Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
96B934
Nº Convencional: JSTJ00031449
Relator: MIRANDA GUSMÃO
Descritores: ACÇÃO DE PREFERÊNCIA
LEGITIMIDADE PASSIVA
INVENTÁRIO
LICITAÇÃO
PARTILHA DA HERANÇA
Nº do Documento: SJ199702200009342
Data do Acordão: 02/20/1997
Votação: UNANIMIDADE
Referência de Publicação: BMJ N464 ANO1997 PAG446
Tribunal Recurso: T REL PORTO
Processo no Tribunal Recurso: 9620517
Data: 06/14/1996
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: AGRAVO.
Decisão: PROVIDO.
Área Temática: DIR CIV - TEORIA GERAL / DIR CONTRAT / DIR REAIS / DIR SUC.
DIR PROC CIV.
Legislação Nacional: CCIV66 ARTIGO 406 N2 ARTIGO 416 N1 ARTIGO 417 ARTIGO 418 ARTIGO 421 ARTIGO 1409 ARTIGO 1410 ARTIGO 1117.
DL 329-A/95 DE 1995/12/12 ARTIGO 26 N3 ARTIGO 28-A N3.
L 63/77 DE 1977/08/25 ARTIGO 1 N1.
CPC61 ARTIGO 1374 N1
CPC67 ARTIGO 26 ARTIGO 1371 ARTIGO 1377.
CCIV867 ARTIGO 2127.
Jurisprudência Nacional: ACÓRDÃO STJ DE 1991/05/14 IN BMJ N407 PAG498.
ACÓRDÃO STJ DE 1991/10/24 IN BMJ N410 PAG719.
ACÓRDÃO STJ DE 1994/09/27 IN BMJ N439 PAG502.
Sumário : I - Nas acções de preferência a legitimidade passiva compete ao alienante e ao adquirente da coisa.
II - A regra da legitimidade passiva nas acções de preferência não se mantem quando a aquisição da coisa for feita através de partilha judicial a que se procedeu em processo de inventário: a legitimidade, então, é aferida através dos critérios consignados no artigo 26 do CPC67.
III - Autores e réus são partes legítimas na acção em que aqueles visam colocar-se na posição destes em prédios de que são arrendatários habitacionais e que foram licitados pelos réus em processo de inventário e a estes vieram a caber na partilha judicial homologada por sentença transitada em julgado.
Decisão Texto Integral: Acordam no Supremo Tribunal de Justiça

1. No Tribunal de Círculo de Santo Tirso, A, mulher B, C e mulher D intentaram acção declarativa, com processo na forma ordinária, contra E e mulher F, pretendendo que lhes seja atribuída a preferência na transmissão de dois prédios adjudicados aos Réus como interessados cessionários no inventário a que se procedeu por óbito de G e mulher H, depois de licitados pelas importâncias de 10000000 escudos e de 2000000 escudos, respectivamente, de parte dos quais são os Autores arrendatários.
Os Réus invocaram, na contestação, a sua ilegitimidade para serem demandados desacompanhados dos demais intervenientes no inventário em que os prédios lhes foram adjudicados, já que, em seu entender, é necessário a intervenção de todos eles para que a decisão a proferir produza o seu efeito útil normal.

2. No despacho saneador foi julgada procedente a excepção de ilegitimidade invocada, com a consequente absolvição dos Réus da instância.

3. Os Autores agravaram. A Relação do Porto, por acórdão de 11 de Junho de 1996, decidiu:
a) negar provimento ao recurso de agravo interposto pelos Autores A e mulher B e C e mulher D;
b) confirmar o despacho recorrido, na medida em que considerou os Réus parte ilegítima para, desacompanhados dos demais herdeiros da H, serem demandados nesta acção.

