Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
04P148
Nº Convencional: JSTJ000
Relator: SOUSA FONTE
Descritores: MEDIDA DA PENA
TRÁFICO DE ESTUPEFACIENTE
TRÁFICO DE MENOR GRAVIDADE
SUSPENSÃO DA EXECUÇÃO DA PENA
Nº do Documento: SJ200406020001483
Data do Acordão: 06/02/2004
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REC PENAL.
Decisão: PROVIDO.
Sumário : 1. Constitui jurisprudência firme do Supremo Tribunal de Justiça a de que o tipo privilegiado do artº 25º do DL 15/93, de 22 de Janeiro constitui uma válvula de segurança do sistema, em ordem a evitar que situações efectivas de menor gravidade sejam tratadas com penas desproporcionadas.
2. Do mesmo modo, vem sendo entendido que a avaliação da ilicitude do facto como consideravelmente diminuída não pode deixar de envolver a apreciação global de todos os elementos que interessam àquele elemento do tipo.
3. Considerando
a) que o Arguido naquele dia se decidiu a vender a droga que para o efeito lhe entregaram – 6,191 gr. de cocaína, mais uma porção não determinada do mesmo produto que lograra vender a dois indivíduos que, para isso o procuraram – o que denota utilização de meios de actuação muito primários e ocasionalidade da conduta (não se provou, de resto, que vendesse droga há mais de um mês);
b) que, mesmo aceitando – nada vem provado nesse sentido – que, com a sua acção, se propôs obter algum lucro, este seria sempre muito diminuto, em vista do apuro realizado (€40,00) e das doses de cocaína que tinha para venda;
c) que a quantidade de droga que detinha não pode deixar de ser considerada diminuta, atendendo a que, como também tem vindo a decidir o Supremo Tribunal de Justiça, para os efeitos da integração da previsão do artº 25º, não se deve atender ao conceito de “quantidades diminutas” que vinha da Lei de 1983;
d) que a droga em causa é das mais nefastas, é de concluir que a ilicitude de tal conduta – não estamos em presença de nenhum caso de grande, médio ou mesmo pequeno tráfico, mas apenas perante alguém que, um dia, se decidiu vender droga, um pouco mais de 6 gramas de cocaína, a quem o procurasse – se apresenta substancialmente diminuída, em termos de a moldura penal prevista para o crime do artº 21º daquele DL se revelar desadequada, por manifestamente desproporcionada, para a sua punição.
4. Por outro lado, considerando
a) que o Arguido, que se iniciou na vida activa aos 14 anos de idade, se decidiu, naquele dia, a vender aquela droga porque se encontrava a atravessar graves dificuldades económicas em consequência da incapacidade para o exercício de qualquer actividade profissional, decorrente da perda dos membros inferiores, ocorrida cerca de 8 meses antes;
b) que confessou (circunstância, no entanto, sem grande valor atenuativo) e que se mostra arrependido;
c) que tem apoio familiar e perspectivas de trabalho, agora que lhe foram implantadas próteses em substituição dos membros inferiores – o que facilitará a sua reinserção e minorará as graves dificuldades económicas que estiveram na origem do crime;
d) o que se disse sobre a ilicitude da conduta, justifica que a pena concreta se fixe em 2 anos de prisão, suspensa na sua execução, por ser razoável confiar em que a simples censura do facto e a ameaça daquela sanção bastarão para que o Arguido não caia em nova tentação, embora acompanhada de regime de prova, com vista a acautelar a debilidade das condições económicas que vêm provadas.
Decisão Texto Integral: Acordam na Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça

