Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça | |||
Processo: |
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Nº Convencional: | JSTJ000 | ||
Relator: | PEREIRA MADEIRA | ||
Descritores: | CHEQUE FALSIFICAÇÃO DE TÍTULO DE CRÉDITO SACADOR ASSINATURA ASSINATURA ILEGÍTIMA DE CHEQUE FALSIFICAÇÃO DE DOCUMENTO ALTERAÇÃO DA QUALIFICAÇÃO JURÍDICA INCRIMINAÇÃO | ||
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Nº do Documento: | SJ200402260002545 | ||
Data do Acordão: | 02/26/2004 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Tribunal Recurso: | T J VALONGO | ||
Processo no Tribunal Recurso: | 19/00 | ||
Data: | 09/18/2002 | ||
Texto Integral: | S | ||
Privacidade: | 1 | ||
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Meio Processual: | REC PENAL. | ||
Decisão: | REJEITADO O RECURSO. | ||
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Sumário : | I - A aposição da assinatura do agente num módulo de cheque que sabia não ser seu para com o cheque assim preenchido proceder à compra de um bem constitui um acto de falsificação material, melhor, de alteração de documento expressamente prevista na al. a) do art. 256.º do CP. II - Em tal caso, a falsificação na modalidade referida, consistiu na aposição, sem qualquer legitimidade, da respectiva assinatura em cheque que só podia ser assinado pela titular da respectiva conta. III - Estando o arguido acusado pela co-autoria material de um crime p. e p. pelo artigo 256.º, n.ºs 1 al. a), e 3, do Código Penal, não há alteração da qualificação jurídica, se, rigorosamente pelos mesmos factos constantes da acusação, o tribunal o condena pela co-autoria material de um crime p. e p. citado artigo 256.º, n.º 1, al. b) e 3, porquanto a diferença entre as duas incriminações respeita, apenas, a uma das modalidades de falsificação (que só por razões de forma não estão descritas no próprio corpo do n.º 1 e aparecem separadas por alíneas), mantendo-se o que, no caso, é o essencial da qualificação, ou seja, a referência aos n.ºs 1 e 3 do mesmo preceito. | ||
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Decisão Texto Integral: | Acordam no Supremo Tribunal de Justiça 1. O Ministério Público acusou o arguido A, devidamente identificado, imputando-lhe a prática de dois crimes, em concurso real, um de burla, p. e p. pelo art.º 217.°, n.º 1; outro de falsificação de documento, p. e p. pelo art.º 256.°, n.º 1, a) e n.º 3, todos do C.Penal, porquanto, em síntese, num estabelecimento comercial adquiriu artigos (antenas parabólicas e descodificadores) para cujo pagamento entregou um cheque de terceira pessoa que assinou como se fosse ele o seu titular legítimo. Efectuado o julgamento veio a ser proferido acórdão em que, além do mais, foi decidido julgar totalmente procedente, por provada, a parte respectiva da acusação do Ministério Público, e, em consequência, condenar o arguido como autor material, de um crime de falsificação de documento, p. e p. pelo art.º 256.°, n.ºs 1, alínea b) e n°. 3, C. P., na pena de 1 (um) ano e 6 (seis) meses de prisão. Inconformado, recorre o arguido ao Supremo Tribunal de Justiça assim delimitando o objecto do seu recurso: 1. O presente recurso cinge-se a uma questão de direito, a de saber se a comprovada conduta do arguido, que assina com o seu próprio nome, um cheque alheio, não sendo titular da conta integra um crime de falsificação de documento, previsto e punível pelo artigo 256° , n.º 1 alínea b) e n.º 3 do Código Penal. 2. O Tribunal a quo entendeu, que sim, que esta conduta seria punível. 3. O arguido entende que não, porquanto: 4. Ficou provado que o arguido apôs no cheque a sua assinatura sem qualquer disfarce. 5. Quando alguém que não é titular da conta sacada, emite um cheque, nele inscrevendo a sua assinatura, sem disfarce e sem sequer pretender imitar a assinatura do titular da conta sacada, não comete o crime de falsificação de documento. 6. Sustentando esta opinião está o acórdão da relação do Porto de 21 de Abril de 1999 in CJ ano XXIV, 1999, tomo II, pág. 232 e B, cheque sem provisão, 1998, Coimbra editora, pág. 119 e 120. 7. Em face do disposto pelo art.º 1.°, n° 6 da lei do cheque, a assinatura do sacador é elemento essencial do cheque, o qual não poderá valer enquanto tal, se carecido deste elemento. A assinatura é um facto jurídico relevante. 