Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
04A3746
Nº Convencional: JSTJ000
Relator: LOPES PINTO
Descritores: RESPONSABILIDADE CIVIL
ACIDENTE DE VIAÇÃO
LESADO
DANO
PRESTAÇÃO
Nº do Documento: SJ200411230037461
Data do Acordão: 11/23/2004
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA.
Decisão: NEGADA A REVISTA.
Sumário : I- Para efeitos de responsabilidade civil por acidente de viação e de seguro automóvel obrigatório, lesado é quem sofre o dano (dano considerado como categoria, independentemente da natureza que possa revestir ou de cumulativamente conhecerem mais que uma), não é sinónimo de titular de direito a indemnização.
II- O dano como lesão dum interesse, o dano não é a ofensa mas a consequência nociva da ofensa.
III- Lesado é quem sofre o dano; vítima é todo aquele que sofreu a acção danosa, o que não significa nem implica que necessariamente tenha sofrido dano. Pode haver vítima sem ser lesada bem como pode haver lesado que não seja vítima. Pode ainda haver titular do direito a indemnização que não seja vítima nem lesado.
IV- A correspondência a estabelecer é entre lesado e dano (é deste, verificados os demais pressupostos, que deriva o direito a indemnização), entre um direito um lesado (independentemente do número de pessoas que possam beneficiar da indemnização atribuída em função de apenas um direito) e não entre lesado e pessoa com direito a perceber uma indemnização.
V- A prestação não é um dano. Ainda que, porventura, se possa indirectamente associá-la a um dano não é o dano - o Estado quando paga o vencimento ao seu funcionário, o estabelecimento hospitalar quando presta assistência não sofreram dano mas reparam uma parcela do dano sofrido pelo lesado. Cumprem a prestação a que estão adstritos o que os coloca num plano diferente do lesado, não o são.
Decisão Texto Integral: Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:

"A" propôs contra B, C e mulher D (a prosseguir, quanto a estes dois réus, com os seus sucessores habilitados) e Companhia de Seguros E, acção a fim de se os condenar na indemnização de 8.500.000$00, acrescidos de juros de mora desde a citação, pelos danos morais sofridos e de quantia a liquidar em execução de sentença pelos danos patrimoniais causados em consequência da colisão ocorrida em 91.10.03 entre o veículo automóvel IR e a motorizada PRD, aquele conduzido pelo 1º réu, por conta e sob as ordens e fiscalização do 2º, seu proprietário, e que para a ré seguradora transferira a responsabilidade civil emergente da sua circulação, e esta conduzida pelo autor, seu proprietário, colisão culposamente causada pelo 1º réu.
Contestando, o 2º réu excepcionou a sua ilegitimidade por o pedido se conter dentro do capital seguro e impugnou por desconhecer os factos, tendo a ré seguradora aceite a responsabilidade na produção do acidente embora ignorando a extensão das suas consequências, além de já ter despendido 478.990$00 em despesas de transporte do autor a tratamentos e na reparação da sua motorizada.
Apensada a acção intentada pelo Estado contra a Companhia de Seguros Fidelidade em que aquele pedia a condenação desta no pagamento dos vencimentos e subsídios que pagou ao autor, guarda da PSP, durante a incapacidade para o trabalho (91.10.03 a 94.04.11), no valor de 5.749.021$00, e de 3.122.790$00 de despesas que pagou por assistência médica e cirúrgica e internamento do autor, aos quais acrescem juros de mora desde a citação.
Improcedeu no saneador a excepção de ilegitimidade.
Em articulado superveniente, o autor liquidou o pedido de indemnização por danos patrimoniais em 12.350.000$00.
Prosseguindo até final, procedeu totalmente o pedido formulado pelo Estado contra a ré seguradora e, em parte, a do autor por sentença que a Relação, sob apelação do autor, confirmou.
De novo inconformado, pediu revista o autor, concluindo, em suma e no essencial, em suas alegações -
- o regime do seguro obrigatório, harmonizado já com o direito comunitário, substituiu o termo ‘vítima’ por ‘lesado’ para poder abranger os prejuízos materiais sofridos nos acidentes quando não existissem vítimas, já que lesado é todo aquele que sofre um prejuízo corporal ou material ao qual a lei concede o direito de ser indemnizado;
- os terceiros, para efeitos de responsabilidade civil emergente de acidente de viação, são lesados em consequência da circulação do veículo seguro, deles se exceptuando o tomador do seguro e os legítimos detentores ou condutores do veículo;
- o Estado que paga ao seu funcionário sem contrapartida laboral que justifica o dever de pagamento, fica com o direito próprio a ser reembolsado daquilo que entregou, sofre um dano próprio;
- a entender-se que tem direito ao reembolso através da sub-rogação legal, continua a ser ‘lesado’ porque adquire os poderes que competiam ao seu funcionário na qualidade de lesado/credor de indemnização nos termos da responsabilidade civil extracontratual;
- o autor foi, em consequência da lesão sofrida, aposentado precocemente por ter sido dado pela PSP incapaz para o serviço, ficando, assim, a sua reforma bastante diminuída;
- com o acidente sofreu graves e diversas lesões, ficando com uma IPP de 46%, o que lhe limita a qualidade de vida, quer económica quer social;
- assim, por existirem vários lesados, o limite do capital seguro era de 20 mil contos e, por consequência, deve o acórdão ser revogado e substituído por outro que considere ser esse o limite do capital seguro e condene a ré seguradora a pagar ao autor a quantia de 53.117,97€ (= 10.649.197$00);
- provou-se que o autor, à data do acidente, se encontrava de baixa médica;
- não se tendo provado que o acidente de viação foi simultaneamente de trabalho, não assiste ao Estado o direito ao reembolso do que pagou a título de remunerações e às despesas médicas suportadas;
- sem prejuízo e a entender-se como limite do capital seguro 12.000.000$00, deve, por haver dois lesados, proceder-se a rateio;
- violado o disposto nos arts. 562 CC e 6 e 16 dec-lei 522/85 e a jurisprudência fixada pelo STJ no seu acórdão uniformizador 5/97.
Contraalegando, defenderam a ré seguradora e o Estado a manutenção do acórdão.
Colhidos os vistos.