1.
1.1. O arguido A foi julgado na 1ª Vara Criminal do Porto, com o co-arguido B, e condenado, como autor material de um crime de tráfico de estupefacientes, p. e p. pelo artº 21º, nº 1 do DL 15/93, de 22/01, na pena de 4 anos e 3 meses de prisão, depois de terem sido julgados provados os seguintes factos:
«No dia 10 de Janeiro de 2003, cerca das 11:45 horas, na sequência de uma vigilância levada a cabo por elementos da PSP, foi presenciada a chegada do arguido A acompanhado pelo arguido B, à Rua dos Pelames, [na cidade do Porto].
O arguido A deteve-se nessa artéria, tendo sido visto a esconder um saco plástico entre um muro e uma placa de ferro existentes junto a um gradeamento.
O arguido B seguiu o seu caminho, vindo a deter-se um pouco mais além, junto à Rua do Corpo da Guarda.
O arguido A foi contactado por vários indivíduos tendo vendido a, pelo menos, dois deles embalagens de cocaína que o arguido ia buscar ao saco que tinha escondido e que depois de apreendido, veio a verificar-se conter 143 embalagens de plástico com o peso líquido de 6,191 gramas de cocaína que o arguido destinava à venda a indivíduos que, para o efeito, aí o procurassem.
A este arguido foi ainda apreendida a quantia de 40 € em notas, composta por três notas de 10 € e duas notas de 5 €, dinheiro este proveniente da venda de produto estupefaciente que o arguido havia efectuado.
Ao arguido B veio a ser apreendida uma navalha com o cabo de madeira e metal, com cerca de nove centímetros de comprimento, e lâmina de um só fio de sete centímetros de comprimento, com a inscrição “HEXING200”, acondicionada na respectiva bolsa de plástico preto, com a mesma inscrição.
0 arguido tinha perfeita consciência de que a detenção e venda daquele produto eram, como são, proibidos e punidos por lei.
Não obstante esse conhecimento actuou o arguido de modo deliberado, livre e consciente.
O arguido confessou os factos.
Mostrou-se arrependido.
Admitiu ter-se decidido, naquele dia a vender droga, que lhe foi entregue para esse fim, porque se encontrava a atravessar graves dificuldades económicas na sequência de um grande período de inactividade resultante de um acidente de viação que sofreu e do qual resultou a perda de ambos os membros inferiores.
O arguido é primário.
"A" é o mais velho de dois irmãos. A separação dos seus progenitores ocorreu durante os primeiros meses da vida do arguido, altura em que a progenitora passou a fixar residência no Porto ficando o arguido entregue aos cuidados do progenitor e dos avós paternos, na região do Algarve, de onde aliás é natural, e onde residiu até cerca dos seus treze anos de idade.
Por esta altura, e no decurso da frequência do 5° ano de escolaridade veio viver com a mãe, no Porto.
O seu percurso escolar acabou por ficar marcado, segundo o próprio, pela desmotivação, culminando no abandono da actividade escolar sem que tivesse chegado a concluir o 5° ano de escolaridade.
Por volta dos catorze anos de idade deu início à sua vida activa enquanto ajudante de electricista, actividade esta que sempre manteve.
Há cerca de dois anos passou a viver em união de facto com uma companheira, em casa arrendada, relação essa da qual não existem descendentes.
A nível laboral, desde Abril de 2002, o arguido mantinha-se inactivo, na sequência da já referido acidente de viação.
Até ter próteses – situação que presentemente ocorre – esse facto incapacitou- - o para exercer qualquer actividade profissional.
Em meio prisional, tem vindo a manter uma conduta formalmente ajustada ao ordenamento institucional, encontrando-se colocado a trabalhar, desde 14.02.03, como faxina do pavilhão a que está afecto.
Tem sido apoiado/visitado regularmente pela companheira e alguns familiares da mesma, designadamente a mãe e uma irmã, elementos que tendem a manifestar grande afeição pelo arguido, disponibilizando-se para Ihe continuarem a prestar todo o apoio, quer no decurso da actual situação de reclusão, quer quando em meio livre.
Tal núcleo familiar manifesta coesão e espírito de entreajuda, e a companheira do arguido, que se encontra profissionalmente inactiva, depende economicamente do apoio prestado pela sua mãe, a qual acompanhara esporadicamente pelas feiras, na venda de roupas.
A irmã da companheira do arguido também ajuda, pagando a renda da habitação em troca de trabalhos domésticos que a sua irmã Ihe presta.
Neste momento, a companheira do arguido não recebe qualquer apoio económico
Em meio livre, o arguido tenciona retomar a vivência em comum com a companheira e, quanto ao seu futuro enquadramento profissional, o arguido pretende trabalhar com empregado de mesa na casa de fados (“Casa Porto à Noite”), cujo proprietário se terá disponibilizado para aí o integrar»,
e, como não provados, os seguintes:
«Não se provou que o arguido B tivesse firmado um acordo com o arguido A e que na sequência dele se tivesse determinado a vender, conjuntamente com este, substancias estupefacientes.
Não se provou que no dia 10 de Janeiro de 2003 o arguido B tivesse, com essa finalidade, acompanhado o arguido A, e se tivesse colocado estrategicamente, para controlar os consumidores provenientes da Rua Corpo da Guarda e para daí vigiar eventual intervenção policial. ...
Não se provou que o arguido A vendesse produto estupefaciente desde há um mês reportado ao dia 10 de Janeiro de 2003.
Não se provaram quaisquer outros factos que alegados estejam em manifesta contradição com os dados como provados, nem quaisquer outros para além dos dados como provados.
Não se provaram outros factos com interesse para a boa decisão da causa».

