| Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça | |||
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| Nº Convencional: | JSTJ000 | ||
| Relator: | OLIVEIRA MENDES | ||
| Descritores: | VIOLAÇÃO COACÇÃO SEXUAL MENOR ALTERAÇÃO DA QUALIFICAÇÃO JURÍDICA COMUNICAÇÃO AO ARGUIDO MEDIDA CONCRETA DA PENA SUSPENSÃO DA EXECUÇÃO DA PENA | ||
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| Nº do Documento: | SJ200805280011293 | ||
| Data do Acordão: | 05/28/2008 | ||
| Votação: | UNANIMIDADE | ||
| Texto Integral: | S | ||
| Privacidade: | 1 | ||
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| Meio Processual: | RECURSO PENAL | ||
| Decisão: | PROVIDO PARCIALMENTE | ||
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| Sumário : | I - É elemento constitutivo do crime de violação, mais concretamente do tipo objectivo de ilícito, a ocorrência de cópula (coito anal ou coito oral), consistindo esta na penetração da vagina pelo pénis, pelo que o crime só se poderá ter por verificado perante introdução completa ou incompleta do órgão sexual masculino no órgão sexual feminino. II - Resultando da matéria de facto assente, entre o mais, que: - em dia não determinado do final do primeiro período do ano lectivo de 2006/2007, PJ entrou no quarto e desligou o aparelho em que a menor CS, sua sobrinha materna, de 10 anos de idade, jogava, sentada na cama; - deu-lhe ordem para que se calasse e passou a despir-lhe as calças e as cuecas e a fazê-la deitar-se na cama; - de seguida, baixou as suas próprias calças, agarrou o pénis, dirigiu-o à vulva de CS e deitou-se sobre ela, ficando os dois sexos em contacto; - com o pénis erecto e encostado ao órgão genital da menor fez pressão sobre ele, executou movimentos de avanço, de recuo e para os lados; - cerca de duas semanas depois, CS brincava no quarto do arguido, sentada no chão, e ele entrou também, a dizer que queria falar com ela; - CS levantou-se e PJ baixou-lhe as calças e as cuecas, voltou a deitá-la na cama e a cobri-la com o seu corpo e repetiu os gestos já descritos; não é possível concluir que o recorrente PJ penetrou com o seu membro viril o órgão sexual da menor, consabido que penetrar é passar para dentro. III - Com efeito, ali se alude apenas a movimentos de avanço, recuo e para os lados, sem que se faça referência expressa à ocorrência de penetração, sendo certo que perante o desconhecimento da amplitude dos referidos movimentos fica a dúvida sobre se houve ou não introdução do pénis na vagina, dúvida que, face ao princípio geral de processo penal in dubio pro reo, terá de ser valorada em benefício do arguido, tanto mais que do relatório da perícia sexual efectuada no IML consta que a menor CS possui hímen anelar com lacerações incompletas às 5 e 7 horas do mostrador do relógio, de bordos cicatrizados e com permeabilidade apenas a um dedo (indicador), mais constando do seu segmento conclusivo que as lesões referidas ao nível da região genital são compatíveis com coito vaginal sob a forma tentada. IV - Há pois que requalificar os factos, subsumindo-os à norma do n.º 1 do art. 163.º do CP, preceito que não foi alterado pela Lei 59/2007, de 04-09, nada obstando a que esta operação ocorra sem comunicação prévia ao arguido (n.º 3 do art. 358.º do CPP), visto que a alteração da qualificação jurídica em causa se consubstancia na imputação de crime menos grave, sem que ocorra qualquer modificação dos factos – cf., no sentido da desnecessidade daquela comunicação em casos como o vertente, os Acs. do STJ de 03-04-1991, CJSTJ, XVI, tomo II, pág. 17 e do TC de 17-04-1997. V - Perante o quadro factual descrito e considerando, ainda, que: - com o crime de coacção sexual protege-se a autodeterminação sexual, bem como o direito à saúde. No caso vertente, sendo a ofendida CS uma menor com 10 anos de idade à data dos factos, o comportamento delituoso do arguido pôs em causa, também, o desenvolvimento natural da sua sexualidade e da sua personalidade do ponto de vista sexual; - a ilicitude dos factos é de grau elevado, dada a referida idade da menor, a que acresce a