4. Os autores A e autora agravaram para este Supremo Tribunal, formulando as seguintes conclusões:
1) Nas acções de preferência a legitimidade passiva compete apenas ao adquirente, o alheador apenas deverá ser chamado à referida acção se esta lhe causar danos, o que no caso não ocorre.
2) Após a partilha considera-se único titular dos bens no período que vai desde a abertura da sucessão até este momento o herdeiro, em cujo quinhão tais bens se integrarem, considerando-se os demais herdeiros completamente estranhos aos ditos bens; o decidido viola o artigo 2119 do Código Civil.
3) O Réu é o único representante da herança por ser o adjudicatário dos bens, e portanto, o único com legitimidade para discutir o seu estatuto jurídico no período que decorre da abertura da sucessão à partilha.

5. Os agravados não apresentaram contra-alegações.
Corridos os vistos, cumpre decidir.

II - Elementos a tomar em conta:
1) O autor A é arrendatário do 2. andar, casa de habitação, sita, em Santo Tirso, por contrato escrito que outorgou, em 28 de Fevereiro de 1972, com G.
2) O autor C é arrendatário das traseiras dos rés-do-chão, com 4 divisões e casa de banho, da casa de habitação sita em, Santo Tirso, por contrato escrito celebrado, em 24 de Fevereiro de 1971, com G.
3) Por óbito deste G e mulher H, correu termos o processo de inventário n. 10/91, da 2. secção do 1. Juízo do Tribunal de Santo Tirso.
3) O andar arrendado ao Autor A faz parte do prédio descrito naquele inventário sob a verba n. 10.
4) O andar arrendado ao Autor C faz parte do prédio descrito no mesmo inventário sob a verba n. 11.
5) No citado inventário foram indicados, nas diversas declarações de cabeça de casal, como herdeiros dos inventariados, as seguintes pessoas: irmãos da inventariada H, Rosa Carneiro, Albina Carneiro e Laurentina Carneiro; cunhadas da H - Emília Soares Ferreira, Maria Ferreira dos Reis e Leda Borges de Sousa Ferreira; sobrinhos da Maria Augusta - Odete Couto Ferreira, Luís António Couto Ferreira e mulher Sandra Pereira de Novais Ferreira, Roberto Ferreira e mulher Emília Cordovil Ferreira, Mariângela Ferreira de Nazareth e marido José Arimatéa de Nazareth, Marilúcia Ferreira de Oliveira e marido Genibal de Oliveira, Marília Ferreira, Filipe Manuel da Silva Ferreira, Maria Margarida da Silva Ferreira Gomes e marido Jorge da Rocha Gomes, Maria Augusta da Silva Ferreira e marido António Adão Ferreira da Costa Maia, Joaquim Carneiro Rodrigues e mulher Albertina Silva Dias, Américo Carneiro Rodrigues e mulher Maria da Glória Teixeira da Costa Rodrigues, Manuel Carneiro Rodrigues e mulher Maria Albina Linhares Carneiro, Maria Rosa Carneiro Rodrigues e marido António Oliveira Santos, Maria de Lurdes Carneiro Rodrigues e marido Manuel Vinhas de Oliveira Carneiro, Maria Elisa Carneiro Rodrigues, Vera Lúcia da Silva Ferreira, Lucinda Maria da Silva Ferreira, Américo da Silva Ferreira e mulher Theresinha Manhães Mota, Anselmo Domingos da Silva, Ferreira Júnior, Tathiana Borges de Sousa Ferreira, Eva Couto Gomes e marido Everaldo Gomes, Odete Couto Ferreira, Domingos Ferreira Couto Filho, Margarida Ferreira dos Santos e marido Álvaro Gonçalves dos Santos, Maria da Glória Couto Costa, Maria Coelho Dias, Rosa Coelho Ribeiro e marido José Maria Escaleiro Ribeiro, Albina Coelho Soares e marido Francisco da Silva Gomes e Idalina Coelho Quintas e marido António Carneiro Neto.
6) Por escritura celebrada no 1. Cartório Notarial de Santo Tirso, em 27 de Dezembro de 1991, os herdeiros Margarida Ferreira dos Santos e marido Álvaro Gonçalves dos Santos, Eva Couto Gomes e marido Everaldo Gomes, Odete Couto Ferreira, Domingos Ferreira Couto Filho, Maria da Glória Couto da Costa, Maria Coelho Dias, Rosa Coelho e marido José Maria Escaleiro Ribeiro, Albina Coelho Soares e marido Francisco da Silva Soares, António Carneiro Neto e mulher Idalina Coelho Quintas cederam ao Réu José Pereira da Silva, pelo preço de 1600000 escudos, o quinhão hereditário que possuíam na herança indivisa de Maria Augusta Alves Ferreira.
7) Por escritura outorgada no mesmo cartório notarial, em 8 de Maio de 1991, a herdeira Rosa Carneiro cedeu ao referido Réu, pelo preço de 1600000 escudos, o direito e acção que lhe pertencia na herança indivisa de sua irmã H.
8) Por escritura celebrada no mesmo cartório, em 3 de Outubro de 1991, os herdeiros Emília Soares Ferreira, Luís António Couto Ferreira e mulher Sandra Pereira de Novais Ferreira, Roberto Ferreira e mulher Emília Cordovil Ferreira, Mariangela Ferreira de Nazareth e marido José Arimatia de Nazareth, Marilúcia Ferreira de Oliveira e marido Genibal de Oliveira e Marília Ferreira cederam ao citado Réu José Pereira da Silva, pelo preço de 1600000 escudos, o quinhão hereditário que possuiam na herança indivisa de H.
9) No inventário acima mencionado o Réu E, casado com F, interveio como cessionário.
10) Na conferência de interessados nesse processo de inventário, este Réu licitou as verbas ns. 10 e 11 da descrição pelos montantes de, respectivamente, 10000000 escudos e 2000000 escudos.
11) Vindo tais bens a ser-lhe adjudicados, por tais valores, conforme mapa de partilha e subsequente sentença homologatória, que transitou em julgado.

