Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
01P4459
Nº Convencional: JSTJ000
Relator: CARMONA DA MOTA
Nº do Documento: SJ200205090044595
Data do Acordão: 05/09/2002
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: T J FELGUEIRAS
Processo no Tribunal Recurso: 77/00
Data: 07/10/2001
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Sumário :
Decisão Texto Integral: Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça


Recurso 4459/01
Comum colectivo 77/00 do 2.º Juízo de Felgueiras
Arguido/recorrente: A
Assistente/recorrida: B


1. OS FACTOS

O arguido e a assistente contraíram casamento no dia 01.09.79, sem convenção antenupcial. Esta era titular de poupanças de investimento postal que havia subscrito nos CTT da Lixa, no montante de 2.392.407$, sendo 2.300.000$ de capital e o restante referente a juros. O capital investido nessas poupanças era produto do trabalho do arguido, enquanto emigrante na Suíça. Durante o mês de Set95, em dia anterior ao dia 13, encontrando-se o arguido e a sua esposa já separados de facto desde 10Set95, o arguido deslocou-se à referida estação de correios com o intuito de proceder ao levantamento da referida quantia. Uma vez que a mulher era a titular das referidas poupanças de investimento postal, o arguido solicitou a C, funcionário dos CTT, que lhe fornecesse o documento necessário para proceder ao levantamento a fim de o entregar à mulher, explicando que esta se encontrava internada e, portanto, impedida de aí se deslocar para assinar o aludido documento. Na posse do documento, o arguido preencheu-o pelo seu próprio punho, apondo-lhe, no lugar reservado à assinatura, o nome de B, imitando a assinatura da mulher, sem o consentimento e contra a vontade da mesma. De seguida, no dia 13Set95, o arguido dirigiu-se à referida estação de correios, munido de tal documento e do bilhete de identidade da mulher. Aí exibiu-os e solicitou o levantamento da quantia acima referida, o que efectivamente veio a acontecer, tendo-lhe sido entregue pelo funcionário competente a quantia de 2.392.407$, da qual o arguido se apoderou, levando-a consigo. O arguido pretendia e logrou convencer o funcionário da estação dos CTT de que o documento em causa se encontrava genuinamente assinado pela sua esposa, titular do referido investimento, e que estava genuinamente na sua posse. Apenas por ter acreditado em tal facto, entregou o funcionário ao arguido a referida quantia em dinheiro. O arguido agiu com o intuito de proceder ao levantamento da quantia de 2.392.407$00, levantamento esse que sabia não poder efectuar, sabendo, ainda, que, desse modo, necessariamente, causaria a B um prejuízo patrimonial correspondente à sua meação naquela quantia. Durante o mês de Novembro de 1995, o arguido redigiu um documento, dele fazendo constar que B declarava ter recebido metade da quantia levantada nos correios da Lixa e ter sido ela a assinar o documento necessário para ser levantado o dinheiro investido nos títulos de poupança de investimento postal, factos que sabia não corresponderem à verdade. No final do documento encontra-se aposta uma assinatura com as características da assinatura de B (1). No dia 08Nov95 o arguido entregou-o nos Serviços do Ministério Público do Tribunal de Amarante para ser junto a inquérito. O arguido pretendia fazer crer que o conteúdo do documento em causa correspondia à verdade, com o intuito de não ser responsabilizado jurídico-penalmente. Com as suas condutas o arguido abalou a confiança e credibilidade na autenticidade e genuinidade dos documentos. O arguido actuou sempre voluntária, livre e conscientemente, bem sabendo que as suas condutas eram proibidas por lei e criminalmente puníveis. À data dos factos o arguido não tinha antecedentes criminais. O arguido foi condenado no processo comum singular 225/99, do 3º Juízo de Amarante, por sentença proferida em 23Fev00 e transitada em 09Mar00, pela prática em 15.07.96 de um crime de ameaças previsto e punível pelo art. 153.1 do CP, na pena de 190 dias de multa, à taxa diária de 700$00 e na indemnização a favor da mulher de 60 contos. E, no processo comum singular 226/99 do 3.º Juízo de Amarante, por sentença proferida em 23.02.00 e transitada em 09Mar00, pela prática em 12.01.97 de um crime de dano previsto e punível pelo art. 212.º do Código Penal, na pena de 180 dias de multa à taxa diária de 700$00 e na indemnização a favor da mulher de 40 contos. Durante o tempo em que esteve emigrado na Suíça o arguido desempenhou funções de cozinheiro num hotel. Actualmente não exerce qualquer actividade. Vive de rendimentos amealhados aquando da sua estadia na Suíça. Não paga renda. É ajudado pela família e por um amigo. D, nascida a 29.05.80, e E, nascida 15.06.88, são filhas do arguido e da assistente. Aquando da separação do casal a assistente ficou privada de qualquer quantia em dinheiro de que se pudesse socorrer. A assistente não exerce profissão remunerada, nem nunca exerceu, dedicando-se às lides da casa e a efectuar trabalhos no domicílio, manufacturando o acabamento de sapatos. No acabamento de sapatos a assistente não auferia mensalmente quantia superior, actualmente, a 30.000$. Por sentença de 14.07.97, transitada em julgado, proferida no processo de regulação do exercício do poder paternal, que, sob o n.º 235/95, correu termos pelo 2.º Juízo de Amarante, o arguido foi condenado a contribuir, a título de alimentos para a menor E, com a quantia mensal de 15.000$, mas o demandado, desde a data da separação de facto, jamais contribuiu para o sustento das filhas menores do casal. Ao ver-se privada das poupanças a assistente viveu momentos de angústia e preocupação. Mercê das dificuldades económicas a filha mais velha do casal foi trabalhar numa fábrica de calçado, entregando à requerente o seu vencimento para fazer face às despesas domésticas. A assistente foi obrigada a pedir auxilio económico junto de familiares e pessoas amigas. Por exclusiva culpa dele, o casamento entre a assistente e o arguido foi dissolvido por divórcio pedido em 2Nov95 e decretado, em 02Out98, por sentença transitada em julgado no dia 20.


2. a condenação

Com base nestes factos, o tribunal colectivo do 2.º Juízo de Felgueiras (2), em 10Jul01, condenou A, como autor de dois crimes de falsificação (art. 228.1 do CP/82) , em duas penas parcelares de 7 meses de prisão e 20 dias de multa a 1000$/dia, como autor de um crime de burla (art. 313.1 do CP/82), na pena de 1 ano de prisão e, como autor do respectivo concurso criminoso, na pena única - suspensa por 2 anos, sob condição de pagamento à assistente, em 6 meses, de 150 contos de indemnização de danos morais e 1196,2035 contos de indemnização de danos materiais - de 18 meses de prisão e 30 dias de multa a 1.000$/dia:

Dos crimes de falsificação. Comete o crime de falsificação de documento quem, com intenção de causar prejuízo a outra pessoa ou ao Estado, ou de alcançar para si ou para outra pessoa benefício ilegítimo praticar uma das modalidades de conduta (que constituem simultaneamente diversas modalidades de falsificação) previstas nas alíneas do n.º 1 do art. 228º do Código Penal de 1982, a saber: a) fabrico de documento falso, falsificação ou alteração de documento ou abuso da assinatura de outra pessoa para elaborar documento falso; b) fazer constar falsamente de documento facto juridicamente relevante; ou c) usar documento a que se referem as alíneas anteriores, fabricado ou falsificado por outra pessoa. Cada uma destas modalidades de falsificação carece de uma certa densificação, nomeadamente as duas primeiras, dada a pertinência que assumem no caso dos autos. Cumpre em primeiro lugar salientar que o bem jurídico protegido pelo ilícito em análise é, não a verdade intrínseca do documento enquanto tal, mas sim a segurança e credibilidade no tráfico jurídico probatório no que respeita à prova documental, um bem jurídico supra-individual. Por isso, documento é, para efeitos de direito penal, não o material que corporiza a declaração, mas a própria declaração independentemente do material em que está corporizada e declaração enquanto representação de um pensamento humano (função de perpetuação). Trata-se de uma noção bastante mais ampla do que a inscrita no âmbito do direito civil e que permite desde logo considerar como documento não só o documento autêntico ou autenticado que têm força probatória plena, mas qualquer outro - escrito, registo em disco, fita gravada ou qualquer outro meio técnico - que integre uma declaração idónea a provar um facto juridicamente relevante (quer tal destino lhe seja dado desde o início - documentos intencionais - quer posteriormente - documentos ocasionais) - cfr., neste sentido, art. 255º, al. a), do Código Penal vigente. Facto juridicamente relevante é aquele que, só por si ou conjugado com outros, se mostra apto a constituir, modificar ou extinguir uma relação jurídica, que em sentido amplo é "toda a situação ou relação da vida real (social), juridicamente relevante (produtiva de consequências jurídicas), isto é, disciplinada pelo direito" e, em sentido estrito, é a "relação social disciplinada pelo Direito, mediante a atribuição a uma pessoa (em sentido jurídico) de um direito subjectivo e a correspondente imposição a outra pessoa de um dever ou de uma imposição. Desta feita, não subsistem quaisquer dúvidas que no caso dos autos estamos na presença de documentos, dado que, por um lado, o recibo de indemnização - cfr. fls. 151 - autoriza ao levantamento do investimento postal e, por outro, na declaração de fls. 150 a assistente reconhece ter assinado esse recibo e ter em seu poder metade da quantia correspondente àquele investimento. Passemos, agora, a analisar as diferentes modalidades de conduta previstas nas diversas alíneas do nº 1 do art. 228º do Código Penal. A divergência entre o declarado e o documentado, correspondente àquilo que se designa por falsificação intelectual, integra-se no conceito de fabrico de documento e é necessariamente levada a cabo pelo "documentador". Na referida alínea a) integram-se ainda os actos de falsificação, alteração de documento ou abuso de assinatura de outra pessoa para elaborar documento falso. O acto de falsificar ou alterar o documento corresponde àquilo que é designado por falsificação material: a falsificação é posterior à elaboração, ao fabrico do documento. Distinto destes casos é o da falsidade em documento ou a narração de facto falso juridicamente relevante previsto na alínea b) do art. 228º, n.º 1, do Código Penal. Aqui não se contempla qualquer falsificação de documento, mas sim uma falsa declaração em documento regular - está em causa a divergência entre o documentado e a realidade, num documento narrativo. De salientar a circunstância de esta conduta ser punível quando tão só se referir a uma declaração de facto juridicamente relevante, tanto mais que se assim não for, a declaração nem sequer cumpre os requisitos necessários para que seja considerada documento, como já aqui foi salientado. No caso decidendo, estamos perante a seguinte situação: Relativamente ao primeiro documento - recibo de indemnização -, sabemos que o arguido preencheu-o pelo seu próprio punho, apondo-lhe, no lugar reservado à assinatura, o nome de "B", imitando a assinatura da sua esposa, sem o consentimento e contra a vontade desta. De seguida, no dia 13 de Setembro de 1995, dirigiu-se à estação de correios, munido de tal documento e do bilhete de identidade da sua esposa. Aí, exibiu-os e solicitou o levantamento da quantia de 2.392.407$, o que efectivamente veio a acontecer. Sendo estes os factos, resta concluir que o arguido, ao actuar da forma descrita, indubitavelmente abusou da assinatura da assistente que surge como subscritora daquele recibo, o qual integra todos os requisitos necessários à sua qualificação como documento. Com a mencionada actuação, isto é imitando a assinatura da assistente, preencheu, pois, o arguido os elementos objectivos do tipo legal previsto no art. 228º, n.º 1, alínea a), do Código Penal. Relativamente ao segundo documento - a declaração de fls. 150. Vinha o arguido acusado de na declaração ora em apreço ter igualmente forjado a assinatura de quem constava como subscritor de tal declaração, ou seja, a assistente. Acontece que tal não se provou. Provou-se, no entanto, que, conforme também era descrito na acusação, o arguido redigiu um documento, dele fazendo constar que B declarava ter recebido metade da quantia levantada dos correios da Lixa e ter sido ela a assinar o documento necessário para ser levantamento o dinheiro investido nos títulos de poupança de investimento postal, documento no qual se encontra aposta uma assinatura com as características da assinatura de B. Mais se sabe que os factos constantes daquele documento não correspondiam à verdade. Urge, aqui, não esquecer que a assinatura constitui um elemento idóneo a provar um facto juridicamente relevante - a autoria do documento. Assim, sempre que estivermos perante uma divergência entre o autor real e o autor aparente haverá em princípio um abuso da assinatura de outrem. E haverá fabrico de documento por abuso de assinatura de outrem quando se aproveita uma assinatura fazendo-a coincidir com uma declaração de vontade que não pertence ao dono da assinatura, deste modo criando a aparência de uma autoria que não coincide com a real. Perante os factos em presença e atendendo ao que vem de ser dito, somos obrigados a concluir que o arguido ao actuar da forma descrita, indubitavelmente abusou da assinatura da assistente para elaborar a declaração que integra todos os requisitos necessários à sua qualificação como documento. Com a mencionada actuação, isto é abusando da assinatura, preencheu, pois, o arguido os elementos objectivos do tipo legal previsto no art. 228º, n.º 1, alínea a), do Código Penal. Analisemos, agora, os elementos do tipo subjectivo, no que às condutas supra descritas concerne. Aquando da prática do crime de falsificação o agente deverá ter conhecimento que está a falsificar um documento ou que está a usar um documento falso, e apesar disto quer falsificá-lo ou utilizá-lo. Ora, constituindo o documento um elemento normativo do tipo, apenas se exige que o agente tenha sobre ele o conhecimento normal de um leigo de acordo com as regras gerais, não sendo necessário o conhecimento da noção jurídica, maxime da noção jurídico-penal. "In casu", actuou o arguido com perfeito conhecimento de que o alvo da actividade que levou a cabo reunia as características essenciais à sua consideração como documentos, bem como dos efeitos que poderia e quis desencadear com o aludido abuso de assinaturas, tendo actuado com dolo directo - cfr. art. 14º, n.º 1, do Código Penal. É de realçar que estamos em face de um crime intencional, isto é, para o preenchimento do tipo legal em questão, é necessário, para além do dolo genérico, que o agente tenha actuado com a intenção de obter para si ou para outra pessoa um benefício ilegítimo ou na intenção de causar prejuízo a outra pessoa ou ao Estado, devendo entender-se por intenção de alcançar um benefício ilegítimo a vontade de acção do autor orientada para a obtenção de uma vantagem ilícita ou injusta, isto é, não protegida pelas leis em vigor e por intenção de causar prejuízo o querer provocar um dano de natureza patrimonial ou moral. Estamos perante os chamados crimes de resultado cortado. O agente almeja um resultado, que há-de ter presente para a realização do tipo, mas que não é preciso alcançar. Este elemento subjectivo não se esgota num mero elemento intelectual. Reclama, para além disso, a verificação cumulativa de um elemento de índole volitivo-emotiva que se analisa na vontade finalisticamente orientada para a obtenção de um benefício ou prejuízo. Ora, o arguido actuou com a intenção de levantar a totalidade da quantia monetária investida nos títulos em causa, bem como, através do documento de fls. 150, com o intuito de não ser responsabilizado criminalmente. Assim sendo, "in casu", da factualidade apurada resulta a prática pelo arguido de dois crimes de falsificação, certo que o mesmo teve uma actuação livre e voluntária e se verifica o elemento de índole volitivo-emotiva supra apontado. Do crime de burla. Pratica o crime de burla quem, com intenção de obter para si ou para terceiro enriquecimento ilegítimo, por meio de erro ou engano sobre factos, que astuciosamente provocou, determinar outrem à prática de actos que lhe causem, ou causem a outra pessoa prejuízo patrimonial - cfr. arts. 313, n.