Ao abrigo do disposto no art. 713-6, ex vi do art. 726, ambos do CPC, remete-se para o acórdão recorrido a descrição da matéria de facto, sem prejuízo de, em breve síntese, se consignar a que importa ao conhecimento das duas únicas questões suscitadas - nº de lesados que resultaram do acidente (as duas outras referidas pelo autor - conformidade da orientação adoptada com o acórdão uniformizador 5/97 e rateio do capital disponível - surgem na sequência da tese que defendeu nos recursos interpostos) e assistir direito ao Estado para pedir a recuperação do que pagou - o que mais não representará que uma explicitação e concretização do relatório supra.

Afastada a discussão quer dos pressupostos da responsabilidade civil por facto ilícito quer sobre o quantum indemnizatório.

Decidindo:
1.- Durante o período em que esteve incapacitado para o trabalho o autor continuou a receber do Estado o vencimento e subsídios que lhe eram devidos como guarda da PSP.
A assistência médica e médico-cirúrgica e o internamento deste em 2 estabelecimentos hospitalares para tratamento das consequências das lesões causadas (culposamente pelo 1º réu) foram suportadas ainda pelo Estado.
Foi o reembolso do montante pago que o Estado reclamou, acrescido de juros de mora desde a citação.
As instâncias atribuíram a indemnização (global) de 16.089.000$00 - 12.089.000$00 pelos danos patrimoniais e 4.000.000$00 de compensação pelos danos não-patrimoniais.
O capital seguro é de 12.000.000$00 por lesado, no total de 20.000.000$00 por vários lesados.
A ré seguradora em despesas de transporte do autor a tratamentos e na reparação da sua motorizada despendeu 478.990$00.
Esta ré foi condenada a reembolsar o Estado pelo quantitativo reclamado e a pagar ao autor Trindade a indemnização de 13.214,15€ (pelo que, com o que despendera, ficou exaurido o capital seguro), acrescidos dos respectivos juros de mora desde a citação.
Os sucessores habilitados (entre eles o 1º réu) dos réus foram condenados a pagar ao autor Trindade, a indemnização de 67.037,44€, solidariamente com a seguradora até ao limite do capital seguro.

2.- As instâncias, por o Estado ser reembolsado por via subrogatória, recusaram haver lugar a rateio do capital seguro.
Reside aqui, embora sob outra perspectiva, a divergência do autor - o caso não era de rateio mas, por haver mais de um lesado, o capital seguro ser de 20.000.000$00.
A haver mais que um lesado, a possibilidade de rateio é excluída por o capital seguro ser suficiente - sendo de 20.000.000$00 excede o quantum indemnizatório atribuído.