III - Questões a apreciar no presente recurso.
A apreciação e a decisão do presente recurso, delimitado pelas conclusões das alegações, passa, fundamentalmente, pela análise de duas questões: a primeira, se nas acções de preferência a legitimidade passiva compete ao alienante e ao adquirente ou tão somente ao adquirente; a segunda, se a regra da legitimidade passiva competia ao alienante e ao adquirente se mantém quando a aquisição for feita através de partilha judicial a que se procedeu em processo de inventário e no qual o adquirente interveio como cessionário de alguns herdeiros dos inventariados.
A segunda questão ficará prejudicada na sua apreciação no caso de a primeira questão sofrer a resposta de que nas acções de preferência a legitimidade passiva compete tão só ao adquirente.
Abordemos tais questões.
IV
Se nas acções de preferência a legitimidade passiva compete ao alienante e ao adquirente ou tão somente a este.
1. Posição da Relação e dos recorrentes:
1a) A Relação do Porto decidiu que nas acções de preferência existia uma situação de litisconsórcio passivo, devendo ser demandados o alienante e o adquirente, sob pena da ilegitimidade, porquanto, por um lado, se atentarmos nas circunstâncias em que foi elaborado o Código Civil, conjugando o aditamento daquela expressão "citação dos Réus" com os antecedentes da questão de legitimidade passiva nas acções de preferência face às duas teses que se formaram na doutrina e na jurisprudência anteriores e os trabalhos preparatórios que o antecederam, facilmente constatamos que aquela "expressão", que vingou na redacção final, não é neutra, antes tem claro significado de apontar como sujeitos passivos da acção de preferência o alienante e o adquirente.
Por outro lado, subjacente ao exercício desse direito está um facto ilícito praticado pelo alienante, qual seja o de ter celebrado certo contrato com terceiro sem cumprir a obrigação de lhe dar conhecimento do projecto e seus elementos essenciais - (cfr. artigos 1409, 1410 e 416 n. 1, todos do Código Civil).
Como reforço da sua tese, a Relação do Porto acrescenta que, com evidente intenção interpretativa, no sentido de resolver a querela doutrinária e Jurisprudencial, o Decreto-Lei n. 329-A/95, de 12 de Dezembro, que reviu o Código de Processo Civil - embora não tenha entrado em vigor - acrescentou a este diploma o artigo 28-A, n. 3, donde expressamente consta que "as acções de preferência devem ser simultaneamente propostas contra o alienante e o adquirente, sob pena de ilegitimidade:
1b) Por sua vez, os recorrentes continuam a sustentar que nas acções de preferência só o adquirente tem legitimidade passiva, o alheador apenas deverá ser chamado se esta lhe causar danos.
Que dizer?

