Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça | |||
Processo: |
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Nº Convencional: | JSTJ000 | ||
Relator: | SORETO DE BARROS | ||
Descritores: | EXTINÇÃO DO PROCEDIMENTO CRIMINAL PRESCRIÇÃO DO PROCEDIMENTO CRIMINAL CONTUMÁCIA ACÓRDÃO PARA FIXAÇÃO DE JURISPRUDÊNCIA CONSTITUCIONALIDADE APLICAÇÃO DA LEI NO TEMPO REGIME CONCRETAMENTE MAIS FAVORÁVEL | ||
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Nº do Documento: | SJ200803060026043 | ||
Data do Acordão: | 02/06/2008 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
Privacidade: | 1 | ||
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Meio Processual: | RECURSO PENAL | ||
Decisão: | PROVIDO O RECURSO | ||
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Sumário : | I - A verificação da prescrição é de conhecimento oficioso e pode ter lugar a todo o tempo, pois que é causa de extinção do procedimento criminal. II - No Assento n.º 10/2000, de 10-11, o STJ fixou jurisprudência no sentido de que «No domínio da vigência do Código Penal de 1982 e do Código de Processo Penal de 1987, a declaração de contumácia constituía causa de suspensão da prescrição do procedimento criminal». III - A decisão que resolver o conflito – no caso do Assento n.º 10/2000, decorrente das “soluções opostas” tomadas nos acórdãos do Tribunal da Relação de Lisboa proferidos nos recursos n.ºs 4805/99 e 4445/99 – não constitui jurisprudência obrigatória para os tribunais judiciais, mas estes devem fundamentar as divergências relativas à jurisprudência fixada naquela decisão (n.º 3 do art. 445.º do CPP). IV - Tal comando é igualmente aplicável às secções criminais deste Supremo Tribunal, havendo lugar, também aqui, à necessidade de ‘fundamentar as divergências’. V - Ora, os tribunais só devem divergir da jurisprudência uniformizada quando haja razões para crer que ela está ultrapassada, isto é, quando: - o tribunal tiver desenvolvido um argumento novo e de grande valor, não ponderado no acórdão uniformizador, susceptível de desequilibrar os termos da discussão jurídica contra a solução anteriormente perfilhada; - se tornar patente que a evolução doutrinal e jurisprudencial alterou significativamente o peso relativo dos argumentos então utilizados, por forma que, na actualidade, a sua ponderação conduziria a resultado diverso; - a alteração da composição do STJ torne claro que a maioria dos juízes das secções criminais deixou de partilhar fundadamente da posição fixada. VI - O citado acórdão uniformizador, embora sem tratar da questão nos fundamentos da decisão que fez vencimento, não deixa de dar nota das dificuldades de acomodação constitucional – que, recorrentemente, lhe viriam a ser opostas – já que alguns dos juízes subscritores as anteciparam e deixaram consignadas nos ‘votos de vencidos’, embora nos limites concedidos pela natureza desse registo (actualmente, dos Juízes Conselheiros que subscreveram o acórdão apenas parte dos que apresentaram voto de vencido integram ainda as secções criminais do STJ). VII - O tema voltou a ser tratado no Ac. do TC n.º 110/2007, de 15-02-2007, que, a final, decidiu, julgar inconstitucional, por violação do art. 29.º, n.ºs 1 e 3, da CRP, a norma extraída das disposições conjugadas do art. 119.º, n.º 1, al. a), do CP, e do art. 336.º, n.º 1, do CPP, ambos na redacção originária, na interpretação segundo a qual a prescrição do procedimento criminal se suspende com a declaração de contumácia. VIII - Entende-se, pois, ser de afastar a aplicação da jurisprudência fixada no referido Assento n.º 10/2000. IX - No caso dos autos é imputada à arguida a autoria de um crime de homicídio qualificado, previsto pelo art. 132.º, n.º 2, als. a) e g), do CP82, punido (então) com pena de prisão de 12 a 20 anos, sendo que nos termos do disposto no art. 117.º, n.º 1, al. a), do CP82 – actualmente art. 118.º, n.º 1, al. a) – o procedimento criminal extinguir-se-ia, por efeito de prescrição, logo que sobre a prática do crime tivessem decorrido 15 anos. X - Resultando dos autos que: - a morte que deu objecto ao presente processo ocorreu em 03-05-1988; - neste, foi proferida declaração de contumácia da arguida em 19-02-1990, situação que veio a cessar por despacho 14-07-2005; - antes do decurso daquele prazo de prescrição do procedimento criminal (15 anos) não ocorreu causa relevante de suspensão ou interrupção do mesmo (o interrogatório da arguida, pelo MP, ocorreu em 24-05-1988 [Na vigência do Código Penal de 1982, redacção original, a notificação para as primeiras declarações, para comparência ou interrogatório do agente, como arguido, no inquérito, sendo o acto determinado ou praticado pelo Ministério Público, não interrompe a prescrição do procedimento criminal, ao abrigo do disposto no artigo 120.º, n.º 1, alínea a), daquele diploma – Ac. do Pleno das Secções Criminais do STJ, de 12-11-1998, DR I-A, n.º 3/99, de 05-01] e a notificação pessoal da acusação concretizou-se em 03-01-2006, sendo certo que o período em que esteve contumaz não determinou a suspensão da prescrição do procedimento criminal; impõe-se concluir que na data da prolação do acórdão final do tribunal colectivo, 18-12-2006, o procedimento criminal já se encontrava extinto, por prescrição. | ||
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Decisão Texto Integral: | 1. O Ministério Público deduziu acusação contra a arguida AA, identificada nos autos, imputando-lhe um crime de homicídio qualificado, previsto pelos artigos 131° e 132°, n.ºs 1 e 2, alíneas a) e g) do C. Penal . O Tribunal da Comarca de Leiria procedeu ao julgamento e, por acórdão de 18.12.06, proferido no processo n.º 253/99, condenou-a - 'fazendo intervir a atenuação especial da pena, ao abrigo do disposto no art.º 73°, n.ºs 1 e 2, alínea d), do C. Penal de 1982' - na pena de oito anos de prisão, 'como autora de um crime de homicídio qualificado previsto pelo artigo 132º, n.º 2, alíneas a) e g), do C. Penal de 1982' . 1.1 Desta decisão, recorreram o Ministério Público e a arguida . 