circunstância de ser sobrinha do arguido; - a culpa é intensa, situando-se em patamar superior, visto que o arguido sempre se comportou com dolo directo, para satisfação da sua lascívia e desejo sexual, aproveitando-se do facto de a menor frequentar a casa dos avós, passando largos períodos de tempo no quarto do arguido, ali se distraindo com um jogo electrónico; - o arguido é consumidor de bebidas alcoólicas, por vezes com abuso, sendo-lhe conhecidos comportamentos agressivos quando alcoolizado; - não gere autonomamente a sua vida e tem dificuldades em assumir responsabilidades; vive em casa de uma das irmãs; tem um filho com 9 anos de idade; possui o 4.º ano de escolaridade; e encontra-se desempregado; - foi condenado por crimes de dano e de resistência sobre funcionário, praticados em 1998 e 1999; - em favor do arguido, à data dos factos com 33 anos de idade, nenhuma circunstância ocorre; mostra-se adequada a condenação do arguido, pela prática de um crime continuado de coacção sexual, p. e p. pelos arts. 30.º, n.º 2, e 163.º, n.º 1, do CP, agravado nos termos do n.º 4 do art. 177.º do mesmo diploma legal [a que corresponde uma moldura penal abstracta de 1 ano e 4 meses a 10 anos e 8 meses de prisão], numa pena de 5 anos de prisão. VI - Na ponderação de eventual aplicação do instituto da suspensão da execução da pena há que ter em atenção que: - o crime de coacção sexual assume acentuada gravidade, sendo, no nosso ordenamento jurídico, um dos crimes mais graves contra a liberdade e autodeterminação sexual; - o dano ou efeito externo provocado é sempre elevado, especialmente em ofendidos impúberes, com destaque para os danos morais, os quais se traduzem no prejuízo causado no desenvolvimento global do lesado, bem como no da sua sexualidade e da sua personalidade do ponto de vista sexual; - o concreto contexto em que os factos ocorreram revela que o arguido PJ possui uma personalidade carente de princípios éticos, visto que não se coibiu de satisfazer o seu desejo libidinoso em menor que é sua sobrinha, aproveitando-se do facto de a mesma frequentar a casa dos avós, passando largos períodos de tempo no seu quarto, ali se distraindo com um jogo electrónico; - foi condenado pela prática de crimes de dano e de resistência sobre funcionário; - não gere autonomamente a sua vida e tem dificuldades em assumir responsabilidades; - não se mostra que haja interiorizado o mal do crime, pois que não exteriorizou qualquer acto revelador de arrependimento e nem sequer assumiu aquele; tudo levando à conclusão de que não só não é admissível a formulação de um juízo de prognose positivo sobre o comportamento futuro do arguido PJ, como o sentimento jurídico da comunidade exige que aquele cumpra em clausura a pena que lhe foi cominada, pois só assim se satisfazem as exigências mínimas e irrenunciáveis de defesa do ordenamento jurídico. | ||
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| Decisão Texto Integral: | Acordam no Supremo Tribunal de Justiça No âmbito do processo comum com intervenção do tribunal colectivo n.º 24/07, do 4º Juízo da comarca de Ponta Delgada, AA, com os sinais dos autos, foi condenado como autor material de um crime continuado de violação, previsto e punível pelos artigos 30º, n.º 2, 164º, n.º 1 e 177º, n.º 4, do Código Penal, na pena de 7 anos e 6 meses de prisão. O arguido interpôs recurso. Na motivação apresentada formulou as seguintes conclusões: 1. No caso em apreço: - o comportamento do arguido não é acompanhado de qualquer outro fenómeno de criminalidade; - o comportamento desviante foi um acto praticado num contexto próprio e isolado; - o arguido é uma pessoa relativamente bem inserida socialmente (tem trabalho) e familiarmente está apoiado pelos irmãos. 2. Além disso: - não obstante o arguido ter sido condenado por dois crimes referentes a factos de 1998 e 1999, não cometeu outros crimes até à presente data; - quanto a crimes de natureza sexual o arguido é primário. 3. O Tribunal a quo, atendendo aos factos acima referidos, não poderia ter concluído que o arguido deveria ser punido de forma severa e não deveria ter aplicado, por isso, uma pena de prisão de 7 anos e 6 meses. 