2. A legitimidade passiva nas acções de preferência tem sido decidida neste Supremo Tribunal, até 1991, quási uniformemente, no sentido de que só o comprador tem legitimidade passiva, a menos que da acção possam advir prejuízos para o alienante, caso em que também deve ser demandado, orientação esta que sofreu sempre severas críticas do Professor Antunes Varela, defensor da tese do litisconsórcio passivo nas acções de preferência (cfr. Revista Legislação e Jurisprudência 100, página 241; ano 101, página 385; ano 105, página 8; ano 119, página 107; ano 120, página 26).
O acórdão deste Supremo Tribunal de 14 de Maio de 1991 - B.M.J. n. 407, páginas 498 e seguintes - veio firmar a doutrina de que a solução do litisconsórcio necessário passivo, demandando-se tanto o alienante como o adquirente nas acções de despejo, é a única que toma em devida conta a mais correcta ponderação dos interesses em causa.
A doutrina deste acórdão mereceu merecidos aplausos do Professor Antunes Varela em brilhante anotação onde se passa a transcrever a sintese:
a) a indicação directa, contida no texto do artigo 1410 do Código Civil, de que os Réus na acção de preferência são dois - o adquirente e o alienante - de valor decisivo em face das circunstâncias históricas em que, através dos trabalhos preparatórios do novo Código Civil oportunamente divulgados junto do grande público, a norma foi elaborada;
b) a manifesta demonstração, resultante da mais perfeita estruturação da relação de preferência traçada nos artigos 416 a 418 e 1410 do mesmo diploma, de que a acção de preferência tem como pressuposto necessário um facto ilícito praticado pelo alienante;
c) a complementação, já operada no Código de Processo Civil de 1961, do precário e insuficiente critério de interesse directo em contradizer, como sinal revelador da legitimidade do Réu, através dos recursos aos sujeitos da relação material controvertida, na definição da titularidade do interesse relevante para o efeito restrito da legitimidade, por não haver dúvida de que o alienante é um dos sujeitos da complexa relação material de preferência debatida na acção;
d) o facto, incontestável, de a tese até hoje dominante, que apenas admite a legitimidade do alienante na acção de preferência, quando o Autor contra ele deduza pedido de indemnização, constituir uma porta aberta aos casos julgados contraditórios, quando o preferente ou o adquirente destronado pretendam mais adiante ressarcir-se dos danos que sofreram com o comportamento ilícito do alienante;
e) a circunstâncias de o não chamamento obrigatório do alienante a participar na acção de preferência dar como resultado, além de outros, que as custas da acção não sejam pagas por quem verdadeiramente deu causa ao processo, contra o princípio básico da responsabilidade pelo pagamento das custas "(REVISTA LEGISLAÇÃO E JURISPRUDÊNCIA, ano 126, página 373).
Com aquele acórdão de 14 de Maio de 1991, acolhendo a tese do litisconsório necessário, com o alienante e o adquirente a deverem ser demandados (com a brilhante Anotação do Professor Antunes Varela), seguiu no mesmo sentido os acórdãos de 24 de Outubro de 1991 - Boletim Ministério da Justiça n. 410, página 719 - e de 27 de Setembro de 1994 - no Boletim Ministério da Justiça n. 439, página 502, verifica-se uma inflexão na orientação da tradição deste Supremo Tribunal.
Inflexão que consideramos ser definitiva na medida em que, por um lado, a acção de preferência nasce de um facto imputável ao alienante - a falta de cumprimento do dever de notificação do projecto de venda da coisa ao preferente e, por outro lado, o simples facto de, no texto final do artigo 1410 do Código Civil... a lei aludir significativamente à citação dos Réus (no plural, e não no singular, como em circunstâncias normais seria absolutamente natural que sucedesse), revela de modo evidente, embora indirecto, à luz dos trabalhos preparatórios trazidos ao conhecimento do grande público, que o legislador aderiu, nesse ponto da legitimidade processual para a acção, à tese do litisconsórcio necessário passivo... (cfr. ANTUNES VARELA, REVISTA CITADA, página 368).
3. Conclui-se, assim, que nas acções de preferência a legitimidade passiva compete ao alienante e ao adquirente da coisa.
V
Se a regra da legitimidade passiva nas acções de preferência competir ao alienante e ao adquirente da coisa, se se mantém quando a aquisição foi feita através de partilha judicial a que se procedeu em processo de inventário e no qual o adquirente interveio com o cessionário de alguns herdeiros dos inventariados.

