade na valoração do caso concreto, vindo este método a permitir à jurisprudência portuguesa um uso moderado e criterioso da qualificação, impeditivo da multiplicação ad nauseam das hipóteses respectivas. Tomando posição sobre a questão de saber se os exemplos padrão constantes do art. 132º-2 constituem elementos do tipo de ilícito, elementos do tipo de culpa, elementos uns do tipo de ilícito e outros do tipo de culpa, ou simples circunstâncias determinantes da medida da pena, defende que configuram elementos constitutivos do tipo de culpa. Adianta que “muitos dos elementos constantes das diversas alíneas do art. 132º-2, em si mesmo tomados, não contendem directamente com uma atitude mais desvaliosa do agente, mas sim com um mais acentuado desvalor da acção e da conduta, com a forma de cometimento do crime. Ainda nestes casos, porém, não é esse maior desvalor da conduta o determinante da agravação, antes ele é mediado sempre por um mais acentuado desvalor da atitude: a especial censurabilidade ou perversidade do agente, é dizer, o especial tipo de culpa do homicídio agravado”. Teresa Serra, Homicídio Qualificado - Tipo de Culpa e Medida da Pena, Almedina, 1990, a págs. 120 refere que “A técnica dos exemplos-padrão estrutura-se (…) sobre uma cláusula geral concretizada através de uma enumeração casuística exemplificativa” e como referia Eduardo Correia, in Actas, p. 25, sempre foi sua intenção considerar as circunstâncias do n.º 2 do artigo 138º (actual 132º) como simples elementos da culpa. “ O n.º 2 não pretende alargar o tipo. O n.º 1 representa a máxima amplitude. Se a enumeração passasse a ser taxativa, então inutilizar-se-ia o n.º 1.”. As circunstâncias do n.º 2 têm uma função concretizadora da cláusula geral do tipo de culpa do n.º 1, introduzindo factores relevantes de determinação nessa cláusula geral que fundamentam o Leitbild dos exemplos-padrão. Nesta perspectiva, bem se compreende que a enumeração de circunstâncias do nº 2 deva ser exemplificativa. Caso contrário, a razão por que o legislador optou por recorrer à utilização da cláusula geral do nº 1 e os fins que pretendeu atingir com essa opção frustrar-se-iam em boa medida. Cristina Líbano Monteiro na Revista Portuguesa de Ciência Criminal, Ano VI, Janeiro-Março, 1996, vol.1º, pág.121, em anotação ao acórdão do STJ, de 05-02-1992, pondo de lado o problema de saber se se encontra no artigo 132º um verdadeiro tipo qualificado ou apenas uma regra de determinação de uma moldura penal agravada para certos homicídios, expende: «O artigo 132º prevê, como pressuposto do funcionamento da sua consequência jurídica mais pesada, uma culpa concreta agravada do «causante» da morte. O critério material contido no preceito - a evidenciação de uma «especial censurabilidade ou perversidade do agente» - redunda na verificação de que a personalidade do autor patenteada no facto justifica uma censura jurídico-penal de severidade acrescida. O mesmo é dizer: nessas circunstâncias, a pena é mais grave por ser mais «forte» o juízo de culpa». Faria Costa, no Comentário Conimbricense, Tomo I, p. 250, em comentário ao artigo 146º do C. Penal, a propósito do lugar paralelo do crime de ofensas à integridade física refere ser necessário que para além das lesões da integridade física, simples ou grave, ou a ocorrência de um dos resultados que nos termos do art. 145º são susceptíveis de conduzir a uma agravação da responsabilidade do agente, necessário se torna que a conduta do agente revele uma “censurabilidade acrescida susceptível de decorrer de uma das circunstâncias previstas pelo nº 2 do art. 132º, entre outras”, remetendo este Comentador no mais para o referido a propósito do artigo 132.º. A cláusula geral do nº 1 Subjacente à especial censurabilidade ou perversidade está um maior grau de culpa que o agente manifesta nas circunstâncias elencadas, o que motiva a agravação. Vejamos algumas das abordagens da concretização do critério generalizador em questão. Teresa Serra, Homicídio Qualificado…, págs. 63/64, expende: “… a ideia de censurabilidade constitui o conceito nuclear sobre o qual se funda a concepção normativa da culpa. Culpa é censurabilidade do facto ao agente, isto é, censura-se ao agente o ter podido determinar-se de acordo com a norma e não o ter feito. No artigo 132º, trata-se de uma censurabilidade especial, que existe quando “as circunstâncias em que a morte foi causada são de tal modo graves que reflectem uma atitude profundamente distanciada do agente em relação a uma determinação normal de acordo com os valores. A especial perversidade supõe “uma atitude profundamente rejeitável, no sentido de ter sido determinada e constituir indício de motivos e sentimentos que são absolutamente rejeitados pela sociedade”. A págs. 63, refere que, dominantemente, entende-se que só se pode decidir que a morte foi causada em circunstâncias que revelam especial censurabilidade ou perversidade do agente através de uma ponderação global das circunstâncias externas e internas presentes no facto concreto. Figueiredo Dias, Comentário…, Tomo I, no § 7, pág. 29, esclarece: “O especial tipo de culpa do homicídio doloso é em definitivo conformado através da verificação da «especial censurabilidade ou perversidade» do agente. O pensamento da lei é o de pretender imputar à “especial censurabilidade” aquelas condutas em que o especial juízo de culpa se fundamenta na refracção, ao nível da atitude do agente, de formas de realização do facto especialmente desvaliosas, e à “especial perversidade” aquelas em que o especial juízo de culpa se fundamenta directamente na documentação no facto de qualidades da personalidade do agente especialmente desvaliosas. Para Fernando Silva, loc. cit., págs. 50/51, especial censurabilidade prende-se essencialmente com a atitude interna do agente, traduzida em conduta profundamente distante em relação a determinado quadro valorativo, afastando-se dum padrão normal. O grau de censura aumenta por haver na decisão do agente o vencer de factores que, em princípio, deveriam orientá-lo mais para se abster de actuar, as motivações que o agente revela, ou a forma como realiza o facto, apresentam, não apenas um profundo desrespeito por um normal padrão axiológico, vigente na sociedade, como ainda traduzem situações em que a exigência para não empreender a conduta se revela mais acentuada. A especial perversidade representa um comportamento que traduz uma acentuada rejeição, por força dos sentimentos manifestados pelo agente que revela um egoísmo abominável. A decisão de matar assenta em pressupostos absolutamente inaceitáveis. O agente toma a decisão sob grande reprovação atendendo à personalidade manifestada no seu comportamento. O agente deixa-se motivar por factores completamente desproporcionais, aumentando a intolerância perante o seu facto. Na jurisprudência, vejam-se, i. a.: acórdão de 15-12-1999, BMJ, 492, 327 - a especial censurabilidade está relacionada com um especial tipo de culpa fundamentado na atitude especialmente desvaliosa do arguido e a especial perversidade com um especial tipo de culpa, tendo por base a expressão no facto de qualidades especialmente desvaliosas da sua personalidade. Acórdão de 20-12-2005, CJSTJ 2005, tomo 3, 238 - «especial perversidade» e «especial censurabilidade» não são conceitos equivalentes, já que o primeiro se reporta às qualidades especialmente desvaliosas da personalidade do agente, enquanto o segundo se refere à forma especialmente desvaliosa como o acto criminoso foi cometido. Acórdão de 17-01-2007, processo 3845/06-3ª – a especial censurabilidade repercute um mais acentuado desvalor do facto; a especial perversidade documenta qualidades desvaliosas na personalidade do agente, na sua conformação com o dever-ser conforme ao direito Acórdão de 11-07-2007, processo 1583/07-3ª - a especial censurabilidade, referenciada ao juízo de culpa, repercute os casos em que a conduta do agente traduz, ao nível da efectivação do facto, uma forma de realização de modo especialmente desvaliosa; a especial perversidade repercute no facto uma personalidade estrutural particularmente desconformada ao direito, a ela se reserva aquela conduta que espelha qualidades da personalidade de forma especialmente desvaliosa. Volvendo ao caso concreto. Da frieza de ânimo O acórdão da 1ª instância deu por verificada a qualificativa da frieza de ânimo a propósito do segundo tiro disparado pelo arguido contra a mulher, como se evidencia pela leitura do ponto de facto provado nº 18, onde se continha aquela expressão. Tal qualificação resulta com maior clareza do seguinte passo da motivação da decisão sobre a matéria de facto: «Quanto à frieza de ânimo com que actuou aquando do segundo disparo, com base na livre convicção do Tribunal atendendo a que comportando a arma apenas 2 munições, tal como resulta do exame pericial de fls. 609 e ss., o arguido depois de ter efectuado os referidos dois disparos anteriores teve necessariamente que a recarregar com novos cartuchos e perante o quadro que se lhe deparava, com a sua esposa a agonizar caída no chão gravemente ferida e a precisar de ajuda, com a filha presente na divisão ao lado, ainda assim optou, tendo tido nesse espaço de tempo de 3 a 4 minutos possibilidade de reflectir sobre a sua conduta, por lhe desferir um novo tiro, outra conclusão não permite que a de que se queria certificar que a matava». O acórdão recorrido, tendo mandado expurgar, e bem, da matéria de facto dada por provada a expressão “frieza de ânimo” constante do referido ponto de facto provado nº 18, manteve a qualificação do homicídio, com a integração do caso na alínea i) do n.º 2 do artigo 132.º do C. Penal. Vejamos se é de manter essa qualificação. Estabelecia-se na referida alínea i), na redacção do preceito vigente à data dos factos e que hoje se mantém, sendo a correspondente com o mesmo texto à actual alínea j), uma vez que apenas foi alterada a ordem das alíneas por força do aditamento do novo índice que passou a substanciar a referida alínea b): i) Agir com frieza de ânimo, com reflexão sobre os meios empregados ou ter persistido na intenção de matar por mais de 24 horas. Não estando em causa no caso concreto, claramente, situação que corporize persistência na intenção de matar por mais de vinte e quatro horas, nem reflexão sobre os meios empregados, caberia a integração do caso numa das outras formas ou manifestações de premeditação, mais propriamente, no conceito indeterminado de frieza de ânimo. Foi o que fez o acórdão recorrido, justificando a opção assumida nestes termos: – «Não colocando em causa o arguido no recurso por si interposto a intenção homicida que presidiu à sua conduta, então óbices não encontramos para que a mesma se tenha por qualificada em função da mencionada alínea i) do art. 132º do Cód. Penal. Conforme decorre de todo o acervo factual que vai dos pontos 1 a 15 dos considerados provados, iniciada a discussão motivada pelo reparo feito quanto às suas sucessivas entradas tardias e alcoolizadas em casa, o arguido foi buscar a espingarda caçadeira e municiou-a. Num primeiro momento, aponta-a à sua mulher e filha, mas desde logo acautelando o pior, aquela primeiro deita-lhe a mão, originando-se uma disputa sobre a sua posse. Há um tiro para o tecto, e em seguida a caçadeira é apontada pelo arguido à sua esposa, que obviamente consciente do perigo em que estava envolvida, - e aqui o termo carrega todo o sentido dramático que lhe é próprio - "implorou-lhe que não disparasse". Ainda assim à distância de um metro, aquele premiu o gatilho. Tombada a vítima, se num primeiro momento o arguido até pareceu vacilar - "o arguido disse então à filha para ir ligar para o irmão, o que esta fez, tentando pedir ajuda" (ponto 17), a verdade é que passados cerca de três/quatro minutos, estando aquela caída no chão e ensanguentada, porque se haviam percutido todos os cartuchos que a arma podia conter, carrega-a de novo e procede a novo disparo "no corpo da EE, o que fez a uma distância não superior a um metro desta, atingindo-a novamente nos membros inferiores, na zona das coxas." Fê-lo "para se certificar de que a esposa ficaria sem vida" - ponto 18 da matéria de facto. Ora perante este contexto, dúvidas não temos em como a imagem global traduzida pelo conjunto desta actuação é reveladora de uma significativa insensibilidade e indiferença para com a vítima e como tal merecedora da integração do conceito de frieza de ânimo definida nos termos atrás reportados. É a insensibilidade às súplicas, é a indiferença à agonia de alguém que pese embora os agravos conjuntos, lhe era próximo. É também a consciência presente no eliminar das possibilidades de salvação que o agente afinal divisava como possíveis. Até aquele momento, mesmo na sua perspectiva, a morte poderia ainda ser evitada, pelo que foi necessário persistir na sua intenção criminosa para que afinal o resultado danoso se pudesse verificar.» (realce nosso). O acórdão recorrido, porém, menos do que resolver o problema, o que fez foi contorná-lo com a eliminação da expressão «frieza de ânimo». Ora, a questão não se resolve com a pura erradicação da formulação conclusiva ou expressão legal, pois que continuará a subsistir a dificuldade de encaixe da afirmação da verificação da circunstância da alínea i), com a integração do conceito vago, indeterminado, de frieza de ânimo como enfaticamente se exprime o acórdão, com os referidos estados de exaltação e de alcoolizado. Vejamos o que entender por frieza de ânimo. Na redacção originária do Código Penal, aprovado pelo Decreto-Lei nº 400/82, de 23-09, a qualificativa em exame era prevista na alínea g), do nº 2, do seguinte teor: “Agir com premeditação, entendendo-se por esta a frieza de ânimo, a reflexão sobre os meios empregados ou o protelamento da intenção de matar por mais de 24 horas”. Como acentuava Maia Gonçalves, no Código Penal Anotado, 2ª edição, 1984, pág. 224, na formulação da alínea teve manifesta influência a lição do Prof. Eduardo Correia, autor do Projecto, in Direito Criminal, II, 1965, 301/3: «…É que, diz-se, tal firmeza, tenacidade e irrevogabilidade de uma resolução previamente tomada revela uma forte intensidade da vontade criminosa. Efectivamente, a circunstância de mediar um grande intervalo de tempo entre o momento em que, definitivamente, a resolução criminosa se formou e a sua execução, ou seja a pertinácia da resolução, a mora habens, mostra não só que o criminoso teve uma larga oportunidade, que não aproveitou, para se deixar penetrar pelos contra-motivos sociais e ético-jurídicos de forma a, pelo menos transitoriamente, desistir do seu desígnio, mas ainda que a paixão lhe endureceu totalmente a sensibilidade e sobretudo que a força de vontade criminosa é de tal forma intensa que o agente sem hesitação, como mero déclencher da decisão tomada prévia e longinquamente». O referido autor não deixou de clarificar que «o critério referido envolve uma relativa margem de incerteza, na medida em que o tempo de permanência de uma resolução previamente tomada, até à sua execução, considerado necessário para revelar uma especial perigosidade ou a possibilidade de uma normal intervenção de contra - motivos, só pode ser fixada por apelo às regras da experiência. Mas isto corresponde à natural fragilidade de todos os conceitos que se relacionam com os factos humanos e pode ser corrigido pela exigência formal da fixação de um certo lapso de tempo, especialmente quando à premeditação correspondam efeitos agravantes particularmente graves.». Figueiredo Dias, no Comentário…, a págs. 39-40, refere que o Código Penal de 1982 reuniu sob o conceito de premeditação alguns dos entendimentos conferidos por diversos ordenamentos: a frieza de ânimo, a reflexão sobre os meios empregados e o protelamento da intenção de matar por mais de 24 horas, tendo a Reforma de 1995 eliminado o conceito englobante de premeditação, deixando subsistir os possíveis entendimentos. Qualquer das aludidas manifestações da “premeditação” - e outras estruturalmente análogas – é, por si mesma, susceptível de indiciar um tipo de culpa agravado, sem todavia o determinar por necessidade. Alerta para que a hipótese da alínea será uma daquelas em que mais