Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
02B1645
Nº Convencional: JSTJ00000349
Relator: NEVES RIBEIRO
Descritores: AQUISIÇÃO DE NACIONALIDADE
PRESSUPOSTOS
OPOSIÇÃO À AQUISIÇÃO DE NACIONALIDADE
Nº do Documento: SJ200206110016457
Data do Acordão: 06/11/2002
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: T REL LISBOA
Processo no Tribunal Recurso: 7401/01
Data: 12/18/2001
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA.
Decisão: NEGADA A REVISTA.
Área Temática: DIR NACION.
Legislação Nacional: LNAC81 ARTIGO 9 A.
RNACP82 ARTIGO 22 N1.
Sumário : I - O requerente da nacionalidade portuguesa terá que demonstrar uma "ligação efectiva" à comunidade portuguesa.
II - Não assumem pendor significativo / decisivo para a existência de tal "ligação" as circunstâncias de o requerente haver casado com uma portuguesa - no Brasil onde reside -, possuir número fiscal, conta bancária ou ser proprietário em Portugal, ter frequentado, durante um ano, e obtido por equivalência um curso académico, e ser sócio de associações portuguesas sediadas no Brasil.
Decisão Texto Integral: Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:

1. O Ministério Público, nos termos das disposições conjugadas dos artigos 9° e seguintes, da Lei n.º 37/81, de 3 de Outubro (Lei da Nacionalidade) e 22° e seguintes, do Regulamento da Nacionalidade Portuguesa, constante do Decreto-Lei n. 322/82, de 12 de Agosto, ambos na redacção introduzida pela Lei n.º 25/94, de 19 de Agosto, e Decreto-Lei n. 253/94, de 20 de Outubro, instaurou acção, com processo especial, de oposição à aquisição de nacionalidade portuguesa, contra A, nascido em 22 de Agosto de 1944, casado, natural de São Caetano do Sul, São Paulo, Brasil, filho de ..... e de ....., de nacionalidade brasileira, residente na Rua ....., Barcelona, São Caetano do Sul, São Paulo, Brasil, alegando existirem factos impeditivos da aquisição da nacionalidade portuguesa.
Pede que se julgue procedente e provada a oposição e se ordene o arquivamento do processo.
Citado o requerido, veio contestar, alegando que tem habitação própria em Portugal onde reside, quando vem a Portugal, e que se encontra inserido na comunidade portuguesa do Brasil, cujas associações frequenta.
A Relação de Lisboa confirmou a oposição do M.º P.º.
É, naturalmente, o requerente quem pede revista.
2. São factos relevantes para apreciação do pedido e da oposição os seguintes:
2.1 - Em 29 de Junho de 2000, na Conservatória do Registo Civil de Loures e, por intermédio de procurador bastante, o requerido declarou pretender adquirir a nacionalidade portuguesa com base no casamento que contraiu no dia 20 de Março de 1992, em S. Caetano, com a nacional portuguesa B.
2.2 - Com base em tal declaração foi instruído na Conservatória dos Registos Centrais o processo n.º 23113/00.
2.3 - O requerido casou, em 20 de Março de 1992, em S. Caetano do Sul, São Paulo, Brasil, com a nacional Portuguesa, B.
2.4 - O requerido é sócio do Centro Cultural e Recreativo Algarve e Alentejo de S. Paulo, participando nos eventos de carácter cultural (recitais de música portuguesa, exposições, palestras sobre factos históricos e sobre escritores portugueses) sociais e recreativos.
2.5 - É sócio da casa de Portugal (instituição cultural e de assistência).
2.6 - Exerce funções no Hospital Nossa Senhora de Fátima, da Sociedade Portuguesa de Beneficência de S. Caetano do Sul.
2.7 - Viveu, em Portugal, em 1998.
2.8 - Onde, pela Faculdade de Medicina da Universidade do Porto, obteve a equivalência em Portugal do Curso de Medicina que tirou no Brasil.
2.9- Tendo conta em instituição bancária portuguesa.
2.10 - E requerido número de contribuinte fiscal.
2.12 - O requerido e sua mulher adquiriram, em 10 de Setembro de 1993, a fracção autónoma designada pela letra "G, situada na Avenida ...., da freguesia de Mafamude, Vila Nova de Gaia.
CUMPRE DECIDIR:
3. A ideia de nação resulta, na origem, de formas de organização mais rudimentares, como o clã , a família ou a tribo; e surge quando começa a haver um consenso sobre motivações de existência colectiva comum, devido a uma sedimentação histórica, tradicional, no plano cultural e sócio-económico.
A nação é um conceito impreciso, assente numa base cultural, significando, como já foi afirmado " uma comunidade de sonhos". (1)
Sedimenta-se a si própria, através de uma evolução histórica enraizante de um sentimento nacional de efeito gregário.
A nação não existe juridicamente, nem é sujeito de direitos, titular de soberania.