4. O Tribunal deveria ter concluído que uma pena de prisão de 5 anos, suspensa por outros 5, realizava de forma adequada e suficientes as finalidades da punição. Na contra-motivação apresentada o Magistrado do Ministério Público pugna pela improcedência do recurso, com o fundamento de que, a ser atendida a impugnação, estar-se-á a contribuir para a degradação do sentido reprovador das penas. A Exm.ª Procuradora-Geral Adjunta emitiu douto parecer no qual se pronuncia no sentido da redução da pena para 6 anos de prisão, face ao grau de ilicitude do facto e ao grau de culpa. Mais entende que caso a pena venha a ser fixada em medida não superior a 5 anos de prisão, não deve ser objecto de suspensão na sua execução, por ausência dos pressupostos exigíveis. O recorrente não respondeu. Colhidos os vistos legais, cumpre decidir. *** Única questão submetida à apreciação deste Supremo Tribunal é a da medida e espécie da pena, entendendo o recorrente que a pena deve ser reduzida para 5 anos de prisão com suspensão da sua execução. Questão que oficiosamente se suscita é a da qualificação jurídica dos factos. O tribunal colectivo considerou provados os seguintes factos (1) «BB nasceu a 26 de Fevereiro de 1996 (2) Até 30 de Dezembro de 2006, viveu em casa dos respectivos avós maternos, no nº ... da Rua do Espírito Santo do Bairro das Laranjeiras, ..., em Ponta Delgada, com a mãe e o padrasto. Na mesma casa viviam AA e vários irmãos e sobrinhos que tem. Este AA é tio materno de BB. Depois de ter mudado de casa, BB continuou a recolher-se a casa dos avós, depois das aulas e ali era recolhida pela mãe, ao fim do dia, depois de largar o trabalho. AA dispunha de um jogo electrónico no seu quarto (playstation), mas só à BB permitia que o jogasse. BB passava a maior parte do seu tempo livre no quarto de AA e isso era tido pelos familiares como sinal de afeição e de paciência para com ela. Em dia não determinado do final do primeiro período do ano lectivo de 2006/2007, AA entrou no quarto e desligou o aparelho em que a menor jogava, sentada na cama. Deu-lhe ordem para que se calasse, quando lhe passou a despir as calças e as cuecas e a fazê-la deitar-se na cama. De seguida, baixou as suas próprias calças, agarrou o pénis, dirigiu-o à vulva de BB e deitou-se sobre ela, ficando os dois sexos em contacto. Com o pénis erecto e encostado ao órgão genital da menor fez pressão sobre ele, executou movimentos de avanço, de recuo e para os lados. BB quis gritar, mas ele tapou-lhe a boca com uma das mãos, mandou que se calasse e garantiu-lhe que se fosse contar o acontecido a alguém, que diria à respectiva mãe que tinha sido ela a obrigá-lo a fazer o que fazia. Cerca de duas semanas depois, BB brincava no quarto dele, sentada no chão, e ele entrou também, a dizer que queria falar com ela. BB levantou-se e, na ocasião AA baixou-lhe as calças e as cuecas, voltou a deitá-la na cama e a cobri-la com o seu corpo e repetiu os gestos já descritos. Em dado momento BB disse-lhe que ia contar à mãe o que lhe fazia, com o que ele se susteve, mas repetindo a afirmação de que, se o fizesse, lhe diria que fora ela a obrigá-lo, com o que a mãe se zangaria com ela. A partir daí, AA passou a mandar-lhe mensagens, pelo telefone, a dizer que gostava dela, que lhe oferecia o que quisesse, e outras com os dizeres: «dorme bem beijos», «se queres saber quando estou bem é só quando estou contigo», «estás a pensar em mim agora sinto-me só». AA era homem de 33 anos de idade e operário da construção civil, tendo a envergadura de um homem comum. Em ambas as situações, à força física de uma criança de 10 anos de idade, o arguido opôs a sua força e o seu volume de molde a que ela não pudesse afastar-se ou evitar a actuação dele. Foram estas mensagens que alertaram a mãe de BB para o que se pudesse passar entre ela e o tio. AA conhecia a idade de BB. Procedeu da forma descrita para satisfazer os seus apetites sexuais, de acordo com o que ele próprio decidia e queria, consciente de que tinha actuação