frequentemente poderá ser ilidido o efeito qualificador do exemplo-padrão. Victor Sá Pereira, loc. cit., pág. 180, anotava: “Na premeditação se fundiram, ao cabo, as teorias da maior intensidade do dolo, do tempo decorrido e da execução a frio. É terreno onde bem se potencia a matriz judicial da gravidade em jogo. Seguro como se impõe cuidadoso exame das circunstâncias, para que, v. g., se não tome a resistência à ideia do crime ou o sobrestar antes de começar (Nelson Hungria) como exasperação da culpa”. Para Fernando Silva, loc. cit., pág. 73, “A ideia fundamental (da alínea i) do nº 2 do art. 132º do CP) é a da premeditação, pressupondo uma reflexão da parte do agente. A influência do factor tempo e o facto de se ter estudado a forma de preparar o crime demonstram uma atitude de maior desvio em relação à ordem jurídica, pois que o decurso do tempo deveria fazer o agente cessar a sua vontade de praticar o crime, na medida em que quanto mais medita sobre a sua prática mais exigível se torna que não actue desse modo”. “Nestes casos o agente prepara o crime, pensa nele, reflecte sobre o acto, e mesmo assim decide matar, combatendo a ponderação que se lhe impunha. Frieza de ânimo é uma das situações em que se materializa a premeditação, traduzindo-se numa actuação calculada, em que o agente toma a sua deliberação de matar, e firma a sua vontade de modo frio, denotando um sangue frio e alguma indiferença ou insensibilidade perante a vítima. No fundo, o agente teve oportunidade de reflectir sobre o seu plano, e ponderou toda a sua actuação mostrando-se indiferente perante as consequências do seu acto”. Francesco Carnelutti, na Teoria Geral do Direito, tradução espanhola, pág. 151, a propósito de premeditação escrevia que a respectiva “noção, deduzida da conhecida fórmula do frigidus pacatus quae animus resolve-se precisamente numa condição de particular lentidão e lucidez do processo volitivo na sua terceira fase, isto é, numa meditada previsão do evento. Em todo o caso, mais do que a previsão da concepção, o que nos interessa é surpreender um fenómeno de relevância agravante num particular estado psíquico do agente”. Vejamos agora o que a jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça tem afirmado relativamente a esta qualificativa. Acórdãos de 08-02-1984 e de 15-02-1984, BMJ 334, 251 e 274 - “O novo Código alargou o conceito de premeditação, estendendo-o ao agir «frigido pacatoque animo» (doutrina considerada de origem puramente italiana) e ao agir com reflexão sobre as actividades ou meios necessários para a execução, para o alcance do fim que o agente se propôs atingir, tendo, assim em linha de conta o wie, o como da resolução”. Acórdão de 18-06-1986, BMJ 358, 260 - Age com frieza de ânimo o réu que sem o mínimo de exaltação provada abate friamente a vítima depois de lhe dizer, cerca de quatro minutos antes, “que ela ainda se sairia mal”, “que a trazia debaixo de olho”, traduzindo uma actuação calma ou imperturbada reflexão no assumir o agente a resolução de matar. Acórdão de 03-06-1987, BMJ 368, 295 - A exaltação é incompatível com a serena reflexão ou frieza de ânimo requerida para integrar a circunstância agravante qualificativa do art. 132º, nº 2, alínea g). Acórdãos de 12-07-1989, BMJ 389, 310; de 01-03-1990, BMJ 395, 218; de 01-06-1995, CJSTJ 1995, tomo 3, 178; de 02-10-1997, processo 689/97; de 21-05-1997, processo 107/97; de 20-12-2005, CJSTJ 2005, tomo 3, 238 - A frieza de ânimo significa uma calma ou imperturbada reflexão no assumir, o agente, a resolução de matar. Consiste em a vontade se formar de modo frio, lento, reflexivo, cauteloso, deliberado, calmo na preparação e execução e persistente na resolução. Acórdão de 07-10-1992, BMJ, 420, 203 - A frieza de ânimo traduz uma conduta insensível, de indiferença, sendo incompatível com estados afectivos e emocionais que podem conduzir a uma resolução precipitada. Acórdão de 14-10-1992, processo 42918 - A frieza de ânimo traduz uma actuação insensível, de indiferença, incompatível com estados emocionais. Acórdão de 04-05-1994, BMJ 437, 154 – Afastada a qualificativa, por estar em causa actuação “de cabeça quente”em contraponto à frieza de ânimo, cuja característica é a formação do projecto de actuação de forma lenta e reflectida. Acórdão de 22-03-1995, BMJ 445, 123 – A propósito da qualificativa diz: actuação eivada de sangue frio, insensibilidade e desrespeito pela vida alheia preenche este requisito. Acórdão de 17-05-1995, CJSTJ 1995, tomo 2, 201 - O ciúme não é incompatível com a frieza de ânimo no crime de homicídio voluntário, salvo nos casos de flagrante delito de infidelidade. Isto porque a motivação pode levar o agente a uma reflexão sobre as circunstâncias de execução do projecto criminoso. Acórdão de 11-12-1997, BMJ 472, 154 – Revela frieza de ânimo o arguido que sai do veículo que conduzia, dirige-se à bagageira onde guardava a sua caçadeira, municia-a, leva-a à cara e, apontando ao peito da vítima que caminhava na sua direcção, prime o gatilho e dispara, atingindo-o naquela zona corporal, com a intenção de lhe causar a morte. Acórdão de 30-09-1999, processo 36/99, SASTJ nº 33, 94 - A frieza de ânimo está relacionada com o processo de formação da vontade de praticar o crime e é entendida como a conduta que traduz calma, reflexão e sangue frio na preparação do ilícito, insensibilidade, indiferença, e persistência na sua execução. Acórdão de 15-12-1999, BMJ 492, 221 - Traduz frieza de ânimo a conduta que revela grande brutalidade, sem qualquer justificação ou perturbação de ânimo. A frieza de ânimo traduz a formação da vontade de praticar o facto de modo frio, pressupondo um lento, reflexivo, cauteloso, deliberado, calmo e imperturbado processo na preparação e execução do crime, persistente na resolução, por forma a denotar insensibilidade e profundo desrespeito pela pessoa e vida humanas; trata-se assim de uma circunstância agravante relacionada com o processo de formação da vontade de praticar o crime, devendo reconduzir-se às situações em que se verifica calma, reflexão ou sangue frio na preparação do ilícito, insensibilidade, indiferença e persistência na sua execução – acórdãos de 06-06-1990, CJ 1990, tomo 3, 19 e BMJ 398, 269; de 24-04-1991, processo 41624, BMJ 406, 381; de 21-05-1997, processo 107/97; de 25-05-1997, processo 107/97, SASTJ, nº 11, 82; de 15-04-1998, BMJ 476, 238; de 30-09-1999, processo 36/99-3ª, SASTJ nº 33, p. 94; de 21-06-2006, processos 1559/06-3ª e 1913/06-3ª; de 11-07-2007, processo 1583/07-3ª. Acórdão de 09-02-2000, processo 990/99-3ª, BMJ 494, 207 - O agir frigido pacatoque animo (com frieza de ânimo) tem sido relacionado pela jurisprudência mais com a conduta prévia do homicida, que de forma calma mas determinada decide tirar a vida a outrem, do que com o seu comportamento posterior aos factos criminosos. Acórdão de 28-06-2001, processo 1568/02-5ª - “Verifica-se frieza de ânimo quando se age a sangue frio, de forma insensível, com indiferença pela vida humana”. Acórdão de 28-02-2002, processo 226/02-5ª - O exemplo padrão da alínea i) do n.º 2 é o herdeiro da tradicionalmente chamada premeditação, ligada à censurabilidade da reflexão mais ou menos aturada que precede e acompanha a execução e o protelamento da intenção de matar. Acórdão de 18-04-2002, processo 847/02-5ª - A frieza de ânimo exprime uma situação pautada pela firmeza, tenacidade e irrevogabilidade de uma resolução tomada, ou pela indiferença ou insensibilidade, do agente. Acórdão de 15-05-2002, processo 857/02-3ª – Considera que o arguido agiu com frieza de ânimo, tendo em atenção a persistência, a violência e todo o circunstancialismo concreto que rodeou e em que se desenvolveu a agressão demonstrativo de que o arguido teve o intuito de massacrar a vítima e de lhe aumentar a angústia e a dor, sendo que o sofrimento físico e psíquico causados, pela sua duração e intensidade, revelam crueldade, resultando também de modo inequívoco que este teve lugar para aumentar o sofrimento da vítima. Acórdãos de 16-05-2002, processo 585/02-5ª; de 14-11-2002, processo 3316/02-5ª (estes do mesmo relator com recensão de vária jurisprudência sobre o tema) e de 30-10-2003, processo 3281/03-5ª - Há frieza de ânimo quando se age a sangue frio, de forma insensível, com indiferença pela vida humana e reflecte-se sobre os meios empregados quando a escolha, o estudo ponderado dos meios de actuação que facilitam a execução do crime ou pelo menos diminuam acentuadamente as possibilidades de defesa da vítima, mercê do modo frio, indiferente, calmo e imperturbadamente reflectido como foi planeada a morte. Acórdão de 20-11-2002, processo 2818/02-3ª - Considera-se em caso de uxoricídio, que tendo o arguido actuado motivado pelo ciúme obsessivo que o dominava desde há vários anos, tal situação não indicia frieza de ânimo, mas antes uma atitude fortemente emotiva. Acórdão de 15-10-2003, processo 2024/03-3ª - A frieza de ânimo deve entender-se como um estado ou uma atitude interna do agente, que manifesta forte insensibilidade e pensado domínio sobre o desvalor da acção, praticando o facto sem qualquer sentimento de inibição ou de apreensão de carácter perante o sofrimento da vítima, traduzindo uma deficiência da carácter, com manifestações acentuadamente desvaliosas na composição e revelação da personalidade. Acórdão de 14-07-2004, processo 1889/04-3ª – A frieza de ânimo pode definir-se como o agir de forma calculada, com imperturbada calma, revelando indiferença e desprezo pela vida. Acórdão de 10-03-2005, processo 224/05-5ª - A frieza de ânimo indica firmeza, tenacidade e irrevocabilidade da resolução criminosa. Acórdão de 02-03-2206, processo 472/06-5ª - A frieza de ânimo deve rever-se na reflexão sobre os meios empregados ou na persistência na intenção de matar por mais de 24 horas. Acórdão de 09-03-2006, CJSTJ 2006, tomo 1, 212 – Considera-se que há frieza de ânimo quando o agente age com sangue frio, revelando insensibilidade e indiferença pela vida humana e que a reflexão sobre os meios empregues se exterioriza na escolha dos meios mais idóneos a atingir o resultado “morte” com maior capacidade de êxito, diminuindo as possibilidades de defesa da vítima. No caso entendeu-se que a execução de um plano pré determinado de matar as vítimas, o anúncio do propósito de as matar, não vacilando quando uma das vítimas (sua irmã) o tentou chamar à razão e ainda o disparo de novo sobre ela, já caída a curtíssima distância e depois de ter recarregado a arma, porque aquela mexia as pernas, justifica a circunstância agravativa referida no artigo 132º, alínea i), do C. Penal. Acórdão de 06-04-2006, processo 302/06-5ª – A formação do propósito de matar a vítima com antecedência e a sua persistência ao longo de várias horas, em suma, o calculismo e a frieza revelados no planeamento e execução de um crime não são incompatíveis com o surgimento e/ou a provocação de uma discussão entre aquela e o agressor, momentos antes do crime ter lugar. Acórdão de 17-01-2007, processo 3845/06-3ª, (seguido de muito perto pelo acórdão de 23-05-2007, processo 1495/07-3ª) - A frieza de ânimo terá lugar sempre que interceda um hiato temporal entre a ideação do meio a usar e a passagem à acção, por seu intermédio. Revertendo ao caso em apreciação. No caso presente é de afastar a qualificativa, por a mesma não ser compatível com estado de irritação (justificado do ponto de vista do arguido, na sequência da expressão injuriosa), devendo por outro lado, a acção sobrevir a uma ideia, a uma tomada de posição pensada, com um mínimo de reflexão antecipada, meditada, amadurecida, a algo que segue a necessário planeamento, a uma previsão e predisposição no sentido de levar por diante a intenção homicida, o que não acontece aqui. De acordo com o acórdão da 1ª instância e igualmente com o recorrido, a qualificativa estaria na disposição do arguido ao desferir o segundo tiro, exactamente no trecho (ponto 18 dos factos provados) onde se situava na decisão de primeira instância a expressão mandada retirar pelo Tribunal da Relação, tendo em conta o quadro que se lhe deparava, a situação em que se encontrava a mulher, incapaz de se opor a tal tipo de agressão. Resulta do exposto que o enquadramento do presente caso no exemplo regra da alínea i) do nº 2 do artigo 132º do Código Penal se faz, em ambos os acórdãos, em função do segundo tiro disparado pelo arguido, por a vítima estar desprotegida e totalmente incapacitada para qualquer tipo de reacção ou oposição, totalmente à mercê do arguido. Ou seja, a conformação da especial censurabilidade ou perversidade através de tal situação padrão alcançar-se-ia já no dealbar do processo executivo, com um novo disparo tendente à certificação da obtenção do resultado pretendido. É fora de dúvida que se está perante o desenvolvimento de uma acção com duas etapas, e que se verificou um compasso de espera determinado pelo facto de o arguido ter dado dois tiros e assim ter já esgotado a capacidade de disparo por ter usado os dois cartuchos disponíveis. Esta pausa poderia/deveria ser usada pelo arguido para reflectir no que fizera, abster-se de continuar e socorrer a mulher, procurando evitar a morte, o que ainda era possível. Em vez disso, optou por prosseguir, recarregando a arma, mostrando insistência e persistência na acção, mas que não corresponde propriamente ao estádio final de todo um processo de sedimentação de um propósito no sentido de dar a morte a alguém. Não houve, em suma, a formação de uma intenção prévia tendo em vista esse resultado. Conclui-se, assim, ser de afastar este exemplo indiciador da cláusula geral. * Sendo de afastar a qualificativa prevista na então alínea i) do nº 2 do artigo 132º do Código Penal, vejamos se o enquadramento da conduta provada do recorrente seria possível ainda no âmbito do homicídio qualificado, em função do preenchimento de outros exemplos típicos, como possíveis casos de integração por razões de proximidade. Nesta passagem pelo crivo dos demais exemplos padrão, ter-se-ão em consideração apenas aqueles que possam revelar maior afinidade com o caso concreto e tendo-se em atenção a redacção resultante da Lei nº 65/1998, vigente à data dos factos. I - Poderá fazer-se uma aproximação à situação prevista na alínea a), ou por outras palavras, procurar ver se face a uma situação em que esteja em causa relação conjugal é possível uma passagem pelo crivo de tal exemplo típico – circunstância de o agente “ser descendente ou ascendente, adoptado ou adoptante, da vítima” - por, no caso que nos ocupa, se tratar de um uxoricídio, estando em causa, pois, uma relação familiar em sentido amplo, ultrapassando o parentesco biológico ou natural. Neste contexto, não seria de arredar hipótese de aproximação unicamente na base de não verificação de critérios de “jus sanguini”, uma vez que os mesmos, decididamente, não estão presentes no plano da relação adoptiva, o que significa que a razão de exclusão de integração da relação em causa no exemplo não se poderia ficar por este tipo de argumento. No que respeita à integração directa da relação conjugal neste exemplo, a tarefa não logrará êxito, atento o “jus constituto” vigente à época, tratando-se de questão que tem suscitado controvérsia, sendo a resposta, no geral, negativa. Na jurisprudência entendeu-se ser possível integrar a relação conjugal nesta alínea no acórdão do STJ, de 11-11-1993, BMJ 431, 214, com o argumento de que sendo o casamento uma fonte de relações familiares (artigo 1576º do Código Civil) e sendo tão fortes os laços jurídicos, morais, e sentimentais da união conjugal, que se compreende, sem dúvida de peso, que o uxoricídio possa igualmente ser punido, em abstracto, não pelo artigo 131º, mas em conformidade com a agravação do disposto no artigo 132º, nºs 1 e 2, alínea a), do Código Penal (no caso reapreciado acabou por manter-se a condenação do arguido por homicídio simples, porque assim fora acusado e condenado na primeira instância). No sentido de integração dessa relação de forma assumida no âmbito do exemplo, veja-se infra o acórdão de 03-04-1991, CJ 1991, tomo 2, 15 e BMJ 406, 314. Fernando Silva, ob. cit., a págs. 65, defende que a relação entre cônjuges ficou de fora deste âmbito, sendo