1. Posição da Relação e dos recorrentes:
a) A Relação do Porto ao decidir, como decidiu, de haver necessidade de a acção de preferência ser intentada contra o alienante e o adquirente da coisa, avança (decide) que tal regra se mantém em casos como o presente em que a aquisição foi feita através de partilha judicial a que se procedeu em processo de inventário e no qual o adquirente interveio como cessionário de alguns herdeiros dos inventariados, porquanto, por um lado, encontramo-nos, no caso em apreço, perante dois negócios jurídicos alienatórios: o primeiro, consistente na venda, por alguns herdeiros do Réu, do respectivo quinhão hereditário; o segundo, traduzido no acto das licitações em que, naturalmente, intervieram, como alienadores, os demais herdeiros não cedentes.
Por outro lado, considerando o direito itinerário negocial, não podemos deixar de concluir que, na alienação do prédio objecto desta acção de preferência hão-se julgar-se alienantes todos os herdeiros da inventariada H, uns porque cederam uma quota ideal, outros porque continuando a sua intervenção no inventário, vieram a permitir que o cessionário licitasse (oferecesse o maior lanço) nesses bens concretos que lhe foram adjudicados.

b) Por sua vez, os recorrentes sustentam que a herança, após a partilha, é apenas representada no período que decorre da abertura da sucessão até à partilha pelo herdeiro a quem os bens objecto do litigio são adjudicados: os restantes herdeiros são havidos, em relação a tais bens, como "penitus extranei", ou seja, como terceiros completamente estranhos aos bens, num duplo sentido, ou seja, impedidos de praticar quanto aos referidos bens qualquer acto e os que eventualmente tenham praticado ineficazes em relação a eles, pelo que carecem totalmente de legitimidade substantiva e processual para discutirem a presente acção.
Que dizer?