que a lei penal proibia e punia. Mais se provou: que o arguido tem 34 (3) anos de idade e é solteiro. Cresceu no seio de uma família de estrato socio-económico modesto mas relativamente bem estruturado, sendo o terceiro de uma fratria de 13 elementos. Encetou o percurso escolar na idade própria, vindo a abandonar os estudos com 13 anos de idade e o 4º ano de escolaridade, como de resto aconteceu com todos os seus irmãos. Iniciou-se no mundo laboral com 14 anos de idade, como aprendiz de pedreiro, sem entidade patronal definida nem vínculo laboral minimamente estável, o que ainda hoje acontece. Tem um filho com 9 anos de idade, fruto de uma relação de união de facto que manteve, na casa de seus pais, mas que cessou quando o filho era ainda de tenra idade. O arguido é consumidor de bebidas alcoólicas, por vezes com abuso, sendo-lhe conhecidos comportamentos agressivos quando alcoolizado. Essa razão já determinou em várias ocasiões ter sido expulso de casa pelo progenitor. Actualmente, na sequência de se terem tornado conhecidos os factos deste caso, o arguido encontra-se proibido de entrar na casa paterna, tendo sido acolhido na casa de uma das suas irmãs, que é casada e tem duas filhas, com 7 e 6 anos de idade. AA encontra-se desempregado. É indivíduo com competências pessoais frágeis, não gerindo autonomamente a sua vida, tendo também dificuldades em assumir responsabilidades. Já foi anteriormente condenado, por dano, em 2001, por factos de 1998, em pena de multa, sendo-lhe perdoada por lei de amnistia a prisão subsidiária; e no mesmo ano de 2001, por factos de 1999, por resistência a funcionário, em pena de prisão substituída por multa». *** Qualificação Jurídica dos Factos Do exame da fundamentação do acórdão impugnado resulta ter o tribunal a quo qualificado os factos que deu como provados como um crime continuado de violação, sob o entendimento de que o conteúdo da acção preenchedor do crime de violação é a cópula, sendo esta entendida como «a penetração da vagina pelo pénis». Dos factos provados decorre que: «Em dia não determinado do final do primeiro período do ano lectivo de 2006/2007, AA entrou no quarto e desligou o aparelho em que a menor jogava, sentada na cama. Deu-lhe ordem para que se calasse, quando lhe passou a despir as calças e as cuecas e a fazê-la deitar-se na cama. De seguida, baixou as suas próprias calças, agarrou o pénis, dirigiu-o à vulva de BB e deitou-se sobre ela, ficando os dois sexos em contacto. Com o pénis erecto e encostado ao órgão genital da menor fez pressão sobre ele, executou movimentos de avanço, de recuo e para os lados. … Cerca de duas semanas depois, BB brincava no quarto dele, sentada no chão, e ele entrou também, a dizer que queria falar com ela. BB levantou-se e, na ocasião AA baixou-lhe as calças e as cuecas, voltou a deitá-la na cama e a cobri-la com o seu corpo e repetiu os gestos já descritos». Certo é que, tal como vem afirmado no acórdão recorrido, é elemento constitutivo do crime de violação, mais concretamente do tipo objectivo de ilícito, a ocorrência de cópula (coito anal ou coito oral), consistindo esta na penetração da vagina pelo pénis, pelo que o crime só se poderá ter por verificado perante introdução completa ou incompleta do órgão sexual masculino no órgão sexual feminino (4). Ora, os factos transcritos não permitem concluir que o recorrente AA penetrou com o seu membro viril o órgão sexual da menor, sua sobrinha, BB, consabido que penetrar é passar para dentro. Com efeito, ali se alude, apenas, a movimentos de avanço, recuo e para os lados, sem que se faça referência expressa à ocorrência de penetração, sendo certo que perante o desconhecimento da amplitude dos referidos movimentos a situação é de dúvida sobre se houve ou não introdução do pénis na vagina, dúvida que, face ao princípio geral de processo penal in dubio pro reo, terá de ser valorada em benefício do arguido, tanto mais que do relatório da perícia sexual efectuada no Instituto de Medicina Legal de Ponta Delgada (fls.112 a 115), datado de 22 de Março de 2007, consta que a menor BB possui hímen anelar com lacerações incompletas às 5 e 7 horas do mostrador do relógio, de bordos cicatrizados e com permeabilidade apenas a um dedo (indicador), mais constando do seu segmento conclusivo que as lesões referidas a nível da região genital são compatíveis com coito vaginal sob a forma tentada (5) Há pois que requalificar os factos, subsumindo-os à norma do n.