1.2. Inconformado, recorreu para o Supremo Tribunal de Justiça, rematando a respectiva motivação com as seguintes conclusões:
«1. A dosimetria penal cominada ao arguido está desajustada aos factos dados como provados em apreço.
Efectivamente,
2. O recorrente entende que inúmeras atenuantes militavam a seu favor permitindo a convolação do crime para o previsto no artº. 25 do D.L. 15/93.
3. O arguido articulou tal matéria na sua contestação, o acórdão é omisso quanto tal matéria, encontrando-se ferido de nulidade que se invoca.
Mais,
No caso sub judice verifica-se contradição entre os factos provados e a fundamentação, por um lado dá-se como provado a sua difícil situação económica, por outro diz-se a justificar a pena “a mira dos avultados lucros”.
A censura do comportamento deve ser vista caso a caso e não pode o tribunal socorrer-se de outros, para penalizar o arguido, que a sua conduta não pode ser vista como a generalidade, veja-se a sua condição de deficiente, vítima de grave acidente, a renda por pagar, etc.
a) O arguido demonstrou arrependimento.
b) Confessou a verdade incriminadora
c) É primário.
d) Trata-se de pequena quantidade, cocaína, sendo este estupefaciente menos nefasto para a saúde publica que a heroína.
e) Tão pouco chegou a ser disseminada.
f) As circunstâncias pessoais do arguido determinaram a sua conduta, vítima de acidente do qual resultou a perda de membros inferiores.
g) Dificuldades financeiras ...
4. Inúmeras atenuantes militavam a favor do recorrente que não foram devidamente valoradas.
5. Revelou responsabilização.
6. Este empenho e esta atitude são demonstrativas de arrependimento, e desejo de reintegração, e um assumir de culpa cujo relevo foi preponderante para a descoberta da verdade material.
7. Goza do apoio de familiares.
8. Foi dado como provado que tem expectativa de emprego.
9. Atendendo a todos estes factores o recorrente entende que a sua pena deveria ser de dois anos de prisão, art. 25 do d.l. 15/93 e ao abrigo do art°. 50 suspensos por igual período, tendo em conta o espírito pedagógico e ressocializador do nosso, C.P.
10 Foi pois violado o disposto nos artigos 71 do C.P., 70°, 71, 72, 73 50 art. 374 n°. 2, art. 410 n°. 2 b, 379 c. art. 25 do D.115/93 ».

1.3. A Senhora Procuradora da República do Tribunal a quo respondeu especificadamente a cada uma das questões colocadas pelo Recorrente e conclui pela improcedência do recurso, com a consequente confirmação do acórdão recorrido.

