Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça | |||
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| Nº Convencional: | JSTJ000 | ||
| Relator: | ARMINDO MONTEIRO | ||
| Descritores: | TRÁFICO DE ESTUPEFACIENTES CORREIO DE DROGA MEDIDA CONCRETA DA PENA FALSIFICAÇÃO DOCUMENTO AUTÊNTICO | ||
| Nº do Documento: | SJ200709260032022 | ||
| Data do Acordão: | 09/26/2007 | ||
| Votação: | UNANIMIDADE | ||
| Texto Integral: | S | ||
| Privacidade: | 1 | ||
| Meio Processual: | RECURSO PENAL | ||
| Decisão: | REJEITADO O RECURSO | ||
| Sumário : | I - O processo de formação concreta da pena é complexo e «um puro derivado da posição tomada pelo ordenamento jurídico-penal em matéria de sentido, limites e finalidades da aplicação das penas», teoriza o Prof. Figueiredo Dias, in Direito Penal Português – As Consequências Jurídicas do Crime, pág. 215. II - Os factores interferentes em tal processo desdobram-se por uma panóplia de circunstâncias que pertencem ou ao tipo de ilícito ou ao tipo de culpa e que relevam para a medida da pena, quer pela via da culpa quer pela via da prevenção – arts. 40.º e 71.º do CP; ao nível do tipo de ilícito objectivo repercutem-se, por ex., o dano, material ou moral, o grau de perigo criado nos casos de tentativa e de crimes de perigo, a espécie e o modo de execução do facto, o grau de conhecimento e a intensidade da vontade criminosa no dolo, a medida da violação do dever de cuidado na negligência, etc. (cf. ob. e loc. cit., pág. 246). III - Tem-se por adequada a aplicação de uma pena de 6 anos de prisão, pela prática de um crime de tráfico de estupefacientes, p. e p. pelo art. 21.º do DL 15/93, de 22-01, se o arguido, de nacionalidade colombiana, sem qualquer ligação a Portugal e sem antecedentes criminais, no âmbito de um transporte como correio de droga, desembarcou no aeroporto de Lisboa, proveniente de São Paulo, Brasil, trazendo, nas três malas de viagem que transportava, quatro aparelhos electrónicos que continham, dissimuladas no seu interior, 20 embalagens com cocaína, com o peso líquido global de 21 000,600 g. IV - Tendo resultado ainda apurado que: - o arguido era portador de um passaporte com nome falso, como se fosse cidadão da EU, para neste espaço melhor se movimentar, sendo o impresso respectivo verdadeiro, com excepção da contracapa onde figuram os elementos de identificação e a fotografia do titular, fornecida pelo arguido a terceira pessoa para confecção do passaporte, a qual é falsa, tendo sido confeccionada por impressão electrofotográfica policromática e o seu impresso reproduzido numa máquina de tecnologia cânon; - o mesmo passaporte foi objecto de viciação por rasura mecânica e alteração do algarismo das dezenas relativo à altura do titular; - o arguido sabia que tal passaporte não se encontrava emitido em seu nome, e, não obstante, quis obtê-lo e exibi-lo, como se fosse seu titular, a fim de beneficiar das facilidades de circulação de que beneficiam os nacionais dos Estados membros da União Europeia no território dos restantes Estados membros desta União; - actuou voluntária e conscientemente, sabendo que a sua descrita conduta lhe era proibida por lei; incorreu o arguido num crime de falsificação material, em co-autoria com desconhecido, de um documento autêntico, p. e p. pelos arts. 255.º, al. c) (no elenco dos documentos na redacção da Lei 59/2007, de 04-09), e 256.º, n.ºs 1, al. a), e 3, do CP. | ||
| Decisão Texto Integral: | Acordam em conferência na Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça : Em processo comum com intervenção colectivo sob o nº 117/06.8ADLSB (11/07) da 4 .ª Vara Criminal de Lisboa , foi submetido a julgamento AA e , a final , condenado como autor material de um crime de tráfico de estupefacientes , p. e p. pelo art. 21º nº 1 , do DL nº 15/93 de 22/1, na pena de 6 anos de prisão, acrescida da pena acessória de expulsão do território nacional pelo período de 8 anos, e na pena de 1 ano de prisão, como co-autor material de um crime de falsificação de documento , p. e p. pelo art. 256º nºs 1 al. a) e 3 do CP, em cúmulo jurídico, na pena única de 6 anos e 4 meses de prisão, acrescida da referida pena acessória. I . Inconformado com o teor da decisão proferida interpõs directamente o arguido recurso para