8. O cheque dos autos foi assinado por quem não é titular da conta, por quem não tem legitimidade para dar a ordem de pagamento ao Banco sacado. 9. In casu o nome que consta do rosto do cheque é de uma senhora e foi o arguido que o preencheu e assinou, como resulta provado. 10. E o que a lei designa por um "falso grosseiro". 11. Há um preenchimento abusivo do cheque, mas não se verifica a incriminação por falsificação. 12. A assinatura constante do cheque não consta da ficha de assinaturas do Banco, logo tal cheque nunca seria pago. O Banco não iria ser convencido a pagar o cheque. 13. O documento não produz efeitos como cheque. 14. Não cria este cheque um facto juridicamente relevante. 15. Não produz com ele qualquer ordem e pagamento. 16. A viciação era facilmente perceptível tanto para o Banco sacado (que não iria proceder ao pagamento de qualquer importância) como também para a aqui ofendida. 17. A empregada da loja que aceita como meio válido de pagamento tal cheque, tem que aferir da titularidade da conta, se o titular que figura do cheque corresponde a quem o assina, cabe-lhe a ela aceitar ou não o cheque como meio de pagamento. 18. Um cheque assinado por quem não é titular, não afecta nem mais nem menos a credibilidade do título, do que a existência ou não de fundos para proceder ao seu pagamento. 19. E o risco normal do tráfico jurídico, risco que o aceitante do cheque quer assumir ou não. 20. Não afecta em nada a circulação cambiária. 21. Não há sequer prejuízo patrimonial, o banco sacado nunca iria proceder ao pagamento do cheque. 22. Não actuou o arguido com a intenção de obter para si ou para outrem benefícios ilícitos. 23. Situação diferente se o arguido tentasse imitar a assinatura de um titular da conta. 24. O arguido entende que não estão preenchidos os requisitos do crime de falsificação, logo não há crime. 25. Assim, sendo certo que perante terceiros, o arguido assume falsamente, a qualidade de sacador do cheque, não é menos certo que tal comportamento representa fraude a que se reporta o crime de burla. 26. A aposição da assinatura, não tem a intenção de falsificar o documento, mas tão só de astuciosamente provocar o erro e o engano a quem o recebe. 27. O comportamento do arguido enquadra-se na previsão do crime de burla. 28. Os ofendidos que decidam aceitar estes cheques sempre estariam protegidos pelo crime de burla. 29. O arguido a ser condenado teria que sê-lo pelo crime de burla e não pela falsificação de documento. 30. Crime esse em que houve desistência de queixa. 31. O arguido terá assim que ser absolvido do crime de falsificação de documento p. e p. pelo artigo 256°, n.ºs 1 alínea b) e no 3 do Código Penal, na pena de 1 (um) ano e 6 (seis) meses de prisão. Pelo que revogando-se a douta decisão recorrida se fará Justiça. Respondeu o MP em defesa do julgado. Subidos os autos, manifestou-se a Ex.ma Procuradora-Geral Adjunta no sentido de as primitivas conclusões do recorrente não obedecerem ao preceituado na lei, pelo que promoveu e foi atendida, a notificação do recorrente para as corrigir, o que aconteceu, nos termos descritos. A única questão sobre que importa tomar posição consiste em saber se com o comportamento provado foi ou não preenchido o tipo de crime de falsificação pelo qual veio a ser condenado. No despacho preliminar foi avançado o entendimento de que o recurso deveria ser rejeitado por manifestamente improcedente. Daí que os autos tenham vindo à conferência. 2. Colhidos os vistos legais em simultâneo, cumpre decidir. Vejamos, antes de mais, os factos provados: 1. - Na posse do impresso de cheque n.º 2662213377, relativo à conta n.º ......., da Caixa Geral de Depósitos, pertencente - como sua única titular - a C, e que a esta tinha sido furtado entre os dias 26 e 27 de Junho de 1999 quando se deslocava no autocarro dos STCP da carreira Porto-Gondomar, o arguido JMM dirigiu-se, no dia 28 de Julho de 1999, às instalações da empresa "Viatel-Tecnologia de Comunicações, S.A.", sitas na Rua da Bouça dos Estilhadouros, em Alfena, Valongo. 2 - Aí, após contacto com a respectiva empregada D, comprou-lhe equipamento do seu comércio (2 antenas parabólicas e respectivos descodificadores) e assinou o contrato de fls. 132, pelo preço de Esc. 168.000$00. 