substancialmente diferente da prevista e duvidoso de que a mesma se possa integrar no âmbito do espírito do legislador, embora possa em determinados casos ser incluída no âmbito do art. 132º, mas carecendo de outra justificação e fundamentação, dando como exemplo o acabado de citar acórdão de 3 de Abril de 1991 (cfr. menção infra, mais detalhada a este acórdão, a fls. 51). Augusto Silva Dias, loc. cit., a págs. 26, considera o conjugicídio, como de resto ocorre com o fratricídio, fora da estrutura de sentido e do concreto conteúdo de desvalor do exemplo - padrão, sendo ambos «candidatos negativos» à alínea a). Figueiredo Dias, no Comentário, §§ 8 e 9, págs. 29/30, admite qualificações por apelo a uma estrutura valorativa correspondente à da alínea a), mas sem qualquer menção à relação entre cônjuges. Como se referiu supra, a relação conjugal, actualmente, integra um novo exemplo típico (o duodécimo, por ordem de consagração) na previsão da alínea b), mas a considerar obviamente apenas para futuro. No nosso caso, entende-se não caber o mesmo na alínea a), sendo a consideração da relação conjugal existente entre arguido e vítima, reportada ao concreto tempo da acção e ao quadro legislativo existente, um outro sintoma, uma circunstância paralela, uma situação análoga, um índice com estrutura valorativa semelhante ou aproximada ao previsto, que poderá contribuir, analisada no contexto de uma visão global do caso, e em conjugação com outros elementos, para avaliação da questão de saber se se estará perante, ou não, uma situação análoga demonstrativa ou indiciatória da existência/presença de uma especial censurabilidade ou perversidade, ou face tão só a matéria a ter em conta ao nível da dosimetria da pena. II - No que concerne à aproximação à situação padrão prevista na alínea c), que se traduz em o agente “empregar tortura ou acto de crueldade para aumentar o sofrimento da vítima”, poderá descortinar-se alguma afinidade no caso concreto; em causa está o modo de actuação do agente, a forma como comete o crime, manifestando um acentuado desrespeito pela vítima e revelando uma personalidade deformada: é cruel a morte provocada lentamente, sujeitando a vítima a um sofrimento físico e psíquico excessivo, quando prostrada no chão, a esvair-se em sangue, em consequência do primeiro disparo, sobre si é disparado um segundo tiro na mesma zona do corpo, antevendo a vítima, agonizante, mas com clareza, o fim próximo, demonstrando o arguido com a sua conduta, desumanidade, mostrando-se completamente alheio ao sofrimento que inflige na vítima. No exemplo típico trata-se de uma conduta especialmente desviante em relação aos padrões normais, estando presente um maior desrespeito pela vítima, porque a morte é produzida de forma a fazê-la sofrer. Para Figueiredo Dias, Comentário citado, Tomo I, § 11, pág. 31, o exemplo traduz-se “em o agente se servir de uma forma de actuação causadora da morte em que o sofrimento físico ou psíquico infligido, pelo acto de matar ou pelos actos que o antecedem, ultrapasse sensivelmente, pela sua intensidade ou duração, a medida necessária para causar a morte (…); com a precisão, em todo o caso, de que o acto de crueldade tem de ter lugar para aumentar o sofrimento da vítima: relação meio/fim”. No caso em apreciação, sendo objectivamente cruel a conduta do arguido, por um lado, tal crueldade não foi “programada”; por outro, nem pode ser encarada numa perspectiva de instrumentalidade; pouco terá a situação a ver com a “tortura” e o “tratamento cruel” referidos no nº 3 do artigo 243º do Código Penal, em que está em causa tão só o direito à integridade pessoal e, no nosso caso, uma conduta que conduz à morte. III – No que concerne à integração na alínea d) - ser determinado a matar por avidez, pelo prazer de matar, para excitação ou para satisfação do instinto sexual ou por qualquer motivo torpe ou fútil - dir-se-á que o arguido vinha acusado igualmente por esta alínea, no que respeita a motivo fútil. No acórdão da 1ª instância foi afastada a qualificativa nestes termos: “Pese embora a motivação do agente seja de considerar como eticamente censurável, a mesma, face ao desvalor do insulto sofrido, não merecerá a especial censurabilidade prevista pela qualificativa deste crime de homicídio, pelo que não será pela motivação que a conduta do arguido deva ser considerada especialmente censurável ou perversa, assim se concluindo não se verificar in casu a referida qualificativa da al. d) do art. 132º, nº 2 do Código Penal”. Tendo-se dado por inverificado este exemplo típico, é de manter a desconsideração da qualificativa “motivo fútil” como tal, sem embargo, parece-nos, de poder fazer-se uma outra aproximação ao tema, a propósito do insulto que a vítima terá dirigido ao arguido e sua repercussão, o que se fará infra. IV - A utilização pelo recorrente de arma de fogo, mais exactamente, uma caçadeira, faz convocar duas outras situações-padrão, a saber, a da alínea g), face a utilização de meio particularmente perigoso e a da alínea h), com a utilização de outro meio insidioso. A jurisprudência tem entendido que o uso de arma de fogo não representará em regra a agravante por não constituir em si mesma um meio particularmente perigoso – cfr. acórdãos do STJ, de 05-01-1983, BMJ 323, 181; de 17-02-1994, BMJ 434, 292; de 07-04-1994, BMJ 436, 253; de 15-12-1999, BMJ 492, 327; de 27-09-2000, CJSTJ 2000, tomo 3, 179 e BMJ 499, 122 (o simples facto de se usar uma arma não manifestada nem registada não indicia só por si um alto grau de risco e de culpa que legitime a qualificativa em causa; no caso em apreciação nesse acórdão, porém, estava-se perante transformação da arma, o que lhe introduz factores de álea que a tornam mais perigosa - particularmente perigosa); de 13-12-2000, CJSTJ 2000, tomo 3, 245 (uma pistola de calibre 6,35 mm, o usual nas pistolas de defesa, não constitui, em si mesmo, um meio particularmente perigoso; sendo perigoso, não corresponde ao nível de exigência qualificativa pressuposto na referida norma; mas adianta que a utilização de uma pistola, em certas circunstâncias, como ocorre no caso aí em apreciação, pode constituir meio insidioso. É que, por vezes, a insídia não se situa no tipo de arma que é utilizada na acção, mas no conjunto de circunstâncias que envolvem tal utilização, residindo aí sim, a especial censurabilidade ou perversidade do agente); de 28-02-2002, processo 226/02-5ª; de 03-10-2002, processo 2709/02-5ª; de 4-10-2003, processo 2024/03-3ª; de 15-10-2003, processo 2024/03-3ª; de 10-03-2005, processo 224/05-5ª; de 15-12 2005, processo 2978/05-5ª; de 21-06-2006, processo 1559/06-3ª (com algumas reservas); de 24-05-2007, processo 1602/07-5ª; de 05-09-2007 processo 2430/07-3ª. E no sentido de que a arma utilizada na prática do crime não constitui só por si um meio insidioso, vejam-se os acórdãos do STJ, de 11-06-1987, BMJ 368, 312; de 04-05-1994, BMJ 437, 154 (a arma não pode ser considerada meio insidioso porque não tem as características de dissimulação na sua influência maléfica, no sentido de meio traiçoeiro e desleal em que a vítima nada desconfia e é apanhada desprevenida); de 11-01-1995, BMJ 443, 54; de 17-05-1995, CJSTJ 1995, tomo 2, 201; de 13-12-1995, CJSTJ 1995, tomo 3, 255; de 17-10-1996, processo 634/96; de 10-12-1997, BMJ 472, 142; de 18-02-1998, processo 1086/97-3ª; de 21-01-1999, CJSTJ 1999, tomo 1, 198; de 23-02-2000, BMJ 494, 123; de 21-11-2001, processo 2447/01-3ª; de 15-05-2002, processo 1214/02-3ª; de 10-10-2002, processo 2577/02-5ª (com várias referências jurisprudenciais); de 16-10-2003, processo 3280/03-5ª. A jurisprudência do STJ tem considerado abrangidos nesta alínea os casos particulares de disparos à traição ou quase à queima roupa, onde a surpresa somada à posição tomada pelo arguido tornam praticamente impossível qualquer defesa da vítima - acórdãos de 02-05-1996, processo 148/96; de 21-05-97, processo 188/97; de 24-02-1999, processo 1365/98, todos da 3ª secção. Figueiredo Dias, Comentário citado, § 24, pág. 37, expende dever ponderar-se que “a generalidade dos meios usados para matar são perigosos ou mesmo muito perigosos. Exigindo a lei que eles sejam particularmente perigosos, há que concluir duas coisas: ser desde logo necessário que o meio revele uma perigosidade muito superior à normal nos meios usados para matar (não cabem seguramente no exemplo-padrão e na sua estrutura valorativa revólveres, pistolas, facas ou vulgares instrumentos contundentes); em segundo lugar, ser indispensável determinar, com particular exigência e severidade, se da natureza do meio utilizado – e não de quaisquer outras circunstâncias acompanhantes - resulta já uma especial censurabilidade ou perversidade do agente. Sob pena, de outra forma - aqui, sim! –, de se poder subverter o inteiro método de qualificação legal e de se incorrer no erro político-criminal grosseiro de arvorar o homicídio qualificado em forma–regra do homicídio doloso”. Maia Gonçalves, Código Penal, 13ª edição, 1999, a págs. 454, na mesma linha opina: “A utilização de meio particularmente perigoso significa que o meio utilizado deve exceder a perigosidade dos meios que normalmente são utilizados no cometimento do crime de homicídio; de outro modo, o homicídio qualificado transformar-se-ia no homicídio -regra. Não cabem aqui armas vulgares, paus, pedras, facas, etc., mas já cabe, v. g., a gasolina incendiada”. Conclui-se que no caso presente o uso de arma de fogo não representa meio especialmente perigoso, nem meio insidioso, para concluir por uma censurabilidade especialmente relevante em termos de tipicidade do crime em causa, o que de resto não foi sequer abordado nas instâncias (o arguido foi condenado em concurso real pela autoria de um crime de detenção de arma ilegal). Neste contexto, apenas será considerado o facto do uso da caçadeira pelo arguido como manifestação de superioridade em razão da arma. * Afastadas as restantes hipóteses possíveis de integração da conduta provada do arguido nas situações exemplo enumeradas no nº 2 do artigo 132º do Código Penal, resta averiguar se o caso dos autos poderá integrar um homicídio qualificado atípico, p. e p. pelo artigo 132º, nº 1, do Código Penal. Homicídio qualificado atípico Teresa Serra, Homicídio Qualificado …, a págs. 75, a propósito de homicídio qualificado atípico, refere que os critérios quanto a afirmação ou não da especial censurabilidade ou perversidade do agente na ausência de qualquer das circunstâncias exemplificadas no nº 2 deverão ser aferidos pelo Leitbild (tipo orientador) dos exemplos padrão. “A exigência de um grau especialmente elevado de ilicitude ou de culpa, para se poder afirmar um homicídio qualificado atípico, constitui um importante critério quanto à decisão a tomar relativamente a casos cuja pena concreta se venha a situar no âmbito de justaposição das molduras penais do tipo simples e do tipo qualificado. Com estas exigências, parece posta de parte qualquer possibilidade de multiplicação de casos de homicídio qualificado atípico”. E depois explica, dizendo “… a própria lei encarrega-se de limitar tais hipóteses, ao adoptar, na descrição das diversas circunstâncias do nº 2 do art. 132º, cláusulas gerais e conceitos indeterminados, para cujo preenchimento podem concorrer inúmeras diversas situações de facto, sem que para isso seja necessário recorrer à aceitação de um caso de homicídio qualificado atípico”, dando como exemplos as circunstâncias previstas nas alíneas b), c) e f). “O que significa que, nestes casos, nos encontramos nos limites de uma interpretação declarativa lata, ou seja, perante circunstâncias inominadas, mas ainda incluídas nos exemplo-padrão respectivos”. Os exemplos padrão constituem eles próprios expressão de um Leitbild de um tipo ou critério orientador e não um tipo de ilícito Trata-se de exemplos representativos que não esgotam o conceito que lhes subjaz, podendo, portanto, abranger outros exemplos para além daqueles que o exprimem incompletamente. Segundo Fernando Silva, loc. cit., págs. 59, “ a não existência de uma das circunstâncias previstas no âmbito do nº 2 do tipo de crime de homicídio qualificado faz suscitar o indício negativo, ou seja, que em princípio o crime não será qualificado, o que apenas será contrariado por situações especiais que nos permitam concluir que a culpa do agente, naquelas circunstâncias em que actuou é igualmente mais grave…”. E, a págs. 61, após citar o exemplo do acórdão do STJ, de 10-12-1997 (referenciado infra, a fls. 53 e publicado no BMJ 472,142), diz julgar admissível que a qualificação da conduta se determine directamente por via do nº 1. «Ou seja, que embora a situação não se enquadre nem directamente, nem por analogia, num dos tipos expressivos venha a revelar um grau de gravidade e de censurabilidade que justifique a qualificação. O que à partida se afigura difícil, face à grande abrangência dos tipos expressivos, e ainda à amplitude que pode ser dada por circunstâncias análogas», não sendo, no entanto, de rejeitar, à partida, essa possibilidade. O homicídio qualificado atípico na jurisprudência do STJ A jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça tem defendido a possibilidade de configuração de crime de homicídio qualificado atípico, com formulações mais ou menos exigentes. Assim, no acórdão de 19-06-1996, processo 203/96: na presença de especial censurabilidade ou perversidade está-se perante um crime de homicídio qualificado mesmo que se não verifique qualquer daqueles indicadores; outras circunstâncias não indicadas são susceptíveis de revelar aquela especial censurabilidade ou perversidade, podendo ver-se neste sentido, os acórdãos de 11-05-1983, BMJ 327, 458; de 26-11-1986, BMJ 361, 283; de 16-05-2002, processo 1071/02-5ª; de 15-12-2005, processo 2978/05-5ª (Os indicadores enumerados não esgotam a inventariação e relevância de outros índices de especial censurabilidade ou perversidade que a vida apresente, como resulta da expressão usada pelo legislador: «entre outras»); de 09-03-2006, CJSTJ 2006, tomo 1, 212; de 17-01-2007, processo 3845/06-3ª; de 11-07-2007, processo 1583/07-3ª. Numa outra abordagem, alude-se à insuficiência da vertente qualidade/quantidade dos dados disponíveis para justificar de per si, isoladamente considerados, a integração como indicador ou índice, mas já podendo revelar tal possibilidade, se apreciados em conjunto. Neste sentido, os acórdãos de 10-10-2002, processo 3577/02; de 30-10-2003, processo 3281/03; de 15-12-2005, processo 2978/05 e de 02-03-2006, processo 472/06, todos da 5ª secção e do mesmo relator: “Pode dizer-se que se estará perante um crime de homicídio qualificado quando a morte foi produzida em circunstâncias que revelem especial censurabilidade ou perversidade, estando presentes vários indicadores das alíneas do nº 2 do artigo 132º, que no seu conjunto o permitem afirmar, embora, individualmente, cada uma delas não reúna a qualidade/quantidade que justificou a sua inclusão como indicador”. Numa outra posição mais restritiva, pode ver-se o acórdão de 20-11-2002, processo 2818/02-3ª, em caso em que “real ou imaginada, a situação de infidelidade provocou a diminuição da culpa do agente uxoricida”, referindo-se: «Segundo a doutrina mais exigente, seguida por boa parte da jurisprudência, os exemplos-padrão devem exercer uma função delimitadora dos casos atípicos, daqueles se devendo apreender “não apenas o seu especial grau de gravidade, mas também a sua própria estrutura valorativa”; outras circunstâncias que aí se pretenda enquadrar devem revelar “igualmente um especial grau de gravidade da ilicitude ou da culpa”, sob pena de deixar o julgador sem critério de valoração, com o risco de caminhar para interpretações de tipo analógico». E no acórdão de 15-05-2002, processo 1214/02-3ª, expende-se: os exemplos enumerados nas diversas alíneas do nº 2 do art. 132º não são esgotantes, isto é, taxativos, no sentido de que a lista de sintomas pode ser alargada, por forma a abranger outras situações denunciadoras de igual grau de culpa, sem que o alargamento, porém, seja tão expansivo que se não afeiçoe de algum modo a um certo denominador comum que preside àquela enumeração legal, sob pena de se cair numa analogia perigosa e contrária ao princípio “nullum crimen sine lege”. Nos acórdãos de 21-06-2006, nos processos 1913/06 e 1559/06 da 3ª secção, diz-se: “Sendo elementos constitutivos do tipo de culpa, a verificação de alguma das circunstâncias que definem os exemplos-padrão não significa, por imediata consequência, a realização do tipo especial de culpa e a directa qualificação do crime, como, também por isso mesmo, a não verificação de qualquer dos modelos definidos do tipo de culpa não impede que existam outros elementos e situações que devam ser considerados no mesmo plano de valoração que está pressuposto no crime qualificado e na densificação dos conceitos bem marcados que a lei utiliza”. Adianta ainda: “Mas, seja mediada pelas circunstâncias referidas nos exemplos-padrão, ou por outros elementos de idêntica dimensão quanto ao desvalor da conduta do agente, o que releva e está pressuposto na qualificação é sempre a manifestação de um especial e acentuado «desvalor da atitude», que traduz e que se traduz na especial censurabilidade ou perversidade, e que conforma o especial tipo de culpa no homicídio qualificado”.