este STJ , apresentando na motivação as seguintes conclusões : A pena imposta quanto ao crime de tráfico de estupefacientes não o pode ser apenas por razões de prevenção geral . Uma pena excessiva conduz à solidarização com o condenado desproporcionadamente , afectando a prevenção geral . Deviam ter sido ponderadas as circunstâncias que depõem em favor do arguido e cumpridas as razões de prevenção especial . O arguido agiu em condições de extrema necessidade , o que concorreu para a prática do ilícito , designadamente a sua difícil situação clínica e económica bem como a sua condição económica . Não achou outra alternativa para custear as despesas de saúde , necessitando ainda de uma intervenção cirúrgica . Desconhecia que trazia tão elevada quantidade de cocaína . Incorreu na prática do crime por inevitável obediência ao seu mandante . Deve-lhe ser aplicada uma pena entre os 4 anos e 4 anos e 6 meses de prisão e quanto ao crime de falsificação a de 3 meses de prisão . II . Colhidos os legais vistos , cumpre decidir , considerando que o Colectivo teve por assente o seguinte complexo factual : 1. No dia 22/10/06, pelas 12h40m, o arguido desembarcou no Aeroporto de Lisboa, procedente de São Paulo, Brasil, no voo TP 194, e apresentou-se no Serviço de Estrangeiros e Fronteiras, perante o qual se identificou com o Passaporte da República Italiana nº ... X, emitido em 15/10/02, em nome de M...L..., e válido até 14/10/07. III . O arguido não controverte a qualificação jurídico-penal dos factos , espelhando a prática dos crimes de tráfico de estupefacientes e de falsificação , mas apenas a sua justa medida , pecando ambas por excesso , em seu ver . O processo de formação concreta da pena é complexo “ e um puro derivado da posição tomada pelo ordenamento jurídico –penal em matéria de sentido , limites e finalidades da aplicação das penas “ , teoriza o Prof. Figueiredo Dias , in Direito Penal Português –As Consequências Jurídicas do Crime , pág. 215 . Os factores interferentes em tal processo desdobram-se por uma panóplia de circunstâncias que pertencem ou ao tipo de ilícito ou tipo de culpa e que relevam para a medida da pena , quer pela via da culpa quer pela via da prevenção –art.ºs 40.º e 71.º , do CP ; ao nível do tipo de ilícito objectivo repercutem-se, por ex.º , o dano , material ou moral , o grau de perigo criado nos casos de tentativa e de crimes de perigo , a espécie e o modo de execução do facto, o grau de conhecimento e a intensidade da vontade criminosa no dolo , a medida da violação dever de cuidado na negligência , etc.-cfr. op . e loc.cit. 246 . Uma pena injusta comporta o demérito da não interiorização dos seus efeitos -Montesquieu , apelidava –a de acto de pura tirania ; uma pena benévola é um puro desperdício , um acto ineficaz , que a comunidade não compreende . A pena a aplicar no caso concreto move-se dentro de quadrantes amplamente conhecidos , ao nível subjectivo da qualidade do agente e em que este reflecte a figura de “ correio” de droga , oriundo de país da América latina , como em regra ocorre , mas que demanda um tratamento jurídico-penal , que sem se equiparar ao do dono da droga, nem por isso consente um tratamento de exagerado benefício , por este ser , como o perspectiva este STJ , em moldes uniformes , um instrumento de disseminação de estupefacientes , que se abalança ao tráfico por razões de subsistência na remuneração do transporte intercontinental , mas também o pode ser internamente, outras vezes por pura ganância , sabedor de que o risco compensa pelo vultuoso lucro que o supera . Anote-se que no dia 22/10/06, pelas 12h40m, o arguido desembarcou no Aeroporto de Lisboa, procedente de São Paulo, Brasil, no voo TP 194, e apresentou-se no Serviço de Estrangeiros e Fronteiras, perante o qual se identificou com o Passaporte da República Italiana nº ... X, emitido em 15/10/02, em nome de M...L..., e válido até 14/10/07. Na ocasião, o arguido trazia consigo três malas, dentro das quais transportava quatro aparelhos electrónicos, que continham, dissimuladas no seu interior 20 embalagens contendo cocaína, com o peso líquido global de 21.000,600 gramas . Diversas folhas de chumbo envolviam o mesmo produto, por forma a iludir o exame radiológico. O impresso do passaporte