2. Confrontando-se o direito de preferência do locatário habitacional ou do comercial com os direitos convencionais de preferência dotados de eficácia real (Lei n. 63/77, de 25 de Agosto, artigos 1117 e 421, ambos do Código Civil) verifica-se que, apesar de o respectivo exercício obedecer ao mesmo regime jurídico (o dos artigos 416 a 418 e 1410) há elementos ou aspectos que os diferenciam, conforme sublinha o Professor Henrique Mesquita, ao escrever:
"No primeiro caso, enquanto o preferente não fizer valer a prelação, cada venda de que o imóvel seja objecto origina um direito autónomo de preferência. O preferente pode, por conseguinte, desinteressar-se de determinada alienação e vir a preferir numa outra que ocorre posteriormente. O direito de preferência deriva da lei e nasce (ou renasce) sempre que se verificam os pressupostos que o condicionam.
O arrendatário habitacional, por exemplo, tem direito de preferir na venda ou dação em cumprimento do prédio arrendado.
O facto dele não preferir em certa venda (porque renunciou ao respectivo direito ou o deixou caducar) não impede de vir a fazê-lo mais tarde, se o prédio for novamente vendido.
"Diversamente, se o direito convencional de preferência dotado de eficácia real, por isso que deriva de um contrato - que, em princípio, apenas pode criar direitos e obrigações para as partes (artigo 406 n. 2) - esgota toda a sua eficácia na primeira venda a ser objecto.
Se o preferente não exercer aqui o direito que lhe assiste, este extingue-se e não renascerá em relação a uma nova venda que o adquirente do imóvel venha a fazer ulteriormente" - OBRIGAÇÕES REAIS E ÓNUS REAIS" Páginas 196 e 197.
O que se deixa transcrito permite-nos afirmar que os locatários habitacionais verão (assistirão) nascer (renascer) o direito de preferência sempre que se venham a verificar os pressupostos que o condicionam: "o locatário habitacional do imóvel urbano tem direito de preferência na compra e venda ou dação em cumprimento do mesmo" - artigo 1 n. 1 da Lei n. 63/77, de 25 de Agosto.
Se assim é, surge indagar se os Autores, na qualidade de arrendatários habitacionais viram nascer no seu património um direito de preferência quando os Réus adquiriram os prédios, onde aqueles são arrendatários, através de licitações em processo de inventário em que os Réus intervieram como cessionários de alguns herdeiros dos inventariados, sendo certo que os bens lhes couberam em partilha, homologada por sentença transitada em julgado.
Indaguemos, pois.

3. O artigo 1374 do Código de Processo Civil de 1961, prescreve no seu n. 1 que a licitação tem a estrutura de uma arrematação...
Entre a arrematação e a licitação existem diferenças assinaladas, conforme se colhe de LOPES CARDOSO quando escreve:
"Esta - arrematação - constitui uma venda judicial; aquela - a licitação - equiparável embora a este negócio jurídico, busca mais propriamente uma escolha de bens e actualização de valores, na certeza de que não implica desde logo a atribuição da propriedade exclusiva dos bens sobre que recaiu àquele que ofereceu o maior lanço. Tanto que, como doutamente foi assinalado em trabalho de notável relevo "se se realizarem licitações num inventário obrigatório e depois se verificar que não há lugar ao inventário, o processo será arquivado e claro está, a herança continua indivisa e os herdeiros podem fazer a partilha extra-judicial sem terem em qualquer consideração as licitações".
"O regime adoptado para o pagamento das tornas - atribuição ao preenchido a menos, querendo este, dos bens que o preenchido a mais licitou e de que abriu mão para o efeito (Código de Processo Civil, artigo 1377) - vem reforçar singularmente este ponto de vista e justificar o conceito expresso no artigo 2127 do Código Civil de 1867 ("a licitação precederá o acto da partilha, sendo citados todos os interessados, e entre eles, tão somente, se procederá, como se fora um acto de arrematação") agora transportado à lei processual (artigo 1371) - PARTILHAS JUDICIAIS, volume II, 4. edição, 1990, página 308).

4. Se a licitação não tem a natureza de venda judicial - não implica desde logo a atribuição da propriedade exclusiva dos bens sobre que recaiu aquele que ofereceu o maior e, até, pode não ter qualquer relevância, por acabar por não se fixar no património daquele que ofereceu o maior lanço - haverá que reconhecer que os arrendatários habitacionais de prédios licitados não viram surgir no seu património o direito de preferência a que se refere o artigo 1, n. 1 da Lei n. 63/77, de 25 de Agosto.