Acaba por ser o agente de uma solidariedade necessária à convivência social, ligada
pela raça, pelos costumes, pelos cultos, pela história, pela língua, pela tradição, enfim - sem esgotar - por um traço cultural associativo difuso, mas de qualquer modo, agregador, ainda que envolvente de uma simples diáspora, e esta, mesmo que só emotiva.
A nação portuguesa não escapa a esta realidade descrita nos manuais da sociologia e da filosofia do direito natural. Participa do mesmo sentido associativo, e é cingida por elementos do tipo enunciado.
3.1. O requerente, de nacionalidade brasileira, é actor participativo do cenário que acaba de descrever-se, traduzido também, para além do exposto, numa centelha de simbolismos institucionais - o hino, a bandeira, o escudo e as quinas, Constituição, artigo 11º - onde se atravessam estados de alma que são mais intuídos do que racionalizados, alimentados pela história, pela literatura, pela tradição, bem servidos pelo canto, pela música, pelo audiovisual, pelos meios de comunicação à distância... enfim, pela própria emulação desportiva, etc, etc...
E quanto ao Brasil (ou de modo mais amplo para os países de língua oficial portuguesa), a ideia de nação revê-se ainda num modelo de Pátria, em que esta, no dizer do poeta (Fernando Pessoa) "é a nossa língua", ou no dizer do filósofo (Agostinho da Silva - e particularmente quanto ao Brasil) este projecta-se como "o Espaço de Portugal".
São pois ingredientes favoráveis á ideia de nacionalidade alargada, que aproveita o requerente, no sentido mais abrangente da afirmação, modelada através de uma dimensão cultural sem fronteiras físicas, independente do Estado, medida por valores referenciais, dominantes para cada época da História - sempre evolutiva.
Mas esta dimensão ideal tem o tamanho da premissa maior, pressuposta pela Lei da nacionalidade, quando, dando conteúdo concreto ao vinculo de ligação cidadão / Estado, estabelece as condições mais concretizadas de concessão àquele, de uma nacionalidade portuguesa efectiva.
É o que veremos a seguir.
4. A Lei da Nacionalidade Portuguesa exige uma relação efectiva à comunidade nacional.
Diz o artigo 9º, alínea a), na redacção introduzida pela Lei n.º 25/94, de 19 de Agosto, que são motivos de recusa "a não comprovação pelo interessado de ligação efectiva à comunidade nacional".
Regulamentando este princípio, estabelece o artigo 22 n. 1, do Decreto-Lei n.º 253/94, de 20 de Outubro, que "todo aquele que requeira registo de aquisição de nacionalidade portuguesa por efeito de vontade ou por adopção, deve comprovar, por meio documental, testemunhal ou qualquer outro legalmente admissível, a ligação efectiva à comunidade portuguesa" .
Trata-se do vínculo jurídico que liga um indivíduo a um Estado, numa relação de pertença ao Estado, ao Povo - este como um dos elementos estruturantes da noção de Estado.
É mais apertada a exigência: Proclama uma ligação efectiva com o Estado, no sentido de que este é a primeira condição da sociabilidade normativa da nação, devendo o requerente comungar e realizar, ou participar na realização efectiva, dos valores que são fundamentais à sociabilidade, não apenas como nação, na expressão cultural, e até de afectos, que se descreveu nos pontos 3 e 3.1.
Do que se cuida agora é de um sentido de sociabilidade real com Estado Português / cidadania portuguesa, lembra o artigo 4º da Constituição.
Um requerente (ou uma requerente) terá que mostrar uma ligação efectiva à comunidade portuguesa, não bastando, segundo a nova lei, o próprio facto do casamento com uma portuguesa (ou com um português).
Ligação cujo conteúdo comunga dos valores e participa nos objectivos fundamentais da comunidade nacional, revelando propósito e seriedade de exercício de cidadania portuguesa, de forma interessada, consistente, prática, efectiva, operacional, na directa relação cidadão / Estado e Estado / cidadão (nos dois sentidos), e entre cidadãos do mesmo Estado.
O que supõe, no mínimo, que o candidato esteja em condições normais e objectivas de o poder fazer, isto é, de relacionar-se, na acepção que acaba de ser indicada.
É também na encarnação deste pensamento de um vinculo com consistência prática e efectiva que o artigo 17º do Tratado C.E permite o alargamento da cidadania da União Europeia, aos nacionais dos Estados Membros, mas reservando a estes, a soberania da concessão.
Tudo, implicando, a final, um sentido de integração efectiva no tecido nacional, identificável - dizíamos - com uma relação de pertença (2) à comunidade, usufruindo de direitos e cumprindo deveres, e por aqueles e por estes, assumindo preocupações, da Sociedade Portuguesa, enquanto juridicamente organizada em Estado e com objectivos essenciais a cumprir.