- cfr. ainda do mesmo relator o acórdão de 15-10-2003, processo 2024/03-3ª. Seguindo o expendido por Figueiredo Dias, no Comentário Conimbricense, pág. 28, afirma-se nestes dois acórdãos e ainda nos de 13-07-2005, CJSTJ 2005, tomo 2, 251, do mesmo relator, versando aqui caso de ofensas à integridade física agravada, p. p. pelo artigo 146º do C. Penal, e no de 28-09-2005, CJSTJ 2005, tomo 3, 173: “O modelo de construção do tipo qualificado - qualificado pelo especial tipo de culpa – através da enunciação do critério geral, moldado pela densificação através dos exemplos-padrão, não permitirá, por seu lado, salvo afectação do princípio da legalidade , «fazer um apelo directo à cláusula de especial censurabilidade ou perversidade, sem primeiramente a fazer passar pelo crivo dos exemplos padrão e de, por isso, comprovar a existência de um caso expressamente previsto ou de uma situação valorativamente análoga»”. Noutra abordagem ainda, têm-se em conta as posições de Figueiredo Dias citadas - fls. 28 do Comentário - de Teresa Serra e de Curado Neves, nos lugares citados, como ocorre com os acórdãos de 16-06-2005, processo 553/05, de 23-06-2005, processo 1301/05, de 07-07-2005, processo 1670/05 e de 13-07-2005, processo 1833/05, todos da 5ª secção e do mesmo relator, sendo este último publicado na CJSTJ 2005, tomo 2, 244, onde se diz: “Os dois critérios - um generalizador e outro especializador - são complementares e têm mútua implicação, assinalando-se a interacção recíproca que intercede entre o critério generalizador e os exemplos padrão. Não será um maior desvalor da atitude do agente ou da personalidade documentada no facto que dará origem, por si só, ao preenchimento do tipo de culpa agravado. Exige-se que essa atitude ou aspectos da personalidade mais desvaliosos se concretizem em qualquer dos exemplos padrão ou em qualquer circunstância substancialmente análoga. Seria violar a legalidade «fazer um apelo directo à cláusula de especial censurabilidade ou perversidade, sem primeiramente a fazer passar pelo crivo dos exemplos padrão e de por isso comprovar a existência de um caso expressamente previsto no art. 132º ou de uma situação valorativamente análoga»”. Refere ainda o acórdão de 13-07-2005 não poder autonomizar-se o nº 1 em relação ao nº 2, de modo a, prescindindo dos exemplos padrão ou circunstâncias valorativamente análogas, se criarem ad libitum tipos qualificados de crime de homicídio. Ainda no mesmo sentido, cfr., acórdão de 13-07-2006, processo 1926/06, CJSTJ 2006, tomo 2, 244. * Passar-se-á a indicar agora acórdãos deste Supremo Tribunal de Justiça em que a conduta homicida foi integrada como crime de homicídio agravado atípico, nos termos do n.º 1 do artigo 132º do Código Penal. Acórdão de 08-04-1987, BMJ 366, 280 (caso do Barreiro) - Colocando em dúvida, e por isso afastando, a verificação da circunstância “frieza de ânimo”, considerou-se revelarem especial censurabilidade ou perversidade do agente as circunstâncias de frieza e ausência de sentimentos demonstrados pelo réu, bem como a insistência em tirar a vida à vítima, apertando-lhe violentamente o pescoço por duas vezes, estando tais circunstâncias abrangidas na fórmula exemplificativa «entre outras» do n.º 2 do artigo 132º do Código Penal, atendíveis, por as circunstâncias qualificativas a que alude este preceito não serem elementos do tipo, mas sim da culpa. Augusto Silva Dias, ob. cit., a págs. 27/8, citando este acórdão refere que a orientação nele seguida não deve ser aceite por duas ordens de motivos que explicita, finalizando: “O facto de a norma de sanção ter como destinatário o juiz não significa que a imputação se transforme de súbito num jogo sem regras, no qual o espaço de manobra do juiz é total e o arguido se encontra despido de qualquer protecção”. A este respeito dir-se-á que o enquadramento jurídico criminal, e não só, não é um jogo, e muito menos um jogo sem regras, pois os juízes, únicos destinatários de normas de sanção, porque aplicadores únicos das mesmas, autores únicos do dizer o direito no concreto do dia a dia, no espaço de exercício dos poderes, mesmo que vinculados, que a lei lhes confere, ponderam aquilo que julgam ser, adentro do quadro concreto a apreciar caso a caso e considerando as várias soluções jurídicas plausíveis, a melhor, a mais adequada, equilibrada e justa solução do caso, não se esquecendo da aplicação de princípios básicos, como o princípio do acusatório, do contraditório, da vinculação temática, da descoberta da verdade material, da proibição da dupla valoração, dos princípios da presunção de inocência e in dubio pro reo, dos princípios da necessidade, da proporcionalidade, da adequação das penas, da proibição do excesso, da proibição da reformatio in pejus, da injunção da imprescindível fundamentação, e do que é mais, dos ditames de uma das regras maiores neste conspecto, a observância do bom senso. Acórdão de 22-03-1989, Tribuna da Justiça, n.ºs 4-5, Junho/Setembro de 1990, págs. 284/291 – Considerando-se qualificada a tentativa de homicídio pelas alíneas c) e f) do nº 2 do artigo 132º (motivo fútil e meio insidioso - uso de arma), é tida em conta outra qualificação nestes termos: “Como repetidamente tem sido decidido e expendido, a especial censurabilidade ou perversidade que está na base da qualificação do art. 132º do Código Penal pode ser aferida independentemente das circunstâncias previstas no nº 2 desse artigo, que são somente índices de censurabilidade ou perversidade. E esta censurabilidade ou perversidade patenteia-se no caso sub judicibus também através de outros índices reveladores, maxime através do modo traiçoeiro como as facadas foram desferidas, como é qualquer ataque pelas costas”. Acórdão de 03-04-1991, BMJ 406, 314 e Colectânea de Jurisprudência 1991, tomo 2, 15, referenciada como vimos, a fls. 41 supra, por Fernando Silva – Uxoricídio - Considerada a integração do crime do artigo 132º, nº 1, do C. Penal, conferindo-se relevância a outras circunstâncias, para além das exemplificativamente enunciadas no nº 2, que se podem integrar no nº 1, por serem conducentes a um juízo de censurabilidade e (ou) de perversidade. Em todos os casos de qualificação do crime de homicídio, impõe-se uma análise das circunstâncias que o rodearam e a conclusão de que elas são tais que exprimem inequívoca e concretamente uma especial perversidade do agente ou que são merecedoras de um severo juízo de censura. Considera-se ser merecedor de intensa reprovação o facto de a vítima de homicídio ser mulher do agente que, ao matá-la, violou gravemente o dever de respeito e de cooperação que a lei lhe impõe (artigos 1672º e 1674º do Código Civil), não se descortinando por parte daquela qualquer atitude que, mínima e humanamente, permita compreender a sua brutal atitude. Acórdão de 26-06-1991, processo 41910, AJ nº 20 – Homicídio de companheira - “Comete o crime de homicídio qualificado, o arguido que não hesita em matar a mulher com quem vivia, no lugar de esposa, há mais de 20 anos. Essa convivência, como marido e mulher, deveria ter-lhe criado o sentimento de a proteger, de a amparar, de a tratar com carinho e não de lhe tirar a vida, por suspeitas, aliás, infundadas, de infidelidade. Apenas uma personalidade mal formada, perigosa e perversa procede desta forma, alheia ao respeito que os mais próximos lhe devem merecer”. Acórdão de 07-05-1992, BMJ 417, 297 – Considera-se, após afastar o exemplo-padrão motivo fútil, que a especial censurabilidade resulta do número e diversidade dos instrumentos utilizados, da persistência da acção criminosa, do grau de parentesco do arguido em relação à vítima (sobrinho /tia) e do facto de esta o haver recebido em casa a pedido dele. Acórdão de 09-11-1994, BMJ 441, 36 e CJSTJ 1994, tomo 3, 239 - Subsumiu a conduta provada na cláusula geral, entendendo o homicídio qualificado apenas nos termos do nº 1 do artigo 132º. Aí se expende: “pode julgar-se o crime qualificado, ainda que não provado qualquer dos exemplos padrão enunciados no artigo 132º do Código Penal, desde que os restantes factos provados revelem especial censurabilidade ou perversidade. O julgador (…) pode decidir-se pela qualificação, mesmo que os factos concretos o não autorizem a concluir pela verificação de circunstâncias subsumíveis nos “exemplos tipo”. Bastará, para tanto, que a particular conformação dos factos possa caber na cláusula geral da especial censurabilidade ou perversidade. Não é por acaso que no artigo 132º se contem a frase «se a morte for causada em circunstâncias que revelem…», que não pode deixar de apontar para qualquer circunstância permissiva dessa «revelação», ainda que não conste do elenco dos exemplos padrão! Um breve parêntesis. Teresa Serra, em Homicídios em Série, Jornadas de Direito Criminal, Revisão do Código Penal (de 30-10-1995 a 02-05-1996), CEJ, 1998, Volume II, a págs. 137 a 179 (neste particular págs. 155/6), cita os acórdãos de 3 de Abril de 1991 e de 9 de Novembro de 1994, como manifestações de uma tendência liberal inadmissível da jurisprudência (ao invés da tendência para uma interpretação restritiva do artigo 132º preconizada pela doutrina), na esteira de tomadas de posição da Escola de Coimbra mal compreendidas, situando-as nas intervenções de Eduardo Correia nas Actas de 1979 e do referido Parecer de Figueiredo Dias, de 1987, publicado na Colectânea, manifestando a autora o seu desacordo relativamente às conclusões retiradas pela jurisprudência, as quais – salienta - lhe merecem as maiores reservas e apontando para uma correcta delimitação do âmbito dos dois números do artigo 132º, repetindo a argumentação de 1990. Explicita a fls.157: «A admissão de outras circunstâncias reveladoras da especial censurabilidade ou perversidade do agente tem de limitar-se aos casos em que tais circunstâncias exprimam um grau de gravidade e possuam uma estrutura valorativa correspondente à imagem de cada um dos exemplos-padrão enunciados no nº 2. De acordo com esta interpretação, a decisão do juiz é ainda uma decisão vinculada. Caso contrário, o juiz deixará de ter critérios seguros na sua decisão, e esta passa a ser discricionária: se não se guiar pelos exemplos-padrão previstos no nº 2, o juiz tenderá a guiar-se pelos seus próprios critérios do que seja censurabilidade ou perversidade» - cfr. supra o referido relativamente ao princípio da tipicidade/legalidade. Prosseguindo com outros casos de homicídio qualificado atípico. Acórdão de 10-12-1997, processo 1207/97-3ª, in BMJ 472, 142 (referenciado por Fernando Silva, loc. cit. - cfr. supra, a fls. 47). Neste caso, considerou-se ter-se o arguido constituído autor material de um crime de homicídio, p. p. pelo artigo 132º, nº 1, do C. Penal. Fez-se suscitar o indício não a partir de nenhuma alínea em concreto, mas a partir do espírito global presente no n.º 2, atendendo à personalidade manifestada pelo agente, esgotando-se a hipótese de enquadrar concretamente a conduta em alguma das circunstâncias objectivamente previstas, maxime, a de meio insidioso, justificando-se o enquadramento no artigo 132º, nº 1, do C. Penal, por poderem outras circunstâncias, diversas das descritas nas diversas alíneas do nº 2, revelar a censurabilidade e a perversidade pressupostas como qualificativas. Ponderou-se então: “O circunstancialismo provado de o arguido ter continuado a desferir golpes na vítima depois de esta ter caído ao chão e, indiferente aos seus gritos e gemidos de dor, haver-se colocado em cima dela, sentando-se sobre as pernas e continuando a anavalhá-la pelas costas, traduz, só por si, um acentuadíssimo desvalor da personalidade do agente concretizada no facto, suficientemente caracterizador de especial perversidade e significante de um grau de gravidade equivalente à estrutura valorativa do Leitbild dos exemplos padrão plasmados no nº 2 do artigo 132º do Código Penal”. Acórdão de 09-02-2000, BMJ 494, 207 – Considerado integrado o crime de homicídio qualificado, p. p. pelo artigo 132º, nº 1, do Código Penal. “Os factos …, não substanciando frieza de ânimo, revelam completa insensibilidade e mesmo desprezo pela vida do semelhante, o que tanto basta para firmar a especial censurabilidade, por serem meramente exemplificativas as circunstâncias que a lei indica nas diversas alíneas do nº 2, a permitirem fundá-la Acórdão de 28-02-2002, processo 226/02-5ª – Uxoricídio - Após afastamento dos possíveis exemplos regra (meio particularmente perigoso e insidioso e frieza de ânimo) considera-se a configuração de homicídio agravado atípico tendo em conta uma realização do facto de forma especialmente desvaliosa, integrando-se a conduta no nº 1 do artigo 132º do C. Penal. Acórdão de 26-06-2002, processo 1868/02-3ª - Em caso de tentativa de homicídio da mulher por parte do marido, é mantida a incriminação pelo artigo 132º, nº 1, do Código Penal, entendendo-se que perante as circunstâncias apuradas, nomeadamente, o facto de o arguido encostar o cano do revólver à boca da ofendida sua mulher, com a intenção de lhe tirar a vida, no decorrer de uma discussão, e de haver disparado um tiro - quando a ofendida tinha ao colo uma filha de ambos, com 20 meses de idade – e os factos que se seguiram (a assistente pediu ao arguido para a socorrer, mas só passado algum tempo e depois de aquela lhe prometer que não relataria o que se havia passado, porque “senão para a próxima não errava” é que a conduziu ao Centro de Saúde), conferem à conduta do arguido uma especial censurabilidade. Acórdão de 03-10-2002, processo 2709/02-5ª, com o mesmo relator do anterior. Visou um caso de “qualificação atípica” assente numa atípica “especial censurabilidade ou perversidade” retirada do quadro de facto tido no seu conjunto: « (…) se é certo que as agravantes típicas constantes dos “exemplos padrão” se não mostram verificados, como abundantemente demonstrou o tribunal recorrido, tal não impede que, não obstante, o homicídio possa ser qualificado. Basta que se configure em concreto uma especial censurabilidade ou perversidade”. A conduta do arguido, dirigida a um filho, foi integrada como homicídio agravado atípico, sob a forma de tentativa, p. p. nos artigos 22º, 23º, 131º e no nº 1 do artigo 132º do Código Penal. Acórdão de 30-10-2003, processo 3252/03-5ª, in CJSTJ 2003, tomo 3, 208, com o mesmo relator dos dois anteriores – Uxoricídio. Versou igualmente um caso de homicídio qualificado atípico, concretamente de uxoricídio, e afirmando: afastados do caso os possíveis exemplos padrão de agravamento ou qualificação, não fica afastada a possibilidade de qualificação do homicídio, caso a realização do facto de forma especialmente desvaliosa, revele especial perversidade ou censurabilidade do agente. Acórdão de 29-03-2007 processo 647/07-5ª, sendo relator por vencimento o mesmo dos acórdãos de 28-02-2002, de 03-10-2002 e de 30-10-2003 supra referidos, estando em causa crime cometido contra a pessoa com quem o arguido vivia em comunhão de vida, em situação análoga à dos cônjuges, há cerca de 25 anos, considera-se não ser descabido considerar, nas apontadas