1.4. A Senhora Procuradora-Geral Adjunta deste Tribunal, emitiu parecer onde, considerando que o Recorrente, além de matéria de direito, impugna também matéria de facto (nos pontos 3 e 10 da motivação), concluiu ser o Tribunal da Relação o competente para conhecer do recurso.
Foi dado cumprimento ao disposto no nº 2 do artº 417º do CPP.

2. Tendo-se decidido, em conferência, que a questão prévia suscitada pela Senhora Procuradora-Geral Adjunta era improcedente, foram colhidos os vistos dos Senhores Juízes Conselheiros-Adjuntos para julgamento, em audiência, do objecto do recurso, a qual decorreu em plena conformidade com as exigências legais.

Cumpre agora decidir.

2.1. Resolvida já na conferência a questão da pretensa contradição entre os factos provados e a fundamentação, restam por apreciar e decidir as seguintes questões postas pelo Recorrente:
- se o acórdão recorrido é nulo por omissão de pronúncia quanto à matéria da contestação:
- se os factos integram antes o crime de Tráfico de menor gravidade, p. e p. pelo artº 25º do DL 15/93, de 22 de Janeiro, com a consequente diminuição da pena, ou
- se esta, na moldura do crime por que foi condenado, deve ser especialmente atenuada.

2.1.1. Vejamos a primeira questão.
A invocada nulidade do acórdão resulta, segundo o Recorrente, de o Tribunal a quo não se ter pronunciado sobre a matéria articulada na contestação, «nomeadamente na invocação de a sua situação poder integrar a prática do artº 25º do DL 15/93».
Cotejando a matéria de facto provada e não provada com o conteúdo da contestação de fls. 200 e 201, facilmente se verá que o Tribunal recorrido ponderou especificadamente os factos aí articulados, uma boa parte deles, de resto, julgados provados.
É verdade que a decisão sobre a matéria de facto não faz expressa referência aos dois primeiros – «encontrava-se no local à espera de um familiar»; «admite ter falado com jovens da sua idade, enquanto fazia tempo» – nem ao sexto – «tem bom comportamento anteriormente e posteriormente aos factos» (a alegação de que «tem condições no exterior para se ressocializar» não constitui um facto, mas antes uma conclusão). Todavia, esses factos estão em colisão ou estão prejudicados por outros julgados provados, designadamente com os quatro primeiros e com o décimo segundo. Por isso é que o Acórdão recorrido diz que «não se provaram quaisquer outros factos que alegados estejam em manifesta contradição com os dados como provados, nem quaisquer outros para além dos dados como provados».
Aliás, como oportunamente referiu a Senhora Procuradora da República na resposta à motivação, «o Tribunal pronunciou-se sobre todos os fatos alegados na acusação e na contestação e que resultaram da discussão da causa com relevo para a decisão», como é evidenciado pela motivação da decisão em análise, onde, além do mais, se refere a confissão feita pelo Recorrente e os factos provados com base no relatório social que requerera.
Improcede, assim, a invocada nulidade do Acórdão.

2.1.2. Quanto à qualificação dos factos
O Recorrente reclama que a sua conduta integra, não o crime base de tráfico de estupefacientes, p. e p. pelo Artº 21º do DL 15/93, mas sim o crime atenuado de tráfico de menor gravidade, p. e p. pelo artº 25 do mesmo diploma.