1.1.1 O Ministério Público fechou a motivação com as seguintes conclusões : 1ª. Só sob um prisma «pluridimensional», numa perspectiva que, nunca descurando as específicas exigências de retribuição e, portanto, a total correspondência que deve existir, em princípio, entre a pena e a culpa do agente (enquanto esta constitui fundamento, limite ou legitimidade daquela), compatibilize os interesses de defesa da sociedade (seja através da ameaça abstracta da pena relativamente a todos os seus membros, seja pela recuperação ou intimidação do delinquente para a não prática do crime) com os de reintegração do condenado nela (ainda que, para este fim e excepcionalmente, seja necessário o sacrifício daquela total correspondência) e tenha, desta forma, em conta o que, hoje, é evidenciado pelo disposto no artigo 40º., nºs. 1 e 2, do Cód. Penal, se pode avaliar e determinar o grau «acentuado» de «diminuição» da «necessidade da pena» da circunstância a que alude o artigo 73º., nºs. 1 e 2, alínea d), do Cód. Penal de 1982, na sua primitiva redacção (hoje, artigo 72º., nºs. 1 e 2, alínea d)). 2a O bom comportamento, evidenciado, nomeadamente, através de um «certificado de registo criminal limpo», não constitui, porém, a «boa conduta» a que alude a referida alínea, 3a• Já que o dever de observar as leis criminais é um dever de qualquer cidadão e aquele que o cumpre nada mais faz do que observar as regras de convivência social necessárias ao relacionamento entre ele e os outros. 4a• Antes se torna necessário um comportamento «melhor do que o da normalidade dos indivíduos com iguais condições de vida, idade, cultura, etc., e colocados nas mesmas condições de criminalidade», 5ª. Pois só assim se pode dizer que o «muito tempo» «mexeu profundamente no agente» e, portanto, que a sua personalidade se modificou para muito melhor (Acs. do S.T.J., de 18/07/1984 e 13/11/1985), 6a• O que não se pode afirmar quando, como acontece no caso dos autos: a) - para o decurso do «muito tempo», contribui, exclusiva ou preponderantemente, a arguida ao ausentar-se, pouco tempo após a prática do crime ("in casu", em 3 de Maio de 1988) e o seu interrogatório (em 24 do mesmo mês), primeiro, para parte incerta do Pais e, de seguida, do estrangeiro, retardando, assim, pelo menos, durante mais de 16 anos, a efectivação do seu julgamento; b) - se dá apenas por provada a sua inserção social no País onde viveu e que, à data de emissão do respectivo certificado, no registo criminal nada consta; e c) - nem sequer se pode invocar que se está perante um agente em que o crime praticado aparece como desajustado à sua personalidade. 7a• Daí que não se encontre preenchido a referida circunstância do citado artigo 73°. e não deva, em consequência, ter lugar a atenuação nele prevista, 8ª. Atenuação que, «in casu» e para além de funcionar como um verdadeiro prémio da declaração de contumácia que, em 19 de Fevereiro de 1990, a arguida foi objecto e apenas veio a cessar em 14 de Julho de 2005, fere, na nossa opinião, o sentimento de Justiça que deve estar subjacente à punição do crime por ela praticado, 9a• Um dos que mais repugnam à sensibilidade humana e à consciência ético-social, não só pela malvadez e baixeza de sentimentos revelados, mas também pela total indiferença ao sofrimento que foi provocado à vítima (filho com apenas 6 anos e paralisia cerebral, tetraplésia, afasia e deficiência visual grave) com o não fornecimento, ao longo de meses, da alimentação indispensável à sua sobrevivência. 10ª. Está-se, pois, perante um crime com um dolo muito intenso que, não fora o disposto no artigo 72°., n°. 1, do Cód. Penal (na redacção vigente à data do crime), enquanto manda atender às exigências de prevenção, reclamaria, em face dos critérios retributivos, uma pena não inferior a 16 anos, considerando a moldura penal abstracta de 12 a 20 anos de prisão prevista pelo artigo 132º., nº. 1, do mesmo diploma (17 anos e 6 meses, atendendo à moldura da redacção actualmente vigente). 11ª. Atendendo, porém, a essas (primeiras) exigências, mais concretamente, às que se prendem com a prevenção especial (face à inserção social da arguida e à circunstância de o tempo decorrido ter esbatido, em certa medida, a intensidade com que elas se faziam sentir à data da prática do crime pelo qual aquela foi condenada), parece-nos que elas têm algum «peso», sendo de molde a que a pena a aplicar se aproxime do limite mínimo legalmente previsto e, desta forma, a que uma pena não inferior a 13 anos de prisão se possa e deva ter como justa, inclusive, tendo em conta as exigências de prevenção geral. 12ª• Do que se segue que, ao fazer funcionar a referida regra de atenuação (especial) nas circunstâncias acima referidas e, em consequência, ao condenar a arguida (tão só) na pena de oito anos de prisão, o Acórdão recorrido violou, na nossa opinião, o disposto no artigo 73°., nºs. 1 e 2, alínea d), do Cód. Penal de 1982, na sua primitiva redacção (hoje, artigo 72º., nºs. 1 e 2, alínea d), com referência ao artigo 40º., nºs. 1 e 2) e, por via desta violação, também o preceituado no artigo 72º., nº. 1, do mesmo diploma, 13ª• Pelo que deve ser revogado nessa parte e a arguida condenada em pena que se insira na moldura penal abstracta correspondente ao crime de homicídio qualificado por ela praticado. (fls. 681 a 703) 1.1.2 Por sua vez, a recorrente terminou a motivação com as seguintes conclusões : 1. No caso em apreço a não aplicação do preceituado no Código Penal de 1982, aplicável á data em que os factos pelos quais a arguida foi condenada foram praticados, viola o estatuído no nº 4 do artigo 2° do actual Código Penal; 2. Ora, tendo a arguida recorrente sido condenada, por um crime cometido à luz do disposto pelo Código Penal de 1982, e sendo esta a norma mais favorável àquela, deverá ser o regime previsto por este código que deve ser aplicado, não sendo de atender ao regime consagrado no Código Penal de 1995 ou posteriores revisões. 3. Decorre de diversa jurisprudência constitucional a manifesta inconstitucionalidade, por violação do artigo 290, n.1 e 3 da CRP, da equiparação da causa de interrupção prevista no artigo 120, n. 1 al. d) do Código Penal de 1982, com a declaração de contumácia por a omissão da contumácia entre as causas de interrupção da prescrição constituir uma "lacuna insusceptível de ser preenchida" ; 4. Não pode proceder a consideração da declaração de contumácia como uma causa de suspensão da prescrição, nos termos do Assento n. 10/2000 de 19.10.2000, que consubstancia uma aplicação analógica e retroactiva a factos anteriores a 1.10.1995, de uma causa de suspensão inexistente no Código Penal de 1982 - a declaração de contumácia, o que a ser aplicado viola o estatuído pelo nº 4 do artigo 290 da Constituição da República Portuguesa. 5. Entende a recorrente que a declaração de contumácia não é causa de suspensão do procedimento criminal, no caso em apreço e portanto na vigência do Código Penal de 1982 e do Código de Processo Penal de 1987; 6. Salvo melhor entendimento a arguida recorrente que, pela prática de factos ocorridos em 3 Maio de 1988, o Tribunal Colectivo considerou, ter praticado um crime de homicídio qualificado previsto pelo artigo 132º, n.