º 1, do Código Penal de 1982, e 217.1 do Código Penal vigente. A burla representa, assim, um crime de resultado parcial ou cortado: a consumação do crime não depende da concretização do enriquecimento que o agente intenta obter através da sua conduta, bastando para o efeito que, ao nível do tipo objectivo, se observe o empobrecimento da vítima. Isto posto, teremos os seguintes elementos objectivos a apreciar: - a «astúcia» empregue pelo agente; - o «erro ou engano» da vítima devido ao emprego da astúcia; - a «prática de actos» pela vítima em consequência do erro ou engano em que foi induzida; - o «prejuízo patrimonial» - da vítima ou de terceiro - resultante da prática dos referidos actos. Para caracterizar a acção astuciosa não bastará qualquer mentira, (esta está sempre presente na burla), exigindo-se que se trate de uma mentira qualificada ou que se concretize numa manobra fraudulenta ou mise en scène (crime de execução vinculada). Importa ainda referir que a expressão "prejuízo" pressupõe uma concepção jurídico-económica de património - o constituído pela globalidade de "situações" e "posições" com valor ou utilidade económica, detidas por uma pessoa e protegidas pela ordem jurídica, ou pelo menos, cuja fruição não é desaprovada por essa mesma ordem jurídica. Assim, tanto os direitos subjectivos patrimoniais de natureza real ou obrigacional, como as chamadas expectativas jurídicas (em sentido estrito), quer dizer, pretensões juridicamente fundadas de obter ou assegurar um aumento patrimonial no caso de se observar um facto futuro, como ainda as expectativas fácticas de obtenção de vantagens económicas - assentes em situações objectivas que permitem antecipar como provável um aumento patrimonial -, integram o conceito de património entendido este nos termos supra explicitados. Aceita-se igualmente ser de advogar um conceito objectivo-individual de dano patrimonial. De acordo com essa tese, o prejuízo deve determinar-se através da aplicação de critérios objectivos de natureza económica à concreta situação patrimonial da vítima, concluindo-se pela existência de um dano sempre que se observe uma diminuição do valor económico por referência à posição em que o lesado se encontraria se o agente não houvesse realizado a sua conduta. Entre os elementos acima descritos é indispensável que se verifiquem sucessivas relações de causa e efeito. Assim, é necessário que: da astúcia resulte o erro ou engano; do erro ou engano resulte a prática de acto(s) pela vítima; da prática de acto(s) resulte, finalmente, o prejuízo patrimonial. Em sede de imputação objectiva do evento à conduta do agente, a burla é, assim, um crime complexo, que comporta um triplo nexo de causalidade. No caso, o arguido, aproveitando o facto de se encontrar na posse do documento necessário ao levantamento do dinheiro investido nos títulos de poupança, preencheu esse documento pelo seu próprio punho, apondo-lhe, no lugar reservado à assinatura, o nome "B", imitando a assinatura da sua esposa, sem o consentimento e contra a vontade da mesma. De seguida, deslocou-se à estação dos correios, munido de tal documento e do bilhete de identidade da sua esposa. Aí, exibiu-os e solicitou o levantamento da referida quantia, o que efectivamente veio a acontecer. Nesta conduta - correspondente à materialidade do crime de falsificação de documento - se consubstancia o artifício utilizado pelo arguido por forma a obter para si a totalidade da quantia investida nos referidos títulos, artifício esse que induziu o funcionário dos correios em erro, porque (aparentemente) aquele documento tinha sido assinado pela assistente, única titular do referido investimento, erro que, por seu turno, levou o mencionado funcionário a entregar ao arguido a quantia de 2.392.407$. Uma vez que o arguido e a assistente eram casados entre si no regime da comunhão de adquiridos (contraíram casamento no dia 01.09.79, sem convenção antenupcial - cfr. art. 1717º, do Código Civil) aquela quantia monetária, porque produto do trabalho do arguido, enquanto emigrante na Suíça, era um bem comum do casal - cfr. art. 1724º, al. a), do Código Civil -, e, consequentemente, nessa quantia a assistente participava por metade - cfr. art. 1730º, n.º 1, do Código Civil. Neste montante, ou seja, 1.196.203$50 se traduz a concreta diminuição do valor económico por referência à posição em que a assistente se encontraria se o arguido não houvesse realizado a sua conduta. No que à sua dimensão subjectiva concerne, exige o tipo que o agente tenha actuado com dolo, devendo este abarcar todos os elementos precedentemente identificados: a actividade astuciosa; a indução da vítima em erro ou engano; a determinação desta à prática de certos actos; o prejuízo patrimonial. E também em relação a estes elementos temos os mesmos como verificados na medida em que o arguido agiu livre, voluntária e conscientemente, sabia que a assinatura constante do recibo de indemnização não tinha sido aí aposta pela assistente, sabia que causaria à assistente um dano patrimonial em seu benefício, o que previu, querendo obter o benefício correspondente à meação daquela na quantia investida nos referidos títulos - assim também se satisfazendo o preenchimento do requisito que impõe que o agente tenha a intenção de conseguir através da sua conduta um enriquecimento ilegítimo próprio ou alheio (deste modo configurando a burla um delito de intenção). O arguido praticou deste modo o crime de burla que lhe era imputado pela acusação. Cumpre, neste momento, averiguar se se verifica alguma circunstância que qualifique o referido crime de burla. Nos termos da al. c), do art. 314º, do Código Penal, de 1982, o crime de burla pode constituir um crime qualificado se: - O valor do prejuízo for consideravelmente elevado e não for reparado pelo agente, sem dano ilegítimo de terceiro, até ser instaurado o procedimento criminal. Grande parte da jurisprudência apontava como critério de aferição do que seria de considerar valor consideravelmente elevado aquele que excedesse o vencimento mínimo nacional durante um ano (outra corrente, minoritária, aventava as alçadas das relações em matéria cível), sendo de salientar que, qualquer que fosse o critério utilizado, caberia sempre ao juiz, como interprete do sentimento ético da sociedade, fixar qual fosse esse valor. Actualmente, nos termos dos nºs 1 e 2, do art. 218º, do Código Penal revisto pelo DL nº 48/95, de 15.03, o crime de burla é qualificado em função do valor elevado e do valor consideravelmente elevado da coisa, entendendo-se por valor elevado aquele que exceder 50 unidades de conta avaliadas no momento da prática do facto e por valor consideravelmente aquele que exceder 200 unidades de conta avaliadas no momento da prática do facto - art. 202º, alíneas a) e b), do Cód. Penal revisto. Aqui é de assinalar que, a nosso ver, o critério fornecido pelo Cód. Penal revisto não deve ser aplicado para qualificar uma determinada conduta praticada à luz do Cód. Penal de 1982, uma vez que, como já referimos e como salienta também Maia Gonçalves (Cód. Penal Anotado, 8ª edição, pág. 688), no que concerne às noções de valor elevado, valor consideravelmente elevado e valor diminuto a respectiva formulação resultou de se ter abandonado o modelo da versão originária do Código, que não ligava directamente a qualificação ou o privilegiamento a níveis quantificados e pré-fixados do valor pecuniário do objecto do crime, e antes se servia, para o efeito, essencialmente de conceitos indeterminados ou de clausulas gerais de valor. Como ensina Germano Marques da Silva ("Crimes de Emissão de Cheque sem Provisão", pág. 32), a propósito da sucessão de leis penais e do apuramento do regime mais favorável ao agente, é necessário ponderar no caso concreto que o conceito de prejuízo patrimonial elevado e consideravelmente elevado só obteve definição legal com a entrada em vigor do Código Penal revisto, pelo que o que deve considerar-se como tal não é necessariamente o mesmo antes e depois da entrada em vigor desse diploma. Assim sendo, considerando que o crime foi cometido em 13.09.95, ou seja, cerca de 15 dias antes da entrada em vigor do Código Penal revisto, o qual como se viu, veio considerar como valor consideravelmente elevado aquele que excedesse 200 unidades de conta avaliadas no momento da prática do facto, o que, à época, perfazia a quantia de 2.400.000$00, somos de concluir que, mesmo à luz do Código Penal de 1982, o montante de 1.196.203$50 não era, à data dos factos, valor consideravelmente elevado. De acordo com o Código Penal revisto, por força da já referida alínea a), do art. 202, é de considerar esse montante como valor elevado. Temos, pois, que à luz do Código Penal de 1982 a conduta do arguido integra o crime de burla simples e de acordo com o Código Penal revisto esse crime encontra-se agravado pela valor elevado. Determinação da Medida Concreta da Pena. Enquadrado da forma descrita o comportamento do arguido importa agora escolher e graduar, dentro da medida abstracta da pena que aos crimes cabem, as penas concretas. As penas são determinadas pela lei vigente à data da prática dos factos ou do preenchimento dos pressupostos de que dependem - art. 2º, n.º 1, do Código Penal. Quando as disposições penais vigentes à data da prática dos factos forem diferentes das estabelecidas em leis posteriores, será sempre aplicável o regime que em concreto se mostre mais favorável ao agente - art. 2º, n.º 4, do citado Código. Para efeito de aplicação deste último normativo legal, o juiz tem que fazer o cômputo da situação do arguido perante cada uma das leis que se sucederam no tempo, optando depois por aplicar, em bloco, a lei que lhe for mais favorável. Os crimes de falsificação cometidos pelo arguido eram puníveis pelo art. 228º, n.º 1, al. a), do Código Penal de 1982, com pena de prisão até 2 anos e multa até 60 dias e, actualmente, são puníveis pelo art. 256º, n.º 1, al. a), com pena de prisão até 3 anos ou com pena de multa. Por sua vez, o crime de burla praticado pelo arguido era punido pelo art. 313º, do Código Penal de 1982, com pena de prisão até 3 anos, e, actualmente, é punido pelo art. 218º, n.º 1, com pena de prisão até 5 anos ou com pena de multa até 600 dias. Segundo o art. 70º, do Código Penal revisto, se ao crime forem aplicáveis, em alternativa, como é o caso, pena privativa e pena não privativa da liberdade, o tribunal dá preferência à segunda sempre que esta realizar de forma adequada e suficiente as finalidades da punição, as quais se encontram prescritas no art. 40º, n.º 1, do mesmo diploma (a saber: a prevenção geral positiva, de integração - protecção dos bens jurídicos - e a prevenção especial - reintegração do agente na sociedade). Aceita-se, assim, a existência de pena de prisão para os casos mais graves, mas o legislador afirma claramente que o recurso às penas privativas de liberdade só será legitimo quando, face às circunstâncias do caso, se não mostrarem adequadas as reacções penais não detentivas. No caso concreto, o tribunal entende que, quer num crime quer no outro, a aplicação ao arguido de pena não privativa de liberdade (pena de multa) não satisfaz adequadamente as finalidades da punição. Com efeito, não obstante o arguido, à data dos factos, ser primário, a verdade é que a personalidade do mesmo plasmada no complexo fáctico em apreço se apresenta como desconforme num, já elevado grau, ao dever-ser jurídico-penal, na medida em que as suas condutas (as que conduziram ao levantamento da totalidade da quantia investida nos aludidos títulos) atingiram os seus próprios familiares, mais concretamente as suas filhas menores, sendo igualmente acentuada a necessidade de tutela dos bens jurídicos em causa. Acresce, ainda, que, entretanto, o arguido foi condenado em penas de multa nos processos n/s 225/99 e 226/99, do 3.