2.1.2.1. Nos termos deste artigo, se, no caso dos artigos 21º e 22º, a ilicitude do facto se mostrar consideravelmente diminuída, tendo em conta nomeadamente os meios utilizados, a modalidade ou as circunstâncias da acção, a qualidade ou a quantidade das plantas, substâncias ou preparações, a pena é de: a) prisão de um a cinco anos, se se tratar de plantas, substâncias ou preparações compreendidas nas tabelas I a III, V e VI; b) prisão até 2 anos, ou multa até 240 dias, no caso de substâncias ou preparações compreendidas na tabela IV».
A propósito deste crime privilegiado, tido como válvula de segurança do sistema, em ordem a evitar que situações efectivas de menor gravidade sejam tratadas com penas desproporcionadas, a jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça vai no sentido de que a conclusão sobre o elemento típico da considerável diminuição da ilicitude do facto terá de resultar de uma valoração global deste, tendo em conta, não só as circunstância que o preceito enumera de forma não taxativa, mas ainda outras que apontem para aquela considerável diminuição. Entre outros, cfr. Acs. de 02.06.99, Pº nº 269/99-3ª, de 15.12.99, Pº nº 912/99-3ª, de 07.12.99, Pº nº 1005/99, de 03.10.02, Pº nº 2576/02-5ª e de 02.10.03, Pº nº 2406/03-5ª.
A jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça a propósito do artº 25º foi objecto de crítica por parte de Maia Costa em “Direito Penal da droga: breve história de um fracasso”, Revista do Ministério Público, Ano 19, Nº 74, 103 e segs., especialmente quando se tem vindo a entender que a verificação de uma circunstância considerada «grave» basta para afastar a aplicação do preceito. Segundo o mesmo Magistrado, a interpretação mais consentânea com o texto e a epígrafe da lei é a de que «o legislador quis incluir aqui todos os casos de menor gravidade, indicando exemplificativamente circunstâncias que poderão constituir essa situação, [razão por que] será correcto considerar-se preenchido este crime sempre que se constate a verificação de uma ou mais circunstâncias que diminuam consideravelmente a ilicitude, como poderá ser, por exemplo, uma quantidade reduzida de droga, ou esta ser uma droga leve, ou quando a difusão é restrita, etc.» O crime do artº 25º, conclui, «é para o pequeno tráfico, para o pequeno “retalhista” de rua» – entendimento este expressamente acolhido no Acórdão deste Supremo Tribunal, de 31.01.02, Pº nº 4624/01-5ª.
Temos para nós que a avaliação da ilicitude de um facto criminoso como consideravelmente diminuída não pode deixar de envolver uma avaliação global de todos os elementos que interessam àquele elemento do tipo, tanto no domínio do direito penal da droga como em qualquer outro. Aqui, como em qualquer outro campo do direito penal, não bastará, seguramente, a presença de uma circunstância fortemente atenuativa para considerar preenchido o conceito, quando as restantes com incidência são de sentido contrário, do mesmo modo que um conjunto de circunstâncias fortemente atenuativas não poderá ser postergado, sem mais, pela presença de uma circunstância grave. A imagem global do facto, no que se refere à sua ilicitude (parece pacífico, com efeito, que, para efeitos de preenchimento do crime do artº 25ª, não intervêm considerações sobre a culpa) é que é decisiva, como nos parece evidente. Alias, o núcleo essencial da crítica de Maia Costa parece visar não a avaliação global dos factos mas, precisamente, a ideia contrária – quando acentua que, de acordo com o que refere ser a orientação do Supremo Tribunal, «basta que se verifique uma circunstância considerada “grave” para afastar a sua [do artº 25ª] aplicação» – e, fundamentalmente, os critérios de avaliação da «gravidade» daquelas circunstâncias.