º 2, alíneas a) e g), do Código Penal de 1982, que foi declarada contumaz por despacho de 19 de Fevereiro de 1990, que foi notificada da acusação em 3 de Janeiro de 2006, e da data designada para julgamento, em 28 de Julho de 2006, mantendo-se na situação de contumaz até 14 de Julho de 2005, essa declaração de contumácia é irrelevante para a prescrição, visto que a declaração de contumácia, com efeito interruptivo dessa mesma prescrição, só surgiu com o Código Penal de 1995 (alínea c), do n.º 1, do art.º 121), regime este que não pode, obviamente, ser aplicado ao caso, visto a Constituição e o Código Penal proibirem a aplicação retroactiva da Lei Penal (art.º 29, n.º 1, da Constituição e art.º 2, dos Códigos Penais de 82 e 95), pelo que a sujeição da arguida a julgamento viola o disposto nos referidos artigos. 7. Assim, o douto acórdão recorrido, ao não considerar prescrito o procedimento criminal, e o Tribunal ad quo, sujeitando a arguida a julgamento, está ferido de uma inconstitucionalidade orgânica, por violação do estatuído no art.º 29, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa, porquanto não é de acolher a Jurisprudência do Acórdão n.º 10/2000 do Supremo Tribunal de Justiça, publicado no Diário da República, I série-A, de 10 de Novembro de 2000. 8. No que respeita à medida da pena aplicada entende-se ter sido desproporcional e inadequada aos factos provados em audiência de julgamento, não tendo sido devidamente ponderadas para o caso em concreto a culpa do agente, a ilicitude dos factos e da sua actuação e as exigências de prevenção geral e especial e as condições pessoais da arguida, havendo assim uma clara violação do disposto nos artigos 700, 71º, 73º e 74º do Código de Penal de 1982; 9. Pelo exposto, entende a arguida que a pena em que foi condenada, dado o circunstancialismo que rodeou os factos pelos quais foi condenada é excessiva, devendo sim ser-lhe aplicada um pena mais próxima da média entre os limites mínimos e máximos que lhe podem ser aplicados e assim considera que a pena de 4 anos de prisão será mais adequada; 10. Com o fundamento na inobservância nas normas jurídicas que antecedem, deve: a) O presente recurso merecer provimento; b) Ser o presente processo declarado prescrito, ao abrigo do disposto no artigo 117º e 120º do Código Penal de 1982; c) Caso assim senão entenda deverá a arguida AA, ser condenada como autora de um crime de homicídio qualificado previsto pelo artigo 132º, n.º 2, alíneas a) e g), do Código Penal de 1982 na pena de quatro (4) anos de prisão. d) Concluir-se pela verificada inconstitucionalidade referida nos nºs 1 a 7 da presente Conclusão. Face a todos os fundamentos expostos neste recurso e face ao que fica dito, deverá a sentença ora proferida, ser revista no sentido de o presente processo ser considerado prescrito, pelo decurso do prazo do procedimento criminal (15 anos), e como tal dando sem efeito o julgamento realizado considerando a arguida livre de quaisquer imputações criminais. Caso assim senão entenda, então, ao abrigo do disposto a artigos 70º. 71º, 73º e 74º do Código de Penal de 1982, deverá a pena aplicada à arguida ser atenuada especialmente, fixando-se esta próximo dos limites mínimos, ou Seia, em 4 anos de prisão. Só assim se fazendo a devida e costumada JUSTIÇA!! (fim de transcrição) 1.2 Os recursos foram admitidos, para o Tribunal da Relação de Coimbra, com subida imediata, nos próprios autos, com efeito suspensivo . (fls. 729) 1.3 O Ministério Público respondeu ao recurso da arguida concluindo que : - ambos os recursos visam apenas o conhecimento de questões de direito, sendo competente para o respectivo julgamento o Supremo Tribunal de Justiça ; - a questão da extinção do procedimento criminal por efeito de prescrição já foi objecto de decisão transitada em julgado (cfr. fls. 473 e ss), não havendo que voltar a apreciar a mesma (artigos 672º., 673º., e 677º. do Cód. Proc. Civil, "ex vi" artigo 4º. do Cód. Proc. Penal) ; - se alguma crítica merece o acórdão recorrido é por ter sido demasiado benevolente na condenação que proferiu . (fls. 733) 1.3.1 Respondeu, também, a arguida, a defender as suas pretensões e a concluir pela improcedência do recurso do Ministério Público . (fls. 737 a 760) 1.4 Por decisão de 06.06.07, o Tribunal da Relação de Coimbra declarou-se incompetente para conhecer destes recursos e competente, para o efeito, o Supremo Tribunal de Justiça . (fls. 923) 2. No exame preliminar, o relator decidiu apresentar os autos a conferência, para apreciação e decisão da questão, suscitada pela recorrente, da prescrição do procedimento criminal . 3. Realizada a conferência, cumpre decidir . 3.1 A matéria de facto que o Tribunal da Comarca de Leiria deu como assente é a seguinte : 1. A arguida e BB eram pais de CC, nascido em 3 de Abril de 1982, natural da freguesia e concelho da Marinha Grande. 2. A arguida viveu maritalmente com BB pelo menos desde meados de 1981 até 3 de Maio de 1988. 3. O seu agregado familiar era composto por eles, pelo menor CC e por mais 3 filhos de ambos: duas raparigas, uma delas nascida em 1983 e outra em 1984, e um rapaz nascido a 22 de Dezembro de 1987, portador de doença congénita que morreu com cinco meses de vida. 4. As despesas desse agregado familiar eram custeada com parte do vencimento que BB auferia quando trabalhava por conta de outrém. 5. Esse vencimento foi de 1 000$00 diários líquidos desde data não apurada de 1987 até Novembro desse ano, quando exerceu a actividade de feirante, nomeadamente em Silves, por conta de DD. 6. No mês de Dezembro de 1987 auferiu 16 413$00, no mês de Fevereiro de 1988 auferiu 34 583$00 e no mês Março de 1988 auferiu 4 555$00, quando trabalhou para a sociedade J...R..., Limitada. 7. Em Abril e Maio de 1988, BB trabalhou por conta da empresa O..., auferindo o vencimento base de 30 000$00 por mês. 8. Entre data não apurada de 1987 e Novembro do mesmo ano, quando o seu companheiro exerceu a actividade de feirante por conta de DDl, a arguida trabalhou com ele, auferindo 1 000$00 diários líquidos. 9. Para além deste período, a arguida só esporadicamente trabalhava por conta de outrem. 10. Enquanto trabalharam como feirantes por conta deDD, o casal viveu junto do seu local de trabalho, numa roulote que lhes foi emprestada pela entidade patronal. Nela viveram também os filhos. 