º 1 do artigo 163º do Código Penal (6), norma que não foi alterada pela Lei n.º 59/07, de 4 de Setembro. *** Espécie e Medida da Pena Requalificados os factos há que proceder, obviamente, a nova operação de determinação da medida da pena, consabido que o crime de coacção sexual não é punível com pena igual à do crime de violação. Ao crime em apreço, agravado nos termos do n.º 4 do artigo 177º do Código Penal, cabe a pena de 1 ano e 4 meses a 10 anos e 8 meses de prisão (7) Culpa e prevenção, constituem o binómio que o julgador tem de utilizar na determinação da medida da pena – artigo 71º, n.º 1, do Código Penal. A culpa como expressão da responsabilidade individual do agente pelo facto e como realidade da consciência social e moral, fundada na existência de liberdade de decisão do ser humano e na vinculação da pessoa aos valores juridicamente protegidos (dever de observância da norma jurídica), é o fundamento ético da pena e, como tal, seu limite inultrapassável – artigo 40º, n.º 2, do Código Penal (8) Dentro deste limite a pena é determinada dentro de uma moldura de prevenção geral de integração, cujo limite superior é oferecido pelo ponto óptimo de tutela dos bens jurídicos e cujo limite inferior é constituído pelas exigências mínimas de defesa do ordenamento jurídico, só então entrando considerações de prevenção especial, pelo que dentro da moldura de prevenção geral de integração, a medida da pena é encontrada em função de exigências de prevenção especial, em regra positiva ou de socialização, excepcionalmente negativa ou de intimidação ou segurança individuais. É este o critério da lei fundamental – artigo 18º, n.º 2 – e foi assumido pelo legislador penal de 1995 (9) Com o crime de coacção sexual protege-se a autodeterminação sexual, bem como o direito à saúde. No caso vertente, sendo a ofendida BB uma menor com 10 anos de idade à data dos factos, o comportamento delituoso do arguido pôs em causa, também, o desenvolvimento natural da sua sexualidade e da sua personalidade do ponto de vista sexual (10) A ilicitude dos factos é de grau elevado, posto que à data dos factos, como já se deixou consignado, a menor BB tinha 10 anos de idade, a que acresce a circunstância de ser sobrinha do arguido. Quanto à culpa ela é intensa, situando-se em patamar superior, visto que o arguido sempre se comportou com dolo directo, para satisfação da sua lascívia e desejo sexual, aproveitando-se do facto de a menor frequentar a casa dos avós, passando largos períodos de tempo no quarto do arguido, ali se distraindo com um jogo electrónico. O arguido é consumidor de bebidas alcoólicas, por vezes com abuso, sendo-lhe conhecidos comportamentos agressivos quando alcoolizado. Não gere autonomamente a sua vida e tem dificuldades em assumir responsabilidades. Vive em casa de uma das irmãs. Tem um filho com 9 anos de idade. Possui o 4º ano de escolaridade. Encontra-se desempregado. Foi condenado por crimes de dano e de resistência sobre funcionário, praticados em 1998 e 1999. Em favor do arguido, à data dos factos com 33 anos de idade, nenhuma circunstância ocorre. As necessidades de prevenção geral são evidentes e prementes. De acordo com relatório recentemente divulgado pela Procuradoria-Geral da República, dado a conhecer este mês pelo jornal “Público”, os crimes sexuais contra menores triplicaram em Portugal entre 2002 e 2007, numa média de 1400 casos por ano. Sopesando todas as circunstâncias ocorrentes fixa-se a pena em 5 anos de prisão. * Eventual Aplicação do Instituto da Suspensão da Execução da Pena A lei fundamental em matéria de restrição de direitos, liberdades e garantias, impõe que a lei apenas restrinja aqueles valores nos casos expressamente previstos na própria Constituição e com a limitação de que as restrições terão de se circunscrever ao necessário para salvaguardar outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos – n.