2.1.2.2. Dentro da orientação que perfilhamos, vejamos o caso concreto:
No dia a que os autos se referem, o Arguido foi surpreendido a vender «embalagens» de cocaína a dois dos indivíduos que com ele contactaram, depois de se ter detido na Rua de Pelames, Porto, e de ter escondido um saco de plástico num muro dessa artéria, onde foi buscar o produto que lhes vendeu.
Tal saco continha mais 143 embalagens do mesmo produto estupefaciente, com o peso líquido de 6,191 gramas, que o Arguido destinava à venda a outros indivíduos que, para o efeito, o procurassem.
Foram-lhe apreendidos €40,00, provenientes do produto vendido, acima referido.
É primário.
Admitiu ter-se decidido, naquele dia, a vender droga, que lhe foi entregue para esse fim, porque se encontrava a atravessar graves dificuldades económicas na sequência de um grande período de inactividade resultante de um acidente de viação que sofreu e do qual resultou a perda de ambos os membros inferiores.
Iniciou a sua vida activa por volta dos 14 anos.
Estava inactivo desde Abril de 2002 (os factos são de 10 de Janeiro de 2003), na sequência do referido acidente, tendo ficado incapacitado para o exercício de qualquer actividade profissional enquanto não lhe foram colocadas próteses.
Vive desde há cerca de dois anos com companheira, «profissionalmente inactiva».
Não se provou que tivesse qualquer acordo com o co-arguido, aliás absolvido, para a venda de droga.
Não se provou que vendesse droga desde há um mês, com referência à data dos factos.
Perante este acervo de factos, terá de dizer-se:
a)- que os meios utilizados pelo Arguido foram muito primários, sem o mínimo de sofisticação e de cautelas: entregaram-lhe a droga para vender, que ele meteu num saco, dirigindo-se, depois, para uma artéria – não nos dizem os autos se habitualmente procurada ou não por toxicodependentes para se abastecerem – onde a guardou entre um muro e uma placa de ferro, aí permanecendo à espera que o procurassem. O que significa, a corroborar o segundo dos factos não provados, que não era vendedor habitual ou conhecido como tal.
b)- quanto à modalidade e circunstâncias da acção, para além do que antes foi dito, importa referir que a matéria de facto não veicula qualquer ideia de profissionalismo. O que desses factos se colhe e que tem particular relevância para a avaliação que se nos impõe fazer sobre o grau de ilicitude da sua conduta é que se decidiu, naquele dia, a vender a droga que, para o efeito, lhe foi entregue – e foi esse o único dia em que se provou que vendeu droga –, porque se encontrava a atravessar graves dificuldades económicas em consequência da incapacidade para o exercício de qualquer actividade profissional (é imperioso que se sublinhe esta circunstância) que lhe sobreveio em consequência da perda dos membros inferiores.
Embora a matéria de facto seja a esse propósito omissa, não custa a aceitar que tenha procurado retirar algum lucro da venda que se propôs efectuar, pois só assim se compreende a justificação da conduta dada como provada. Mas isso não assume, no caso concreto, o desvalor que correntemente é atribuído ao móbil do lucro fácil, tanto mais que, mostrando-se a jurisprudência deste Supremo Tribunal de Justiça compreensiva, para os efeitos aqui em vista, para aqueles que traficam para alimentar o vício (cfr., a título de exemplo, o Ac. de 30.11.2000, Pº nº 2849/2000-5ª) não se vê razão, antes pelo contrário, para não atender às pressões impostas pelas necessidades da sobrevivência, especialmente quando não se mostra que o Arguido tivesse acesso ou possibilidade de acesso a mecanismos de segurança social que minorassem aquela situação. Não vamos ao ponto, como se vê, de justificar a conduta, mas temos de convir que a procura de satisfação dessas necessidades, ainda que por caminhos ínvios, não pode deixar de influenciar fortemente uma apreciação particularmente benevolente da conduta, tanto no que à ilicitude diz respeito como no que toca à culpa.
c)- a quantidade de droga, designadamente o número de doses e o número de pessoas que poderiam ser abastecidos não é evidentemente despiciendo. Mas não deixa de ser uma pequena quantidade, no entendimento, que nos parece mais adequado, de que, para efeitos de integração da conduta do artº 25º «afasta-se a necessidade da referência ao conceito de “quantidades diminutas” que vinha da Lei de 1983, pois a recuperar-se tal conceito inviabilizaria a aplicação daquela norma, no tocante à quantidade, sempre que esta excedesse a dose média individual para o consumo de um dia, frustrando assim a intenção legislativa, isto é, a busca de soluções mais maleáveis (cfr. o citado Ac. de 07.12.99, Pº nº 1005/99-5ª).
d)- a droga vendida e detida para venda, cocaína, é das mais nefastas.