11. Era a arguida quem habitualmente cuidava das lides domésticas, nomeadamente a preparação e o fornecimento de alimentos, a par de outros cuidados necessários ao normal desenvolvimento físico dos filhos, como os relativos à sua limpeza e vestuário. 12. As suas filhas aparentavam estar bem alimentadas. 13.A arguida fumava e tomava cafés. 14. O menor CC sofria de paralisia cerebral, síndroma malformativo congénito com microftalmia (deficiência visual grave), tetraplésia, afasia e surdez. 15. Em data não apurada, mas anterior a 8 de Julho de 1987, a arguida formulou a resolução de pôr termo à vida de CC por inanição. 16. Não compareceu com ele no dia 30 de Outubro de 1987 à consulta externa que havia sido marcada para o mesmo dia no Hospital pediátrico de Coimbra, não obstante ter saído de Silves, acompanhada dele, no dia anterior, dizendo que o ia submeter a tal consulta. 17. Apesar de saber que ele necessitava de mais cuidados do que uma criança normal, começou a deixá-lo sozinho por períodos indeterminados de tempo. 18. Com o propósito de lhe pôr termo à vida deixou de lhe dar alimentos apropriados e em quantidades necessárias à sua sobrevivência, primeiramente em Silves e a partir de Dezembro de 1987 no lugar da residência de ambos, em Barosa, Leiria, o que lhe provocou um estado de completa desnutrição que lhe determinou directa e necessariamente a morte. 19. Morte que ocorreu em 3 de Maio de 1988, cerca das 17 horas 40 minutos, no lugar da Barosa. 20. O CC pesava, na altura, cerca de 6 quilogramas e encontrava-se, mais uma vez, sozinho, deitado na cama de onde raramente era levantado e, em virtude da doença de que padecia, não conseguia erguer-se. 21. O pai tinha ido trabalhar logo pela manhã. 22. A arguida tinha ido ao hospital de Leiria, deixando o menor CC fechado em casa e sem pedir a qualquer pessoa que cuidasse dele. Só regressou à sua habitação momentos depois da sua morte. 23. A arguida agiu de forma deliberada, livre e consciente, com conhecimento das deficiências físicas do filho CC e do seu estado de desnutrição. 24. Sabia que a sua conduta era proibida por lei. 25. A arguida é oriunda de uma família de baixo estrato sócio cultural. 26. Frequentou a escola até aos 14 anos de idade, tendo concluído a 4" classe. Depois de sair da escola trabalhou como empregada doméstica. 27. Com cerca de 16 anos ficou grávida, tendo sido mãe de uma criança do sexo feminino aos 17 anos. A filha viveu sempre com a avó materna. 28. Algum tempo depois do nascimento da filha, a arguida passou a viver com BB, primeiro em Mira D'Aire, e depois na Marinha Grande. 29. Na época das feiras de diversão trabalharam nesta actividade, vivendo nessas ocasiões em barracas. 30. Mais tarde vieram viver para a localidade da Barosa, numa casa tomada de arrendamento onde viveram juntos até 3 de Maio de 1988. 31. Após o falecimento de CC, a arguida deixou de viver na Barosa, tendo ido, primeiro, para casa da mãe, na Marinha Grande, e depois para Viana do Castelo, onde trabalhou num bar de alterne. Passado algum tempo passou a viver com um companheiro, tendo indo com este para Andorra onde o mesmo vivia e trabalhava. 32. Desta relação tem um filho actualmente com 16 anos de idade, a viver em Andorra. 33. Em Andorra, a arguida trabalhou como empregada doméstica durante 10 anos e mais tarde como ajudante de cozinheira. 34. Há cerca de um ano regressou a Portugal e vive na Marinha Grande em casa de uma família constituída por uma senhora de 60 anos de idade e outra de 89 anos. Além de colaborar nas tarefas domésticas, a arguida trabalha em casas particulares a fazer limpeza e a passar a ferro. 35. Em 28 de Setembro de 2006 nada constava acerca da arguida no registo criminal. * Não se provou que: 36. BB auferiu 8 000$00 numa semana de Março de 1988 por conta da Rodrifer, em Leiria. 37. BB entregava directamente à arguida parte do vencimento que auferia. 38. A arguida passou a não lavar CC com assiduidade, a não limpar-lhe os dejectos e a urina sempre que eram expelidos e posteriormente a não tratá-lo das feridas por ele provocadas. 3.2 Perante esta factualidade, o Tribunal considerou que 'a arguida seria punida pelo regime que vigorava na altura da prática dos factos e, julgando a acusação procedente - mas atenuando especialmente a pena aplicável à arguida ao abrigo do disposto no artigo 73°, n.ºs 1 e 2, alínea d), do C. Penal de 1982 - condenou-a como autora de um crime de homicídio qualificado previsto pelo artigo 132°, n.º 2, alíneas a) e g), do C. Penal de 1982 na pena de oito (8) anos de prisão' . 4. A primeira questão a abordar é da prescrição do procedimento criminal, invocada pela arguida ; e, a ela associada, a objecção que, na resposta ao recurso, o Ministério Público opôs de 'a questão da extinção do procedimento criminal por efeito da prescrição (…) já ter sido objecto de decisão transitada em julgado, razão pela qual não há que voltar a apreciar a mesma (artigos 672º., 673º. E 677º. do Cód. Proc. Civil, "ex vi" artigo 4º. Do Cód. Proc. Penal)' . 4.1 Na verdade, o Tribunal de Leiria, por despacho de 20.12.04, tinha tomado a seguinte posição : (…) "3. 0s factos em causa [na acusação] integram um crime de homicídio qualificado p. e p. nos arts. 131° e 132° n° 2 als. a) e g) do C.P., ocorrido a 3-5-1988. 4. O Ministério Público promove a prescrição do procedimento criminal. 5. A arguida foi ouvida em inquérito (cfr. fls. 78, a 24-5-1988). 6. A arguida foi notificada editalmente da acusação, e não mais foi notificada, tendo sido declarada contumaz em 19-2-1990. Foram realizadas várias diligências no sentido de ser encontrada nomeadamente pedidos à Segurança Social, a concessionárias de telecomunicações, e expedidos mandados de detenção, último dos quais às autoridades de Andorra, tendo sido solicitado a sua devolução sem cumprimento. 7. De acordo com o regime aplicável, o do C.P. de 1982 e o do C.P.P. de 1987 na sua primitiva versão, inexistem causas suspensivas ou interruptivas, sendo certo que aquelas que o C.P. prevê são tão somente as aí previstas, e não outras criadas ex novo. Assim, não é de atender ao regime consagrado no C.P. de 1995 ou posteriores revisões (assim, Assento do STJ de 17-3-1989 segundo o qual a aplicação do instituto deve ser em bloco (1), isto é, no caso concreto há que atender ao regime prescricional em vigor no momento da infracção) (2). 