3 - Para pagamento de tal quantia, o arguido entregou à dita empregada - que o preencheu a seu pedido - aquele cheque, depois de nele ter aposto, no lugar próprio, a sua assinatura como se fosse 2.° titular da dita conta e, portanto, seu legítimo portador, e dizendo-lhe que efectivamente o era apesar de saber que isso era falso, motivo por que o equipamento lhe foi entregue. 4 - Porém, apresentado no Banco sacado, veio a ser devolvido pela "Compensação", com nota de "conta bloqueada". 5 - O arguido agiu livre, voluntária e conscientemente, com a intenção de, por tal meio, não pagar à ofendida o preço do material adquirido e de, assim, a prejudicar e de obter o beneficio correspondente no seu património. 6 - Sabia que a sua conduta era proibida e penalmente punível. 7 - Confessou parcialmente os factos. 8 - O arguido tem os antecedentes criminais descritos no seu CRC de fls. 51 a 74, dado por reproduzido, destacando-se elevado número de condenações, a partir de Julho de 1986, em diversas comarcas ao longo do País, predominando a prática de crimes de emissão de cheques sem provisão, furto, burla, falsificação, em várias penas, nomeadamente de prisão. Após cumprimento de pena de prisão efectiva, foi posto em liberdade definitiva por decisão de 3/4/1989. Por acórdão de 16/6/99, proferido na 7.ª Vara Criminal de Lisboa, proferido no processo comum 283/96, 2.ª secção, relativo ao cúmulo jurídico (em reformulação do anterior) de diversas penas aplicadas em vários processos, foi condenado na pena única de 12 anos de prisão, na qual foi declarado perdoado 1 ano e 6 meses. 9 - Segundo guia do EP, encontra-se a cumprir a pena de 10 anos e 6 meses de prisão, tendo, entretanto, já sofrido outras condenações. 10 - Tem pendentes outros processos, conforme fls. 199/200, 209 e referida guia. 11 - Esteve evadido do Estabelecimento Prisional de Alcoentre desde 26/2/1999 até 11/04/2001, período durante o qual ocorreu o facto supra descrito. 12 - O arguido está divorciado, tem dois filhos menores de mães diversas, tem visitas na cadeia, tem o 12.º ano incompleto, justifica a sua conduta pelo insucesso de negócios em que esteve envolvido e frustração da cobrança de créditos seus com os quais esperava pagar cheques pré-datados, resolveu alguns dos processos por desistência de queixa dos ofendidos, protesta querer refazer a sua vida e ter oportunidade de criar os filhos. Factos não provados Dos factos alegados na acusação e com relevo para boa decisão da causa, na parte sobejante após a falada desistência de queixa, não há factos por provar. Nesta matéria de facto não se vislumbram vícios capazes de a afectarem, nomeadamente os referidos no artigo 410.º, n.º 2, do Código de Processo Penal. Daí que se tenha como definitivamente adquirida. Encaremos a questão posta: Em matéria de subsunção jurídica discorreu o tribunal recorrido: «Vem o arguido A acusado da prática de um crime de falsificação previsto, alegadamente, no art.º 256.° n.º 1, al. a), e n.º 3, do C. Penal. Os factos foram praticados em 28/7/1999, data em que vigorava (desde 1/10/95) o Código Penal na versão resultante do Decreto-Lei 48/95, de 15/3, sendo que a norma típica aqui convocada não foi alterada pela Lei 65/98, de 2/9. Comete o crime de falsificação de cheque "Quem, com intenção de causar prejuízo a outra pessoa ou ao Estado, ou de obter para si ou para outra pessoa beneficio ilegítimo: a) Fabricar documento falso, falsificar ou alterar documento ou abusar da assinatura de outra pessoa para elaborar documento falso," b) Fizer constar falsamente de documento facto juridicamente relevante," ou c) Usar documento a que se referem as alíneas anteriores, fabricado ou falsificado por outra pessoa". É requisito essencial para que o cheque valha e produza efeitos como título cambiário que ele contenha a assinatura de quem o passa ou emite (sacador). Tal assinatura atesta formalmente a vontade e correspondente do titular da conta de depósitos existente no Banco sacado no sentido de que este pague a quantia nele inscrita ao respectivo tomador ou portador legítimo. Como é evidente, só tem legitimidade para firmar tal ordem quem, por ser o verdadeiro titular da conta, pode dispor do dinheiro depositado e, por meio do cheque, fazer com que o depositário a cumpra, conforme entre eles acordado. Portanto, o chegue criado por alguém que, não sendo titular activo da relação de provisão nem sujeito da pressuposta