circunstâncias, de ilicitude extrema, o homicídio agravado, tendo em conta, no caso, uma realização do facto como ficou descrito, de forma especialmente desvaliosa, numa palavra, especialmente censurável, entendendo-se como integrado crime de homicídio agravado, p. p. nos artigos 131º e 132º, nº 1, do Código Penal, repondo-se a decisão da primeira instância. No acórdão de 10-10-2007, processo 3315/07-3ª, não estando em discussão a qualificação do crime como tentativa de homicídio qualificado, foi considerado acertado o tratamento jurídico da conduta dado pela 1ª instância e homologado pela Relação, por se mostrar preenchido não qualquer dos exemplos padrão enunciados no nº 2 do art. 132º do Código Penal, mas um condicionalismo portador, em globo, de especial censurabilidade e perversidade, aquele marcado pela dissociação de actuação havida como padrão normal; o crime foi cometido em condições de tal modo graves que reflectem uma atitude profundamente distanciada do agente em relação a uma determinação normal, de acordo com os valores comunitariamente reinantes, com previsão na cláusula genérica de agravação prevista no nº 1, arredando o específico e exemplificativo exemplo padrão do motivo fútil, de que resulta uma imagem global do facto agravada. * Noutros caos a hipótese de enquadramento no homicídio qualificado atípico é considerada, mas afastado no concreto este tipo de qualificação. Acórdão de 27-05-2004, processo 1389/04-5ª, CJSTJ 2004, tomo 2, 204. Em caso de uxoricídio é afastada a qualificação atípica da primeira instância, corroborada pela Relação. Fundamenta-se a opção nestes termos: “O recurso à figura do homicídio qualificado atípico, isto é, a sua qualificação sem recurso a nenhuma das agravantes padrão previstas nas diversas alíneas do nº 2 do artigo 132º do C. Penal deve ser feito ou levado a cabo com alguma parcimónia”, afastando-se no caso concreto a configuração da especial censurabilidade ou perversidade por actuar o arguido movido por motivos relacionados com a desconfiança da fidelidade da mulher. Acórdão de 15-02-2007, no processo 15/07-5ª, no voto de vencido do relator em que, na sequência do decidido nos acórdãos de 10-10-2002, processo 2577/02, de 14-11-2002, processo 3316/02, de 30-10-2003, processo 3281/03 e de 15-12-2005, processo 2978/05, todos da 5ª secção, expende que a especial censurabilidade ou perversidade constitui a matriz da agravação, por forma a que sem ela, esta não ocorre, e o critério aferidor da qualificação assente na culpa e que recorta efectivamente o tipo incriminador e que ao lado desse critério, o legislador produz uma enumeração aberta, meramente exemplificativa pois de indicadores ou sintomas de especial censurabilidade ou perversidade, de funcionamento não automático, como o inculca a expressão usada na lei “ é susceptível” (1ª parte do corpo do nº 2). Mas os indicadores enumerados não esgotam a inventariação e relevância de outros índices de especial censurabilidade ou perversidade que a vida real apresente, como resulta da expressão usada pelo legislador “entre outras” no segmento final do corpo do nº 2. De concluir, pois, que nem sempre que está presente algum dos indicadores das diversas alíneas do nº 2 se verifica o crime qualificado, bastando para tanto que, no caso concreto, que esse indicador não consubstancie a especial censurabilidade ou perversidade a que se refere o nº 1; mas que na presença deste último elemento, está-se perante um crime de homicídio qualificado mesmo que se não verifique qualquer destes indicadores. No caso considera que determinadas circunstâncias verificadas no concreto, mesmo que não enquadráveis em nenhuma das alíneas do nº 2 do artigo 132º, preencheriam os requisitos do nº 1, pelo que manteria a qualificação. Acórdão de 24-05-2007, processo 1602/07-5ª, com o mesmo relator dos acórdãos de 28-02-2002, de 03-10-2002, de 30-10-2003 (3252/03), de 27-05-2004 e de 29-03-2007 – Em caso de uxoricídio, é revogado acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, que configurara homicídio qualificado atípico, com consequente reposição do decidido em 1ª instância, por considerar que no caso concreto as circunstâncias de ilicitude e culpa encontram no tipo comum todos os elementos de valoração e por o arguido ter sido substancialmente atingido ao menos na honra por comportamentos censuráveis da vítima (insultos com que se sentia humilhado), afastando-se o quadro de uma actuação inteiramente «a frio». Retomando o caso concreto. Há que avaliar a conduta global do recorrente com vista a perscrutar uma especial censurabilidade da sua culpa - acórdãos de 03-04-1991, CJ1991, tomo 2, 15 e BMJ 406, 314; de 18-10-1991, BMJ 410, 367; de 27-09-00, BMJ 499,122 e CJSTJ 2000, tomo 3, 179; a valoração global do facto e do seu autor, como refere Jescheck, Tratado …, págs. 367/8; a imagem global do facto, a que alude Figueiredo Dias, Comentário, pág. 26; a ponderação global das circunstâncias externas e internas presentes no facto concreto, na expressão de Teresa Serra, Homicídio Qualificado …, pág. 63: a ponderação final da atitude do agente, como refere Augusto Dias, loc. cit., pág. 29. Já a decisão proferida na 1ª instância - fls. 918 – muito embora tivesse dado por justificada a integração da conduta na qualificativa da alínea i) do nº 2 do art. 132º, do Código Penal, avançou para a consideração de que “… ainda que a descrita conduta do arguido não fosse de integrar na qualificativa da al. i) ou em qualquer outro dos exemplos padrão do art. 132º, nº 2, do Código Penal, ainda assim seria de considerar como reveladora de especial censurabilidade ou perversidade exigida pela qualificação, atendendo a que o facto de ter atingido mortalmente a sua esposa na presença de uma sua filha menor que nutria grande afecto pela mãe; no interior da residência de ambos e que quando, quer a filha quer a vítima que se encontrava indefesa e agonizante pelo tiro já sofrido, lhe imploravam por ajuda, o que se lhe exigia especialmente, resolveu, passados 3 a 5 minutos em que teve tempo para reflectir, desferir-lhe um novo tiro de forma a garantir a morte da mãe dos seus filhos, assim os deixando órfãos, incluindo uma filha de 13 anos de idade que certamente muito precisaria do apoio e carinho da mãe numa idade ainda de crescimento e de formação da personalidade e que não hesitou em provocar-lhe o trauma, certamente profundo, de matar a mãe à sua frente de uma forma particularmente atroz e cruel, como se do “abate” de uma peça de caça se tratasse, é revelador de uma atitude especialmente desvaliosa e censurável que não pode deixar de chocar, repugnar e revoltar profundamente o cidadão comum, adensando exponencialmente a culpa do agente”. Do mesmo modo o acórdão recorrido no ponto III - 3. 6.), a fls.1135/6: “Se o acórdão recorrido enfatiza a censurabilidade da conduta na perspectiva da ligação matrimonial à vítima (a qual, na redacção dada à al. b), do n.º 1, do art. 132.° pela Lei n.º 59/2007, de 04/09, traduzirá futuramente uma situação-padrão para a qualificação), na circunstância de os factos terem ocorrido na própria casa de morada de família, sabendo o arguido estar presente uma filha menor (que aliás em grande parte os presenciou) e na manifesta superioridade conferida pela posse da referida arma, não deixou de evidenciar que no momento do segundo disparo a vítima estava totalmente desprotegida e incapaz de se opor a tal tipo de agressão. Embora se desconheçam as razões pelas quais o arguido pretendeu dar-lhe morte direccionando e disparando sempre na região das pernas, não deixará de pesar como perversidade o ter seleccionado uma zona do corpo em que aquele resultado não se produz com o mesmo grau de imediatismo e de "eficácia" do que em outras zonais vitais do corpo. Estando pressuposta na consecução da finalidade pretendida, a actuação de todo um processo hemorrágico para que a morte se produza, não poderá deixar de ser apontado contra aquele o facto de ter optado por uma via que forçosamente iria provocar uma acrescida agonia e sofrimento à vítima. Em resumo, para nós este é daqueles homicídios em que mesmo não existissem os mencionados exemplos padrão, mormente pela construção apresentada pelo acórdão do STJ de 29/03/2007 no Proc. n.º 07P647 (consultável no endereço electrónico www.dgi.pt/jstj), sempre se haveria de considerar como qualificado.» Um caso especialmente grave pode ser admitido como incluso no critério orientador ou cláusula geral da especial censurabilidade ou perversidade quando a gravidade do facto equivalha à gravidade dos casos mencionados nos exemplos típicos, devendo o julgador orientar-se a partir dos sinais fornecidos na exemplificação da norma constante de cada alínea, ou seja, perspectivar os factos através das diversas alíneas do nº 2) do artigo 132º e, através da ponderação do pleno das circunstâncias enformadoras do facto e da personalidade do agente, definida que seja a imagem global do facto, averiguar e avaliar se se está ou não perante um especial e acentuado desvalor de atitude, que se encontra dentro das fronteiras marcadas pela estrutura de sentido que modela o exemplo, ou se o caso se reconduz a uma situação análoga, paralela ou equivalente, se estamos perante circunstâncias de estrutura análoga, que exprimam um grau de gravidade e possuam uma estrutura valorativa correspondente à imagem de um dos exemplos padrão, que marquem uma diferença, distanciamento e dissociação, relativamente ao padrão normal de actuação, ao tipo matriz, no sentido de um maior ou acentuado desvalor de atitude, na forma de especial censurabilidade ou perversidade e que possa, por isso, ser valorada em termos de conformar especial juízo de censura e especial tipo de culpa, agravada. Vejamos o que consta da matéria de facto provada. O arguido era casado com a vítima, tendo dois filhos, que à data dos factos tinham 13 e 18 anos de idade (a referência no ponto nº 40 dos factos provados a 14 e 19 anos de idade deve-se a evidente lapso, atentas as datas de nascimento constantes dos pontos n.ºs 46 e 53, tendo então a menina 13 anos e o rapaz 18). Eram frequentes as discussões em virtude do excessivo consumo de bebidas alcoólicas por parte do arguido e pelo facto de este sistematicamente chegar a desoras a casa. Nessas discussões era frequente a troca de expressões injuriosas, tendo há ano e meio a mulher manifestado o propósito de se divorciar do arguido. No dia em causa o arguido chega a casa cerca das 20h00 horas e alcoolizado. Gera-se discussão entre arguido e mulher. A mulher, na sequência da discussão, aborrecida pelo facto de o arguido chegar frequentemente a casa embriagado e a altas horas da madrugada, dirige-se ao marido proferindo estas palavras: “Não sei porque chegas todos os dias a casa às 8 da manhã, deves ser paneleiro”. A acção desenrola-se na cozinha da residência onde viviam arguido, vítima e os filhos, no interior da casa de morada de família. O arguido mune-se de uma caçadeira com capacidade para carregamento de duas munições, municiou-a e volta à cozinha. Aí aponta a arma à mulher e filha, tendo aquela deitado a mão à arma entrando em luta pela posse da mesma, na sequência da qual o arguido dispara um tiro que atingiu o tecto. De imediato aponta a arma em direcção do corpo da mulher e a cerca de um metro de distância dispara, atingindo-a nas coxas e a mulher tomba de imediato no chão. A filha presenciou a cena de o pai apontar a arma à mãe e esta implorar-lhe que não disparasse, bem como o disparo efectuado. O arguido diz então à filha para ir ligar para o irmão. Cerca de 3 a 4 minutos após, o arguido carrega de novo a arma e desfere um segundo disparo contra a mulher que se encontrava prostrada no chão, ensanguentada, e a distância não superior a um metro, atingindo-a de novo na zona das coxas. A filha do casal alertada pelo novo tiro, voltou à cozinha, deparando com o pai com a caçadeira empunhada e a mãe prostrada no solo sangrando abundantemente e sem nada dizer, entrando em pânico e pedindo ajuda. Face a este quadro factual na análise a efectuar há que ter em atenção o modo de actuação do arguido e o reflexo da sua personalidade na conduta levada a cabo. A vítima era esposa do arguido, pelo que este violou o dever especial de não cometer o facto por vinculado aos deveres conjugais, maxime, os de respeito e de cooperação, (este traduzido na obrigação de socorro e auxílio mútuos) - artigos 1672º e 1674º do Código Civil. A conduta do arguido traduz uma marca visível de sinal contrário aos deveres específicos emergentes da relação legal de igualdade de direitos e deveres para ambos os cônjuges consagrados na Constituição de 1976, tendo o Decreto-Lei nº 496/77, de 25-11, entrado em vigor em 01-04-1978, dado cumprimento ao imperativo constitucional dimanante do disposto no artigo 293º, nº 3 da CRP, dando satisfação aos princípios constitucionais que impõem a plena igualdade dos direitos e deveres dos cônjuges. Embora situada num outro plano de apreciação não será despiciendo de todo, segundo nos parece, fazer uma aproximação com situação em que ocorre violação desses deveres, embora com outras consequências, por estar em causa a tutela da integridade pessoal do cônjuge, ou seja, com o crime de maus tratos conjugais. Como se extrai do trabalho “Sobre o crime de maus tratos conjugais”, de Maria Manuela Valadão e Silveira, Revista de Direito Penal, volume I, nº 2, ano 2002, UAL, a págs. 34/35, a agravação da medida da pena de ofensas à integridade física simples do tipo incriminador do nº 2 do artigo 152º busca fundamento por conta da qualidade de cônjuge. A agravação é fundada “numa culpa mais pesada. Culpa essa consubstanciada num especial juízo de censura, que a ordem jurídica faz impender sobre o agente, considerando as suas relações de particular proximidade da vítima”. Por outro lado, a maior gravidade do ilícito, relativamente ao que é descrito no art. 143º, decorre da qualidade de cônjuge e da relação de proximidade da vítima, concluindo que “o fundamento da agravação especial é um fundamento duplo de maior ilicitude do facto e, com isso, da maior culpa espelhada nesse facto”. No caso presente o arguido tinha, pois, em relação à vítima, pelos laços que a ela o ligavam, pela relação de proximidade, especiais deveres de se abster de assumir comportamentos violentos, pois aquela era sua mulher e mãe dos seus filhos, facto que faz acrescer a intensidade dos deveres abstencionistas, sendo a conduta reveladora da especial intensidade da culpa do arguido, por não ter sabido e conseguido estancar as contra-motivações éticas relacionadas com os laços do casamento. Tratava-se da esposa de anos, que tomou a seu exclusivo cargo a educação e o sustento dos filhos, colmatando as insuficiências e mesmo a abstinência total do marido na dação desse contributo. De ter em conta a opção pela zona do corpo atingida - no terço inferior de ambas as coxas - onde se situam artérias essenciais à irrigação sanguínea (pontos de facto provados n.ºs 16, 18, 26, 29, 30), em que o resultado não se produz com o mesmo grau de imediatismo e de eficácia como seria em outras zonas vitais do corpo, antes se processa com graves hemorragias, pretendendo o arguido uma morte lenta, sofrida, com longa percepção por parte da vítima do seu estado e da aproximação do fim, que teve lugar 6 horas depois, manifestando o arguido falta de piedade, com assunção de comportamento onde se misturam frieza e crueldade, insensibilidade perante a vítima, indefesa, desprotegida, completamente impossibilitada de resistir ao agressor armado, incapaz de se opor ao primeiro tiro e mais ainda ao segundo, em situação de extrema vulnerabilidade, numa altura em que estava prostrada no chão e ensanguentada, agonizante. A persistência na resolução e na produção do resultado típico está patente no segundo tiro, na insistência, repetição da acção, com vista a certificar-se do êxito da conduta, da consumação. A actuação do arguido revela completa insensibilidade e absoluta indiferença e desprezo pelo valor da vida humana, pela integridade física e vida da mulher, pela sua sorte, pois podendo parar, não o fez, não prestando socorro, que ainda viável, poderia evitar o resultado fatal. Mostrou-se insensível aos apelos e ao temor da mulher, que lhe implorava para não disparar (pontos de facto n.