5. O que se acaba de precisar vem a significar que a legitimidade passiva na presente acção não passa pela análise do artigo 1410 do Código Civil - caso paradigmático da preferência na alienação a estranhos da quota de qualquer dos comproprietários, mas sim pelo da legitimidade como pressuposto processual que é, ou seja, como requisito de que depende dever o juiz proferir decisão sobre o mérito da causa, concedendo ou denegando a providência Judiciária requerida.
A legitimidade vem a traduzir-se em o processo dever correr perante os sujeitos que, em relação à providência requerida, possam ser os efectivos destinatários dos seus efeitos.
Daqui que a nossa lei - artigo 26 do Código de Processo Civil - defina a legitimidade através da titularidade do interesse em litigio: será parte legitima, como autor, quem tiver interesse directo em demandar, e será parte legitima como Réu quem tiver interesse directo em contradizer. Como tal critério se presta a sérias dificuldades na sua aplicação prática, a lei fixou uma regra supletiva para determinação da legitimidade: na falta de indicação da lei em contrário, são considerados titulares do interesse relevante para o efeito da legitimidade os sujeitos da relação material controvertida (artigo 26, n. 3, do Código de Processo Civil).
A legitimidade não é, pois, uma qualidade pessoal das partes... mas uma certa posição delas em face da relação material...; que se traduz no poder legal de dispor dessa relação, por via processual (MANUEL ANDRADE, NOÇÕES ELEMENTARES DO PROCESSO CIVIL, 1979, página 83).
O objectivo essencial deste pressuposto é o de que a causa seja julgada perante os verdadeiros e principais interessados na relação jurídica, de modo a não voltar a repetir-se (ANSELMO DE CASTRO, Direito Processual Civil Declaratário, volume II, página 167).
Trata-se de saber, como bem sublinha ANTUNES VARELA, pela posição que ocupam em face da relação material debatida (partindo-se da premissa de que o direito invocado pelo Autor e o correlativo dever... imputado ao Réu existem) são as pessoas idóneas para conduzirem o processo. Não o sendo, há todo o interesse social em estimular o ingresso em juízo das pessoas para tal qualificadas: e esse é o objectivo capital da declaração da ilegitimidade" (REVISTA LEGISLAÇÃO e JURISPRUDÊNCIA, ano 114, página 142).
Na velha querela de se dever atender à relação configurada pelo autor (tese de BARBOSA DE MAGALHÃES) ou antes à relação jurídica real, tal como se constituiu entre as partes (tese de A. dos Reis), prevalece a primeira por estar mais de harmonia com a expressão legal "relação material controvertida" e ser a prevista no n. 3 do artigo 26 do Decreto-Lei n. 329-A/95, de 12 de Dezembro, diploma que introduziu alterações ao Novo Código de Processo Civil.

6. Conclui-se, assim que a regra da legitimidade passiva nas acções de preferência - competir ao alienante e ao adquirente da coisa - não se mantém quando a aquisição for feita através de partilha judicial a que se procedeu em processo de inventário.
A legitimidade, nesse caso, é aferida através dos critérios consignados no artigo 26, do Código de Processo Civil, pelo que Autores e Réus são partes legitimas.
VI
Conclusão:
Do exposto, poderá extrair-se que:
1) Nas acções de preferência a legitimidade passiva compete ao alienante e ao adquirente da coisa.
2) A regra da legitimidade passiva nas acções de preferência não se mantém quando a aquisição da coisa for feita através de partilha judicial a que se procedeu em processo de inventário: a legitimidade, então, é aferida através dos critérios consignados no artigo 26 do Código de Processo Civil.

Face a tais conclusões, em conjugação com os elementos reunidos nos autos, poderá precisar-se que:
1) Autores e Réus são partes legitimas na presente acção em que aqueles visam colocar-se na posição daqueles em prédios de que são arrendatários habitacionais e que foram licitados pelos Réus em processo de inventário e a estes vieram a caber na partilha judicial homologado por sentença transitada em julgado.
2) O acórdão recorrido merece censura por não ter observado o afirmado em 1).

Termos em que se concede provimento ao recurso e, assim, revoga-se o acórdão recorrido, e declara-se serem Autores e Réus partes legitimas na presente acção.
Custas nas instâncias e neste Supremo Tribunal pelos Réus/recorridos.
Lisboa, 20 de Fevereiro de 1997
Miranda Gusmão,
Sá Couto,
Sousa Inês.
Decisões impugnadas:
I - Despacho de 23 de Fevereiro de 1994 do Tribunal de Círculo de Santo Tirso;
II - Acórdão de 31 de Janeiro de 1995 e 11 de Maio de 1996, ambos da Relação do Porto.