Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
06S3961
Nº Convencional: JSTJ000
Relator: SOUSA PEIXOTO
Descritores: PEDIDO GENÉRICO
Nº do Documento: SJ200703230039614
Data do Acordão: 03/22/2007
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: AGRAVO
Decisão: NEGADO PROVIMENTO
Sumário :
*
1. Pedido genérico equivale a pedido ilíquido e a sua formulação só é admitida nos casos taxativamente previstos na lei.
2. É genérico o pedido em que se pede a condenação do réu a pagar simplesmente o trabalho suplementar prestado e não pago, os descansos compensatórios e os descansos por trabalho prestado em dias de descanso”, o trabalho nocturno, os feriados”, os subsídios especiais de almoço e de jantar, o subsídio de agente único, as férias e o subsídio de férias do ano de admissão e a indemnização pelo não gozo das mesmas.
3. Tal pedido não deixa de ser genérico, apesar de na parte narrativa da petição, o autor ter quantificado a maioria dos créditos que em sua opinião lhe eram devidos.
4. A petição inicial obedece uma determinada estrutura que tem de ser respeitada e o pedido constitui uma das partes dessa estrutura que não pode confundir-se com as demais.
Decisão Texto Integral:
Acordam na secção social do Supremo Tribunal de Justiça:

Jorge Pereira Soares propôs, no Tribunal do Trabalho do Porto, a presente acção contra BB– Transportes, S. A., pedindo que a ré fosse condenada a pagar-lhe: “a) O trabalho suplementar prestado e não pago; b) Os descansos compensatórios e descansos por trabalho prestado em dias de descanso; c) O trabalho nocturno; d) Os feriados; e) Os subsídios especiais de almoço e de jantar; f) O subsídio de agente único; g) As férias e o subsídio de férias do ano de admissão e indemnização pelo não gozo das mesmas; i) Tudo com juros legais, a partir do vencimento das obrigações e até integral pagamento”.

Alegou, em resumo, que foi admitido ao serviço da ré, em 1.6.1989, para exercer as funções de motorista de pesados de passageiros; que tinha uma média de condução diária de 15 horas; que trabalhava seis dias por semana; que fazia, em média, 23 horas de trabalho nocturno; que trabalhava nos feriados; que, por vezes, fazia de agente único; que a ré nunca lhe concedeu qualquer descanso compensatório e nunca lhe pagou o acréscimo pelo trabalho nocturno nem o subsídio de jantar quando o horário se estendia para além das 22 horas nem o subsídio de almoço quando este ocorria fora do período convencional e que, no ano de admissão, a ré não permitiu que ele gozasse os 8 dias de férias nem lhe pagou o respectivo subsídio.

A ré contestou, alegando, em resumo, que nada era devido ao autor.

Após o articulado de resposta do autor, a M.ma Juíza Juiz proferiu despacho convidando o autor a apresentar nova petição inicial para suprir “a manifesta insuficiência de alegação dos factos que suportam as suas pretensões” e também para “formular um pedido líquido, quantificando cada uma das verbas, já que não se verifica qualquer das situações que permitem a formulação de pedido genérico, taxativamente elencadas no art. 471.º do C.P.C.”.

Notificado daquele despacho, o autor veio dizer que não corrigia a petição (“vem dizer que não a corrige”), alegando, em resumo, que um trabalhador por conta de outrem não tem escrita organizada, nem qualquer norma legal, regulamentar ou convencional o exige; que é a entidade empregadora quem elabora e guarda os horários de trabalho, as escalas de serviço e os registos de trabalho diário e suplementar e os recibos de pagamento, cabendo ao autor o direito de exigir que a ré junte os elementos em seu poder para quantificar o seu direito e o direito de exigir que seja submetida a prova pericial para exame dos documentos e efectuação do devido cálculo; que seria uma violência pedir ao juiz que examinasse um enorme volume de documentos e que fizesse as contas, sendo a solução por ele requerida (a realização da perícia) a mais adequada em termos legais e de bom senso, pois, desse modo, o tribunal ficaria com os valores apurados de molde a condenar em quantia certa, impondo-se, in casu, que a perícia seja prévia à selecção dos factos e que as normas dos artigos 61.º, n.º 1, do CPT e do art.º 508.º, n.º 1, al. b), do CPC, numa aplicação do art.º 467.º, n.º 1, alínea c) do CPC (o autor quis certamente dizer art. 471.º) e do art.º 342.º, n.º 1, do C. C., no entendimento manifestado e implícito adoptado pelo ”senhor juiz a quo”, seriam inconstitucionais por impossibilidade prática do exercício do direito (art.º 20.º, n.º 1, da CRP).


