Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
07B2964
Nº Convencional: JSTJ000
Relator: PIRES DA ROSA
Descritores: CONVENÇÃO DE CHEQUE
RESCISÃO
ÓNUS DA PROVA
DANOS
ÓNUS DE ALEGAÇÃO
Nº do Documento: SJ200710250029647
Data do Acordão: 10/25/2007
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Sumário :
1 - Ao banco que decide a rescisão da convenção de cheque, compete a alegação e prova de que cumpriu os caminhos do Dec.lei nº454/91, de 28 de Dezembro, alterado pelo Dec.lei nº316/9, de 19 de Novembro até essa rescisão.
2 – Se o não fez, e rescindiu a convenção sem percorrer esses caminhos, cumpriu defeituosamente o contrato de cheque.
3 – E se comunica essa rescisão ao Banco de Portugal, fazendo entrar o seu cliente na “lista de utilizadores de risco”, responderá perante ele pelos danos, patrimoniais e não patrimoniais, que daí advierem.
4 – Alegar apenas que se sofreram « danos patrimoniais – prejuízos e danos materiais sérios – no exercício da sua actividade comercial e negocial », pedindo com base nisso uma determinada indemnização é fazer um alegação vazia, um pedido ... sem factos.
Decisão Texto Integral:

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:


AA
instaurou, em 25 de Fevereiro de 2000, no Tribunal Judicial da Golegã, contra
BANCO ..., S.A.
acção ordinária, que recebeu o nº50/00, pedindo a condenação do réu a pagar-lhe a quantia de 30 000 000$00 ( 10 000 000$00 por danos morais, 20 000 000$00 por danos patrimoniais ), alegando em suma:
subscreveu um cheque do BFE que foi devolvido por falta de provisão, tendo o ... comunicado a rescisão da convenção ao Banco de Portugal;

reclamou da decisão de rescisão da convenção, alegando que a apresentação que deu causa à rescisão ocorreu após o decurso do prazo de apresentação;
não devia ter sido incluído na listagem do Banco de Portugal o que foi reconhecido pelo ... e pelo Banco de Portugal, uma vez que não estavam reunidos os pressupostos legais determinantes da rescisão da convenção;

a entrada indevida do autor na listagem de utilizadores de cheque que oferecem risco, totalmente imputável ao ... e assumida por este, causou-lhe sérios e graves prejuízos;

ficando por isso limitado na sua actividade negocial e comercial, como o fazia até à altura dos factos;

dirigiu-se a algumas instituições de crédito a fim de obter empréstimos, nomeadamente ao Banco Santander, obtendo sempre como resposta « não lhe podemos conceder crédito, porque o senhor tem aqui um incidente ainda recente ... »;

também quis comprar uma viatura através de leasing e obteve também como resposta « não lhe vendemos a viatura porque o senhor tem um incidente ainda recente ... »;

quis abrir conta e os bancos, à excepção do Montepio Geral, davam-lhe como resposta « não o queremos como cliente, porque o senhor tem aqui um incidente recente .. »;

quer fazer negócios e exercer a sua actividade comercial e não o consegue, ficando assim limitado, devido ao incidente originado e causado pelo ...;

sofreu profunda humilhação, que lhe provocou não só intensa dor psicológica como moral.

Contestou o réu a fls.48, em resumo para dizer motivadamente impugnar os factos alegados pelo autor, dizendo além do mais que a rescisão da convenção de cheque bem como a sua comunicação ao Banco de Portugal foi lícita e obedeceu ao preceituado na Lei Uniforme sobre Cheques.

Após uma tentativa de conciliação frustrada ( fls.167 ), foi elaborado a fls.292 o despacho saneador, com alinhamento dos factos assentes e fixação da base instrutória.

Efectuado o julgamento, com respostas no despacho de fls.417, foi proferida a sentença de fls.422 a 427 que julg|ou| a acção improcedente por não provada e, por consequência, absolv|eu| do pedido o réu Banco ..., S.A.