ºs 15, 16), não recuando perante o resultado do 1º tiro e suas consequências, municiando de novo a arma e desferindo o 2º disparo, à mesma curta distância, atingindo-a de novo na mesma zona (ponto de facto nº 18). Actuou com manifesta superioridade em razão da arma (pontos de facto n.ºs 9 e 18). De realçar o facto de ter disparado e atingido a mulher da 1ª vez na presença da filha menor de 13 anos de idade, que viu o pai a apontar à mãe a arma e a mãe a implorar que o não fizesse e presenciando disparo a 1 metro de distância, entrando em pânico em virtude do que presenciou na sequência do 2º tiro, deparando-se com o pai com a arma empunhada e a mãe no chão prostrada, sangrando abundantemente, sem nada dizer, para além de contra si e sua mãe ter o arguido apontado a arma da primeira vez (pontos de facto n.ºs 12 e 59), sendo certo que tinha boa relação e nutria afecto pela mãe com quem tinha forte e intensa ligação afectiva. O facto de ter tirado a vida à mulher disparando contra esta na presença da filha menor indicia uma maior capacidade criminosa pelo não respeito dos motivos inibitórios do crime que à relação conjugal e laços de família devem andar ligados. Na apreciação global atender-se-á ainda a que: Toda a actuação se processa no interior da residência em espaço fechado (pontos de facto n.ºs 5, 9, 11, 12, 14, 15). A curtíssima distância - cerca de um metro - a que foram efectuados os disparos (pontos de facto n.ºs 14, 15, 16, 18). O facto de o arguido saber manusear armas, pois era caçador, sendo detentor de duas armas (pontos de facto n.ºs 32, 36 e 37) O compasso de espera, o hiato temporal entre os disparos, determinado pela necessidade de municiar de novo a arma, que o arguido não aproveitou para reflectir e voltar atrás, prestando o socorro urgente de que necessitava a vítima, antes desferindo segundo disparo contra a mulher que se encontrava prostrada no chão ensanguentada, mas consciente, e que não teve direito a uma morte com dignidade. De assinalar a firmeza da intenção criminosa, tratando-se de uma acção repetida, denotando conduta implacável, com determinação, não hesitando em suprimir a vida da mulher; a insistência em consumar a morte não deixa de traduzir culpa acrescentada. A insensibilidade manifestada na execução do crime, a ausência de motivo forte mitigador da culpa, o desvalor da personalidade do arguido mostram que este revelou na prática do crime um grau de censurabilidade maior do que o juízo de censura subjacente ao homicídio simples. Como se diz no acórdão de Paredes: A actuação do arguido é reveladora de uma atitude persistente, decidida e fria e com absoluta indiferença pela vítima, ao insistir na sua intenção de garantir que lhe tiraria a vida. A conduta provada do arguido, não substanciando nenhuma das situações exemplares enunciadas nas alíneas do nº 2 do artigo 132º do Código Penal, revela completa insensibilidade e mesmo desprezo pela vida do semelhante, acentuado desvalor da acção e da conduta; com a forma de cometimento do crime no facto estão documentadas qualidades da personalidade do agente especialmente desvaliosas. Conclui-se assim estar preenchido o tipo de crime de homicídio qualificado, p. p. pelo artigo 132º, nº 1, do Código Penal. 2ª Questão Atenuação especial da pena O recorrente aborda esta possibilidade de modo perfunctório no texto da motivação. Alegando ser primário, ter confessado espontaneamente o crime e ter-se mostrado claramente arrependido, após a prática do crime, sendo manifestação inequívoca desse arrependimento o tresloucado acto de tentar pôr termo à sua vida de que resultou para si lesões graves e sequelas irreversíveis no seu rosto e ainda o bom comportamento posterior, referindo-se ao meio prisional, o recorrente convoca o artigo 72º, n.ºs 1 e 2, alíneas c) e d) do Código Penal - fls. 9 do recurso e 1173 dos autos - levando as afirmações de ausência de antecedentes e de manifestação de arrependimento à conclusão 8ª, referindo na conclusão 9ª a situação no meio prisional e a violação do artigo 72º na conclusão 13ª. Estabelece o nº 1 do artigo 72º do Código Penal na redacção dada ao diploma pela 3ª alteração – Decreto-Lei nº 48/95, de 15/03 – e mantido inalterado pela 23ª alteração, introduzida pela Lei nº 59/07, de 4 de Setembro, que o tribunal atenua especialmente a pena, para além dos casos expressamente previstos na lei, quando existirem circunstâncias anteriores ou posteriores ao crime, ou contemporâneas dele, que diminuam por forma acentuada a ilicitude do facto, a culpa do agente ou a necessidade da pena. O nº 2 do referido preceito elenca algumas das circunstâncias que podem ser consideradas para o efeito consignado, a saber: a) Ter o agente actuado sob influência de ameaça grave ou sob ascendente de pessoa de quem dependa ou a quem deva obediência; b) Ter sido a conduta do agente determinada por motivo honroso, por forte solicitação ou tentação da própria vítima ou por provocação injusta ou ofensa imerecida; c) Ter havido actos demonstrativos de arrependimento sincero do agente, nomeadamente a reparação, até onde lhe era possível, dos danos causados; d) Ter decorrido muito tempo sobre a prática do crime, mantendo o agente boa conduta. Em anotação a este artigo Leal - Henriques e Simas Santos, Código Penal Anotado, I, consideram: “Seguiu-se neste art. 72º o caminho de proceder a uma enumeração exemplificativa das circunstâncias atenuantes de especial valor, para se darem ao juiz critérios mais precisos de avaliação do que aqueles que seriam dados através de uma cláusula geral de avaliação. Pressuposto material da atenuação da pena, autónomo ou integrado pela intervenção valorativa das situações exemplificativamente enunciadas, é a acentuada diminuição da culpa ou das exigências de prevenção. Em relação à versão originária de 1982, a expressão do nº 1 do então artigo 73º «O tribunal pode atenuar» foi substituída no actual artigo 72º por «O tribunal atenua», tendo sido aditada a alternativa final «ou a necessidade da pena». Este aditamento veio esclarecer que o princípio basilar que regula a atenuação especial é a diminuição acentuada não só da ilicitude do facto ou da culpa do agente, mas também da necessidade da pena, e consequentemente das exigências de prevenção.”. Esclarece Figueiredo Dias, Direito Penal Português, As Consequências Jurídicas do Crime, 1993, págs. 302/307, a propósito do paralelismo entre o sistema (ou o «modelo») da atenuação especial do artigo 72º e o sistema da determinação normal da pena previsto no artigo 71º, que tal paralelismo é só aparente, pois enquanto no procedimento normal de determinação da pena são princípios regulativos os da culpa e da prevenção, na atenuação especial tudo se passa ao nível de uma acentuada diminuição da ilicitude ou da culpa, e, portanto em último termo, ao nível do relevo da culpa, pelo que seriam irrelevantes as exigências da prevenção, o que não ocorre face a alguns dos exemplos ilustrativos da situação especialmente atenuante contida na cláusula geral do nº 1 do artigo 72º, ou seja, das situações aí descritas só significativas sob a perspectiva da necessidade da pena (e, por consequência, das exigências da prevenção), concluindo no § 451: princípio regulativo da aplicação do regime da atenuação especial é a diminuição acentuada não apenas da ilicitude do facto ou da culpa do agente, mas também da necessidade da pena e, portanto, das exigências da prevenção. A atenuação especial resultante da acentuada diminuição da culpa ou das exigências da prevenção corresponde a uma válvula de segurança do sistema, que só pode ter lugar em casos extraordinários ou excepcionais, em que a imagem global do facto resultante da actuação da (s) atenuante (s) se apresenta com uma gravidade tão diminuída que possa razoavelmente supor-se que o legislador não pensou em hipóteses tais quando estatuiu os limites normais da moldura cabida ao tipo de facto respectivo. Daí – e continuamos a citar - estarmos perante um caso especial de determinação da pena, conducente à substituição da moldura penal prevista para o facto por outra menos severa, com redução de um terço no limite máximo da moldura prevista para o facto e várias hipóteses na fixação do limite mínimo. Adianta o Mestre de Coimbra que passa-se aqui algo de análogo ao que sucede com os exemplos-padrão: por um lado, outras situações que não as descritas nas alíneas do nº 2 do art. 72º podem (e devem) ser tomadas em consideração, desde que possuam o efeito requerido de diminuir, por forma acentuada, a culpa do agente ou as exigências da prevenção; por outro lado, as próprias situações descritas naquelas alíneas não têm o efeito «automático» de atenuar especialmente a pena, só o possuindo se e na medida em que desencadeiem o efeito requerido. E conclui que a acentuada diminuição da culpa ou das exigências da prevenção constitui o autêntico pressuposto material da atenuação especial da pena. Espelham estes ensinamentos vários arestos deste Supremo Tribunal, de que são exemplo os acórdãos de 30-10-2003, CJSTJ 2003, Tomo 3, pág. 220, onde se pode ler: a atenuação especial só em casos extraordinários ou excepcionais pode ter lugar, considerando-se como antiquada a solução de consagrar legislativamente a cláusula geral de atenuação especial como válvula de segurança, pois que dificilmente se pode ter tal solução por apropriada para um Código como o nosso, “moderno e impregnado pelo princípio da humanização e dotado de molduras penais suficientemente amplas”, seguindo-se aqui a lição constante do § 465 da referida obra. No acórdão de 03-11-2004, CJSTJ2004, Tomo 3, p. 217 refere-se: “Justifica-se a aplicação do instituto de atenuação especial da pena, que funciona como instrumento de segurança do sistema nas situações em que se verifique um afastamento crítico entre o modelo formal de integração de uma conduta em determinado tipo legal e as circunstâncias específicas que façam situar a ilicitude ou a culpa aquém desse modelo.”. E no acórdão de 25-05-2005, CJSTJ 2005, Tomo 2, p. 207: “A atenuação especial da pena só pode ser decretada (mas se puder deve sê-lo) quando a imagem global do facto revele que a dimensão da moldura da pena prevista para o tipo de crime não poderá realizar adequadamente a justiça do caso concreto, seja pela menor dimensão e expressão da ilicitude ou pela diminuição da culpa, com a consequente atenuação da necessidade da pena - vista a necessidade no contexto e na realização dos fins das penas”. Nessa esteira podem ver-se ainda os acórdãos de 17-05-1995, CJSTJ 1995, tomo 2, 201; de 07-05-1997, BMJ 467, 237; de 29-04-1998, CJSTJ 1998, tomo 2, 191; de 24-03-1999, CJSTJ 1999, tomo 1, 247; de 10-11-1999, processo 823/99, SASTJ nº 35, 74; de 23-02-2000, processo 1200/99-3ª, de 18-10-2001, processo 2137/01-5ª, SASTJ, nº 54, 122; de 18-04-2002, CJSTJ 2002, tomo 2, p. 178; de 22-01-2004, CJSTJ 2004, Tomo 1, p. 183; de 17-06-2004, processo 1873/04-5ª; de 07-12-2005, CJSTJ 2005, tomo 3, 229; de 06-06-2006, CJSTJ 2006, tomo 2, p. 204; de 07-12-2006, processo 3053/06-5ª; de 21-12-2006, processo 4540/06-5ª; de 08-03-2007, processo 626/07-3ª; de 06-06-2007, processo 1403/07-3ª e processo 1603/07-5ª; de 14-06-2007, processos 1895/07 e 1908/07, ambos da 5ª secção; de 21-06-2007, processo 1581/07-5ª; de 28-06-2007, processo 3104/06-5ª; de 05-09-2007, processo 1418/07-3ª. Vejamos se no caso concreto se justifica a intervenção correctiva deste Supremo Tribunal no quadro da atenuação especial da pena como pretende o recorrente. Analisando o caso em concreto e cada um dos pontos focados pelo recorrente. O recorrente é primário, como consta do ponto de facto provado n.º 39. Tal facto de per si pode pouco ou nada adiantar de positivo nesta sede, pois a primariedade por si só não fundamenta atenuação especial. Como assinala Figueiredo Dias, Direito Penal, § 351, pág. 352, no que toca à vida anterior do agente esta deve seguramente possuir valor atenuante sempre que permita concluir que o facto surge como um episódio ocasional e isolado no contexto de uma vida de resto fiel ao direito; mas é óbvio que esta conclusão não pode retirar-se sem mais, da circunstância de o agente não ter sido anteriormente condenado. Para apurar da boa conduta anterior não basta a inexistência de antecedentes criminais, não sendo a ausência sinónimo de bom comportamento – neste sentido, acórdãos do STJ, de 10-04-1984, BMJ 336, 324; de 09-11-1994, BMJ 441, 36; de 08-02-1995, BMJ 444, 358 e de 25-03-1998, BMJ 475, 531. O bom comportamento anterior não se atesta apenas em função de um certificado de registo criminal limpo. E face ao que ficou provado, quer no que respeita à sua postura negligente e distanciada face à família, quer no plano do trabalho, ou melhor, ausência deste, e tipo de convívio social, não se pode dizer que o arguido fosse um cidadão exemplar ou pelo menos cumpridor. Relativamente à confissão espontânea, é evidente que tal atenuante não pode ser considerada com o relevo pretendido. A propósito de confissão do arguido consta da fundamentação da decisão sobre a matéria de facto – fls. 1127/8 do acórdão da 1ª instância - que «…pouca ou nenhuma relevância assumiu na descoberta da verdade, tanta e tão abundante e inequívoca foi a prova produzida em audiência que dúvida alguma se suscitou ao Tribunal quer na fixação dos factos objectivos dados por provados quer nos factos subjectivos, nomeadamente quanto à personalidade, intenção de matar e motivação do arguido na prática deste crime». No caso concreto, atenta a materialidade dos factos e as circunstâncias da acção não seria difícil investigar o crime e descobrir o autor, pelo que as declarações prestadas não podem assumir valor confessório. Vejamos agora a questão do arrependimento. O arrependimento sincero do agente há-de ser manifestado por actos que o demonstrem. Como decidiu o acórdão do STJ de 05-03-1992, BMJ 415, 434, citado no acórdão de 11-12-1996, BMJ 462, 207: A alínea c) do nº 2 do artigo 73º (actual 72º) do Código Penal exige actos externos reveladores de arrependimento sincero, que se traduzam numa efectiva actuação de sinal contrário ao do crime e que se mostrem capazes de visivelmente esbaterem os contornos e os efeitos do mesmo. A circunstância que a lei admite constituir índice de diminuição acentuada da ilicitude do facto, da culpa do agente ou a necessidade da pena, é o arrependimento sincero do agente, ou seja, o seu pesar sincero pela falta cometida, a sua contrição, o seu remorso, o que passa pela assunção do desvalor da conduta e do resultado; não é qualquer, tem de ser arrependimento que se traduz em actos concretos, nomeadamente na reparação, como demonstração objectiva do arrependimento que se propala – acórdão do STJ, de 02-03-2006, processo 472/06-5ª. Tal questão está intimamente conexionada com a alegada tentativa de suicídio por parte do arguido que terá tido lugar com um quarto tiro por si disparado. Na conclusão 8ª diz o recorrente que manifestou sentimentos sinceros de arrependimento, de culpa e de desespero, exteriorizados no próprio acto que atentou contra a sua vida logo após o crime que praticou, o que demonstra que se tratou de um acto irreflectido e imponderado. Ponderou-se no acórdão recorrido a respeito desta alegação: “Já em relação à tentativa de suicídio, esta pode eventualmente ter a leitura de sincero arrependimento - O tribunal não o interpretou como tal. Seguramente valerá como índice de uma certa interiorização da culpa pelo sucedido”. Não podemos acompanhar o acórdão recorrido neste particular. Na motivação de recurso chega o recorrente a alegar ser manifestação inequívoca desse arrependimento o tresloucado acto de tentar por termo à sua vida de que resultou lesões graves e sequelas irreversíveis no seu rosto. Trata-se de mera afirmação, gratuita, sem, em nosso entender, suficiente suporte na matéria de facto dada por provada. Com efeito, como resulta do n.