º Juízo do Tribunal Judicial de Amarante, pela prática dos crimes de, respectivamente, ameaças e dano. Ora, a vítima desses crimes foi sempre a mesma, a saber, a assistente, também aqui lesada, ex-mulher do arguido. Assim, as exigências de prevenção especial, face à persistência criminosa do arguido relativamente à sua ex-mulher, mostram-se acentuadas. Pelas razões expendidas opta-se pelas penas privativas da liberdade. Urge agora, dentro das molduras penais fixadas pela lei, proceder à determinação concreta da pena de prisão a aplicar à arguida. Dentro destas molduras penais há que ponderar a culpa do agente, suporte da pena e limite inultrapassável de todas e quaisquer considerações preventivas, e as exigências de prevenção. Desta feita, o tribunal terá em consideração, quanto ao crime de falsificação: a) o grau de ilicitude do facto que não é de desprezar atenta a circunstância de serem dois os documentos falsificados, o que releva pela via da culpa, depondo contra a arguido; b) o dolo directo com que actuou, o que releva pela via da culpa, depondo contra o arguido; c) as já referidas necessidades de protecção da confiança e segurança na força probatória dos documentos; d) a circunstância de o arguido ser, à data, primário, o que releva pela via da prevenção especial, depondo a seu favor; e) o já referido facto de o arguido com a sua actuação (a que conduziu ao levantamento da totalidade da quantia investida nos mencionados títulos) ter atingido a sua família, em concreto as duas filhas menores, revelando, deste modo, indiferença pelas consequência negativas que a sua conduta necessariamente lhes acarretaria, sendo certo que sobre ele recaía um especial dever de actuar de outro modo. Na operação de determinação judicial do tempo de prisão a aplicar ao arguido pelo crime de burla, o tribunal terá em consideração: a) o grau de ilicitude do facto, que se mostra elevado, uma vez que o prejuízo patrimonial foi de montante já bastante considerável; b) o dolo directo e intenso com que actuou o arguido; c) o facto de o arguido ter actuado tendo em vista benefícios de ordem económica para si próprio em detrimento da família, o que releva pela via da culpa, contra aquele depondo; d) a ausência de antecedentes criminais, o que releva pela via da prevenção. Assim, ponderando os factores enunciados, as penas a aplicar serão: I. De acordo com o Código Penal de 1982. Para cada um dos crimes de falsificação as penas de 7 (sete) meses de prisão e 20 dias de multa, à taxa diária de, atendendo, à situação económica do arguido, 1.000$00. Para o crime de burla 1 (um) ano de prisão. Efectuando, por força do preceituado no art. 78º, n.º 1, do Código Penal de 1982, o cúmulo jurídico das penas parcelares impostas ao arguido pela prática dos referidos crimes, considerando, em conjunto, os factos e personalidade do mesmo, bem como a estreita conexão e interligação entre os crimes de falsificação do recibo de indemnização e de burla (dado que para que se atingisse o objectivo desenhado pelo arguido necessário se tornou proceder ao abuso da assinatura para elaborar o documento falso supra referido, tendo sido este mesmo comportamento que determinou o preenchimento dos elementos constitutivos do crime de burla) decide-se aplicar a pena única de 18 (dezoito) meses de prisão e 30 dias de multa, à taxa diária de 1.000$00. Todavia, sem prescindir da necessidade de reprovação, que deve ser vincada, em atenção ao crime e às aludidas exigências de prevenção geral, afigura-se, face a todo o circunstancialismo provado, designadamente às condições pessoais do arguido supra apontadas, que a censura do facto e a ameaça da pena, constituindo sério aviso para o mesmo, realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição, motivo pelo qual se decide, ao abrigo do disposto no art. 48º do Código Penal de 1982, suspender a execução da pena de prisão, pelo prazo de 2 (dois) anos. Entende-se, porém, ser de subordinar a suspensão da execução da pena ao cumprimento do seguinte dever destinado a reparar o mal do crime, a saber, a obrigação do arguido pagar, no prazo de seis meses, a indemnização que for devida à assistente - cfr. art. 49.1.a do Código Penal de 1982. II. À luz do Código Penal revisto. Para cada um dos crimes de falsificação as penas de 10 (dez) meses de prisão. Para o crime de burla agravada a pena de 18 (dezoito meses) de prisão. Realizando, nos termos do 77º, nº 1, o cúmulo jurídico das penas parcelares impostas ao arguido pela prática dos referidos crimes, considerando, em conjunto, os factores anteriormente valorados, decide-se aplicar a pena única de 2 (dois) anos e (dois) meses, cuja execução, nos termo do art. 50º, se suspende, pelas razões já expendidas, pelo mesmo tempo, com a condição do arguido pagar, no prazo de 6 (seis) meses, a indemnização devida à assistente - cfr. art. 51º, nº 1, al. a), do Código Penal revisto. Confrontando, agora, as penas concretamente aplicáveis ao arguido em face do Código Penal na sua redacção primitiva e do Código Penal revisto, opta-se por aplicar, por lhe ser mais favorável, a lei penal em vigor à data dos factos. Pedido cível. A questão fundamental que importa resolver consiste em saber se a demandante/assistente tem direito a ser ressarcida pelo demandado dos prejuízos que alega ter sofrido em virtude dos factos em apreço nos autos. Em princípio o dano é suportado por aquele que o sofre e o lesado só tem uma pretensão indemnizatória uma vez demonstrada a existência de determinados pressupostos. O caso presente insere-se no âmbito da responsabilidade extracontratual, sendo o art. 483º do Código Civil a reger esta matéria. Vários pressupostos condicionam a responsabilidade por factos ilícitos e a correspondente obrigação de indemnizar imposta ao lesante, quais sejam: o facto voluntário do agente; a ilicitude; o vinculo de imputação do facto ao lesante; o dano; e, finalmente, o nexo de causalidade entre o facto e o dano. Da análise supra efectuada da factualidade assente integradora do crime de burla resulta que estão verificados todos estes pressupostos. Passemos, pois, à determinação do montante indemnizatório devido à demandante. No tocante à extensão dos danos a indemnizar vigora a teoria da diferença, de acordo com a qual a indemnização se calcula tendo em conta "a situação patrimonial do lesado, na data mais recente que puder ser atendida pelo tribunal e a que teria nessa data se não existissem danos" - art. 556º, nº 2, do Código Civil -, isto significa que a indemnização corresponde à diferença entre a situação real presente e a situação hipotética actual em que se encontraria o lesado se não tivesse ocorrido o evento danoso. Quanto aos danos são ressarcíveis todos os danos, patrimoniais ou não patrimoniais. Os "danos morais", ou "prejuízos de natureza não patrimonial", correspondem aquilo que, na linguagem jurídica se costuma designar por "pretium doloris", ou ressarcimento tendencial da angústia, da dor física, da doença, ou do abalo psíquico-emocional resultante de uma situação de "luto" (transtorno afectivo e das faculdades psíquicas originado por uma situação de perda de objecto ou do "ser amado"). Relativamente aos danos não patrimoniais, apenas são atendíveis os que, pela sua gravidade, mereçam a tutela do direito - art. 496.º do Código Civil. Retomando o caso dos autos temos que a danos não patrimoniais correspondem a angústia e a preocupação da assistente ao ver-se privada das poupanças, os transtornos inerentes às dificuldades financeiras com que se defrontou, certo que, após a separação, à qual se seguiram os acontecimentos dos autos, ficou com as duas filhas menores a seu cargo, sem beneficiar de qualquer contributo do arguido para o sustento das mesmas. Estes danos, pela sua gravidade, merecem a tutela do direito e para compensação dos mesmos reputa-se adequada, atendendo, designadamente, ao grau de culpabilidade do agente, à situação económica da demandante e do demandado, a indemnização de 150.000$. Vejamos agora os danos patrimoniais. A demandante pede a condenação do demandado no pagamento de metade da quantia investida nos títulos de poupança de investimento postal. Como se viu não obstante a arguida ser a titular das poupanças de investimento postal, o certo é que o capital investido nas mesmas era produto do trabalho do arguido, enquanto emigrante na Suíça. Por isso, visto que a assistente e o arguido eram casados no regime da comunhão de adquiridos, aquelas poupanças constituíam um bem comum do casal - cfr. art. 1724º, al. a), do Código Civil. Nessas poupanças a assistente participava por metade - cfr. art. 1730º, n.º 1, do Código Civil. Ora, o arguido, ao apoderar-se da totalidade da quantia investida nessas poupanças, impossibilitou que a assistente usufruísse da sua meação nessa quantia, causando-lhe, com isso, um prejuízo desse montante. O dano emergente para a assistente do crime cometido pelo arguido foi, pois, de 1.196.203$50. Conclui-se, assim, que à demandante cível assiste "jus" a obter do arguido uma indemnização equivalente a esse montante. À demandante assiste ainda "jus" a exigir do demandado indemnização moratória, que por se tratar de obrigação pecuniária, corresponde aos juros devidos desde a prática do facto ilícito (13.09.95, momento em que o arguido levantou a totalidade da quantia investida nos aludidos títulos) - e até integral pagamento - cfr. arts. 804º, n/s 1 e 2, 805º, n.º 2, al. b), e 806º, n/s 1 e 2. A taxa legal supletiva de juros a considerar é de 15%, até à data da entrada em vigor da portaria n.º 1171/95, de 25/9, a partir dessa data e até ao início da vigência da portaria n.º 263/99, de 12/4, de 10% e, após esta data, de 7%. Para finalizar resta afirmar que quanto à compensação pelos danos não patrimoniais, uma vez que não se trata de uma divida de valor, não se justifica a condenação no pagamento de juros moratórios desde a data da notificação do pedido de indemnização civil. O que deverá acontecer é que o juiz no momento da fixação da indemnização, "dentro das demais circunstâncias do caso" deverá ter em conta este factor, ou seja, a desvalorização da moeda, o que já foi feito, justificando-se, todavia, a condenação em juros com referência ao tempo posterior à data da decisão e até efectivo pagamento da indemnização.