Do conjunto das considerações e juízos precedentes resulta, sem dúvida, uma ilicitude assinalavelmente diminuída, espelhada na conduta de um vendedor ocasional de uma pequena quantidade de cocaína – e terá o Recorrente querido vender este tipo de droga ou foi a que lhe deram para vender, sendo certo que as necessidades que pretendia cobrir com a venda não se compadeceriam com grande reflexão sobre a maior ou menor danosidade do produto? – que, mesmo assim, só logrou vender a dois indivíduos, conduta essa explicada pelas graves dificuldades económicas decorrentes de uma situação de incapacidade total para o trabalho de alguém que se iniciou na vida activa aos 14 anos de idade.
Aplicar a uma conduta como esta a moldura abstracta do artº 21º do DL 15/93, seria aplicar ao Arguido uma pena manifestamente desproporcionada, vedada pela Lei Fundamental. E não se diga, contra isso, que de todo o lado se reclamam penas severas para o tráfico de droga, por indeclináveis exigências de prevenção geral positiva, quando não mesmo por puras razões de intimidação. Sem curar de averiguar as ideias e princípios que poderão estar por detrás duma justificação desse tipo e de aferir a sua conformidade com a Constituição, basta-nos a constatação de que não estamos a julgar nenhum caso de grande, médio ou até pequeno tráfico. Na nossa presença temos apenas alguém que, um dia, se decidiu vender, a quem o procurasse – e não que ele procurasse - pouco mais de seis gramas de cocaína, por atravessar graves dificuldades económicas, derivadas, nunca é de mais repeti-lo, da total incapacidade para o trabalho que o afectou durante meses.
A conduta do arguido A constitui, pois, um crime de tráfico de menor gravidade, p. e p. pelo artº 25º, alínea a) – cfr. Tabela I-B – do DL 15/93, a que corresponde pena de prisão de 1 a 5 anos.
Considerando o disposto nos arts. 70º e 71º do CPenal, designadamente as circunstâncias já antes sublinhadas, e ainda a confissão do Arguido, pouco relevante, é certo, face às circunstâncias em que foi detido, o seu arrependimento, já com valor apreciável por indiciar interiorização do mal praticado, a ausência de antecedentes criminais, as condições familiares e a expectativa de trabalho, a favorecerem a sua ressocialização, entendemos que a pena justa a aplicar não deverá, de facto, exceder os dois anos de prisão, perfeitamente compatível com as necessidades de prevenção geral positiva e suportada pelo grau de culpa evidenciado.
As circunstâncias em que o crime foi cometido, designadamente a ocasionalidade e os fins da conduta, as condições familiares e a expectativa de trabalho, a favorecerem a sua reinserção social e capazes de debelar ou, ao menos, de minorar as graves dificuldades económicas que estiveram na origem da prática do crime, permitem-nos confiar em que a simples censura do facto e a ameaça daquela pena de prisão bastarão para que o Arguido não caia em nova tentação, especialmente do tipo da agora julgada, sem que com isso fiquem sacrificados as finalidades da punição. Mas importa acautelar, por adequado regime de vigilância, a debilidade das condições sócio-económicas presentes na data da decisão da 1ª instância.
Termos em que se entende dever suspender-se a execução daquela pena de prisão por três anos, acompanhada de regime de prova, que assentará em plano individual de readaptação a elaborar pelos serviços de reinserção social, nos termos dos arts. 50º e 53º do CPenal e 494º, nº 3 do CPP, impondo-se-lhe, desde já, os deveres e obrigações das alíneas b) e c) do artº 54º do CPenal.

3. Em conformidade com o exposto, acordam nesta secção criminal do Supremo Tribunal de Justiça em julgar procedente o recurso e, em consequência, revogar, nesta parte, o Acórdão recorrido, ficando, pois, o arguido A condenado, como autor de um crime de tráfico de menor gravidade, p. e p. pelo artº 25º, alínea a) do DL 15/93, de 22 de Janeiro, na pena de 2 (dois) anos de prisão, cuja execução se suspende por 3 (três) anos, acompanhada de regime de prova, nas condições que atrás ficaram estabelecidas.
Sem custas.
Restitua-se o arguido à liberdade, passando-se, a seu favor, os competentes mandados de soltura.

Lisboa, 2 de Junho de 2004
Sousa Fonte
Rua Dias
Pires Salpico
Henriques Gaspar