convenção de cheque, emite uma ordem de pagamento consubstanciadora daquele título de crédito e o põe em circulação, só na aparência, mas não real e verdadeiramente, é aquilo que legal, contratual e socialmente se quis, convencionou, espera e confia que seja: um título de crédito dotado de fé pública, baseado na confiança, apto a ser usado como meio de pagamento e, portanto, a girar no meio comercial, Os princípios da literalidade, abstracção, autonomia e da incorporação, as razões por que foi criado, os mecanismos de circulação e as finalidades visadas conferem-lhe um grau de credibilidade, segurança, confiança e, portanto de certeza e fé pública que, para além de específico regime jurídico privado que o regulamenta, o legislador foi ao ponto de lhe conferir protecção ao nível do direito penal de justiça, assim consagrando a importância dos valores fundamentais que lhe estão associados, Assim, a falsificação de cheques já era penalmente prevista e punida no Código de 1886, continuou a sê-lo no de 1982, não obstante as modificações neste diploma introduzidas pelas Reformas de 1995 e de 1998. A questão é definir, face às situações concretas e aos problemas da dogmática penal que em cada uma podem convergir, em que exactos termos, - Ora, segundo vem preconizado pela douta acusação do Ministério Público, a conduta do arguido seria subsumível, além do mais, à previsão da alínea a) do n.º 1 do art.º 256, do C. Penal: «Fabricar documento falso, falsificar ou alterar documento ou abusar da assinatura de outra pessoa para elaborar documento falso». A noção de documento consta da alínea a) do art.º 255.°, e nela se coloca a ênfase num aspecto funcional: - o da prova de facto juridicamente relevante. Não se limitando a isso a função do cheque, deve ter-se em conta que, no caso, estamos perante um documento especial e tipicamente previsto no n.º 3 do art.º 256.° no qual se incorpora, como facto juridicamente relevante, um acto cambiário: a ordem de pagamento, emissão ou saque. Concomitantemente, a Doutrina e a Jurisprudência distinguem, além do mais, a alínea a) referida - como prevendo a falsificação material (quando um documento é total ou parcialmente forjado ou quando se alteram elementos constantes de um documento já existente) - da alínea b), subsequente, relativa à falsidade intelectual ou ideológica (quando o documento não reproduz com verdade aquilo que se destina a comprovar). Nesta última hipótese (que ocorre quando, por exemplo, alguém que se encontra na posse ilegítima de um impresso de cheque respeitante a conta solidária o assina sem ser, mas como se fosse, um dos verdadeiros co-titulares), o documento em causa não é materialmente falso, falsificado ou alterado, na medida em que, quer o impresso quer as declarações nele corporizadas por escrito, são verdadeiras, reais, como verdadeira é (no exemplo) a assinatura do próprio arguido, que, assim, não abusou da de quem quer que fosse. A ordem de pagamento dada pelo arguido (ao assinar como titular da conta) está nele expressa e dele resulta provada. Tanto que assim fica criado um título de crédito (o cheque), cuja materialidade o faz circular como tal até ao momento da concretização do saque. O que acontece, nessa hipótese, é que o arguido se assume como emitente e, portanto, titular do depósito, e dá uma ordem de pagamento ao Banco que este normalmente estaria obrigado a executar, não sendo, porém, verdadeiro aquele facto (titularidade do fundo depositado), nem, consequentemente, legítima esta ordem, e, portanto, não podendo ela, na realidade, produzir os efeitos práticos e jurídicos que falsamente se extraem do documento e em que tanto o tomador como os futuros portadores erradamente confiam. Assim, ao inserir no cheque um facto juridicamente relevante (ordem de pagamento arvorando-se falsamente em titular da conta), tal agente constituir-se-ia autor do crime de falsificação de documento previsto no art.º 256.°, n.°1, alínea b) e n.