Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
02B3544
Nº Convencional: JSTJ000
Relator: QUIRINO SOARES
Nº do Documento: SJ200211210035447
Data do Acordão: 11/21/2002
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: T REL LISBOA
Processo no Tribunal Recurso: 3740/02
Data: 05/09/2002
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA.
Sumário :
Decisão Texto Integral: Acordam no Supremo Tribunal de Justiça
1. "A", dono da fracção A (composta de loja no rés do chão e parte da cave), do prédio sito na rua Andrade, nº....., .....-A e .....-B, em Lisboa, constituído em propriedade horizontal, pretende que B, dona da fracção B (parte restante do prédio), onde funciona uma unidade hoteleira, seja condenada a tapar as aberturas que efectuou na cave e nos andares superiores para ligação a um outro edifício ao lado, com o nº18, da mesma rua, também propriedade da ré, onde funciona a mesma unidade hoteleira.
A acção procedeu nas instâncias, mas por fundamentos não coincidentes.
Na 1ª instância, entendeu-se que a ligação dos prédios implica violação do título constitutivo da propriedade horizontal, para cuja alteração é indispensável o acordo de todos os condóminos;
a Relação não entendeu assim, mas considerou que a obra de ligação dos dois prédios constitui inovação em partes comuns, susceptíveis de prejudicar a utilização da cave, por parte do autor, sendo, por isso, inovação proibida à luz do nº2, do artº1425º, CC.
A ré pede revista, e fundamenta assim:
· o acórdão recorrido assenta em matéria de facto insuficiente, designadamente, no que se refere ao prejuízo que as obras implicam para a utilização, pelo autor, da sua fracção, ou das partes comuns, pelo que se justificava que a Relação tivesse usado a faculdade prevista no nº4, do artº712º, CPC (1) ;
· não é, de qualquer modo, lícito concluir que as obras, mesmo que qualificáveis como inovação, tenham prejudicado o outro condómino, principalmente as dos andares superiores.
2. São os seguintes os factos provados:
· o prédio situado na Rua Andrade, n.º .... a ....-B, com sub-cave, cave, rés do chão, 1°, 2°, 3°, 4° e 5° andares, freguesia dos Anjos, Lisboa, está descrito na 4ª Conservatória do Registo Predial de Lisboa sob a ficha 00615/300392;
· a aquisição do direito de propriedade sobre o prédio mencionado foi inscrita no dia 25 de Março de 1986 na titularidade da ré, por compra a C;
· no dia 15 de Novembro de 1988, foi lavrada escritura pública de constituição da propriedade horizontal relativa ao prédio mencionado, pelo notário do 17° Cartório Notarial de Lisboa, na qual De E, em representação de "B, Ld.", declararam, além do mais:
- compor-se de sub-cave, cave, loja, rés do chão, 1°, 2°, 3°, 4° e 5° andares, destinando-se parte do rés do chão e cave a comércio e parte do rés-do-chão e caves e 1° a 5° andares a uma unidade hoteleira, pensão residencial;
as caves destinarem-se a parqueamento e arrumos da pensão, o rés do chão comportar a recepção e o escritório da pensão e uma loja e os restantes andares alojam quartos, ficando também no 1° andar as zonas comuns da pensão ( sala de pequenos almoços, hall, terraço e cozinha);
ser integrado por duas fracções autónomas, sendo a A uma loja ampla no rés do chão e parte da cave com duas casas de banho (estabelecimento comercial), com a área total de 522, 8 m2, com entrada pelo nº.... da Rua Andrade e com acesso a veículos automóveis ligeiros à cave pelo nº.... da mesma rua Andrade, correspondendo-lhe a permilagem de duzentos e sessenta e seis e meio por mil, e a B, Unidade Hoteleira de Grande Ocupação, constituída pela sub-cave e parte da cave, onde se situam os estacionamentos, rés-do-chão com pequena recepção e pequeno escritório e casa de banho e 1° a 5° andares, com a permilagem de setecentos e trinta e três e meio por mil;
serem comuns não só as partes definidas no nº, 1 do artigo 1421º, do Código Civil, como também as demais coisas que não são afectadas ao uso exclusivo de um dos condóminos;
· no dia 15 de Novembro de 1988, em escritura pública lavrada pelo notário do 17° Cartório Notarial de Lisboa, D e E, em representação de B Ldª., por um lado, e F, por outro, declararam, a primeira vender e o segundo comprar, por 18.000.000$, a fracção autónoma A do prédio mencionado, loja ampla do rés do chão e parte da cave com duas casas de banho (estabelecimento comercial), área total de 522 m2, com entrada pelo nº ...... da Rua Andrade e com acesso de veículos automóveis ligeiros à cave pelo nº..... da mesma Rua Andrade;