referido no ponto 1 é autêntico, com excepção da contracapa anterior, onde figuram os elementos de identificação e a fotografia do titular, a qual é falsa, tendo sido confeccionada por impressão electrofotográfica policromática e o seu impresso reproduzido numa máquina de tecnologia cânon. O mesmo passaporte foi objecto de viciação por rasura mecânica e alteração do algarismo das dezenas relativo à altura do titular, constante do campo «Statura», página 2. A cocaína transportada enquanto simples “ correio “ ultrapassa , em muito , a média quantitativa verificada usualmente abaixo de 1 Kg e não excedente os 6 Kgs , pelo que a gravidade da sua conduta se mostra digna de realce . O arguido agiu em todo o processo criminoso determinado por uma vontade criminosa firme , de forma consciente sendo da sua autoria plena a afirmação do desconhecimento da qualidade total transportada , excedendo 21 Kgs . , elevada como o próprio arguido , de resto , reconhece . Indemonstrado ficou que o arguido agiu no transporte com o fim de assegurar a sua subsistência e a da família , para fazer face a despesas de saúde , incluindo uma intervenção cirúrgica , pese embora se achar desempregado , sofrer de diabetes e de litíase renal , bem como em estado de absoluta sujeição ao mandante do crime e incapaz de se autodeterminar livremente , arrastado para ele , como que metido num indominável colete de forças . De qualquer modo a ser verdadeira aquela condição de penúria económica , se ela poderia ajudar a compreender o procedimento do arguido , nunca ela o justificaria , não escapando ao arguido o conhecimento demérito que lhe é próprio , por ser universal , levando à introdução no mercado de um estupefaciente causador da maior danosidade individual , familiar e colectiva , pela dependência e degradação humana a que conduz . Neste sentido, com o Prof. Eduardo Correia , in Direito Criminal , II , 326 , “ os motivos elevados atenuam a responsabilidade e os inferiores a agravam “ , desempenhando um papel importante na graduação concreta da pena ; quaisquer que sejam os motivos invocados não abonam o traficante embora possam comportar maior ou menor peso na dosimetria da pena . O traficante espezinha a dignidade humana , e o dano que causa não se cinge à mera introdução no mercado do produto , potenciando , como é reconhecido , a prática de outros , ao nível patrimonial , do crime sexual , insegurança pública , desobediência à autoridade , etc , sendo , por isso , um dos mais graves atentados ao ordenamento jurídico . De certo que o arguido não introduziu a cocaína no mercado , mas a simples posse constitui risco de lesão dos valores a acautelar com a incriminação , ligados à saúde individual e colectiva , tanto física como psíquica , presumindo , pelo mero facto do transporte, o legislador a possibilidade de lesão de uma espiral humana sem conta . O crime de tráfico mostra-se cometido com alguma sofisticação dado que a heroína objecto de transporte se mostrava coberta por folhas de chumbo por forma a dificultar a identificação radiológica no controle alfandegário , modo de execução que adensa o grau de ilicitude , porque pensado , ultrapassando a incipiência . IV. Mas o arguido era igualmente portador de um passaporte com nome falso –M...L... - como se fosse cidadão da U E , para neste espaço melhor se movimentar , sendo o impresso respectivo verdadeiro , com excepção da contracapa onde figuram os elementos de identificação e a fotografia do titular, fornecida pelo arguido a terceira pessoa para confecção do passaporte , a qual é falsa, tendo sido confeccionada por impressão electrofotográfica policromática e o seu impresso reproduzido numa máquina de tecnologia cânon. O mesmo passaporte foi objecto de viciação por rasura mecânica e alteração do algarismo das dezenas relativo à altura do titular, constante do campo «Statura», página 2. Incorreu , pois , um crime de falsificação , material , em co-autoria com desconhecido , crime contra a vida em sociedade , pois que os documentos se dirigem à vida em sociedade , que reclama seriedade na sua elaboração e uso, verdade intrínseca , de modo a que se apresente credível aos olhos dos seus destinatários , portador de confiança na entidade emitente , seja ela pública seja privada , só assim se assegurando a sua livre circulação e a sua força probatória , em que o Estado está interessado . Os documentos destinam-se a fazer prova da realidade que narram , ou , numa construção jurisprudencial de feição uniforme , a proteger a segurança e confiança do tráfico probatório , a verdade intrínseca do documento , enquanto bem jurídico . Estamos em presença de uma falsificação grave , respeitando a documento autêntico , p . e p . pelos art.