° 3. Na primeira hipótese, a da alínea a), o agente forja, na íntegra, um documento, vicia-o ou altera o seu conteúdo, ou falsifica (por exemplo, imitando-a) a assinatura de terceiro em documento contendo uma declaração de vontade. Há, pois, pelo menos, um elemento relevante materialmente falso. Ora, no caso, o arguido, escreveu, no lugar reservado à assinatura do titular da conta do cheque o seu próprio nome, assim se arvorando em titular da conta, emitindo, como sacador, ordem de pagamento ao Banco. Materialmente, pois, o cheque é real e contém elementos objectivamente verdadeiros. A ordem de pagamento, traduzida na assinatura nele inscrita e dirigida ao Banco, é que é falsa, na medida em que esse facto jurídico, integrador do processo de criação do título de crédito, não traduz a suposta verdade (ou seja, a de que quem o assina como emitente é titular do depósito existente no Banco sacado e, por isso, tem legitimidade para a este transmitir aquela ordem). A sua conduta subsume-se, por isso, não à previsão da citada alínea a) mas à da alínea b) dos n.ºs 1 e 3 do art.° 256° "fizer constar falsamente de documento facto juridicamente relevante". Cometeu, pois, o arguido, embora com aquela precisão, o imputado crime de falsificação - tanto mais que reunidos estão, de forma indiscutível, os demais pressupostos objectivos e subjectivos da infracção, mormente ao nível da ilicitude material pela violação do valor ou interesse juridicamente protegido e que se traduz na fé pública do cheque e confiança na sua circulação.» Poderia pôr-se aqui a questão da nulidade do acórdão recorrido ante o disposto, nomeadamente nos artigos 358.º e 379.º, b), do Código de Processo Penal, uma vez que o arguido acabou condenado pela prática de um crime de falsificação previsto, não na alínea a) do artigo 256.º do Código Penal, tal como constava da acusação, antes, na alínea b) do mesmo artigo. Das actas do julgamento não consta que ao arguido tenha sido feita a comunicação da aparente alteração do objecto do processo. Porém, tal como já decidiu este Supremo Tribunal, no acórdão de 15/11/01, proferido recurso n.º 2057/01-5, acessível nomeadamente em www.dgsi.pt, com o mesmo relator, «estando o arguido acusado pela co-autoria material de um crime p. e p. pelo artigo 256.º, n.ºs 1 al. a), e 3, do Código Penal, não há alteração da qualificação jurídica, se, rigorosamente pelos mesmos factos constantes da acusação, o tribunal o condena pela co-autoria material de um crime p. e p. citado artigo 256.º, n.º 1, al. b) e 3, porquanto a diferença entre as duas incriminações respeita, apenas, a uma das modalidades de falsificação (que só por razões de forma não estão descritas no próprio corpo do n.º 1 e aparecem separadas por alíneas), mantendo-se o que, no caso, é o essencial da qualificação, ou seja, a referência aos n.ºs 1 e 3 do mesmo preceito.» Não se verifica pois tal eventual nulidade do acórdão recorrido. Quanto ao mais, o recorrente, manifestamente, não tem razão. Efectivamente é jurisprudência, se não uniforme, pelo menos largamente maioritária deste Supremo Tribunal a de que a assinatura de cheque alheio com nome próprio, integra efectivamente a prática do crime de falsificação em causa. Sem necessidade de mais desenvolvimentos citam-se os seguintes arestos, um dos quais também relatados por quem ora relata este: «I - Se é verdade que a simples adulteração do impresso de cheque com a mudança inverídica da indicação da identidade do titular da conta não pode integrar por si só o elemento do tipo objectivo do crime de falsificação de documento, certo é também que esse elemento pode ficar preenchido com a assinatura, como se do verdadeiro sacador se tratasse, da própria pessoa correspondente à identidade substitutiva do verdadeiro titular, indicada no impresso mediante a referida adulteração. II - Sendo o documento em causa um título de crédito, incorporando o direito literal e autónomo nele mencionado, não deixa ele, nas circunstâncias referidas, de constituir um cheque, ainda que falsificado pela mencionada adulteração do nome do verdadeiro titular da conta correspondente e pela assinatura, no lugar destinado ao sacador, pela pessoa falsamente indicada como titular dessa conta. III - É verdade que não pode ter-se por integrada a modalidade típica do "abuso de assinatura de outra pessoa para elaborar documento falso", prevista na parte final da al. a) do n.º 1 do art. 256.º do CP, quando o agente assina como sacador com o seu próprio nome. Considerando, porém, a conjugação dessa assinatura com a adulteração do nome do titular da conta (mediante a utilização de letra de máquina), pela qual passou a indicar-se no cheque como sendo titular a pessoa que veio a assinar como sacador, pode ter-se como perfeccionado o elemento típico objectivo do crime de falsificação, na modalidade de "fabricar documento falso (1.