3. O RECURSO

3.1. Inconformado, o arguido (3) recorreu em 24Set01 ao Supremo Tribunal de Justiça, pedindo a absolvição da acusação e do pedido indemnizatório ou, subsidiariamente, a «considerável atenuação da pena»:

Os factos dados como provados pelo colectivo não constituem nenhum dos crimes de que ele está acusado. Na verdade, também foi dado como provado que o dinheiro, no montante de 2.392.407$00 constante dos títulos de poupança de investimento postal, cuja entrega pelo funcionário dos correios, o arguido e para recorrente obteve, era proveniente do trabalho deste realizado como emigrante na Suíça, onde exercia a profissão de cozinheiro. Sendo assim, e uma vez que o arguido e assistente eram casados em comunhão de adquiridos, este dinheiro constitui um bem comum do casal, nos termos do disposto no art. 1724°, alínea a) do Cód. Civil. Mas a administração e utilização desse dinheiro pertence exclusivamente ao arguido e ora recorrente, nos termos do disposto no art. 1678°, n.º 2, alínea a), do citado Cód. Civil. Até a disposição deste bem comum proveniente do trabalho, pertence ao cônjuge que o produziu, como ensina Antunes Varela , "Família", 1987, pág. 363. Sendo assim, o arguido e ora recorrente podia administrar e dispor livremente do dinheiro em causa, proveniente do seu trabalho, e nem sequer era obrigado a prestar contas à cônjuge mulher, nos termos do disposto no art. 1.681º, n° 1, do citado Cód. Civil, apenas podendo incorrer em responsabilidade civil por actos que porventura intencionalmente praticasse em prejuízo do casal ou do outro cônjuge. Sendo assim, ao obter a entrega pelo funcionário dos correios da importância de dinheiro em causa, e ao guardá-la e utilizá-la, o arguido apenas estava a exercer um direito ou a utilizar uma faculdade que a lei lhe confere. Ao obter tal entrega, não procedeu, pois, ilegitimamente nem teve intenção de obter para si ou para terceiro um enriquecimento ilegítimo, nem podia ter, já que podia administrar, como lhe aprouvesse, e dispor daquele dinheiro. Deste modo, não se verifica o crime de burla previsto e punido pelo art. 313°, n° 1, do Cód. Penal de 1982, por falta de um dos seus elementos essencialmente constitutivos do seu tipo legal crime este por que o arguido veio a ser condenado. E também não se verifica nenhum dos crimes de falsificação de documentos previstos e punidos pelo art. 228., n.º 1 , alínea a), pelos quais o arguido também veio a ser acusado. Na verdade, embora os fins não justifiquem os meios, a verdade é que toda a actividade desenvolvida pelo arguido, no sentido de obter a entrega do dinheiro produto do seu trabalho, se destinou a possibilitar-lhe a sua administração a sua utilização e até a sua disposição. E assistia-lhe o direito de assim utilizar o dinheiro. Deste modo, é claro, não teve a intenção de causar prejuízo a outrem ou de alcançar para si ou para terceiro um benefício ilegítimo. Falha, assim, também um elemento essencialmente constitutivo do crime de falsificação de documento previsto e punido pelo art. 228°, n.° 1, alínea a), do Cód. Penal por que o arguido foi condenado. E, na verdade, a assistente e ex-mulher do arguido nenhum prejuízo sofreu pela conduta deste, sendo certo que está a correr termos no tribunal de Amarante um processo de inventário, para partilha dos bens comuns do casal do arguido e da assistente, em que esta reclamou a relação da verba de dinheiro em causa, tendo-a o tribunal ordenado. Devia assim o arguido e ora recorrente ser absolvido de todos os crimes por que estava acusado, por não se verificar nenhum deles. Não o tendo assim decidido, o tribunal "a quo" violou entre outros o preceituado pelos art.s 1724°, alínea a), 1678°, n.º 2, alínea a), e 1681.1, todos do Cód. Civil, e ainda, por incorrecta interpretação, os art.s 228°, n° 1 e 2, e 313°, n.º 1, do Cód. Penal de 1982. Se assim se não entender, então, face à restante matéria de facto provada em proveito do arguido, a pena que lhe foi aplicada deverá ser consideravelmente atenuada. E, assim, por cada um dos crimes de falsificação de documento, não deverá ser aplicada pena superior a três meses de prisão e multa de dez dias à taxa diária de 200$00 e, ao crime de burla, pena de prisão não superior a seis meses. E, fazendo-se o cúmulo jurídico nos termos do disposto no art. 77.2 do Cód. Penal, deveria ser-lhe aplicada a pena única de oito meses de prisão e a multa de quinze dias à taxa diária de 200$00, o que perfaz a quantia de 3.000$00. Em todo o caso, sempre a pena deverá ser suspensa por -dois anos. E, como nenhuns prejuízos a assistente sofreu, podendo defender os seus alegados direitos no inventário judicial a correr termos no tribunal de Amarante, deverá o pedido de indemnização ser julgado improcedente e insubsistente. Assim, deverá dar-se provimento ao recurso, revogando-se o acórdão do colectivo, absolvendo-se o arguido e ora recorrente de todos os crimes por que vem acusado e do pedido de indemnização civil. Se assim se não entender, o que só por mera hipótese de raciocínio se admite, então deverá a pena aplicada ao arguido ser consideravelmente atenuada, no sentido que vem propugnado.

