Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
03B3804
Nº Convencional: JSTJ000
Relator: LUÍS FONSECA
Descritores: CONTRATO DE PRESTAÇÃO DE SERVIÇOS
REVOGAÇÃO
IMPOSSIBILIDADE DO CUMPRIMENTO
ÓNUS DA PROVA
Nº do Documento: SJ200401150038042
Data do Acordão: 01/15/2004
Votação: UNANIMIDADE COM 2 DEC VOT
Tribunal Recurso: T REL LISBOA
Processo no Tribunal Recurso: 1371/02
Data: 02/20/2003
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA.
Decisão: NEGADA A REVISTA.
Sumário : I- Tendo o contrato de prestação de serviços sido celebrado no interesse de ambas as partes, não pode ser revogado unilateralmente pela ré, ora recorrente, dependendo de acordo, salvo havendo justa causa.
II- Não havendo justa causa nem acordo para a revogação, a denúncia unilateral do contrato não produz efeitos jurídicos, mantendo-se o contrato vigente.
III- Mantendo-se o contrato vigente, não tem aplicação o disposto no art. 1.172º do Cód. Civil que pressupõe a revogação válida do contrato.
IV- Quando a prestação se torna impossível por causa não imputável ao devedor, a obrigação extingue-se.
V- O credor não fica desobrigado da contraprestação quando a prestação se torna impossível por causa que lhe é imputável.
VI- Se o devedor tiver algum benefício com a exoneração, o valor do benefício é descontado na contraprestação.
VII- Compete à ré alegar e provar factos relacionados com o benefício auferido pela autora, decorrente da extinção da sua responsabilidade, pois trata-se de factos modificativos do direito da autora.
Decisão Texto Integral: Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:

A, "A" propôs acção de condenação contra B - Agência de Viagens e Turismo, Lda, pedindo a condenação da ré a pagar-lhe a quantia de 4.000.000$00 acrescida dos juros de mora já vencidos que, à taxa legal de 12%, perfazem o montante de 320.000$00 e os que entretanto se vencerem até integral pagamento.
Alega para tanto que, na sequência duma transacção judicial mediante a qual a autora se obrigou a pagar à ré a quantia de 39.555.000$00 acrescida de juros compensatórios, ambas as partes celebraram um acordo nos termos do qual a ora ré pagaria à ora autora a quantia de 4.000.000$00 para esta fazer publicidade daquela nos eventos do calendário desportivo oficial, devendo tal quantia ser paga no prazo de 30 dias a contar desse acordo, o que a ré não fez nesse prazo nem posteriormente, vindo a denunciar sem qualquer fundamento tal acordo, o que não podia fazer.
Contestou a ré, alegando que celebrou com a autora um contrato de "sponsoring", o qual se rege como uma prestação de serviços, nos termos do qual a autora se obrigava a publicitá-la em todos os eventos desportivos do calendário desportivo oficial, o que não fez, tendo a ré, face ao incumprimento da autora, perdido o interesse no contrato, razão porque o denunciou.
Replicou a autora, alegando que a ré nunca lhe forneceu o material publicitário, como lhe competia, para aquela fazer a publicidade, acrescentando que o contrato de "sponsoring" foi apenas um meio para a ré obter a transacção judicial, tendo já recebido a quantia de 39.555.000$00 por via de acordo entre o IDRAM e instituição bancária.
Saneado e condensado, o processo seguiu seus termos, realizando-se a audiência de julgamento.
Foi proferida sentença onde, julgando-se a acção procedente, se condenou a ré a pagar à autora a quantia de 4.000.000$00 acrescida de juros, à taxa legal, desde 3/6/00 até integral pagamento.
A ré apelou, tendo a Relação de Lisboa, por acórdão de 10 de Abril de 2003, negado provimento ao recurso, confirmando a sentença recorrida.
A ré interpôs recurso de revista para este Tribunal, concluindo, assim, a sua alegação do recurso:
1- O acórdão recorrido considera que incumbia à ora recorrente alegar e provar factos que, por modificativos do pedido da recorrida, pudessem ser tidos em consideração no sentido de se aferir dos benefícios auferidos pela recorrida com a exoneração e logo ser reduzido o montante do pedido efectuado.
2- Entende a ora recorrente que, no entanto e salvo melhor opinião, tal entendimento não pode ser aplicável ao caso sub judice, tendo, e bem, sido estabelecido que nos encontramos perante uma prestação de serviços sob a forma de mandato, prevista nos arts. 1170º a 1173º do C.C.
3- Na verdade as normas legais aplicáveis ao mandato prevêm no art. 1172º a obrigação de indemnização à parte não revogante do mandato «dos prejuízos que esta sofrer».