· no dia 19 de Setembro de 1989, no notário do 17° Cartório Notarial de Lisboa, foi outorgada escritura pública, na qual G, H, I, J, outorgando as referidas G e I, por si e como procuradoras de seu pai L, por um lado, e representantes da ré por outro, declararam os primeiros venderem à última e esta comprar o prédio urbano sito em Lisboa, na Rua Andrade n.º..... e ....;
· a aquisição, por compra, do direito de propriedade sobre a fracção A, está inscrita na 4ª. Conservatória do Registo Predial na titularidade do autor desde 30 de Abril de 1996;
· de uma memória descritiva e justificativa consta que a ré pretende alterar e ampliar o estabelecimento hoteleiro designado por Residencial dos Anjos, com a categoria de três estrelas, situado na Rua Andrade, nº.... a ...., Lisboa;
· para o efeito, foi adquirido o edifício confinante a poente, com o nº..... da Rua Andrade, o qual se encontrava em muito mau estado de conservação e, inquirida a Câmara Municipal de Lisboa sobre a viabilidade da sua demolição, o pedido foi deferido;
· foi concedida à ré licença de obras de restauração e de construção de edifício destinado a residencial, na Rua Andrade nº.... e ...., pelo prazo de dois anos a findar no dia 6 de Março de 1998, tendo sido prorrogada por um ano, a findar no dia 6 de Março de 1999;
· essa ampliação faz-se integralmente na área do lote com o nº.... da Rua Andrade, uma vez demolida a construção aí existente e ficará intimamente ligada à unidade hoteleira existente com todos os seus pisos nivelados;
· a ré procedeu, sem autorização do autor, a uma abertura ao nível da cave na parede do prédio nº16, contígua com o prédio nº....., por forma a possibilitar a passagem de veículos para o parqueamento na zona da cave do edifício nº18 daquela rua, e por ela entram e saem veículos de hóspedes e pessoal ao serviço da ré que ali recolhem viaturas;
· a ré procedeu de modo idêntico nos pisos superiores, ligando cada um deles ao andar ou piso contíguo do prédio com o nº....;
· no dia 23 de Outubro e 21 de Novembro de 1997, o autor pediu ao presidente da Câmara Municipal de Lisboa a fiscalização e o embargo das referidas obras.
3.
4. Não compete ao Supremo censurar o não uso, pela Relação, dos poderes de modificação da matéria de facto que lhe são conferidos pelo artº712º, CPC, e seus diferentes números.
Trata-se, ainda, de intervenções no âmbito da matéria de facto, matéria esta de que o Supremo, como tribunal de revista que é, se encontra, por regra, afastado.
Quer isto dizer que está vedado ao Supremo substituir-se á Relação na missão de anular a decisão da matéria de facto proferida em 1ª instância, por causa de insuficiência da matéria de facto sujeita a julgamento.
Em todo o caso, o Supremo não fica de mãos atadas se, na procura do regime jurídico acertado para a resolução do problema que lhe é proposto, descobre que, entre os factos alegados pelas partes, o tribunal recorrido não tomou em conta algum ou alguns que fazem parte da base indispensável para a decisão de direito.
Nesse caso, pode e deve o Supremo fazer retornar o processo ao tribunal recorrido, nos termos do nº3, do artº729º, CPC, onde deverão ser realizados os actos necessários e adequados, o que poderá envolver, então, o uso do poder de anulação da decisão de facto, a que se reporta o nº4, do artº712º, atrás citado.
É claro que ambos os ditos poderes, o de anular a decisão da 1ª instância, a cargo da Relação, e o de fazer baixar o processo, a cargo do Supremo, convergem para o mesmo resultado, qual seja o de construir a base suficiente para a justa decisão do mérito da causa.
Mas, como se vê, divergem quanto ao instrumento com que o legislador os dotou, em harmonia, aliás, com a diversa natureza dos respectivos titulares (um, tribunal de instância com competência em matéria de facto e de direito, outro, um tribunal de revista).
Dito isto, basta, agora, dizer que não cabe, no caso concreto, averiguar se a Relação deveria ter usado do poder de anulação da decisão de facto, com fundamento em insuficiência, mas, tão só, definir o regime jurídico aplicável à situação material, o que poderá implicar o reenvio do processo à Relação, caso se venha a verificar que o material fáctico recolhido não chega para a decisão de direito.
5. E passando, então, à questão de direito substantivo, diremos que as instâncias acabam por escrever direito, mas por linhas tortas.