ª parte da al. a) do n.º 1 do art. 256.º), no caso "fabricar cheque falso", a partir do mero impresso. IV - É, no entanto, de notar que, embora se trate de um crime de perigo abstracto e não concreto de ofensa do interesse jurídico pretendido proteger com a incriminação - a segurança e a credibilidade do tráfico jurídico, na situação em causa pela confiança no cheque como meio de pagamento - é indispensável que a falsidade do documento se apresente, nas circunstâncias concretas do caso, apreciadas segundo as regras da experiência comum, como idónea, adequada, com virtualidades para a produção daquele perigo, o que não se verifica na hipótese do "falso grosseiro", ou seja, quando, atento os seus termos, é facilmente detectável pela generalidade das entidades ou pessoas a que o cheque pode ser presente como ordem ou meio de pagamento. V - Entende-se ser essa situação de "falso grosseiro" a integrada pelos factos dos autos, quando considerada apenas a posição do banco sacado. É que, exigindo o pagamento do cheque pelo banco que este verifique da existência de provisão e regularidade do cheque, o mínimo de cuidado exigível nessa operação pressupõe naturalmente a verificação da correspondência entre o nome do sacador e o do titular da conta, pelo que se apresenta como inidónea, inadequada a causar prejuízo, mesmo que abstracto, a emissão de cheque por pessoa diferente do titular da conta. VI - Contudo, a questão da idoneidade terá de avaliar-se também em relação à generalidade dos possíveis tomadores do cheque, tendo em conta a natureza de meio de pagamento do mesmo e a sua transmissibilidade por endosso, conjugada com a natureza do interesse jurídico pretendido proteger - o interesse público da segurança e a credibilidade do tráfico jurídico, através, na hipótese em consideração, da confiança no cheque como meio de pagamento. VII - Ora, do circunstancialismo fáctico provado nos autos nada revela que a viciação do cheque se apresente como "grosseira", no sentido de ser facilmente perceptível pela generalidade das pessoas abrangíeis pelo tráfico jurídico em que o título de crédito poderia funcionar como meio de pagamento. A circunstância referida da utilização de letra de máquina na dita substituição do nome do verdadeiro titular, conjugada com a respectiva correspondência da assinatura aposta no local destinado ao sacador, indicia, pelo contrário, a idoneidade da adulteração para dar ao cheque aspecto de regularidade. VIII - Pelo que, no caso concreto, a falsificação do cheque foi não só meio idóneo como integrante da "astúcia" determinante de erro, elemento típico do crime de burla (o arguido, com o título assim viciado, logrou a "aquisição" de diversos produtos num supermercado), mas também meio adequado para colocar em perigo o interesse da segurança e da credibilidade do tráfico jurídico, pretendido proteger com o tipo legal de crime de falsificação de documento p. e p. pelo art. 256.º, n.º 1, al. a) e n.º 3, do CP. IX - Por isso, dos factos provados conclui-se que o arguido cometeu, em concurso efectivo, o crime de falsificação de documento e o crime de burla. » 14-06-2000 Proc. n.º 285/2000-3 Armando Leandro, Virgílio Oliveira, Mariano Pereira, Flores Ribeiro, «I - Na falsificação material o documento deixa de ser genuíno, não garante a sua proveniência ou a sua forma está adulterada; na falsificação intelectual o documento é inverídico, ou porque a declaração incorporada no documento não corresponde à prestada ou porque se traduz num facto falso juridicamente relevante. II - O que se mostra essencial é tentar detectar se existe ou não uma mutatio veri, de forma a colocar no lugar da realidade uma aparência diversa, aceitável no tráfico geral do documento ou na sua utilidade social. III - A legislação, de raiz transnacional, que regula o uso do cheque é enformada por princípios que visam garantir a sua circulação com o máximo de fidedignidade e segurança, quer em relação aos que apõem a sua assinatura como sacador, endossante ou avalista, quer quanto à responsabilização em face do tomador - o beneficiário do pagamento - pelo valor inscrito no cheque. IV - O facto de alguém, como sucedeu com o arguido, assinar um