3.2. A assistente (4), na sua resposta de 31Out01, pronunciou-se pela negação de provimento ao recurso:

O arguido fundamenta o seu recurso essencialmente no facto de o montante, que com a sua conduta logrou levantar, ser produto do seu trabalho, o que lhe conferia a administração de tal bem e que foi para administrar tal quantia que o arguido a levantou. Nunca, porém, o arguido, ao longo do processo, invocou tal justificação, não tendo sido alegado, nem provado, que aquela quantia foi por si levantada para a administrar e que, de facto, a tem administrado. Seria o caso se, o que não sucedeu, a tivesse depositada em seu nome, em instituição bancária ou afim, e disponível para ser partilhada no inventário que entretanto iniciou seus termos. Antes ficou assente que o arguido, ao levantá-la, teve intenção, como de facto aconteceu, de prejudicar a assistente no direito que ela tinha naquele bem comum. Convém não esquecer que de bem comum se trata, não devendo ser confundida a titularidade com a legitimidade para administrar. Por outro lado, aquela quantia de dinheiro, naquele momento, já não podia ser considerada um bem sujeito à administração exclusiva do arguido. Sendo certo que cada um dos cônjuges tem a administração dos proventos do seu trabalho, é de considerar que, após a entrada desses proventos na comunidade conjugal, ou seja, depois de saírem do exclusivo poder de utilização daquele que os aufere, e passando a constituir economias do casal, já não se trata apenas de proventos do trabalho para efeitos de administração única. E, por outro lado, estando na altura o casal separado e estando tal quantia em depósito titulado apenas pela assistente - que, contudo, sempre o considerou um bem comum - podia o arguido ter procedido ao seu arrolamento. E já que vem refere a existência de inventário, é de notar que nesse processo está assente que o aqui recorrente levantou, sem o conhecimento e o consentimento da sua ex-mulher, todas as quantias de dinheiro que o casal havia possuído, não tendo sido localizado qualquer depósito em nome daquele, nomeadamente nenhum depósito que titulasse aquela quantia. Se não era sua intenção prejudicar a assistente, não teria feito desaparecer tais quantias. Sendo certo que no mencionado inventário ficou provado que não só tais quantias não foram gastas em proveito do casal, nem levantadas de comum acordo, como também que foi o ora recorrente quem as levantou sem conhecimento e consentimento da sua ex-mulher. Tudo como consta do despacho proferido sobre as reclamações apresentadas à relação de bens e do documento junto em audiência, constante de fls. 200 a 210 dos autos. Seja como for o recorrente não alegou. e muito menos está provado ou de modo algum resulta dos autos, que tivesse tido o intuito de apenas administrar aquela quantia e que a tivesse administrado no interesse do casal. Muito pelo contrário, privou totalmente a assistente de a partilhar, apoderando-se de tal quantia contra a vontade daquela e dando-lhe destino ignorado. E causando prejuízo patrimonial e moral. Esse prejuízo está bem patente não só no facto de a assistente estar privada do seu direito naquele montante, como também resulta à evidência dos autos de inventário que não existe património para a compensar dessa privação. A verdade nua e crua é que o recorrente, praticando os factos pelos quais foi condenado e levantando todas as demais quantias que o casal possuía, concebeu e executou a subtracção de todas as economias do casal, sem qualquer possibilidade de a sua ex-mulher ser compensada noutros bens. Em todo o caso, nunca o recorrente podia ter o direito, como pretende, de, em autotutela, falsificar a assinatura da assistente e, por esse meio, induzir o funcionário dos CTT a entregar-lhe aquela quantia, pois que tinha meios legais ao seu alcance de evitar o eventual extravio do bem comum. O acórdão recorrido contém todos os elementos objectivos e subjectivos dos tipos legais pelos quais o arguido foi condenado, nomeadamente o prejuízo para terceiro, não se verificando qualquer causa de exclusão da ilicitude ou da culpa. Não estando em causa os factos provados e mantendo-se o seu enquadramento jurídico, é de manter, por absolutamente equilibrada e justa, a condenação proferida.

3.3. Também pela manutenção integral da decisão condenação se pronunciou, em 31Out01, o Ministério Público (5):

O presente recurso não deverá, desde logo, ser conhecido, sem antes ser mandado aperfeiçoar. Com efeito, as suas conclusões enfermam de uma incorrecta enunciação, porquanto as mesmas são demasiado extensas em relação à fundamentação. Nesta conformidade e nos termos do disposto no art. 690.4 do CPC, aplicável "ex vi" art. 4° do CPP, deverá o recorrente ser convidado a apresentar a apresentar uma novas conclusões, sob pena de dele não se conhecer. Quanto ao conteúdo do recurso propriamente dito, bem andou o tribunal "a quo" em condenar o arguido pela prática de um crime de burla agravada e ao considerar que bastou a comprovação, não também do enriquecimento do agente, mas apenas do empobrecimento da vítima, admitindo um resultado parcial ou cortado, como, aliás, uma solução mais justa e equitativa. Tal como a punição pelo cometimento dos dois outros ilícitos de falsificação, os quais são meramente instrumentais do principal crime de burla. Para que este tipo de ilícito ocorra não é necessário, cumulativamente, a verificação de um beneficio ilegítimo, bastando um prejuízo de uma pessoa ou do próprio Estado. Tal como, para que tais crimes se consumem, bastará apenas a intenção de causar prejuízo, consubstanciada como um particular modalidade de dolo. De igual modo, bem andou o tribunal na aplicação da lei mais favorável ao arguido e na sede da sucessão das leis no tempo, tal como no instituto da suspensão da execução da pena de prisão, com a condição suspensiva de reparação à lesada.


4. O DEPÓSITO BANCÁRIO

4.1. No regime de comunhão de adquiridos, que era o dos bens do casamento do arguido e da assistente, «fazem parte da comunhão (6), além dos «bens adquiridos pelos cônjuges na constância do matrimónio, que não sejam exceptuados por lei», «o produto do trabalho dos cônjuges» (art. 1724 do CC).

4.2. E se é certo, em geral, que «cada um dos cônjuges tem a administração dos proventos que receba pelo seu trabalho» e, no caso, que o capital investido pela ora assistente nas «poupanças de investimento postal que havia subscrito nos CTT da Lixa» era «produto do trabalho do arguido, enquanto emigrante na Suíça», nem por isso a administração desse capital continuava a competir ao arguido. Pois que a sua administração desses proventos, enquanto tais, se esgotou na sua colocação à disposição da mulher para o giro da economia doméstica do casal. Esta é que, transformando em «poupanças» o capital assim posto à sua disposição, o investiu em «fundos de investimento postal», assemelháveis - quanto á sua configuração, movimentação e condições de resgate - a «depósitos bancários a prazo». E a administração destes (enquanto, tal como aqueles proventos, bens comuns do casal) caberia já, exclusivamente, ao seu «titular» inscrito («Pode cada um dos cônjuges fazer depósitos bancários em seu nome exclusivo e movimentá-los livremente» - art. 1680.º), no caso a ora assistente.

4.3. Donde que, tendo o arguido «entrado na administração de bens comuns cuja administração lhe não cabia», sem mandado escrito nem conhecimento do outro, a sua posse - sobre o capital levantado - deva considerar-se de «má fé» (art. 1681.3) (7).