São conteúdos que integram o estatuto da cidadania portuguesa, face ao Estado português, para a realização das tarefas fundamentais, enunciadas em grandes linhas, no artigo 9º da Constituição, como fins do Estado.
5. Feito este diagrama de enquadramento geral da matéria, retomemos o caso:
- O requerente da nacionalidade declarou, em 29 de Junho de 2000, na Conservatória do Registo Civil de Loures e, por intermédio de procurador bastante, pretender adquirir a nacionalidade portuguesa, com base no casamento, que contraiu no dia 20 de Março de 1992, em S. Caetano do Sul, São Paulo, Brasil, com a nacional portuguesa, B.
- Com base em tal declaração, foi instruído na Conservatória dos Registos Centrais o processo n. 23113/00.
- O requerente é sócio do Centro Cultural e Recreativo Algarve e Alentejo de S. Paulo, participando nos eventos de carácter cultural (recitais de música portuguesa, exposições, palestras sobre factos históricos e sobre escritores portugueses) sociais e recreativos.
- É sócio da casa de Portugal (instituição cultural e de assistência).
- Exerce funções no Hospital Nossa Senhora de Fátima, da Sociedade Portuguesa de Beneficência de S. Caetano do Sul.
- Viveu, em Portugal, em 1998.
- Onde, pela Faculdade de Medicina da Universidade do Porto, obteve a equivalência, em Portugal, do Curso de Medicina, que tirou no Brasil.
- Tem conta em instituição bancária portuguesa.
- E número de contribuinte fiscal.
- O requerente e sua mulher adquiriram, em 10 de Setembro de 1993, a fracção autónoma, designada pela letra "G, situada na Avenida ....., da freguesia de Mafamude, Vila Nova de Gaia.
6. Colocados estes dados, e aproximando-os da doutrina dos dois preceitos transcritos, resulta um juízo normativo negatório do pedido de nacionalidade, solicitada, no quadro de facto emergente do processo, e que acaba de evidenciar-se.
Com efeito, casar com uma portuguesa, no Brasil, onde se reside, ter n.º fiscal, conta bancária ou ser proprietário em Portugal, ou ter frequentado, durante um ano, e obtido, por equivalência, um curso académico, ser sócio de associações portuguesas, sediadas no Brasil, são elementos que, correspondendo apenas a direitos que decorrem do Estatuto de Igualdade entre Portugueses e Brasileiros (em especial, artigos 12º a 22º- entrada e permanência - e 23º a 48º - cooperação cientifica e tecnológica - do Tratado de Amizade, Cooperação e Consulta entre a República Portuguesa e a República Federativa do Brasil, ratificado pelo Decreto 79/2000, de 14 de Dezembro de 2000), não atingem pendor significativo para alcançar a integração na comunidade nacional, no sentido preconizado da ligação efectiva ao Estado Português, caracterizada há pouco (ponto 4), que garanta a atribuição da cidadania portuguesa, segundo as exigências e objectivos pressupostos pelas normas legais reproduzidas.
Quanto a nós afigura-se um resultado conclusivo inquestionável.
Vai também nesta direcção, e perante a nova redacção da Lei da Nacionalidade, toda a jurisprudência deste Tribunal, face a cenários paralelos de nacionais de países de expressão portuguesa, casados com portuguesas (ou portugueses) no país de origem (3).
Termos em que, sem necessidade de maiores explanações, e ponderando tanto quanto se expôs, acordam no Supremo Tribunal de Justiça - 7ª secção - em negar provimento à revista.
Custas pelo recorrente.

Lisboa, 11 de Junho de 2002.
Neves Ribeiro,
Araújo de Barros,
Oliveira Barros.
--------------------------
(1) Sobre os conceitos mais gerais de Estado; Estado/nação; e Estado/ colectividade , pode ver-se : O Estado nos Tribunais, Intervenção Cível do MºPº, em Primeira Instância, 2ª edição, páginas 180/182, e vastíssima doutrina nacional e estrangeira, que trata o conceito de Nação, em especial nas notas de rodapé, nas indicadas páginas.
(2) Pode dizer-se que toda a nacionalidade é efectiva, isto é, que o vinculo de nacionalidade pressupõe uma ligação de carácter sociológico entre indivíduo e Estado, de forma tal que possa dizer-se, que há uma relação de pertença entre aquele e este - é esta ideia subjacente à noção germânica de Staatsangehorigkeit que literalmente significa "pertença ao Estado", ou seja o indivíduo faz parte da população do Estado (ou mais rigorosamente do povo) - Professor Marques dos Santos, Estudos de Direito de nacionalidade, páginas 279/281, onde apresenta vastíssima recepção de doutrina nacional e estrangeira, sobre nacionalidade e efectividade do vinculo.
(3) Resultado de pesquisa informática feita pela assessoria cível, a partir dos descritores " oposição à aquisição de nacionalidade" e " ligação efectiva à comunidade nacional".