ºs 255 .º c) ( no elenco dos documentos , na redacção da Lei n.º 59/2007 , de 4/9 ) e 256.º n.ºs 1 a) e 3 , do CP , aquela Lei mantendo a moldura pena penal da “ lex tempus delicti “ –prisão de 6 meses a 5 anos ou multa de 60 a 600 dias . O arguido beneficia da sua confissão , sem grande relevo , por lhe não restarem alternativas , é a do evidente . Foi detido na posse dos estupefacientes e do passaporte. A declaração de arrependimento não passa de uma declaração , não já de interiorização dos maus efeitos dos seus actos , ainda menos valiosa se se ponderar que já foi anteriormente condenado por detenção de 420 gramas de heroína em Itália , tendo estado aí preso em 1988 , não lhe servindo de advertência essa condenação , nada abonando o seu comportando anterior . V. O Colectivo numa moldura de 4 a 12 anos de prisão fixou a pena concreta em 6 anos de prisão quanto ao crime de tráfico de estupefacientes e quanto ao de falsificação , numa moldura de 6 meses a 5 anos de prisão em 1 ano . Essas penas ponderaram , desde logo , a culpa do arguido , sob a forma mais grave de dolo , de vontade criminosa intensa , e a prevenção , nos termos dos art.ºs 40.º n.º 1 e 70.º n.º 1 , do CP . A culpa funciona como moldura de topo onde se desenham , como submolduras , as necessidades de prevenção , geral e especial , bem como as circunstâncias que não fazendo parte do tipo , depõem contra ou a favor do agente. A vertente preventivo-geral assume aqui pendor do maior relevo não só porque o consumo de drogas não dá mostras de diminuir entre nós, em contrário do que , com respeito à cocaína , sucede noutros países da Europa ocidental , onde estabilizou –cfr. Observatório Europeu da Droga e Dependência , em Lisboa , Relatório Anual de 2006 , pág. 13-, exigindo-se que a pena funcione como forte elemento desencorajador da sua introdução ou passagem entre nós , atenta a sua prática recorrente , como reforço da consciência jurídica e sentimento de segurança face à norma jurídica violada , tranquilizando o tecido social abalado , sobressaltado –cfr . BMJ 453 , 172 e 444, 366 . Igual necessidade se faz sentir quanto ao crime de falsificação , de prática frequente . E a especial , de reprovabilidade pessoal , individual , para garantia de não reincidência , de readaptação ao tecido social de que se tornou inimigo –cfr. Rodriguez Devesa , Derecho Penal Especial Español , Parte General , 884 –merece também preocupação , atento seu passado criminal. A forma de execução com sofisticação do crime de tráfico e a indiferença em termos de atentado à fidedignidade que deve merecer um qualquer documento de identificação , como a elevada quantidade detida de cocaína e a sua natureza , traçam um elevado grau de ilicitude dos factos, na sua ponderação global , a que se opõe uma confissão de valor reduzido ,uma declaração quase inócua de arrependimento e a não disseminação entre nós , não desempenhando a sua condição de doente ou mesmo de desempregado uma atenuação da sua culpa e ilicitude . A pena aplicada , de resto , quanto ao crime de tráfico de estupefacientes situa-se numa moldura que este STJ comummente aplica a quantidades de estupefacientes , muito inferiores , derivando daí que se reparo há fazer é , apenas , por comportar benevolência . Termos em que , a tudo atendendo , são inteiramente de manter as penas aplicadas , sendo evidente , a uma análise imediata , sem esforço , perfunctória , que são justas e equilibradas , julgando-se manifestamente improcedente o recurso , que se rejeita . Condena-se ao pagamento de 6 Uc,s de taxa de justiça , acrescendo a soma de 4 Uc,s , por força do n.º 3 , do art.º 420.º , do CPP . Supremo Tribunal de Justiça, 26 de Setembro de 2007 Armindo Monteiro (Relator) Santos Cabral Oliveira Mendes
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