Inconformado, o autor interpôs recurso de apelação.
O Tribunal da Relação de Évora, por acórdão de fls.477 a 485, julg|ou| procedente e provada a apelação e, revogando a sentença recorrida, conden|ou| a ré ..., S.A. a pagar ao autor AA
a importância que se vier a liquidar em execução de sentença correspondente ao valor de metade do prejuízo sofrido por não lhe terem sido concedidos os empréstimos que solicitou, enquanto o seu nome figurasse na lista negra da utilização de cheques que oferecem risco;
a quantia de 1 125,00 euros a titulo de indemnização por danos não patrimoniais.
É agora a vez de o réu ..., S.A. se não conformar e pedir revista para este Supremo Tribunal.
Alegando a fls.503, apresenta o recorrente as seguintes CONCLUSÕES:
a) o Recorrido-A. fundou a sua pretensão por colagem a uma decisão administrativa da Comissão Nacional de Protecção de Dados, sustentando que "não devia ter sido incluído na listagem do Banco de Portugal"... "Facto esse reconhecido mais tarde pelo ... e Banco de Portugal, uma vez que não estavam reunidos os pressupostos legais determinantes da rescisão da convenção em relação ao cheque" que subscreveu;
b) Ao invés do que o A. afirma, o Recorrente nunca reconheceu tal "facto", antes se limitou (por não ter qualquer intuito persecutório contra o A. ) a não reagir contra uma deliberação - meramente administrativa - que embora errada, por não tomar em conta a primeira apresentação do cheque a pagamento, o não afectava;
c) De resto, a douta sentença da 1ª Instância explana com pormenor os regimes legais aplicáveis, que se sucederam, em sede de rescisão de convenção de cheque, e ao invés do que se passa no Acórdão, enquadra correctamente o caso dos autos, concluindo no sentido de que o réu não praticou qualquer ilícito;
d) O Acórdão recorrido "encontrou" assim uma "Culpa" do réu (Recorrente) que não existe, muito menos, à luz dos pressupostos constitutivos da responsabilidade conforme os define o artigo 483°, nº1 do C. Civil;
e) Não só o A. Recorrido não logrou provar que o Recorrente tenha praticado facto ilícito e culposo, como também não demonstrou que o seu bom nome, a sua reputação e a sua imagem tenham resultado prejudicados pela actuação do Recorrente;
f) Quem no caso, teve conduta ilícita foi o próprio A., que emitiu o cheque sem lhe dar adequada provisão, como aliás já fizera outras vezes;
g) O Recorrido não alegou sequer (e cabia-lhe fazê-lo - cfr. artigo 342° do CCivil) quais os danos morais, psíquicos e materiais concretamente sofridos (cfr. artigo 487° do CCivil), limitando-se a invocá-los na P.I. como uma classe global.
Contra – alegando a fls.517 defende o recorrido a manutenção da decisão recorrida.
Estão corridos os vistos legais.
Cumpre apreciar e decidir.