º 2 do artigo 18º. Tal significa que em matéria de privação da liberdade (11) , mais concretamente de aplicação de pena de prisão, esta só é admissível quando se mostre indispensável, isto é, quando o desiderato que visa prosseguir não puder ser obtido de outra forma menos gravosa (princípio da necessidade ou da exigibilidade), quando se revelar meio adequado para alcançar os fins ou finalidades que a lei penal visa com a sua cominação (princípio da adequação ou da idoneidade) e quando se revele quantitativamente justa, na justa medida, ou seja, não se situe nem aquém ou além do que importa para obtenção do resultado devido (princípio da proporcionalidade ou da racionalidade) (12) . Daqui que a lei substantiva penal mande suspender a execução da pena de prisão aplicada em medida não superior a cinco anos se, atendendo à personalidade do agente, às condições da sua vida, à sua conduta anterior e posterior ao crime e às circunstâncias deste, concluir que a simples censura do facto e a ameaça da prisão realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição – artigo 50º, n.º 1 –, o que significa que esta pena de substituição deve ser aplicada: a) Sempre que o julgador se convença, face à personalidade do condenado, suas condições de vida, comportamento global, natureza do crime e sua adequação a essa personalidade, que o facto cometido não está de acordo com essa personalidade e foi simples acidente de percurso esporádico, e que a ameaça da pena, como medida de reflexos sobre o seu comportamento futuro evitará a repetição de comportamentos delituosos (prevenção especial); e b) Desde que não coloque irremediavelmente em causa a necessária tutela dos bens jurídicos e a estabilização contrafáctica das expectativas comunitárias, ou seja, o sentimento de reprovação social do crime ou sentimento jurídico da comunidade (prevenção geral) (13) No caso vertente não se verifica, porém, qualquer um daqueles dois pressupostos. Vejamos. O crime de coacção sexual, facto típico que tutela a liberdade pessoal na esfera sexual e o direito à saúde, assume acentuada gravidade, sendo um dos crimes mais graves do nosso ordenamento jurídico-penal contra a liberdade e autodeterminação sexual. O dano ou efeito externo provocado é sempre elevado, especialmente em ofendidos impúberes, com destaque para os danos morais os quais se traduzem no prejuízo causado no desenvolvimento global do lesado, bem como no desenvolvimento da sua sexualidade e da sua personalidade do ponto de vista sexual. Por outro lado, o concreto contexto em que os factos ocorreram revela que o arguido AA possui uma personalidade carente de princípios éticos, visto que não se coibiu de satisfazer o seu desejo libidinoso em menor que é sua sobrinha, aproveitando-se do facto de a mesma frequentar a casa dos avós, passando largos períodos de tempo no seu quarto, ali se distraindo com um jogo electrónico. Foi condenado pela prática de crimes de dano e de resistência sobre funcionário. Não gere autonomamente a sua vida e tem dificuldades em assumir responsabilidades. Não se mostra que haja interiorizado o mal do crime, pois que não exteriorizou qualquer acto revelador de arrependimento e nem sequer assumiu aquele. Deste modo, não só não é admissível a formulação de um juízo de prognose positivo sobre o comportamento futuro do arguido AA, como o sentimento jurídico da comunidade exige que aquele cumpra em clausura a pena que lhe foi cominada, pois só assim se cumprem as exigências mínimas e irrenunciáveis de defesa do ordenamento jurídico (14) *** Termos em que se julga parcialmente procedente o recurso, por via da requalificação oficiosa dos factos, condenando o arguido AA como autor material de um crime continuado de coacção sexual, previsto e punível pelos artigos 30º, n.º 2, 163º, n.º 1 e 177º, n.