8. De facto, foi discutido na jurisprudência se a audição como arguido em inquérito era causa de interrupção da prescrição, questão que foi solucionada no sentido negativo essencialmente porque não é similar o regime das causas interruptivas ou suspensivas no C.P. de 1982 com o regime processual do C.P.P. de 1987 porquanto o termo "instrução preparatória" não era equivalente a "inquérito" usado no último diploma referido, cfr. Assento nº 1/1999 e nº 12/2000. 9. A arguida nunca foi notificada do despacho que designa data para a audiência de julgamento, sendo este acto suspensivo e interruptivo do instituto da prescrição. 10. O prazo prescricional é de 15 anos atento o art. 117° n° 1 a) do C.P. de 1982. 11. Tal prazo mostra-se decorrido a 3-5-2003, verificando-se a prescrição do procedimento criminal. 12. Assim, por tudo o exposto, declaro extinto o procedimento criminal, declarando-se cessada a contumácia." Acontece que o Ministério Público - não obstante ter promovido tal solução processual - veio recorrer do despacho, invocando, fundamentalmente, o Assento n.º 10/2000, de 10.11 (fls. 469 a 472) . Porém, o senhor juiz do processo, sem tomar posição sobre o requerimento de interposição do recurso e sem se deter perante o disposto no art.º 380.º, n.ºs 3. e 1., al. b), do C.P.P.(3) , veio decidir que : "Assiste razão desde já à Digna Recorrente. De facto, "no domínio da vigência do Código Penal de 1982 e do Código de Processo Penal de 1987, a declaração de contumácia constituía causa de suspensão da prescrição do procedimento criminal" (Assento 10/2000, DR 1ª série, de 10-11-2000, p. 6319). Ora, estando a arguida contumaz, verifica-se a causa suspensiva, não se verificando prescrição. Diga-se desde já que o Acórdão teve o voto vencido do Sr. Conselheiro Carmona da Mota (a que adere o Sr. Conselheiro Pereira Madeira) a que adiro, porém não tendo outra capacidade argumentativa que aí referida, e tendo sido posição vencida, e atento o disposto no art. 445° n° 3 do C.P.P., não encontrando novas razões de divergência (e é este o cerne da questão da lª instância divergir, não bastando assim reproduzir argumentos constantes em voto de vencido ou de razões paralelas ao mesmo, como seria o meu caso, pois o que se exige é uma maior densidade argumentativa que ultrapasse a posição que logrou vencimento, entendendo-se por maior densidade argumentativa o estabelecimento de novos dados sem ligação lógico"discursiva com os anteriormente reproduzidos), é assim jurisprudência obrigatória a atender nesta sede, pelo que se conclui não estar o procedimento prescrito por a arguida se encontrar contumaz. " (fim de transcrição) O despacho só foi notificado à arguida em 03.01.06 (fls. 506), e não há notícia de que a questão da prescrição do procedimento criminal tenha sido de novo suscitada, antes de o ser no presente recurso (o acórdão condenatório refere que "na ausência de questões prévias ou incidentais que obstassem ao conhecimento do mérito da causa realizou-se o julgamento com observância do formalismo legal" - fls. 634) . Mas, para além de pronúncia sobre os vícios de tal decisão, há, sobretudo, que ter presentes as considerações que foram expendidas no acórdão de 24.05.06, deste Tribunal, no recurso n.º 1041/06 (4) : (…) "7. O caso julgado formal constitui noção separada do caso julgado que, como categoria geral (caso julgado material) está construída para a decisão definitiva do direito do caso, nas condições da sua existência, conteúdo e modalidades de exercício; no processo penal respeita à declaração sobre a culpabilidade e determinação da sanção, bem como da não culpabilidade (seja por não pronúncia ou por absolvição). O caso julgado que fixa, no processo e fora dele, a vinculação de efeitos materiais quanto á definição e concretização judicial da relação controvertida ou objecto material do processo, é o caso julgado material – fixado e estável com fundamento na vinculação às decisões e na realização dos valores da justiça, certeza e segurança, também no âmbito do exercício do direito de punir do Estado em relação ao cidadão arguido da prática de uma infracção penal. Em processo penal, pode dizer-se que existe caso julgado material quando a decisão se torna firme, impedindo a renovação da instância em qualquer processo que tenha por objecto a apreciação do mesmo ou dos mesmos factos ilícitos. O caso julgado formal não assume semelhante função, nem contém, no essencial, dimensão substancial. O caso julgado formal traduz-se em mera irrevogabilidade de acto ou decisão judicial que serve de continente a uma afirmação jurídica ou conteúdo e pensamento, isto é, em inalterabilidade da sentença por acto posterior no mesmo processo (cfr., Castro Mendes, “Limites Objectivos do Caso Julgado em Processo Civil”, p. 16). No caso julgado formal (artigo 672º do Código de Processo Civil), a decisão recai unicamente sobre a relação jurídica processual, sendo, por isso, a ideia de inalterabilidade relativa, devendo falar-se antes em estabilidade, coincidindo com o fenómeno de simples preclusão (cfr. Alberto dos Reis, “Código de Processo Civil, Anotado”, vol. V, p. 156). Há, pois, caso julgado formal quando a decisão se torna insusceptível de alteração por meio de qualquer recurso como efeito da decisão no próprio processo em que é proferida, conduzindo ao esgotamento do poder jurisdicional do juiz e permitindo a sua imediata execução (actio judicati) – cfr. acórdãos do Supremo Tribunal de 23 de Janeiro de 2002, proc.3924/01, e de 3 de Março de 2004, proc. 215/04. O caso julgado formal respeita, assim, a decisões proferidas no processo, no sentido de determinação da estabilidade instrumental do processo em relação à finalidade a que está adstrito. Em processo penal atinge, pois, no essencial, as decisões que visam a prossecução de uma finalidade instrumental que pressupõe estabilidade – a inalterabilidade dos efeitos de uma decisão de conformação processual ou que defina nos termos da lei o objecto do processo, ou, no plano material, a produção de efeitos que ainda se contenham na dinâmica da não retracção processual, supondo a inalterabilidade sic stantibus dos pressupostos de conformação material da decisão. No rigor das coisas, o caso julgado formal constitui apenas um efeito de vinculação intraprocessual e de preclusão, pressupondo a imutabilidade dos pressupostos em que assenta a relação processual. Por seu lado, a prescrição do procedimento criminal constitui um instituto que, exclusiva ou ao menos predominantemente, se situa na dimensão material e não processual. Procedimento criminal – o modo de afirmação instrumental do jus puniendi do Estado – significa, em geral, tudo quanto cabe no próprio iniciar e desencadear