Teve razão a Relação ao não coonestar a fundamentação da 1ª instância, pois, na verdade, a abertura de portas de ligação entre o prédio em causa e o vizinho não implica violação do título constitutivo da propriedade horizontal, daquilo que, segundo o artº1418º, CC, lhe constitui o conteúdo.
A não ser que, nesse conteúdo, se queira ver englobada, como parece ter sido intenção da sentença, a autonomia económica do edifício, o que também seria um erro, já que a ideia de unidade económica que o prédio corporiza não é incompatível com essa outra de complementaridade ou interligação.
Mas, a emenda que a Relação introduziu no discurso fundamentador não foi por melhor caminho, porque, como é óbvio, só a abertura feita na cave é que poderia prejudicar a utilização que o autor (aqui recorrido) faz da mesma cave e da sua loja no rés do chão.
O regime do nº2, do artº1425º, CC, não seria bastante para explicar a condenação da ré, aqui recorrente, a tapar as aberturas feitas nos demais andares, na justa medida em que se não vê o como e o quanto do prejuízo que aquelas inovações representariam para um condómino, como o autor, cuja área de domínio e utilização se ficava pela cave e pelo rés do chão.
E uma vez que a fracção de que a ré é dona representa mais de 2/3 do valor do prédio, nada a deveria impedir (ressalvada a possível necessidade de convocação da assembleia de condóminos) de, pelo menos, manter as aberturas feitas ao nível dos andares (nº1, do mesmo artº1425º), a não ser que outras razões ponderosas se lhe opusessem.
Como é o caso.
Na verdade, as paredes onde foram efectuadas as aberturas de ligação ao prédio vizinho fazem parte do conjunto das paredes mestras do edifício, pois são paredes exteriores, delimitadoras do perímetro da construção, e, portanto, verdadeiros elementos estruturais do prédio.
Nesta medida, são partes comuns (artº1421º, nº1, a, CC), e, como tais, sujeitas ao regime da compropriedade, definido nos artºs 1403º, e segs., CC, em tudo o que não esteja especialmente previsto no regime jurídico da propriedade horizontal ou com ele se não mostre incompatível (de acordo com o nº1, do artº1422º, CC, os -condóminos, nas relações entre si, estão sujeitos, de um modo geral, quanto........ às partes comuns, às limitações impostas ....aos comproprietários de coisas imóveis").
No exercício do poder individual de uso que o nº1, do artº1406º, CC, lhe concede, pode o comproprietário modificar a coisa comum, na medida do necessário à sua melhor utilização.
Como dizem P. Lima e A.Varela, in C.Civil Anotado, III, pag.353 (2ª ed. revista e actualizada) -a lei que garante certo resultado (uso da coisa) legitima os meios necessários para o alcançar".
É um poder que, no âmbito da propriedade horizontal, sofre, não obstante, uma condicionante acrescida, que é a definida no já citado nº1, do artº1425º, CC.
Mas, coisa diferente e não abrangida logicamente nos poderes individuais do comproprietário, é essa outra intervenção modificativa ou transformadora que, como a efectuada pela ré, se destina, não à melhor utilização da coisa comum, qua tale, mas ao conjunto integrado dessa coisa e de uma outra, pertencente esta, em exclusivo, ao comproprietário que realizou a modificação.
Aí, já não é correcto falar de uma modificação ou transformação justificada pelo uso do comproprietário, mas, sim, de uma modificação ou transformação da coisa comum que só ao conjunto dos comproprietários é lícito efectuar, tendo em conta o disposto no artº1405º, nº1, CC.
Trata-se, neste caso, do exercício do direito de disposição, previsto no artº1305º, CC (o qual engloba tanto actos jurídicos de alienação e oneração da coisa, como actos materiais de transformação), direito que só pode ser exercido pelo conjunto dos comproprietários, ou por algum ou alguns, com consentimento dos restantes.
A modificação operada pela ré/recorrente nas paredes mestras (comuns) não se justifica pela melhor utilização específica do prédio, e, por isso, é uma intervenção ilegítima sobre a coisa comum, já que não autorizada pelo outro condómino, e contra a qual o autor pode reagir, na sua qualidade de comproprietário.
Deve, portanto, confirmar-se o decidido, embora por razões diferentes das expendidas pelas instâncias.
Como se vê, a matéria de facto seleccionada é o quanto basta para a decisão de direito, sem necessidade de ampliação.
6. Por todo o exposto, negam a revista.
Custas pela recorrente.

Lisboa, 21 de Novembro de 2002
Quirino Soares
Neves Ribeiro
Araújo de Barros
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(1) Código de Processo Civil.