º 4, do Código Penal (redacção pré-vigente), na pena de 5 anos de prisão. Custas pelo recorrente, fixando em 4 UCs a taxa de justiça. *** Oliveira Mendes (Relator) Maia Costa _________________ (1) O texto que a seguir se transcreve corresponde integralmente ao do acórdão recorrido. (2) Do texto do acórdão consta o ano de 1986 como sendo o do nascimento da ofendida BB, o que constitui um lapso, por isso se corrigindo nos termos do artigo 380º, n.ºs 1, alínea b) e 2, do Código de Processo Penal. (3) Do texto do acórdão consta a idade de 24 anos, tratando-se de outro lapso, que igualmente se corrige nos termos do normativo já referido. (4) É hoje pacífico este entendimento, razão pela qual a apelidada cópula vulvar ou vestibular, ou seja, o contacto externo dos órgãos sexuais masculino e feminino, não preenche o elemento objectivo do crime de violação, integrando, apenas, o elemento objectivo do crime de coacção sexual.. (5) Negrito por nós colocado. (6) Nada obsta à requalificação sem comunicação prévia ao arguido (n.º 3 do artigo 358º do Código de Processo Penal), visto que a alteração da qualificação jurídica operada consubstancia-se na imputação de crime menos grave, sem que ocorra qualquer modificação dos factos. No sentido da desnecessidade daquela comunicação em casos como o vertente, veja-se o acórdão deste Supremo Tribunal de Justiça de 91.04.03, publicado na CJ (STJ), XVI, II, 17 e o acórdão do Tribunal Constitucional de 97.04.17, proferido no Processo n.º 254/95 (7) Por efeito da alteração introduzida pela Lei n.º 59/07, de 4 de Setembro, a agravação subiu de um terço dos limites mínimo e máximo para metade (n.º 6 do artigo 177º), não sendo pois aplicável por manifestamente desfavorável ao arguido – artigo 2º, n.º 4, do Código Penal. (8) A pena da culpa, ou seja, a pena adequada à culpabilidade do agente, deve corresponder à sanção que o agente do crime merece, isto é, deve corresponder à gravidade do crime. Só assim se consegue a finalidade político-social de restabelecimento da paz jurídica perturbada pelo crime e o fortalecimento da consciência jurídica da comunidade – Cf. Claus Roxin, Culpabilidad Y Prevención En Derecho Penal (tradução de Muñoz Conde –1981),96/98.. (9) Vide Figueiredo Dias, Temas Básicos da Doutrina Penal – 3º Tema – Fundamento Sentido e Finalidade da Pena Criminal (2001), 104/111. Na esteira desta doutrina, entre muitos outros, o acórdão deste Supremo Tribunal de 04.10.21, na CJ (STJ), XII, III, 192. (10) Como refere Figueiredo Dias, Comentário Conimbricense do Código Penal, I, 541, a prática de actos sexuais com menor, em menor ou por menor de certa idade prejudica o desenvolvimento global do próprio menor. E como sublinha Karl Natscheradetz, O Direito Penal Sexual, 158, a plasticidade do instinto sexual faz com que o livre exercício da sexualidade [mormente nos primeiros estádios da vida], revista uma importância fundamental para o desenvolvimento da personalidade individual. (11) São os artigos 27º a 30º, da Constituição Política, que definem as situações em que o direito à liberdade pode ser restringido. (12) Cf. Gomes Canotilho/Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, I, 392/393 e Jorge Miranda/Rui Medeiros, Constituição Portuguesa Anotada, I, 162. (13) Neste preciso sentido se pronuncia Figueiredo Dias, Direito Penal Português – As Consequências Jurídicas do Crime, 344, ao referir que: «Apesar da conclusão do tribunal por um prognóstico favorável – à luz, consequentemente, de considerações exclusivas de prevenção especial de socialização –, a suspensão da execução da prisão não deverá ser decretada se a ela se opuserem “as necessidade de reprovação e prevenção do crime”. Já determinámos que estão aqui em questão não quaisquer considerações de culpa, mas exclusivamente considerações de prevenção geral sob a forma de exigências mínimas e irrenunciáveis de defesa do ordenamento jurídico. Só por estas exigências se limita sempre – o valor da socialização em liberdade que ilumina o instituto ora em análise.» (14) Tenha-se presente, como já se deixou consignado, que os crimes sexuais contra menores triplicaram em Portugal entre 2002 e 2007, numa média de 1400 casos por ano. . |