da acção penal, enquanto modo de realização, afirmação e concretização do direito penal. O Estado, porém, não guarda para si, ilimitadamente no tempo, a actuação do seu direito de punir. Decorrido que seja certo lapso de tempo sobre o facto criminoso, maior ou menor consoante as situações previamente definidas na lei, não poderá ser desencadeada ou prosseguir a acção penal por esses factos passados porque o procedimento criminal prescreve. A prescrição do procedimento criminal, regulada anteriormente no artigo 125° do Código Penal de 1886, vem agora disciplinada nos artigos 117° e segs. do Código Penal. Este instituto (prescrição do procedimento criminal) tem vindo a ser historicamente justificado, nos sistemas onde é acolhido por razões, umas processuais, outras de natureza substancial e material e ainda outras – sem grande relevância – de carácter empírico. Assim, para além de certos limites temporais, haveria que considerar os efeitos negativos sobre a produção das provas, especialmente tratando-se de prova testemunhal, não só no esquecimento sobre os factos, mas principalmente pelo perigo de deturpação inconsciente na transmissão do testemunho. Ainda, não haveria possibilidade de movimentar todos os processos, por mais antigos que fossem; por isso, a certeza imporia um limite para o passado que não fosse o acaso a determinar quais os casos antigos que poderiam vir a ser movimentados. O pequeno valor destas razões processuais leva a considerar as razões de natureza substancial como fundamentalmente justificadoras da ocorrência da prescrição do procedimento criminal, nomeadamente as que se relacionam com os fins das penas: «a acção do tempo torna impossível ou inútil a realização destes fins», «o decurso do tempo apaga a exigência de justiça, a necessidade da retribuição penal para a satisfazer»; «passados anos o crime esqueceu, a reacção social, a inquietação, por ele provocada foram-se desvanecendo, até desaparecer; a pena perdeu o interesse e o significado» - cfr. Prof. BELEZA DOS SANTOS, Revista de Legislação e de Jurisprudência, ano 77°, p. 321 e segs. Também o decurso do tempo apaga a utilidade preventiva geral e preventiva especial das penas. Estes fundamentos da prescrição do procedimento criminal são comuns a todos os ordenamentos que reconhecem o instituto (v.g. JESCHECK, “Tratado de Derecho Penal”, p. 1238 e segs.; CUELLO CALÓN, Derecho Penal, vol. II, pp. 758 e segs.; ROGER MERLE e ANDRÉ VITU, Traité de Droit Criminel, II vol., pp. 50 e segs.; PIERRE BOUZAT e JEAN PINATEL, Traité de Droit Pénal et de Criminologie, tomo II, pp. 1008 e segs.). Entre nós, hoje, pode considerar-se como jurisprudencialmente aceite a teoria jurídico-material da prescrição. O Assento Supremo Tribunal, de 19 de Novembro de 1975, no Boletim do Ministério da Justiça, N° 251, pp. 75 e segs., se considerava que «a lei sobre a prescrição é de natureza substantiva (…)» e «que se traduz na renúncia do Estado a um direito, ao jus puniendi, condicionada ao decurso de um certo lapso de tempo». Por isso, o reconhecimento da natureza substantiva da prescrição do procedimento criminal terá por efeito determinar a aplicação do princípio da lei penal mais favorável, mesmo no caso de uma lei nova alongar os prazos de prescrição. cfr. EDUARDO CORREIA, na Revista de Legislação e de Jurisprudência, ano 108°, pp. 361 e segs Aceita-se, assim, que a prescrição do procedimento criminal, quer seja de natureza substantiva, quer se considere eu natureza mista (substantiva e processual), sempre se há-de considerar ligada ao facto penal – independentemente ao autor do facto ou da pessoa do ofendido – , e á valoração da relação da vida que a norma incriminadora disciplina, isto é, à dignidade punitiva do facto, de tal modo que se justifica inteiramente que valham para os seus momentos decisivos de aplicação os mesmos princípios que valem para aplicação das leis substancialmente tipificadoras penais. Nomeadamente, quando se sucedam normas, aplicar aquela (ou aquele regime) que concretamente se revelar mais favorável ao arguido. A prescrição do procedimento criminal, todavia, revertendo ao decurso do tempo, está operativamente dependente da consideração e dos efeitos de momentos e actos processuais determinantes. É nesta dimensão que a prescrição do procedimento criminal, não na substância do decurso do tempo, mas nos tempos processuais relevantes, depende do processo e dos seus actos. Nesta medida, embora na substância não seja mutável, a conexão intrínseca processo-conteúdo material é, por natureza, contingente, dependendo da dinâmica dos actos do processo e dos efeitos induzidos que cada acto (dies a quo; dies ad quem; tempos de suspensão) produza em determinada situação concreta. Na correlação processo-tempo, a prescrição, com tempo material definido e fixado na lei, depende de pressupostos processualmente dinâmicos. E, acrescidamente, quando na complexa apreciação de pressupostos vários e respectivos efeitos se intrometam diversos regimes quanto à aplicação no tempo da lei penal. Sobre a aplicação da lei penal no tempo dispõe o n.° 4, parte final, do artigo 29.° da Constituição que se aplicam retroactivamente as leis penais de conteúdo mais favorável ao arguido, o que foi retomado no n.° 4 do artigo 2.° do Código Penal, que prescreve: «quando as disposições penais vigentes no momento da prática do facto punível forem diferentes das estabelecidas em leis posteriores, é sempre aplicado o regime que concretamente se mostrar mais favorável ao agente, salvo se este já tiver sido condenado, por sentença transitada em julgado». Traduzindo-se a prescrição do procedimento criminal na renúncia do Estado ao direito de punir, condicionada pelo decurso de um determinado lapso temporal, tem entendido este Supremo Tribunal de Justiça, como se referiu, que as normas sobre prescrição do procedimento criminal têm natureza substantiva. Tal natureza determina, no domínio da aplicação da lei no tempo, a sujeição do regime da prescrição ao princípio da aplicação retroactiva do regime jurídico mais favorável ao agente de uma infracção. O princípio da aplicação do regime mais favorável significa, no tocante às normas sobre prescrição, que nenhuma lei sobre prescrição mais gravosa do que a vigente à data da prática dos factos pode ser aplicada, bem como impõe que deva ser aplicado retroactivamente o regime prescricional que eventualmente se mostrar mais favorável ao infractor. O regime jurídico aplicável a uma qualquer infracção penal é constituído por um complexo de