3.- Contrapondo vítima a lesado defende o autor haver in casu uma pluralidade destes pelo que o capital seguro era não o de 12 mil mas de 20 mil contos.
Lesado é quem sofre o dano (dano considerado como categoria, independentemente da natureza que possa revestir ou de cumulativamente conhecerem mais que uma), não é sinónimo, como se verá, de titular de direito a indemnização.
O art. 6-2 do dec-lei 522/85, de 31.12, contém uma norma cuja ratio é definir o limite do capital seguro quando haja lugar a proceder a fixação de indemnização por haver mais que um direito a indemnização.
Esta norma está submetida ao nº anterior e apenas tem uma função distributiva, função a ser exercitada quando não se esteja perante um único direito a indemnização mas sim face a pluralidade destes direitos (contrariamente ao alegado, o art. 6º emprega os termos ‘vítima’ e ‘lesado’, não substituiu aquele por este).
4.- Um pressuposto da responsabilidade civil extra-contratual é o dano, a existência do dano e não mera hipótese (mesmo quanto a danos futuros, a lei não se contenta com meras hipóteses - art. 564,2 CC).
A. Varela refere (Das Obrigs. em Geral - I, p. 620) que o dano patrimonial é o reflexo do dano real sobre a situação patrimonial do lesado - ou diminui o valor de um património ou impede-o de aumentar. Aqui o dano é concebido como uma diferença de valor patrimonial, pelo que, quando não seja possível a reparação in natura, a indemnização se deve reduzir a cobrir essa diferença mediante uma soma em dinheiro, o que o direito não considera geralmente reparação perfeita (Gomes da Silva).
Castro Mendes, estudando o conceito de «dano» (Do Conceito Jurídico de Prejuízo in Jornal do Foro, 1953), manifestou a sua preferência pelo termo «prejuízos» e chama a atenção para as duas vias usadas para o definir, conduzindo uma a ‘prejuízo em si’ e a outra a ‘prejuízo reparável’.
O prejuízo em si é um mal, um evento nocivo, surge como o género, a categoria de que o prejuízo jurídico faz parte. A differentia specifica deste em relação ao género é a sua relevância jurídica e não a sua reparabilidade. O prejuízo jurídico é um mal causado a algo que a lei protege. Este ‘algo’ é o chamado ‘objecto do facto danoso’ e constitui a diferença específica do dano (p. 9).
O dano não pode ser concebido como uma diferença de valor patrimonial (a defeituosa tradução da definição de Paulus induziu a tal - damnum et damnatio ab ademptione et quase diminutione patrimonii dicta sunt), para o direito o dano não interessa apenas no seu aspecto de ‘diferença’, aspecto matemático ou abstracto; mas interessa toda a individualização do objecto efectivamente lesado, a qual será a base da reparação futura (p. 14 e 15). E porque o direito não tutela bens, mas interesses (hominis causa omne ius constitutum est, segundo Modestino) e o interesse, grosso modo, é a reacção ou posição da pessoa perante o bem, o dano não é a subtracção pura e simplesmente, mas a subtracção, enquanto priva o homem de uma utilidade, como escreveu von Tuhr (p. 16 e 17).
O dano como lesão dum interesse, o dano não é a ofensa mas a consequência nociva da ofensa.
Lesado é quem sofre o dano; vítima é todo aquele que sofreu a acção danosa, o que não significa nem implica que necessariamente tenha sofrido dano. Pode haver vítima sem ser lesada bem como pode haver lesado que não seja vítima. Pode ainda haver titular do direito a indemnização que não seja vítima nem lesado (v.g., CC- 495 e art. 6 do dec-lei 218/99, de 15.06).
A correspondência a estabelecer é entre lesado e dano (deste, verificados os demais pressupostos, é que deriva o direito a indemnização) e não entre lesado e pessoa com direito a perceber uma indemnização - para a noção de lesado irreleva se a indemnização pode beneficiar, na sua atribuição, mais que uma pessoa (o importante é a atribuição, não a repartição da indemnização decorrente do direito atribuído) e essa categoria não inclui terceiro em que na génese do direito a indemnização não se encontra o dano.
Interessará determinar se estamos perante um direito ou uma pluralidade de direitos a indemnização para saber quer qual o limite máximo do capital seguro a ter em conta quer quais os limites da indemnização pelo risco, sendo que de rateio só se poderá falar havendo pluralidade e insuficiência do capital.
Isto o que se conclui quer da análise do direito nacional quer do direito comunitário.
Do art. 1-2 da Directiva do Conselho (72/166/CEE) de 72.04.24, do preâmbulo à Directiva do Conselho (84/5/CEE) de 83.12.30 e dos arts. 1-1 e 3 da Directiva do Parlamento Europeu e do Conselho (2000/26/CE) de 00.05.16, respectivamente, 1ª, 2ª e 4ª Directivas Automóvel, colhe-se apoio à correspondência entre um direito↔um lesado (portanto, independentemente do número de pessoas que possam beneficiar da indemnização atribuída em função de apenas um direito).
Vítima não é mais, pois, que uma referência tomada para a noção de lesado, este como quem directa, mas física e/ou psiquicamente, sofreu o dano (directamente causado pelo facto e não o dano que, embora próprio, surge na repercussão daquele em terceiro - caso do art. 496-2 CC; este será titular do direito a indemnização mas não é lesado).