FACTOS:
1. O autor subscreveu o cheque n.º 1032246078 do BFE em 15/10/97;
2. Apresentado a pagamento na data da sua emissão, foi devolvido, por falta de provisão em 17.10.1997;
3. O R. comunicou a rescisão da convenção ao Banco de Portugal em 02/03/98, tendo o A. entrado na listagem do Banco de Portugal a partir de 09.03.1998.
4. O R. solicitou ao Banco de Portugal, a anulação da rescisão;
5. A anulação referida em 4. foi tomada pelo Banco de Portugal em 09/11/98, tendo sido de imediato, difundida pelo sistema bancário;
6. O A. apresentou queixa contra o ..., S.A. na Comissão Nacional de Protecção de Dados (CNPD) em Lisboa – Proc. n.º 309/98, da qual resultou a deliberação n 5/99, com o teor de fIs.10 a 12;
7. A deliberação da CNPD foi acatada pelo R.;
8. O A. é sócio da sociedade BEM–BEM – Sociedade Comercial de Calçado e Confecções, Lda., sendo na data dos factos sócio gerente da sociedade;
9. O A. reclamou da decisão de rescisão da convenção referida em 3., invocando que “a apresentação do cheque a pagamento que deu causa à referida rescisão ocorreu após o decurso do prazo da apresentação a que se refere a Lei Uniforme Relativa ao Cheque”;
10. Com o referido em 3. o A. ficou limitado de exercer a sua actividade negocial e comercial como o fazia até à altura dos factos;
11. O autor dirigiu-se a dois bancos para obter empréstimos, sendo um deles o Banco Santander, onde lhe foi dito que enquanto estivesse na lista negra não haveria crédito.
12. O autor sofreu humilhação e, no ano de 1998, agravaram-se problemas do foro psiquiátrico de que padecia anteriormente.
13. Após o referido em 2. o cheque foi reapresentado a pagamento em 16.01.98 e em 29.01.98;
14. Sendo igualmente devolvido, em 19.01 e 30.01.98, por falta de provisão.
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É preciso antes de mais que se diga – e nunca se disse embora sempre estivesse pressuposto – que o ... “sucedeu” ao BFE - veja-se, por exemplo, a carta de fls.231.
E, quanto a esta questão, por aqui nos ficamos...
Depois:
em 15 de Outubro de 1997 o autor subscreve o cheque nº1032246078 do BFE;
esse cheque é apresentado a pagamento em 17 de Outubro seguinte, apresentado portanto a pagamento no prazo legal de oito dias previsto no art.29º da LUCheques, e é devolvido por falta de provisão.
De acordo com o disposto no Dec.lei nº454/91, de 28 de Dezembro, então em vigor, e concretamente o seu art.1º, nº1 as instituições de crédito devem rescindir qualquer convenção que atribua o direito de emissão de cheques, quer em nome próprio quer em representação de outrem, por quem, pela respectiva utilização indevida, revele pôr em causa o espírito de confiança que deve presidir à sua circulação.
A rescisão de convenção de cheque é, porém, uma questão particularmente grave para quem se movimenta no comércio jurídico hodierno.
E por isso, e porque é preciso defender o utilizador do cheque contra algum lapso ou irreflexão, a lei não põe na livre decisão da instituição de crédito que com alguém celebra essa convenção a definição do que seja pôr em causa o mencionado espírito de confiança.
E diz no nº2 do mesmo artigo:
Presume-se que põe causa o espírito de confiança que deve presidir à circulação do cheque toda a entidade que, em nome próprio ou em representação de outrem, saque ou participe na emissão de um cheque sobre uma conta cujo saldo não apresente provisão suficiente e o emitente não proceda à sua regularização nos dez dias seguintes à recepção da notificação pelo banco daquela situação.
Ora bem:
sem que demonstre ( ou sequer alegue ) que fez ao seu cliente ora autor esta notificação, a notificação que lhe abriria a porta à regularização possível e exigível, o ... acabou por comunicar ao Banco de Portugal a rescisão da convenção de cheque.
Com a agravante de que a fez não na sequência da apresentação a pagamento ( legalmente tempestiva ) em 17 de Outubro de 1997 do cheque emitido em 15, mas tão só em 2 de Março de 1998, já depois de o mesmo cheque ter sido reapresentado a pagamento em 16.01.98 e em 29.01.98 e igualmente devolvido, em 19.01 e 30.01.98, por falta de provisão.
O que não é despiciendo.
Em 19 de Novembro de 1997 foi publicado o Dec.lei nº316/97 que altera o Dec.lei nº454/91 e teve como efeito, designadamente, fazer chegar à “listagem de utilizadores de cheque que oferecem risco” a publicar pelo Banco de Portugal de imediato aquela entidade que tenha sido objecto de uma e uma só rescisão de cheque e não apenas aquela que tenha apenas duas rescisões de cheque – tudo como resulta da alteração do nº1 do art.3º do Dec.lei.
De uma só penada, “recuperando” um cheque devolvido sem provisão, no prazo legal de apresentação, no universo legislativo do original diploma de 1991, ou “usando” um cheque devolvido sem provisão, verificada em momento posterior ao prazo legal de apresentação, o ... conduziu o seu cliente ora autor à listagem dos utilizadores de risco publicada pelo Banco de Portugal.
Em qualquer dos casos – repete-se – sem que o ... tenha demonstrado ou tenha sequer alegado que cumpriu o caminho da notificação com a qual o autor podia ter suprido a sua falta e sem a qual se viu conduzido a uma situação gravosa sem tal oportunidade lhe ter sido dada. Tanto mais que, no universo introduzido pelo Dec.lei nº316/97 – art.1-A do Dec.lei nº454/91 – a notificação deve conter, para além da indicação do prazo ( agora de 30 dias, antes de 10 ) e do local para a regularização da situação, a advertência de que a falta de regularização ... implica a rescisão da convenção...