5. O CRIME DE BURLA

5.1. O ora arguido e a ora assistente, então casados um com o outro no regime de comunhão de adquiridos, eram, na pendência do casamento, contitulares de determinado património autónomo (constituído pelos bens comuns do casal), de que fazia parte integrante um «fundo de investimento postal» (similar a um «depósito bancário»), em «nome exclusivo» do cônjuge mulher (a ora assistente) e (só) por ela «livremente movimentável». Acontece que, entretanto (por alturas da separação de facto do casal), o cônjuge marido (o ora arguido), no propósito de se apropriar (e, assim, obter «para si» um «enriquecimento ilegítimo», à custa e em prejuízo directo do património comum e indirecto do outro contitular), forjou uma declaração escrita de autorização de levantamento daquele «depósito» e, com ela, logrou convencer a entidade depositária, assim enganada na sua boa fé (8) por tal «inadmissível deslealdade» do falso «procurador», de que a depositante, no uso dos seus poderes de administração do depósito, autorizara a entrega ao marido da quantia depositada.

5.2. Por meio de semelhante «domínio-do-erro», que astuciosamente (9), provocou (mediante a criação e a entrega de uma procuração falsa) (10), o arguido determinou o depositário do bem à sua guarda, convencido de que assim cumpria instruções da depositante, a resgatar o depósito e a abrir mão do dinheiro assim resgatado a favor de quem, ante o documento apresentado, supôs - não o sendo - seu procurador.

5.3. Conseguiu assim o arguido subtrair o dinheiro depositado à órbita da administração do cônjuge administrador (11) e, em termos práticos, à própria esfera do património comum - em prejuízo, directo, deste e, indirecto, daquela - e encaminhá-lo, como encaminhou (fazendo-o desaparecer, como tal, do âmbito do seu originário património de afectação especial), para o seu próprio domínio, assim ilegitimamente enriquecido.

5.4. Não é pacífica, é certo, a punibilidade jurídico-criminal, genericamente, dos «casos de apropriação em situações de comunhão» (Comentário, II, art. 203.º, § 53), mas já o será, especificamente, quando, como no caso, «a coisa seja, sem resto, divisível e, por esse facto, as partes não percam valor, a não ser o proporcional à própria divisão» e o contitular fizer seu «o quinhão - determinável em quantidade e qualidade - do outro» (idem).

5.5. Se o património «integra o conjunto de utilidades económicas detidas pelo sujeito, cujo exercício ou fruição a ordem jurídica não desaprova» (Comentário, II, art. 217.º, § 6) e se se integram no conceito de património, entre outros, «os direitos subjectivos patrimoniais de natureza real ou obrigacional, desde que revistam valor económico, aí se incluindo os direitos patrimoniais decorrentes de outros direitos de natureza não patrimonial (v. g., no âmbito da família, as relações patrimoniais resultantes do casamento)» (Comentário, art. 217.º, § 10), então «a ofensa a qualquer destas realidades constitui, no quadro da concepção económico-jurídica de património, um prejuízo patrimonial que, preenchidos os restantes pressupostos da figura, pode servir de substracto a um crime de burla» (Comentário, art. 217.º, § 6).


6. OS CRIMES DE FALSIFICAÇÃO

6.1. A «declaração escrita» fabricada pelo arguido, abusando da assinatura da mulher, constitui, sem dúvida, um «documento falso». E a sua exibição, perante os CTT, «uso de documento falso». A sua ilicitude criminal estaria, pois, dependente apenas da verificação, no caso, desse «elemento subjectivo da ilicitude» que, no tipo criminal descrito no art. 256.º do CP, é a «intenção de causar prejuízo a outra pessoa ou de obter para si benefício ilegítimo» (art. 256.º do CP).

6.2. Ora, o arguido - como já se viu - falsificou esse documento e exibiu-o, ao depositário do «fundo de investimento» efectuado pela ora assistente, no propósito de defraudar o património comum do casal (e, indirectamente, o outro titular desse património), retirando-lhe, de facto, um dos bens do seu activo e colocando-o, de facto, à sua própria e exclusiva disponibilidade.

6.3. Do mesmo modo, o documento que o arguido forjou - já na pendência do inquérito criminal desencadeado por esta «falsificação» e por aquela outra «burla» - como forma de, abusando mais uma vez da assinatura da mulher, se furtar à perseguição criminal em curso, intentava, simultaneamente, prejudicar o Estado na sua função de administração da justiça e beneficiar ele próprio, injustamente, da impunidade eventualmente decorrente do documento exibido (se este, embora falso, viesse a ser, com pretendia, tido como genuíno).


7. As penas

7.1. No quadro penal (prisão até 2 anos e multa até 60 dias) - que o recorrente não pôs sequer em causa - traçado, para cada um dos apontados crimes de falsificação, pelo art. 228º, n.º 1, al. a), do Código Penal de 1982 (então vigente), não se detecta - ante as circunstâncias atendíveis (art. 71.º do CP) e as finalidades da pena (art. 40.º) - qualquer «desproporção», que importe corrigir em recurso de revista, nas penas concretamente encontradas (7 meses de prisão e 20 dias de multa a 1.000$). Em contrapartida, as penas pedidas pelo recorrente (de 3 meses de prisão e 10 dias de multa a 200$) é que, obviamente, não se compaginariam, minimamente, com o elevado grau de dolo do arguido e não realizariam, satisfatoriamente, as finalidades - de prevenção geral, de defesa social, de reafirmação da validade e da vigência das normas ofendidas, de reforço da consciência jurídica comunitária e do seu sentimento de segurança e de reinserção social do condenado - que, em cada caso, terão que presidir à aplicação de penas criminais.

7.2. E o mesmo se diga - pelas mesmas razões - quanto à pena (de 1 ano de prisão) encontrada pelo tribunal recorrido para punição do crime de burla (punível, à data, com prisão até 3 anos).

7.3. Se «todos estão de acordo em que é susceptível de revista a correcção do procedimento ou das operações de determinação, o desconhecimento pelo tribunal ou a errónea aplicação dos princípios gerais de determinação, a falta de indicação de factores relevantes para aquela, ou, pelo contrário, a indicação de factores que devam considerar-se irrelevantes ou inadmissíveis, não falta, todavia, quem sustente que a valoração judicial das questões de justiça ou de oportunidade estariam subtraídas ao controlo do tribunal de revista, enquanto outros distinguem: a questão do limite ou da moldura da culpa estaria plenamente sujeita a revista, assim como a forma de actuação dos fins das penas no quadro da prevenção, mas já não a determinação, dentro daqueles parâmetros, do quantum exacto da pena, para controlo do qual o recurso de revista seria inadequado; esta última posição é a mais correcta (...); mas já assim não será se, v. g., tiverem sido violadas regras da experiência ou se a quantificação se revelar de todo desproporcionada» (Figueiredo Dias, As Consequências Jurídicas do Crime, § 255).

7.4. Ora, no caso, o recorrente não pôs em causa a «incorrecção do procedimento ou das operações de determinação, o desconhecimento pelo tribunal ou a errónea aplicação dos princípios gerais de determinação ou a falta de indicação de factores relevantes», mas, tão só, a «determinação, dentro daqueles parâmetros, do quantum exacto da pena», caso em que, como se viu, a intervenção correctiva do tribunal de revista só se justificaria se tivessem sido violadas - e não foram - «regras de experiência» ou se a quantificação operada se revelasse - e não revela - «de todo desproporcionada».


8. A indemnização

8.1. Ante os crimes de burla e de falsificação cometidos, pelo arguido, contra (directamente) o património comum do casal, admitir-se-ia que o outro titular do património defraudado exigisse ao arguido, no processo penal, a restituição a esse património do bem «desencaminhado» (ou do seu valor).

8.2. Mas já se duvidaria da sua legitimidade pessoal - ante a natureza da comunhão matrimonial (12) - em exigir, do autor do crime, a entrega indemnizatória, a si próprio, como contitular da património comum defraudado, de metade do valor do bem dissipado. E isso porque, se a lesão do património comum é aferível pelo valor desse bem, já o não será, sequer por metade, a lesão do património próprio do outro contitular.

8.3. O crime, é certo, terá produzido danos imediatos, de natureza patrimonial, no património comum e danos mediatos, de natureza patrimonial ou não patrimonial, na esfera patrimonial própria do outro cônjuge. Aqueles seriam atendíveis no momento da cessação das relações patrimoniais entre os cônjuges, em que estes receberiam a sua meação no património comum e em que cada um deles «conferiria o que devesse a este património» (art. 1689.1 CC). E os demais, na medida em que geraram um «crédito» deste sobre o outro, seriam pagos - naquele mesmo momento - «pela meação do cônjuge devedor no património comum, mas, não existindo bens comuns ou sendo estes insuficientes, pelos bens próprios do cônjuge devedor» (art. 1689.2).