5.- O Estado quando paga o vencimento aos seus agentes cumpre a sua obrigação de remunerar, em execução do vínculo que assumiu, o trabalho do servidor.
O estabelecimento hospitalar tem direito à prestação pelo serviço que lhe foi pedido e prestou.
Nestes casos, como noutros similares, o pagamento efectuado é a satisfação de uma prestação a que se vinculou. É o comportamento (in casu, positivo, um facere) a que o devedor (Estado, estabelecimento hospitalar) está adstrito em face do credor (ali, o agente; aqui, o doente) - a prestação.
A prestação não é um dano. Ainda que, porventura, se possa indirectamente associá-la a um dano não é o dano - o devedor não sofreu dano mas repara uma parcela do dano sofrido pelo lesado (cfr., neste sentido, A. Varela in RLJ 103/251). Quando paga o vencimento ainda que sem contrapartida imediata da prestação de trabalho, quando presta serviços médicos ou hospitalares ao acidentado, etc., não sofreu o devedor qualquer dano próprio - quem o sofreu foi o lesado, mas está a parcelarmente reparar este. Cumpre a prestação a que está adstrito o que o coloca num plano diferente do lesado, não o é.
Assim, quando o Estado, como entidade patronal, paga o vencimento devido ao agente ou o estabelecimento hospitalar presta os cuidados médicos fá-lo no cumprimento de uma obrigação e não porque tenha sofrido qualquer dano próprio. É credor ou poderá ser credor se houver lugar a retribuição e por ela dever ser responsabilizado ou o próprio ou um terceiro, mas essa retribuição não é indemnização e sim a prestação de uma relação que aquele irá receber seja por via subrogatória seja por direito próprio.
Nessa medida, a doutrina que resulta do acórdão uniformizador do STJ de 97.01.14 in D.R., sér. I-A, de 97.03.27, nada adianta para a noção de lesado (conclusão para ser alcançada dispensou a análise da desconformidade das situações, atinge-se-a independentemente da diversidade - ali, acidente simultaneamente de viação e de trabalho; aqui, acidente apenas de viação).
6.- O autor, guarda da PSP, estava, à data do facto lesivo, na situação de baixa médica e o Estado pagava-lhe o ordenado devido.
O pagamento do vencimento era feito, pois, sem a contrapartida da prestação laboral.
É a lei que prescreve essa obrigação do Estado (dec-lei 497/88, de 30.12 - 19-1 g) e h) e 27 e segs).
O Estado pagou a assistência médica e médica-cirúrgica e os internamentos do autor.
É a lei que prescreve essa obrigação do Estado (dec-lei 118/83, de 25.02 - 1-1 a), 19-3 e 4, e 21-1 b).
Embora obrigações legais cuja justificação se vai buscar à relação administrativa não deixam de ser informadas ainda por considerações de ordem previdencial (aquela) e assistencial (esta) o que é posto em relevo quando a lei prevê que possa funcionar como uma antecipação e confere ao Estado o direito de recuperar de terceiro o que, com aquele fundamento, pagou ao seu funcionário.
Por conhecerem também a natureza previdencial e assistencial estas obrigações estão abrangidas no art. 495-2 CC que consagra uma excepção à regra do regime geral de responsabilidade civil de só o lesado gozar do direito de exigir indemnização ao lesante (P. Lima-A. Varela in CCAnot I/498).

Termos em que se nega a revista.
Custas pelo recorrente.

Lisboa, 23 de Novembro de 2004
Lopes Pinto
Pinto Monteiro
Lemos Triunfante