Sem essa, detalhada e rigorosa, notificação não podia o banco presumir, como já se disse, a falta do espírito de confiança que deve presidir à circulação do cheque.
Ora, ao banco competia o ónus da prova de ter cumprido o caminho da licitude até à rescisão e à comunicação dela, a originar a entrada do seu cliente na listagem dos utilizadores de risco.
Porque do que se trata quando se fala da convenção de cheque é – veja-se o acórdão deste STJ ( Urbano Dias ), de 21 de Fevereiro de 2006, no proc. nº05A4092, in www.dgsi.pt/jstj - de um “contrato de cheque” do qual nascem direitos e obrigações para ambos os contratantes, o banco e o seu cliente, competindo a cada qual, no âmbito da chamada responsabilidade contratual, a prova do cumprimento não defeituoso das obrigação que a si mesmo cabe.
Ora, para além de todas as outras – e considerado que o universo contratual inerente à convenção não pode deixar de ser beijado pelo regime legal do Dec.lei nº454/91 e da sua alteração - uma das obrigações que nasce para o banco é não rescindir a convenção e não comunicar essa rescisão ao banco de Portugal sem se assegurar da perda do espírito de confiança percorrendo o caminho notificativo desenhado nesses diplomas legais.
Sendo embora extracontratual a responsabilidade do banco perante o autor, pois a ilicitude da sua conduta se desenvolve já fora do contrato, a verdade é que esse comportamento extracontratual nasce dentro do contrato. E portanto ao banco, tal como o dispõe o art.799º do CCivil, compete o ónus de alegar e provar que só passou para fora no rigoroso cumprimento do que, dentro, acordara com o seu cliente.
É um caso nítido de imbricação das responsabilidades contratual e extracontratual: no desrespeito de uma obrigação contratual o ... iniciou um ilícito caminho extracontratual.
Ora,
prescreve o art. 483º, nº1 do CCivil:
aquele que, com dolo ou mera culpa, violar ilicitamente o direito de outrem ou qualquer disposição legal destinada a proteger interesses alheios, fica obrigado a indemnizar o lesado pelos danos resultantes da violação.
Estão verificados o facto e a ilicitude da conduta do ....
Haverá o dano? E o nexo de imputação entre o facto e o dano?
Há claramente um dano, um dano não patrimonial.
E um nexo de imputação entre o facto e o dano, embora não exclusivo do ... uma vez que o acórdão recorrido fixou em 50% a responsabilidade do próprio autor na produção do dano e, nessa parte, não vem o mesmo posto em causa.
O facto de o réu ver incluído o seu nome – sem ter podido evitá-lo a posteriori, apesar da sua inicial conduta desviante ( mas essa fica na medida da sua co-responsabilização definida e aceite em 50%, como se disse ) – na listagem dos utilizadores de risco do banco de Portugal, de ter entrado em dois bancos e de lhe ter sido dito que não havia empréstimos enquanto estivesse na lista negra, de ter sofrido essa humilhação e de ter ficado limitado na sua actividade comercial e negocial nos termos em que a exercia até então ( não já no agravamento dos problemas do foro psiquiátrico de que padecia até então porque, tal como consta do ponto 12 da fundamentação, não está traduzido em factos a ligação entre a humilhação e esse agravamento ), atinge o seu património moral de forma grave a justificar uma indemnização nos termos previstos nos arts.484º e 493º, nº1 do CCivil.
Mas este, o dano não patrimonial, é o dano que existe.
Porque nenhum dano patrimonial o recorrido provou. Aliás, nem mesmo o alegou.
Alegar nos termos em que o autor o fez é ... não alegar nada.
É apenas atirar um número – alto - para um alegação ... vazia.
Dizer-se, como diz o autor, que « pelos danos patrimoniais – prejuízos e danos materiais sérios – no exercício da sua actividade comercial e negocial » se pede uma indemnização de 20 000 000$00 é nada dizer.
Porque exactamente o que se procura é saber se houve “prejuízos e danos materiais sérios”.
Essa seria tão só a conclusão a que se chegaria se alinhasse o autor factos que, provados ainda que não quantificados, como tais pudessem qualificar-se.
Nem mesmo o dizer-se – e provar-se – que se ficou limitado de exercer a actividade negocial e comercial como até então ou que se viram recusados empréstimos em dois bancos, preenche essa falta.
Porque a pergunta é sempre a mesma: e quais foram os concretos danos que daí derivaram ( para além de um natural desgosto ou constrangimento já considerado no dano não patrimonial ) e que naturalmente o autor não podia deixar de conhecer quando formulou o seu pedido?!
Nessa parte, na parte respeitante a um pretenso dano patrimonial, o que está formulado pelo autor não é sequer um pedido genérico (eventualmente formulado ao abrigo do disposto no art.471º, nº1, al. b ) do CPCivil ) mas um pedido ... sem factos.
E sem factos não há indemnização.
Fica então só e apenas o dano não patrimonial. Cuja quantificação, em termos de equidade, se tem como adequada nos termos em que vem feita no acórdão recorrido - « montante de 2 500,00 euros e, dada a co-responsabilidade do lesado já fixada, a indemnização a ele devida será de 1 250,00 euros ».
~~
D E C I S Ã O
Na parcial procedência do recurso,
concede-se em parte a revista e revoga-se o acórdão recorrido na parte em que condena o réu ..., S.A. a pagar ao autor AA « a importância que se vier a liquidar em execução de sentença ... », mantendo-se condenação na indemnização a título de danos não patrimoniais, que se fixa em 1 250,00 euros.
Custas a cargo de autor e réu, aqui e nas instâncias, na proporção do vencido, sem prejuízo do apoio judiciário de que beneficia o autor.


25 de Outubro de 2007

Pires da Rosa (Relator)
Custódio Montes
Mota Miranda