º 20 dos factos provados o arguido resolveu suicidar-se, tendo para o efeito encostado a boca do cano da caçadeira à zona dos maxilares e desferido um tiro sobre si próprio, que o atingiu na face do lado esquerdo, ao nível dos maxilares. No mais deu-se como provado o relato da filha menor quando volta a casa já com a avó, constatando que o arguido disparara sobre si próprio e que se encontrava ferido na face do lado esquerdo, ao nível dos maxilares, não conseguindo falar - ponto nº 23 dos factos provados. Neste aspecto facto provado é tão só a declaração da jovem, referindo que o pai estava ferido na face, sem mais nada se acrescentar relativamente à real natureza, extensão e gravidade da ferida e se houve ou não sequelas, desconhecendo-se quanto tempo durou o não exercício da fala e se resultou da lesão mencionada ou não. Não é facto provado que o arguido não pudesse falar. Provado ficou algo diverso: o que ficou provado foi que a filha prestou aquela declaração. Salvo o devido respeito, parece-nos não se poder colocar a questão de se estar perante uma tentativa de suicídio quando alguém dispara à zona dos maxilares. Quem se quer matar não atira para a zona dos maxilares, pelo menos nos moldes em que o arguido o fez. Como se distingue no acórdão do STJ de 16-04-1998, BMJ 476, 253, “Uma coisa é afirmar-se que dos elementos de prova apreciados em audiência de julgamento se deveria extrair outra conclusão, aspecto ligado à livre apreciação da prova, nos termos do artigo 127º do CPP e insindicável por este Supremo Tribunal, e outra é dar-se como provada determinada factualidade, dela podendo extrair-se uma conclusão ilógica, arbitrária ou notoriamente violadora das regras da experiência comum”. Nesta abordagem há que não perder de vista que o recorrente é caçador, possuidor de duas armas (pontos de facto provados n.ºs 32, 35 e 36), sabendo manusear armas (ponto de facto n.º 37), que imediatamente antes disparara contra o corpo da mulher a cerca de um metro de distância e não falhou das duas vezes, de modo que terá de concluir-se que quando procurou atentar contra a própria vida mostrou-se algo inepto, falecendo-lhe a perícia do disparo certeiro de que momentos antes demonstrara ser possuidor, mal se compreendendo o insucesso e o fim frustrado, resultando apenas da sua acção ter ficado ferido na face do lado esquerdo, ao nível dos maxilares (ponto de facto n.º 23). Não ficou demonstrada, por outro lado, a existência ou concorrência de qualquer factor perturbador que tivesse impedido o arguido de alcançar o desiderato pretendido. Por outro lado, há que dizer que não ficou esclarecida a questão da existência de um quinto disparo efectuado em circunstâncias não concretamente apuradas, como foi dado por provado no ponto de facto nº 21, sabendo-se que para o efeito o arguido teria a necessidade de municiar de novo a caçadeira. Após ter dado um tiro para o tecto, dois contra o corpo de sua mulher e um outro contra si, esgotando os dois carregamentos de cartuchos feitos - pontos de factos provados nº 9 e 18 - porquê um 5º tiro? E se o 4º tiro foi contra si próprio para quê carregar de novo a espingarda, nas condições em que estava? Anote-se que atendendo ao lado da face ferida não está esclarecido se o arguido é sinistro ou dextro. Querendo atentar contra a própria vida, o arguido como caçador experiente que era, deveria ter escolhido zona vital; o meio escolhido, como o foi, estava votado ao insucesso, redundando num acto falhado, não alcançando o seu objectivo. A conduta provada mais do que tentativa de suicídio deve ser vista como atitude dissimulatória, pois com um tiro assim não estava em causa a sobrevivência do arguido. Assim sendo, não é de considerar qualquer arrependimento por parte do recorrente, pois não houve qualquer acto demonstrativo desse sentimento, não estando, pois, presente o fundamento constante do artigo 72º, nº 2, alínea c), do Código Penal. No que respeita ao bom comportamento posterior, o que está em causa é tão só a vivência do arguido no meio prisional, nada constando a propósito dos factos provados, sendo certo que tal comportamento corresponderá, como não podia deixar de ser, ao acatamento de regras da situação de reclusão. Independentemente e para além de todas as considerações anteriores, tidas em conta em função do imperativo de procurar dar resposta às questões suscitadas, sempre seria de colocar a questão da inconciliabilidade da específica situação concreta que conduziu à qualificação do crime nos moldes adoptados e a impetrada medida premial da pena aplicável (moldura abstracta mais benevolente em razão da atenuação). Como se defendeu no acórdão do STJ de 02-05-1996, processo 70/96, “Tratando-se de crime de homicídio, a existência de circunstâncias que demonstrem a sua especial censurabilidade exclui a possibilidade de aplicação de pena especialmente atenuada baseada no art. 72º, por serem inconciliáveis a especial censurabilidade e a especial diminuição da culpa”. Concluindo: Não há circunstâncias, anteriores, contemporâneas ou posteriores ao crime cometido, que diminuam por forma acentuada a ilicitude do facto, manifestamente elevada, ou a especial culpa do arguido, ou a necessidade da pena, nada justificando o tratamento privilegiado de aplicação de moldura mais benévola. Não há por conseguinte fundamento para a atenuação especial perspectivada pelo arguido, improcedendo esta pretensão. 3ª Questão Medida da pena - Redução? Tendo sido reduzida na Relação do Porto a pena aplicada pela 1.ª instância, o recorrente considera a pena ainda manifestamente excessiva. Subsistindo a incriminação, a moldura penal da infracção aqui considerada situa-se entre os 12 e os 25 anos de prisão (art. 132.°, n.º 1, do Cód. Penal), pugnando agora o recorrente por uma pena de 14 anos. No domínio da versão originária do Código Penal de 1982, alguma jurisprudência, dizendo basear-se em posição do Prof. Eduardo Correia (Actas das Sessões, p. 20) segundo a qual o procedimento normal e correcto dos juízes, em face do novo Código, seria o de utilizar, como ponto de partida, a média entre os limites mínimo e máximo da pena correspondente, em abstracto, ao crime, adoptou tal orientação, de que são exemplos os acórdãos de13-07-1983, BMJ 329, 396; de 15-02-1984, BMJ 334, 274; de 11-11-1987, BMJ 371, 226. Posteriormente e ainda antes de 1995, partindo da ideia de que a culpa é a medida que a pena não pode ultrapassar nem mesmo lançando apelo às necessidades de prevenção, mesmo que acentuadas, começou a considerar-se incorrecta a utilização, na graduação da medida da pena, do ponto médio entre os limites mínimo e máximo da pena, como vinha sendo entendido, salientando-se que a determinação da medida da pena não depende de critérios aritméticos. Neste sentido, o acórdão de 09-06-1993, BMJ 428, 284. A refutação daquele critério foi feita por Carmona da Mota, in Tribuna da Justiça, nº 6, pág. 8. E no acórdão de 27-02-1991, A. J., nº 15/16, p. 9 (citado no acórdão de 15-02-1995, CJSTJ 1995, tomo 1, 216), decidiu-se que na fixação concreta da pena não deve partir-se da média entre os limites mínimo e máximo da pena abstracta. A determinação concreta há-de resultar de a adaptar a cada caso concreto, liberdade que o julgador deve usar com prudência e equilíbrio, dentro dos cânones jurisprudenciais e da experiência, no exercício do que verdadeiramente é a arte de julgar. Jescheck, Tratado de Derecho Penal, Parte General, II, pág. 1194, diz: “o ponto de partida da determinação judicial das penas é a determinação dos seus fins, pois, só partindo dos fins das penas, claramente definidos, se pode julgar que factos são importantes e como se devem valorar no caso concreto para a fixação da pena”. Definindo o papel que cabe à culpa na determinação concreta da pena, nos termos da teoria da margem de liberdade (Claus Roxin, Culpabilidade y Prevención en Derecho Penal, 94-113) é ele o seguinte: a pena concreta é fixada entre um limite mínimo (já adequado à culpa) e um limite máximo (ainda adequado à culpa), limites esses que são determinados em função da culpa do agente e aí intervindo dentro desses limites os outros fins das penas (as exigências da prevenção geral e da prevenção especial). A partir de 1995 foram alterados os dados do problema, passando a pena a servir finalidades exclusivas de prevenção, geral e especial, assumindo a culpa um papel meramente limitador da pena. Figueiredo Dias, em Temas Básicos da Doutrina Penal, Coimbra Editora, 2001, no tema Fundamento, Sentido e Finalidades da Pena Criminal, págs. 65 a 111, diz que o legislador de 1995 assumiu, precipitando no artigo 40º do CP, os princípios ínsitos no artigo 18º, nº 2 da CRP, (princípios da necessidade da pena e da proporcionalidade ou da proibição do excesso) e o percurso doutrinário, resumindo assim a teoria penal defendida: 1) Toda a pena serve finalidades exclusivas de prevenção, geral e especial. 2) A pena concreta é limitada, no seu máximo inultrapassável, pela medida da culpa. 3) Dentro deste limite máximo ela é determinada no interior de uma moldura de prevenção geral de integração, cujo limite superior é oferecido pelo ponto óptimo de tutela dos bens jurídicos e cujo limite inferior é constituído pelas exigências mínimas de defesa do ordenamento jurídico. 4) Dentro desta moldura de prevenção geral de integração a medida da pena é encontrada em função de exigências de prevenção especial, em regra positiva ou de socialização, excepcionalmente negativa ou de intimidação ou segurança individuais. A terceira alteração ao Código Penal operada pelo Decreto-Lei 48/95, de 15 de Março, entrado em vigor em 1 de Outubro seguinte, proclamou a necessidade, proporcionalidade e adequação como princípios orientadores que devem presidir à determinação da pena aplicável à violação de um bem jurídico fundamental, introduzindo a inovação constante do artigo 40º, ao consagrar que a finalidade a prosseguir com as penas e medidas de segurança é «a protecção dos bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade». Com esta reformulação do Código Penal, como se explica no preâmbulo do diploma, não prescindiu o legislador de oferecer aos tribunais critérios seguros e objectivos de individualização da pena, quer na escolha, quer na dosimetria, sempre no pressuposto irrenunciável, de matriz constitucional, de que em caso algum a pena pode ultrapassar a culpa, dispondo o nº 2 que «Em caso algum a pena pode ultrapassar a medida da culpa». Em consonância com estes princípios dispõe o artigo 71º, n.º 1, que “a determinação da medida da pena, dentro dos limites definidos na lei, é feita em função da culpa do agente e das exigências de prevenção”; o n.º 2 elenca, a título exemplificativo, algumas das circunstâncias, agravantes e atenuantes, a atender na determinação concreta da pena, dispondo o n.º 3, que na sentença são expressamente referidos os fundamentos da medida da pena, injunção com concretização adjectiva no artigo 375º, nº 1 do CPP, ao prescrever que a sentença condenatória especifica os fundamentos que presidiram à escolha e à medida da sanção aplicada. (Em sede de processo decisório, a regulamentação respeitante à determinação da pena tem tratamento autónomo relativamente à questão da determinação da culpabilidade, sendo esta tratada no artigo 368º, e aquela prevista no artigo 369º, com eventual apelo aos artigos 370º e 371º do CPP). Para o efeito de determinação da medida concreta ou fixação do quantum da pena que vai constar da decisão o juiz serve-se do critério global contido no referido artigo 71º do Código Penal (preceito que a alteração introduzida pela Lei nº 59/2007, de 4 de Setembro, deixou intocado, como de resto aconteceu com o citado artigo 40º), estando vinculado aos módulos - critérios de escolha da pena constantes do preceito. Como se refere no acórdão de 28-09-2005, CJSTJ 2005, tomo 3, 173, na dimensão das finalidades da punição e da determinação em concreto da pena, as circunstâncias e os critérios do art. 71º do C. Penal têm a função de fornecer ao juiz módulos de vinculação na escolha da medida da pena; tais elementos e critérios devem contribuir tanto para co-determinar a medida adequada à finalidade de prevenção geral (a natureza e o grau de ilicitude do facto impõe maior ou menor conteúdo de prevenção geral, conforme tenham provocado maior ou menor sentimento comunitário de afectação dos valores), como para definir o nível e a premência das exigências de prevenção especial (circunstâncias pessoais do agente; a idade, a confissão; o arrependimento) ao mesmo tempo que também transmitem indicações externas e objectivas para apreciar e avaliar a culpa do agente. Observados estes critérios de dosimetria concreta da pena, há uma margem de actuação do julgador dificilmente sindicável, se não mesmo impossível de sindicar. O referido dever jurídico-substantivo e processual de fundamentação visa justamente tornar possível o controlo - total no caso dos tribunais de relação, limitado às «questões de direito» no caso do STJ, ou mesmo das relações quando se tenha renunciado ao recurso em matéria de facto – da decisão sobre a determinação da pena. Estando a cognoscibilidade em recurso de revista limitada a matéria de direito, coloca-se a questão da controlabilidade da determinação da pena nesta sede. Figueiredo Dias, Direito Penal Português, As Consequências Jurídicas do Crime, 1993, p. 196/7, § 255, após dar conta de que se revela uma tendência para alargar os limites em que a questão da determinação da pena é susceptível de revista, afirma estarem todos de acordo em que é susceptível de revista a correcção do procedimento ou das operações de determinação, o desconhecimento pelo tribunal ou a errónea aplicação dos princípios gerais de determinação, a falta de indicação de factores relevantes para aquela, ou, pelo contrário, a indicação de factores que devam considerar-se irrelevantes ou inadmissíveis. Defende ainda estar plenamente sujeita a revista a questão do limite ou da moldura da culpa, assim como a forma de actuação dos fins das penas no quadro da prevenção, e relativamente à determinação, dentro daqueles parâmetros, do quantum exacto de pena, esta será controlável no caso de violação das regras da experiência ou se a quantificação se revelar de todo desproporcionada. A intervenção do Supremo Tribunal em sede de concretização da medida da pena, ou melhor, do controle da proporcionalidade no respeitante à fixação concreta da pena, tem de ser necessariamente parcimoniosa, porque não ilimitada, sendo entendido de forma uniforme e reiterada que “no recurso de revista pode sindicar-se a decisão de determinação da medida da pena, quer quanto à correcção das operações de determinação ou do procedimento, à indicação dos factores que devam considerar-se irrelevantes ou inadmissíveis, à falta de indicação de factores relevantes, ao desconhecimento pelo tribunal ou à errada aplicação dos princípios gerais de determinação, quer quanto à questão do limite da moldura da culpa, bem como a forma de actuação dos fins das penas no quadro da prevenção, mas já não a determinação, dentro daqueles parâmetros, do quantum exacto da pena, salvo perante a violação das regras de experiência, ou a sua desproporção da quantificação efectuada”- cfr. acórdãos de 09-11-2000, in Sumários; de 23-11-2000, processo 2766/00-5ª; de 09-05-2002, processo 628/02-5ª, CJSTJ 2002, tomo 2, 193; de 16-05-2002, processo 585/02-5ª; de 14-11-2002, processo 3316/02-5ª; de 30-10-2003, CJSTJ 2003, 3, 208; de 11-12-2003, processo 3399/03-5ª; de 04-03-2004, processo 456/04-5ª, in CJSTJ 2004, tomo 1, 220; de 07-12-2005 e de 15-12-2005, CJSTJ 2005, tomo 3, 229 e 235; de 29-03-2006, CJSTJ 2006, tomo 1, 225; de 15-11-2006, processo 2555/06-3ª; de 14-02-2007, processo 249/07-3ª; de 08-03-2007, processo 4590/06-5ª; de 12-04-2007, processo 1228/07-5ª; de 19-04-2007, processo 445/07-5ª; de 10-05-2007, processo 1500/07-5ª; de 04-07-2007, processo 1775/07-3º; de 17-10-2007, processo 3321707-3ª. Ainda de acordo com o mesmo Professor, nas Lições ao 5º ano da Faculdade de Direito de Coimbra, 1998, p. 279 e seguintes: «Culpa e prevenção são os dois termos do binómio com auxílio do qual há-de ser construído o modelo de medida (sentido estrito ou de «determinação concreta») da pena. As finalidades da aplicação de uma pena residem primordialmente na tutela de bens jurídicos e, na medida do possível, na reinserção do agente na