4- Não se prevê ali qualquer correspondência automática por força da lei de que o prejuízo sofrido seja considerado, desde logo, qualquer contraprestação ainda em falta à data da revogação do mandato, como sucede em vulgar contrato bilateral.
5- Incumbia, assim, à recorrida alegar e provar factos que consubstanciassem os prejuízos que entendesse ter sofrido.
6- A recorrida nunca alegou e logo provou quaisquer factos nesse sentido que lhe configurasse e liquidasse uma indemnização a receber.
7- Não o fez nem resultou da matéria de facto provada qualquer matéria no sentido delimitado supra pois a recorrida nem efectuou qualquer publicidade nos eventos que organizou - vide resposta à matéria de facto.
8- Na verdade a recorrida nada fez para quantificar eventual indemnização pela revogação do mandato, nem a título de danos patrimoniais ou danos emergentes ou lucros cessantes, na verdade nem os alegou.
9- Pelo que o acórdão, ao julgar improcedente a apelação apresentada, não deu correcta aplicação ao art. 1172º do Cód. Civil, violando-se, assim, as alíneas c) e d) do nº 1 do art. 668º do C.P.C.
Contra-alegou a recorrida, pronunciando-se pela improcedência do recurso.
Corridos os vistos, cumpre decidir.
Estão provados os seguintes factos:
1- Na acção declarativa de condenação nº 5/99 que correu seus termos no 2º Juízo do Tribunal Judicial do Funchal, vieram os ora autor e réu formalizar a transacção que consta da certidão junta com a petição inicial, que se dá por reproduzida.
2- A transacção foi homologada e, em conformidade com ela, a A constituiu-se na obrigação de pagar à B a quantia de 39.555.000$00 acrescida de juros compensatórios.
3- Estipulando as partes para pagamento da dívida, o prazo de 6 anos em 72 prestações mensais, conforme mapa subscrito por ambas as partes e demais condições estipuladas.
4- A par desta transacção, a autora e a ré, na mesma data e em simultâneo, celebraram um acordo onde se estipulou, na cláusula 3ª, que a ré pagaria a quantia de 4.000.000$00 à autora para esta realizar a publicidade pretendida por aquela nos eventos de calendário desportivo oficial.
5- Mais se estipulou que a referida quantia deveria ser paga no prazo de 30 dias a contar desse acordo.
6- O acordo data de 4 de Maio de 2.000.
7- Deveria, pois, a prestação de 4.000.000$00 a que a ré se obrigou, ter sido paga à autora até ao dia 3 de Junho de 2000.
8- A ré, em 20 de Novembro de 2.000, por carta enviada à autora, denunciou a referida cláusula 3ª do acordo.
9- Desde 4 de Maio de 2.000 até 20 de Novembro do mesmo ano, a autora organizou e promoveu diversas provas nacionais e internacionais de grande relevo, entre as quais a Volta à Ilha da Madeira em Bicicleta e a Volta à Ilha do Porto Santo em Bicicleta.
10- A ré não fez o pagamento referido em 4.
11- Em nenhum dos eventos referidos em 9, a autora publicitou ou apresentou qualquer forma de difusão publicitária da ré.
12- Cabia à ré fornecer à autora o material publicitário, designadamente tarjas e outros objectos, assim como a ela cabia a escolha do conteúdo informático ou publicitário adequado para si.
13- E sempre foi assim.
14- A autora era uma executora da publicidade pretendida pela ré.
15- Desde a data do acordo, a ré propositadamente nada fez, não entregando à autora o material da publicidade pretendida pela ré.
16- A transacção R. referida em 1, foi um meio utilizado pela ré para receber, como recebeu, a quantia de 39.555.000$00, por via de acordo entre o IDRAM e uma instituição bancária.
17- A autora viu-se privada de parte substancial dos subsídios que vinha recebendo do IDRAM, destinados a amortizar aquela importância de 39.555.000$00.
É pelas conclusões da alegação do recurso que se delimita o seu âmbito - cfr. arts. 684º, nº 3 e 690º, nº 1 do C.P.C.
A questão suscitada neste recurso respeita a saber se a quantificação da indemnização resultante da revogação do mandato depende de alegação e prova, feita pelo mandatário, dos prejuízos sofridos, não constituindo, por si só, a falta de pagamento de qualquer contraprestação o prejuízo indemnizável.
Que dizer ?
Entre as partes foi celebrado um contrato de patrocínio publicitário desportivo, vulgarmente designado por contrato de "sponsoring", o qual consiste no financiamento de uma actividade desportiva, tendo como contrapartida a publicitação (promoção do nome, imagem e actividades) da entidade que financia.
Este contrato enquadra-se na figura de prestação de serviços, aplicando-se-lhe, quanto à denúncia, o regime do art. 1.170º do Cód. Civil (Diploma a que se referem as normas a seguir indicadas sem outra menção) por força do que dispõe o art. 1.156º.