normas jurídicas em que se inscrevem, entre outras, normas legais que se referem à qualificação jurídica, à determinação da sanção e seus efeitos, à extinção do procedimento, às causas de justificação, e à prescrição do procedimento. Deste modo, tendo-se sucedido regimes penais diversos, haverá sempre que ponderar até à decisão que, segundo as possibilidades processuais, possa constituir a decisão final, qual dos regimes que se sucederam no tempo é mais favorável ao agente. Mas, estando em causa a prescrição do procedimento criminal, a determinação do regime mais favorável pressupõe um procedimento metodológico complexo, dependendo da consideração de vários elementos, quer directamente materiais (o tempo da prescrição), como da conjugação do tempo com os actos processuais relevantes e de cujos efeitos depende a contagem do tempo da prescrição. Por isso, a apreciação é dinâmica e tem de ser efectuada em cada momento em que a questão possa ser suscitada – e está tributária da relevância dos factos determinantes em cada momento em que processualmente seja possível e admitida uma decisão que tenha com pressuposto precisamente a inexistência de prescrição do procedimento criminal. Só nessa medida será dado cumprimento à determinação constitucional de aplicação do regime concretamente mais favorável, e, por isso, a dinâmica da prescrição não pode, na dimensão substancial, estar coberta por qualquer caso julgado formal quanto á aplicação de determinado regime legal dos vários que se sucederem no tempo. Não há, nesta matéria que depende de uma apreciação essencialmente dinâmica, uma estabilidade da relação jurídica processual que impeça a decisão sobre questão substancial, e a prescrição, por natureza dinâmica, releva da substância e não da relação processual." (fim de transcrição) As considerações precedentes iluminam o quadro do caso e, assente que a verificação da prescrição é também de conhecimento oficioso e pode ter lugar a todo o tempo - pois que é causa de extinção do procedimento criminal - conclui-se que nada obsta ao conhecimento de tal matéria, também na sequência da invocação, pela arguida, em sede de recurso, de tal circunstância . 4.2 A segunda nota a sublinhar é a de que a opção do Tribunal de aplicar ao caso, no acórdão final, o regime penal constante do Código Penal, na versão aprovada pelo Dec. Lei n.º 400/82, de 23 de Setembro, não mereceu contestação (5) E, como lembrava, na fundamentação, o Assento de 15.02.89 (proc. n.º 038546), (…) "6. Recordem-se, antes de mais, os dados da “história” legislativa e jurisprudencial do problema a apreciar. Esta estatuição estava em consonância com o Código de Processo Penal de 1929 e suas sucessivas alterações vigentes à data da aprovação do Código Penal de 1982. Porém, a estrutura processual penal foi profundamente alterada pelo Código de Processo Penal de 1987 – designadamente com a abolição do julgamento em processo de ausentes, substituído pelo instituto da contumácia – sem que tivessem sido introduzidas adaptações nas previsões do Código Penal de 1982. Com efeito, só com o Decreto-Lei n.º 48/95, de 15 de Março, é que essa adaptação legal veio a ser feita através da nova redacção dada ao correspondente artigo 120.º do Código Penal, que passou a ter o seguinte teor: Relativamente aos processos – como o presente – nos quais esta alteração legislativa não foi aplicada, suscitou-se a questão de saber se se poderia atribuir eficácia suspensiva da prescrição do procedimento criminal à declaração de contumácia (tal como o problema se pusera também para actos processuais previstos no Código de Processo Penal de 1987 que poderiam ser tidos como “equivalentes” aos actos processuais referidos na redacção originária do artigo 119.º), ou se tal interpretação violaria o princípio da legalidade penal. As divergências jurisprudenciais a este propósito suscitadas conduziram à prolação, pelo Supremo Tribunal de Justiça, de acórdão de fixação de jurisprudência (o citado “Assento” n.º 10/2000, de 19 de Outubro de 2000), pronunciando-se no sentido de que mesmo no vigência do Código Penal de 1982 e do Código de Processo Penal de 1987, “a declaração de contumácia constituía causa de suspensão da prescrição do procedimento criminal”. A atribuição à declaração de contumácia, introduzida apenas pelo Código de Processo Penal de 1987, da eficácia interruptiva da prescrição do procedimento criminal resultaria da aplicação da norma do artigo 336.º, n.º 1, do Código de Processo Penal de 1987 (em conjugação com a norma do artigo 119.º, n.º 1, do Código Penal de 1982), que dispunha, na sua redacção originária, como se segue: Como está em causa o confronto com o princípio da legalidade da interpretação normativa que foi adoptada e tratada no citado acórdão de fixação de jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça, há que recordar a fundamentação deste aresto. Pode ler-se nesse acórdão de fixação de jurisprudência: «É que o referido n.º 1 do artigo 119.º do Código Penal de 1982, versão original, tem a seguinte redacção: Por sua vez, o acórdão fundamento baseia-se nas seguintes razões para justificar o seu ponto de vista: «Cremos, porém, que não tem razão o digno recorrente. É, sem dúvida, verdadeira a primeira premissa em que assenta o seu raciocínio: o artigo 119.º [do Código Penal de 1982] não contém um numerus clausus de causas de suspensão da prescrição. Simplesmente, respeitando tal norma à ‘suspensão da prescrição’, a remissão feita no n.º 1 para os ‘casos especialmente previstos na lei’ só pode referir-se aos casos em que determinado preceito legal atribua expressamente a determinado facto eficácia suspensiva da prescrição. Assim, só poderia aceitar-se que a remissão é para os casos de suspensão de processo se: Posto isto, vejamos quais as normas jurídicas em causa. Dispõe o artigo 119.º do Código Penal de 1982, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 400/82, de 23 de Setembro, no seu n.º 1, o seguinte: «A prescrição do procedimento criminal suspende-se, para além dos casos especialmente previstos na lei, durante o tempo em que: Este artigo correspondente ao artigo 110.º do projecto do Código Penal, parte geral, segundo o qual, «[a] prescrição suspende-se durante o tempo em que: 1.º O procedimento criminal não pôde iniciar-se ou continuar por falta de uma autorização legal ou de uma sentença prévia a proferir por tribunal não penal, por efeito da devolução de uma questão prejudicial para um juízo não penal, bem como em todos os casos em que a suspensão do processo penal é imposta por uma disposição especial da lei; Por sua vez, dispõe o artigo 336.