comunidade. A pena, por outro lado, não pode ultrapassar em caso algum a medida da culpa. Assim, pois, primordial e essencialmente, a medida da pena há-de ser dada pela medida da necessidade de tutela dos bens jurídicos face ao caso concreto e referida ao momento da sua aplicação, protecção que assume um significado prospectivo que se traduz na tutela das expectativas da comunidade na manutenção (ou mesmo no reforço) da validade da norma infringida. Um significado, deste modo, que por inteiro se cobre com a ideia da prevenção geral positiva ou de integração que vimos decorrer precipuamente do princípio político-criminal básico da necessidade da pena». Anabela Miranda Rodrigues, O Modelo de Prevenção na Determinação da Medida Concreta da Pena, in Revista Portuguesa de Ciência Criminal, ano 12, nº 2, Abril/Junho de 2002, pág. 147 e ss., como proposta de solução defende que a medida da pena há-de ser encontrada dentro de uma moldura de prevenção geral positiva e que será definida e concretamente estabelecida em função de exigências de prevenção especial, nomeadamente de prevenção especial positiva ou de socialização; a pena, por outro lado, não pode ultrapassar em caso algum a medida da culpa. Apresenta três proposições em jeito de conclusões e da seguinte forma sintética: “Em primeiro lugar, a medida da pena é fornecida pela medida de necessidade de tutela de bens jurídicos, isto é, pelas exigências de prevenção geral positiva (moldura de prevenção). Depois, no âmbito desta moldura, a medida concreta da pena é encontrada em função das necessidades de prevenção especial de socialização do agente ou, sendo estas inexistentes, das necessidades de intimidação e de segurança individuais. Finalmente, a culpa não fornece a medida da pena, mas indica o limite máximo da pena que em caso algum pode ser ultrapassado em nome de exigências preventivas”. E termina: “É este o único entendimento consentâneo com as finalidades da aplicação da pena: tutela de bens jurídicos e, na medida do possível, a reinserção do agente na comunidade, e não compensar ou retribuir a culpa. Esta é, todavia, pressuposto e limite daquela aplicação, directamente imposta pelo respeito devido à eminente dignidade da pessoa do delinquente”. Volvendo ao concreto caso em reapreciação. A este propósito e reduzindo a pena aplicada na 1ª instância de 20 para 18 anos assim dissertou a decisão recorrida: “Neste capítulo o Colectivo de Paredes levou em conta o dolo directo, o expressivo nível de ilicitude, decorrente da qualidade de esposa da vítima e das características do instrumento utilizado para consumar o crime, ainda o seu modo de execução e as razões de prevenção geral decorrentes da necessidade de se evitar este tipo de crimes. Descontou-se a "provocação" inicial traduzida na afirmação com que a vítima aludiu às suas intempestivas entradas em casa, e o contributo para a desinibição agressividade e impulsividade com que actuou originada pela taxa de alcoolemia de que era portador. Ainda a ausência de antecedentes criminais. Perante este contexto o que nos aporta o recorrente para a sua redução: A consideração de que o crime não será qualificado, objecção, que como vimos, não se mostra procedente; O seu comportamento adequado ao meio prisional, matéria que a factualidade provada não espelha. Depois, num quadro algo diferente, o arrependimento sincero traduzido na tentativa de acabar com a sua própria vida e a dupla perturbação mental e psicológica em razão do seu estado de exaltado na sequência da vítima lhe ter chamado "pane1eiro" e de se encontrar embriagado com uma taxa de álcool de 1,98 g/l. Havendo então que regressar à matéria de facto provada, se é correcto afirmar-se que após a sua mulher lhe haver referido a expressão "Não sei porque chegas todos os dias a casa às 8 da manhã, deves ser paneleiro", "logo de seguida o arguido, exaltado (sublinhado nosso), resolveu atentar contra a vida da sua mulher tendo-se, para concretizar tal propósito, dirigido ao quarto onde pegou numa arma caçadeira (...)", a verdade é que a acção subsequente não tem aquele imediatismo que pressuponha uma mesma intensidade dessa exaltação ao longo do seu desenvolvimento, e esta não volta a ser referida ao longo de toda a matéria de facto considerada provada. Se não vamos ao ponto de afastar alguma "perturbação" do arguido ao longo de toda a sua actuação, o que para nós é sobretudo relevante, é que desde esse momento inicial e até ao seu terminus, o agente teve a oportunidade de reavaliar aquela sua intenção, actuando de um outro modo. Tal exaltação não se mostra pois conformada como factor para a comissão do homicídio nos termos apresentados pelo recorrente. Quanto à ingestão de álcool, se no respectivo ponto 33.º se chega a falar efectivamente de "embriaguez", já posteriormente o acórdão é mais preciso na fixação dos seus efeitos: "Não impediu de agir sempre de forma livre, deliberada e consciente, durante toda a sequência da sua conduta", ainda que como repetidamente já se disse, tenha contribuído "para a desinibição do arguido e consequente agressividade e impulsividade". Já em relação à tentativa de suicídio, esta pode eventualmente ter a leitura de sincero arrependimento – O tribunal não o interpretou como tal. Seguramente valerá como índice de uma certa interiorização da culpa pelo sucedido. Será que estes factores, no entanto, permitem alcançar uma mitigação da pena aplicada, maxime, logrando uma expressividade que importe a sua derrogação? Troca de expressões injuriosas entre ambos, diz-nos o ponto 1. da matéria de facto que eram "frequentes". Discussões, idem. Alcoolismo outra constante. Apenas re-valorizando alguma daquela alcoolemia de que era portador e adicionando o algum reconhecimento da culpa pelo mal provocado lograremos atingir a redução da pena que lhe foi aplicada por tal crime para os 18 anos de prisão”. (Sublinhámos). Retira-se do exposto que na base da redução da pena concretizada pela Relação esteve o reconhecimento da culpa pelo mal provocado, o que significa que o arrependimento alegado pelo recorrente encontrou eco naquele Tribunal, com o que não se está de acordo como se deixou assinalado supra a propósito da tentativa de suicídio. O arguido agiu na forma mais grave da culpa: o dolo directo. No que respeita a alcoolemia, embora o arguido se encontrasse em estado de embriaguês incompleta, a descrição factual permite concluir que não lhe diminuiu a capacidade de entender nem de se determinar, como não o impossibilitou de agir em liberdade, voluntariamente e conscientemente. O tribunal deu por provado que, embora estando com uma TAS de 1,98g/l, ao agir, o arguido tinha capacidade para valorar os actos que praticava, (pontos de facto provados n.ºs 6, 33 e 34), sendo jurisprudência assente que, estar embriagado, na comissão de crimes não tem natureza atenuativa, podendo a consideração ser de sinal contrário, atento o disposto no artigo 86º do Código Penal – cfr. acórdãos do STJ, de 24-02-1993, CJSTJ 1993, tomo 1, 205 e de 14-07-1994, BMJ 439, 269. O recorrente invoca o estado de exaltação decorrente da expressão injuriosa proferida por sua mulher - "Não sei porque chegas todos os dias a casa às 8 da manhã, deves ser paneleiro". Cremos ser de colocar a questão de saber se se está perante um verdadeiro insulto ou injúria, justificativo de estado de exaltação ou perturbação, ou face a reparo. A 1ª instância entendeu que embora a motivação do agente fosse de considerar como eticamente censurável, a mesma, face ao desvalor do insulto sofrido, não merecia a especial censurabilidade e assim estaria afastada a qualificação de motivo fútil - fls. 917 dos autos e fls. 43 supra. A expressão da vítima deve ser entendida como uma reacção a uma conduta continuada do marido, que certamente nunca se terá questionado que efeito teria na sua mulher e nos seus filhos, o facto de chegar sempre a horas tardias a casa e alcoolizado, traduzindo-se a sua forma de estar na vida em absoluto absentismo e distanciamento relativamente a tudo o que dizia respeito à sua família, numa atitude de puro egoísmo, em nada contribuindo para a família, quer em termos afectivos ou económicos, dando azo a frequentes discussões. O arguido fica exaltado porque na sequência da discussão a mulher profere expressão em que, em seu entender, é colocada em dúvida a sua orientação sexual. A expressão da vítima não pode ser analisada descontextualizada da vivência do dia a dia, pois há sempre o outro lado da margem e como nos rios, mesmo que nem tudo arrastem, como se diz no poema, a uma margem contrapõe-se a outra, correspondendo a expressão a desabafo, a reparo de quem se sentia comprimida pelas estreitas margens de uma vivência resultado do comportamento do marido e certamente não desejada. Estaremos assim face a uma razão subjectiva, um começo de explicação de conduta por causa de discussão ou como reacção a insulto, que não pode razoavelmente explicar a gravíssima conduta do arguido por ser motivo notoriamente desproporcionado para o comportamento assumido por aquele; é patente a enorme, inadequada, desajustada, manifesta desproporção entre a ofensa da vítima - com natureza e intensidade diversas das perspectivadas pelo agente - e a reacção do recorrente, não podendo o condicionalismo que a despoletou explicar, e muito menos, obviamente, justificar, reacção com tal amplitude e efeitos. Como se referia no acórdão do STJ de 17-03-1994, BMJ 435, 518, a propósito do estado de irritação, o facto injusto da provocação há-de ser proporcional ao facto criminoso por forma a poder ser considerado como reduzindo acentuadamente a ilicitude do facto ou a culpa do agente. Ao tirar a vida a sua mulher e mãe dos seus filhos, para além da perda da vida daquela, e exactamente em resultado dessa privação, o comportamento do arguido conduziu à produção de efeitos colaterais com intenso grau de lesividade de direitos de personalidade dos filhos, que ficaram privados da mãe, deixando-os na orfandade. Foram graves as consequências do crime para os filhos da vítima e arguido. Com a sua conduta o arguido fez extinguir o direito dos filhos a terem uma mãe – a sua Mãe – com quem tinham uma relação afectiva forte, intensa, carinhosa, sendo ela quem deles cuidava, tratava, sustentava, desempenhando um papel tão mais importante quanto o arguido, por omissão, lhe conferira exclusividade nessa acção, pois se demitira de assumir o protagonismo de figura parental, ou pelo menos o exercício dessas funções com um mínimo de proximidade, sendo completamente ausente em todos os sentidos, com as necessárias sequelas a nível psicológico, principalmente para a filha que assistiu em pânico ao desenrolar dos acontecimentos (pontos de facto nº 19, 58, 59). Na verdade, a falecida era a única figura presente, sendo ela quem tratava e cuidava da sua educação e os acompanhava diariamente à escola e actividades de lazer e desporto (pontos de facto n.ºs 41, 47, 48, 51, 54, 55, 56), sendo as suas últimas palavras para eles, pois quando transportada para a ambulância disse a uma sobrinha: “Olha pelos meus filhos…” (ponto de facto 25), que passaram a viver com os tios, sendo ajudados por familiares (pontos de facto n.ºs 61, 63). Nesta perspectiva, o arguido relativamente à filha menor, sujeita ao seu poder paternal (artigo 1877º do C. Civil), sabendo-se que ele próprio não cumpria os seus deveres de pai constantes dos artigos 1877º, 1878º e 1885º do C. Civil, com o desaparecimento da progenitora, impede que a filha beneficie do comportamento da única cumpridora. No que concerne à personalidade do arguido, que não era marido, parceiro, companheiro, nem pai, com manifesto desinteresse pela família, como se viu, que não trabalhava, bebia com frequência, chegando a casa sempre a desoras e alcoolizado, não contribuindo em nada para a economia familiar, conjugavam-se factores que ajudam a estabelecer um potencial de risco, o que acontece com o abuso de álcool, acesso e posse de armas, baixo rendimento económico. Estes elementos, aliados ao mau relacionamento com os filhos, marcado pelo distanciamento mútuo e alguma conflituosidade com o filho (pontos de facto n.ºs 41 e 42) e o seu funcionamento geral (percurso profissional com sucessivas mudanças de emprego e acompanhamento de indivíduos desprovidos de qualquer ocupação laboral - pontos de facto nº. s 44 e 45) são preditores desenvolvimentais de violência conjugal. A este propósito ver Rui Abrunhosa Gonçalves, in Agressores conjugais: Investigar, avaliar e intervir na outra face da violência conjugal, RPCC, Ano 14, n.º 4, Outubro - Dezembro 2004, págs. 541 e ss. São intensas as necessidades de prevenção geral. O bem jurídico tutelado é a vida humana inviolável, reflectindo o crime a tutela constitucional da vida, que proíbe a pena de morte e consagra a inviolabilidade da vida humana - artigo 24º da Constituição – estando-se face à mais forte tutela penal, sendo a vida e a sua inviolabilidade que conferem sentido ao princípio da dignidade da pessoa humana e ao direito à liberdade que estruturam e densificam o Estado de direito. Como se extrai de Constituição da República Portuguesa Anotada de Gomes Canotilho e Vital Moreira, 2007, vol. I, p. 446/7, “O direito à vida é um direito prioritário, pois é condição de todos os outros direitos fundamentais, sendo material e valorativamente o bem mais importante do catálogo de direitos fundamentais e da ordem jurídico-constitucional no seu conjunto”. Versando a forte necessidade de prevenção geral no acórdão do STJ, de 17-03-1994, BMJ 435, 518, dizia-se: pode afirmar-se sem exagero que o homicídio voluntário se banalizou, constituindo, com o tráfico de droga, o tipo de ilícito que este Supremo Tribunal mais vem julgando ultimamente. Rui Abrunhosa Gonçalves, loc. cit., págs. 546 e 556, diz-nos: As estatísticas criminais continuam a evidenciar uma forte percentagem de homicídios conjugais. (Elza) Pais, refere-se a uma taxa de 15% em relação à totalidade dos homicídios em Portugal, mas no levantamento mais recente sobre os crimes cometidos no âmbito da violência doméstica para o ano de 2003, (Ana Paula) Alão encontra uma percentagem de 32% de homicídios em 878 casos (em 31-12-2003) em acompanhamento pelo Instituto de Reinserção Social nesse ano. (Os números resultam de um inquérito interno lançado por aquele Instituto com o objectivo de caracterizar a população a seu cargo que cometeu crimes no âmbito da violência doméstica, obtendo uma panorâmica do universo de agressores). Como referido no acórdão deste Supremo Tribunal de 11-07-2007, processo 1583/07-3ª, A criminalidade violenta, em que se integra o crime de homicídio, assume alguma preocupação comunitária em crescendo, pelo que, para confiança da colectividade na lei, em nome de uma desejável tranquilidade e segurança de respeito pela vida humana, as necessidades de prevenir a prática de tal crime são muito presentes. Trata-se de crime gerador de grande alarme social e repúdio das pessoas em geral, sendo elevadas as exigências de reafirmação da norma violada. No que toca a prevenção especial avulta a personalidade do arguido na forma como reagiu e o reduzido valor que atribui à vida humana, não se esgotando na mera prevenção da reincidência. No acórdão da Relação teve-se em conta a revalorização da alcoolemia e de alguma forma do arrependimento, que entende-se não ter existido. De resto foram respeitados os parâmetros legais, não se estando perante desproporção da quantificação de pena efectuada, nem face a violação de regras da experiência comum, não se justificando intervenção correctiva deste Supremo Tribunal, no que toca à pena parcelar do homicídio, o mesmo se verificando em relação à pena conjunta. Pelo exposto, acordam no Supremo Tribunal de Justiça em negar provimento ao recurso, alterando-se a qualificação do crime de homicídio nos termos sobreditos e no mais mantendo-se o acórdão recorrido. Custas pelo recorrente, nos termos dos artigos 513º, nº 1 e 514º, nº 1, do CPP e artigos 74º, 87º, nº 1, alínea a), nº 3 e 89º do CCJ, fixando-se a taxa de justiça em 7 UC. Consigna-se que foi observado o disposto no artigo 92º, nº 4, do CPP. Lisboa, 02 de Abril de 2008 Raul Borges (Relator) Henriques Gaspar |