Tal contrato foi celebrado no interesse de ambas partes como se verifica da sua cláusula 3ª - A A, contra o pagamento da quantia de 4.000.000$00, por parte da B, a ser efectuada dentro de trinta dias a partir de hoje, obriga-se a realizar a publicidade pretendida pela B nos eventos desportivos de calendário desportivo oficial no período constante do mapa anexo à transacção judicial referida na cláusula 1ª .
Tendo o contrato sido celebrado no interesse de ambas as partes, não pode ser revogado unilateralmente pela ré, ora recorrente, dependendo do acordo da outra parte, salvo havendo justa causa - cfr. art. 1.170º, nº 2.
Neste caso não há justa causa para a revogação unilateral do contrato (visto que a publicidade não foi efectuada pela autora porque a ré propositadamente não lhe forneceu, conforme lhe competia, o material publicitário) nem acordo das partes para a revogação.
Portanto a denúncia do contrato, efectuada pela ré, não produz efeitos jurídicos, mantendo-se o contrato vigente.
E assim não tem aplicação o disposto no art. 1.172º, como a ré pretende, porque a revogação do contrato, por esta efectuada, é ineficaz, não produz efeitos jurídicos.
Como a ré não forneceu o material publicitário à autora, conforme lhe competia, ficou esta impossibilitada de cumprir a prestação a que estava vinculada por causa que lhe não é imputável, extinguindo-se a sua obrigação - cfr. art. 790º, nº 1.
A prestação da autora tornou-se impossível por causa imputável à ré que não forneceu o material publicitário, pelo que esta (a ré) não fica desobrigada da contraprestação de 4.000.000$00 - cfr. art. 795º, nº 2.
A ré apenas tem direito a ver descontada na sua prestação (4.000.000$00) o valor do benefício que a autora tenha com a exoneração - cfr. citado art. 795º, nº 2.
Competia à ré alegar e provar factos relacionados com o benefício auferido pela autora, decorrente da extinção da sua responsabilidade, pois trata-se de factos modificativos do direito da autora - cfr. art. 342º, nº 2 -, não o tendo feito.
Assim sendo, suporta as desvantajosas consequências de não ter satisfeito o ónus de alegar e provar tais factos.
Como ensina o Prof. Manuel de Andrade, "Noções Elementares do Processo Civil", ed. de 1976, págs. 195 e 196, « O onus probandi respeita aos factos da causa, distribuindo-se entre as partes segundo certos critérios.
Traduz-se, para a parte a quem compete, no encargo de fornecer a prova do facto visado, incorrendo nas desvantajosas consequências de se ter como líquido o facto contrário, quando omitiu ou não logrou realizar essa prova; ou na necessidade de, em todo o caso, sofrer tais consequências se os autos não contiverem prova bastante desse facto (trazida ou não pela mesma parte).»
Acrescenta-se que o acórdão recorrido não padece dos vícios previstos no art. 668º, nº 1, als. c) e d) do C.P.C. que lhe são imputados pela ré, ora recorrente.
Com efeito, a decisão está conforme aos fundamentos e há pronúncia sobre todas as questões que devia apreciar, excepto aquelas que ficaram prejudicadas pela solução dada às que foram conhecidas - cfr. art. 660º, nº 2 do C.P.C.
Na verdade, não sendo a denúncia unilateral do contrato válida, não podendo o contrato ser revogado por única vontade da ré, não há lugar a indemnização com fundamento no art. 1.172º, tornando-se inútil solucionar a questão de saber a quem competia, neste caso, o ónus de alegar e provar o prejuízo.
Improcedem, pois, as conclusões do recurso.
Pelo exposto, nega-se a revista, confirmando-se o acórdão recorrido.
Custas pela recorrente.

Lisboa, 15 de Janeiro de 2004
Luís Fonseca
Lucas Coelho (nos termos da declaração infra)
Santos Bernardino


Declaração de voto

Ao invés do entendimento expresso no presente acórdão, e conforme a doutrina e a jurisprudência deste Supremo, considero - com os inerentes implicações na decisão - não se poder no caso sub indicio falar de mandato (por remissão) no interesse também do mandatário (mandato in rem proprium, que de interesse comum), com o sentido do nº 2 do artigo 1170º do Código Civil, pelo mero facto de o contrato ser remunerado, ou pelas vantagens patrimoniais e sociais dele emergentes para a Associação Desportiva da Madeira. Para maiores desenvolvimentos permito-me reenviar a questão para o recente acórdão, de 11 de Dezembro de 2003, na revista nº 3634/02, da 2ª Secção.
Lucas Coelho