º, n.º 1, do Código de Processo Penal aprovado pelo Decreto-Lei n.º 78/87, de 17 de Fevereiro: «A declaração de contumácia é da competência do presidente e implica a suspensão dos termos ulteriores do processo até à apresentação ou à detenção do arguido, sem prejuízo da realização de actos urgentes nos termos do artigo 320.º» E acrescenta o n.º 3: «A declaração de contumácia caduca logo que o arguido se apresentar ou for detido, sem prejuízo do disposto no número anterior.» Como se sabe, o instituto da suspensão da prescrição foi uma novidade introduzida pelo artigo 119.º do Código Penal de 1982 no direito penal português - v. Figueiredo Dias, § 1150, p. 711, e Direito Penal Português, parte geral, «As consequências jurídicas do crime». A alínea c) passa a ter a seguinte redacção: ‘vigorar a declaração de contumácia’; Solução que veio a ser consagrada no Código Penal revisto pelo Decreto-Lei n.º 48/95, de 15 de Março, na alínea c) do artigo 120.º. «Aliás, se, por força da alínea a) do n.º 1 do artigo 119.º do Código Penal de 1982, a prescrição do procedimento criminal ‘[se] suspende durante o tempo em que o procedimento criminal não possa legalmente iniciar-se ou não possa continuar por falta de uma autorização legal’, cremos que não poderia deixar de suspender-se quando a própria lei manda suspender os termos do processo, por se tratar de impedimento legal ao exercício do procedimento criminal», e «se o legislador considerou necessário consagrar expressamente no Código Penal de 1995 a declaração de contumácia como causa de suspensão da prescrição do procedimento criminal [artigo 120.º, n.º 1, alínea c)], tal deve explicar-se não pelo propósito de preencher uma lacuna da regulamentação e sim como consequência da atribuição à contumácia do efeito interruptivo da prescrição no artigo 121.º, n.º 1, alínea c), donde a necessidade de fazer referência expressa no artigo 120.º, n.º 1, alínea c), à declaração de contumácia como causa de suspensão da prescrição [...]» (Colectânea de Jurisprudência – Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça, ano VII, t. I, p. 175.) Relativamente ao Acórdão de 27 de Abril de 2000, processo n.º 31/2000, 5.ª Secção, citado nas muito doutas alegações do Exmo. Procurador-Geral-Adjunto, dir-se-á que o mesmo teve em vista a interrupção da prescrição e não a suspensão da mesma. Trata-se, pois, de situações distintas. Esta conclusão não foi, porém, pacífica, tendo logo vários Conselheiros ficado vencidos neste acórdão do plenário das Secções Criminais do Supremo Tribunal de Justiça. A fundamentação de tal voto encontra-se na declaração de voto do Conselheiro Carmona da Mota, com o seguinte teor, que importa igualmente recordar: 3 O Código Penal de 1982 publicado na vigência do Código de Processo Penal de 1929 escusou-se, no âmbito do processo especial de ausentes, a inventariar qualquer factor de suspensão do prazo prescricional do procedimento criminal (artigo 119.º) e indicou, como único factor interruptivo desse prazo, a «marcação do dia para o julgamento no processo de ausentes» [artigo 120.º, n.º 1, alínea d)]. 7.Ora, analisando a fundamentação transcrita do acórdão de fixação de jurisprudência n.º 10/2000, do Supremo Tribunal de Justiça, cumpre notar, desde logo, que é sobretudo tratada a questão do eventual alcance da remissão (e do seu carácter “estático” ou “dinâmico”) que se contém no artigo 119.º, n.º 1, do Código Penal, para outros casos de suspensão da prescrição “especialmente previstos na lei”, mais do que especificamente a interpretação do artigo 336.º, n.º 1, do Código de Processo Penal (ambos na sua redacção originária), onde se previa que a declaração de contumácia teria como efeito a “suspensão dos termos ulteriores do processo”. E é certo que é a questão da constitucionalidade do entendimento também deste último preceito no sentido de prever (como um desses casos “especialmente previstos na lei”) a suspensão da prescrição – e não apenas a da conformidade constitucional do citado segmento remissivo do artigo 119.º, n.º 1 (decidida no Acórdão n.º 449/2002) – que está agora em questão. E no acórdão n.º 285/99 disse-se Também o argumento – reportado aos efeitos de uma interpretação segundo a qual a declaração de contumácia, a partir de 1987 e até à revisão do Código Penal, em 1995, não afectava o prazo de prescrição do procedimento – de que “[d]e outra maneira, acabava-se por vir a proteger o arguido que, mais lesto, fugira à alçada da justiça” não responde ao problema constitucional (que é o único que nos pode nesta sede interessar) do respeito pelo princípio da legalidade, sabido que é como o sentido deste princípio é também o de que “[e]squecimentos, lacunas, deficiências de regulamentação ou de redacção funcionam, por isso, sempre contra o legislador e a favor da liberdade, por mais evidente que se revele ter sido intenção daquele (ou constituir finalidade da norma) abranger na punibilidade também outros comportamentos” (no ensinamento de Jorge de Figueiredo Dias, Direito penal. Parte geral. Tomo I: Questões fundamentais. A doutrina geral do crime, Coimbra, 2004, p. 168). 8.Entende-se que a resposta à pergunta que se formulou é negativa, por razões semelhantes às que levaram este Tribunal a censurar, sob o ponto de vista da sua constitucionalidade, “interpretações actualistas”, posteriores ao Código de Processo Penal de 1987, de outras normas do Código Penal de 1982 relativas à prescrição – isto é, por razões estruturalmente paralelas às que (embora para norma diversa da que está agora em causa) foram invocadas nos citados Acórdãos n.ºs 205/99, 285/99, 122/2000, 317/2000, 494/2000, 557/2000, 585/2000 e 412/2003. Trata-se, neste sentido, de conclusão que decorre desta anterior jurisprudência do Tribunal Constitucional sobre questão paralela, e da exigência de que também ele se mantenha fiel à sua própria jurisprudência. 9.Em face disto, tem de concluir-se que a norma resultante das disposições conjugadas dos artigos 119.º, n.º 1, alínea a), do Código Penal de 1982, e 336.º, n.º 1, do Código de Processo Penal de 1987, na redacção originária, interpretadas no sentido de que a declaração de contumácia constituía causa de suspensão de prescrição do procedimento criminal, é inconstitucional, por violação do princípio da legalidade constitucionalmente consagrado (n.ºs 1 e 3 do artigo 29.º da Constituição). III. Decisão Pelos fundamentos expostos, o Tribunal Constitucional decide: |