8.4. Assim sendo, a ora assistente, na medida em que circunscreveu o pedido indemnizatório à quantificação dos danos próprios (apesar de poder tê-lo aproveitado - mas não aproveitou - para, enquanto contitular do património defraudado, exigir a restituição a este do bem a ele subtraído) e em que - incorrectamente - aferiu os seus próprios danos patrimoniais por metade do dano patrimonial do património comum, apenas poderá haver do arguido, neste processo penal, o correspectivo indemnizatório dos danos (não patrimoniais) que ela própria sofreu, mediatamente, da conduta criminosa do ex-cônjuge.

8.5. Daí que, por força de tudo isto, a indemnização fixada no tribunal a quo (150 contos por danos morais + 1196,2 contos por danos materiais) haja de reduzir-se, aqui, àquela primeira parcela (ou seja, a 748,2 euros) (13).

8.6. O que, todavia, não impedirá que, em condicionamento da suspensão da pena de prisão, se mantenha, em relação ao condenado, o dever de pagamento à assistente, no prazo fixado em 1.ª instância, não só destes 150 contos (e dos respectivos juros de mora) (14) como - porque conexos - daqueles 1196,2 contos (ou seja, 5967 euros) e correspondentes juros de mora desde 13Set95. É que, entretanto, metade daquele crédito do património comum sobre o arguido - de 2392,407 contos e juros - foi adjudicado, em partilhas, à ora assistente (cfr. fls. 339, 340 e 346), continuando, porém, por saldar.


9. DECISÃO

Tudo visto, o Supremo Tribunal de Justiça, reunido em audiência, delibera, na parcial procedência do recurso, de 24Set01, do cidadão A:

a) confirmar o acórdão recorrido quanto à qualificação jurídico-criminal operada e as penas a ele aplicadas, em 10Jul01, pelo tribunal colectivo do 2.º Juízo de Felgueiras;
b) reduzir a condenação indemnizatória a 748,20 (setecentos quarenta e oito euros e 20 cêntimos) e aos respectivos juros moratórios contados desde 10Jul01;
c) reformular o condicionamento imposto à suspensão da pena única, passando o condenado a dever comprovar nos autos, em seis meses, o pagamento à assistente da indemnização ora fixada e do conexo crédito de 5967 euros (e respectivos juros de mora desde 13Set95) a ela entretanto adjudicado no inventário 314/99-E do 2.º Juízo de Amarante (verba 56 da relação de bens);
d) condenar o recorrente nas custas do recurso penal, com 7,5 UCs de taxa de justiça e 2,5 UCs de procuradoria;
e) e condenar o arguido/recorrente e a arguida/recorrida nas custas do recurso cível, na proporção (11% pelo primeiro e 89% pela segunda) do decaimento.
f) encarregar o tribunal de honrar os honorários devidos, pela sua intervenção ocasional, do ilustre advogado que apoiou o arguido/recorrente na audiência de recurso.

Supremo Tribunal de Justiça, 9 de Maio de 2002
Carmona da Mota
Pereira Madeira
Simas Santos
Loureiro da Fonseca

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(1) «Não se provaram os restantes factos constantes da acusação, designadamente que o arguido tivesse, pelo seu próprio punho, escrito no documento (...) o nome de "B", imitando a assinatura da esposa, sem o consentimento e contra a vontade desta»
(2) Juízes Vítor Leitão Ribeiro, António Barroca Penha e Paula Paz Dias
(3) Adv. Dr. António Archer Leite
(4) Adv. Dr.ª Lúcia Coutinho
(5) Proc. Dr.ª Adriana Faria
(6) De que «os cônjuges participam por metade no activo e no passivo» (art. 1730.1).
(7) «Se um dos cônjuges entrar na administração de bens comuns cuja administração lhe não caiba, sem mandato escrito mas com conhecimento e sem oposição expressa do outro cônjuge, é aplicável o disposto no n.º anterior; havendo oposição, o cônjuge administrador responde como possuidor de má fé»
(8) «O tipo legal do n.º 1 do art. 217.º (do CP) constitui uma norma legal em branco, cujo âmbito de protecção se encontra condicionado pela prévia definição, em sede de direito privado, do que se apresenta permitido ou proibido à luz do princípio da boa fé em sentido objectivo (...). Ao reflectir uma deslealdade tida por inadmissível no comércio jurídico, o domínio-do-erro que viole os ditames da boa fé consubstancia, desde que preenchidos dos demais pressupostos do delito, o desvalor característico do ilícito da burla, integrando, nessa medida, a expressão acabada do conteúdo de previsão do art. 217.º» (A. M. Almeida Costa, Comentário Conimbricense do Código Penal, II, art. 217.º, § 16.º)
(9) «No plano dos factos, a conduta do agente comporta a manipulação de outra pessoa, caracterizando-se por uma sagacidade ou penetração psicológica que combina a antecipação das reacções do sujeito passivo com a escolha dos meios idóneos para conseguir o objectivo em vista. Por outro lado, a experiência de todos os dias revela que, longe de envolver, de forma inevitável, adopção de processos rebuscados ou engenhosos, aquela sagacidade comporta uma regra de "economia de esforço", limitando-se o burlão ao que se mostra necessário em função das características da situação e da vítima. Numa tal adequação de meios (...) radica, em suma, a inteligência ou astúcia que preside ao estereotipo social da burla e, sob pena de um divórcio perante as realidades da vida, tem de subjazer à fattispecie do n.º 1 do art. 217.º» (Comentário, II, art. 217.º, § 15.º)
(10) «O crime de burla pode assumir, na sua configuração material, três modalidades, a primeira das quais ocorre quando o agente provoca o erro de outrem descrevendo-lhe, por palavras ou declarações expressas (sob forma oral ou escrita), uma falsa representação da realidade (...). Nesta modalidade de execução inclui-se, também, a apresentação de documento falso» (Comentário, II, art. 217.º, § 18).
(11) E, assim, da sua esfera de «disponibilidade fáctica», sendo que «a burla constitui um crime de material ou de resultado, cuja consumação depende da verificação de um evento que se traduz na saída dos bens ou valores da esfera de "disponibilidade fáctica" do legítimo detentor dos mesmos ao tempo da infracção» (Comentário, II, art. 217.º, § 12).
(12) «Os bens comuns dos cônjuges constituem objecto, não duma relação de compropriedade, mas duma propriedade colectiva, de mão comum. Sujeitos dessa propriedade colectiva são ambos os cônjuges, sem que seja correcto falar, enquanto persiste a comunhão, numa repartição de quotas entre eles. Na propriedade colectiva há contitularidade de duas (ou mais) pessoas, num único direito tal como na compropriedade, mas, além de conter um único direito, na propriedade colectiva há ainda um direito uno, enquanto na compropriedade há um aglomerado de quotas dos vários comproprietários. A propriedade colectivas é assim uma comunhão una, indivisível, sem quotas. O direito à meação, de cada um dos cônjuges é titular, só se torna exequível depois de finda a sociedade conjugal ou depois de finda a comunhão entre os cônjuges» (Antunes Varela, Direito de Família, 1.º Volume, 5.ª edição, Livraria Petrony, 1999 pgs. 456/457). «Cada um dos cônjuges participa por metade no activo e no passivo da comunhão (...). A determinação da participação de cada um dos cônjuges na comunhão tem, aliás, especialmente em vista o momento da dissolução e partilha do património comum, e não a fixação do objecto do direito de cada um deles na vigência da sociedade conjugal. Na constância da sociedade conjugal, eles são - um e outro - simultaneamente titulares de um (único) direito sobre todos e cada um dos bens que integram o património comum» (idem, pgs. 462/463).
(13) Além, claro, dos respectivos juros moratórios.
(14) Desde - segundo a sentença recorrida - a «data da decisão de 1.ª instância até efectivo pagamento»: «O que deverá acontecer é que o juiz no momento da fixação da indemnização, "dentro das demais circunstâncias do caso" deverá ter em conta este factor, ou seja, a desvalorização da moeda, o que já foi feito, justificando-se, todavia, a condenação em juros com referência ao tempo posterior à data da decisão e até efectivo pagamento da indemnização».