cheque respeitante à conta de outrem, com o seu próprio nome, não descarta, só por isso, a hipótese de prática do crime de falsificação de cheque, havendo que indagar se o documento, tal como se apresenta, é idóneo a constituir uma aparência de verdadeiro junto daqueles a que se destina, em primeira linha o tomador, mas também os endossantes e o sacado. V - Tendo-se o arguido apossado de um cheque relativo a uma conta solidária dos seus pais, nele apondo a sua assinatura vulgarmente usada, na qual consta um apelido igual ao do nome do pai, impresso no título, mostra-se criada a aparência de documento verdadeiro, suficiente para levar o tomador do cheque a aceitá-lo como bom. VI - O arguido, ao tomar a posição de um dos titulares da conta, agindo na falsa qualidade de sacador, apondo a sua assinatura no documento em circunstâncias tais que leva a supor, pelo menos para alguns dos interventores no circuito do cheque - necessariamente para o tomador - que age como dominus da conta respectiva, afecta a credibilidade que o Estado pretende manter na circulação deste título de crédito, sendo o prejuízo, de natureza não material, normalmente existente. VII - Aquela postura, como se fosse o sacador verdadeiro, agindo (assinando e movimentando o cheque) como tal, consubstancia um facto juridicamente relevante, isto é, um facto susceptível de desencadear consequências jurídicas, criando, modificando ou extinguindo uma relação jurídica. » 07-11-2001 Proc. n.º 2527/01-3 Lourenço Martins, Pires Salpico, Leal-Henriques, Borges de Pinho «I - A aposição da assinatura do agente num cheque que sabia não ser seu para com tal cheque proceder à compra de um bem constitui uma acto de falsificação material, melhor, de alteração de documento expressamente prevista na al. a) do art. 256.º do CP. II - Em tal caso, a falsificação na modalidade referida, consistiu na aposição, sem qualquer legitimidade, da respectiva assinatura em cheque que só podia ser assinado pelos titulares da respectiva conta. » 07-02-2002 Proc. n.º 240/02-5 Pereira Madeira, Simas Santos, Abranches Martins Comete um crime de falsificação de documento, p. e p. pelo art. 256.º, n.º 1, al. a) e n.º 3, do CP, e não um crime de emissão de cheque sem provisão, o arguido que, tendo em seu poder um módulo de cheque relativo a certa conta bancária, da qual é titular uma sociedade comercial, coloca nele a sua própria assinatura, no local respectivo, sem que detenha poderes para assinar cheques da referida sociedade, o que é do seu conhecimento. 19-01-2000 Proc. n.º 1124/99-3 Flores Ribeiro, Brito Câmara, Lourenço Martins Como se escreveu no acórdão de 7/2/02 supra citado «a aposição da assinatura do arguido num cheque que sabia não ser seu para os fins apontados, é, claramente, ao invés do que defende um acto crasso de falsificação material, melhor, de alteração do documento expressamente prevista na alínea a) do artigo 256.º, a), do Código Penal. Alteração tipificada que, no caso, consistiu na aposição, sem qualquer legitimidade, da respectiva assinatura em cheque que só podia ser assinado pelos titulares da respectiva conta.» O cheque passou, por acção do arguido a documentar um facto falso: o de que ele era o sacador [legítimo] do título, e, assim, o dono dos fundos a que a ordem de pagamento se dirigia. Conclusão tanto mais inatacável quanto é certo que, no caso, o módulo assinado pelo arguido só consentia a assinatura da respectiva titular e mais ninguém, por se tratar de conta singular e não conjunta nem solidária. Por aqui já se vê, sem necessidade de maiores desenvolvimentos, que podem ser buscados nos textos respectivos, que a jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça, nomeadamente também pela pena do ora relator, dá inteira cobertura ao entendimento que, a propósito, foi levado avante no acórdão recorrido. E tal basta para mostrar que o recurso, com o objecto definido nas conclusões transcritas e cingido à questão apontada, manifestamente, improcede. 3. Termos em que, por manifesta improcedência, rejeitam o recurso. O recorrente pagará pelo decaimento taxa de justiça que se fixa em 5 unidades de conta a que acrescem outras tantas a título de sanção processual nos termos do artigo 420.º, n.º 4, do Código de Processo Penal. Lisboa, 26 de Fevereiro de 2004 Pereira Madeira Santos Carvalho Costa Mortágua |