Notificada do requerimento apresentado pelo autor, a ré veio dizer que a formulação de pedido genérico integra a nulidade prevista no art.º 201.º, n.º 1 do CPC e, invocando essa nulidade, pediu a sua absolvição do pedido, uma vez que o autor não alegou os factos que integram a causa de pedir, apesar de para tal ter sido convidado.
O autor respondeu, alegando que o pedido formulado era líquido e não genérico e que não existia falta de causa de pedir, uma vez que alegou a prestação de trabalho suplementar e concretizou o período normal de trabalho diário e semanal e os feriados, faltando apenas a prova, que se obterá, com rigor, através da perícia requerida.

No decurso da audiência preliminar e frustada que foi a tentativa de conciliação das partes, a M.ma Juíza proferiu sentença absolvendo a ré da instância, com o fundamento de que o autor tinha formulado um pedido genérico sem que se verifique nenhuma das situações em que a formulação de tal espécie de pedido é legalmente admitida e com o fundamento de que o formulação indevida de pedido genérico constitui uma excepção dilatória atípica.

O autor recorreu, mas o Tribunal da Relação do Porto confirmou a sentença, por adesão aos fundamentos nela aduzidos, ao abrigo do disposto no n.º 5 do art.º 713.º do CPC.

Mantendo o seu inconformismo, o autor interpôs recurso de agravo para este Supremo Tribunal, concluindo a sua alegação da seguinte forma:

1.ª - A douta decisão recorrida parte do pressuposto, errado, de que o A. não quantificou o pedido e se remeteu para o resultado da perícia que requereu como meio de prova, fazendo uma leitura e interpretação deficientes da sua posição.
2.ª - De facto, o A. quantificou o pedido nos itens 33°, 34° e 36° da p.i. e lançou o valor assim achado ao valor da acção, nos termos dos art.os 306° (n° 1, 1.ª parte e n.º 2, 2.ª parte) e 467.°, n.° 1, f), do CPC.
3.ª - A conclusão da p.i. formula a condenação nos pedidos enunciados e quantificados no termo da narração com a discriminação do cálculo, feito com o maior cuidado discriminativo, precisão e rigor, em termos que nem mereceram objecção da R..
4.ª - Considerar o pedido formulado como genérico (art.º 471° do CPC) atenta contra o contexto da p.i. (narração, pedido quantificado de forma discriminativa e valor da acção) e constitui uma interpretação incorrecta.
5.ª - A decisão recorrida fez incorrecta aplicação das normas jurídicas citadas nas conclusões anteriores.

A ré não contra-alegou e, neste tribunal, a Ex.ma Procuradora Geral Adjunta emitiu parecer, a que a partes não retorquiram, no sentido da improcedência do recurso.

Colhidos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.

2. As questões a apreciar
O objecto do recurso restringe-se à questão de saber se o autor formulou, ou não, um pedido genérico. Com efeito, o recorrente não pôs em causa a decisão recorrida na parte em que considerou, embora por remissão para o que fora decidido na 1.ª instância, que a dedução de um pedido genérico fora dos condicionalismos legais em que tal é permitido constitui excepção dilatória atípica que acarreta a absolvição da instância. Limitou-se a impugnar o fundamento da decisão, ou seja, que o pedido por si formulado não era um pedido genérico, alegando que nos artigos 33.º a 36.º da petição havia quantificado os créditos em dívida, salvaguardando embora a ampliação do pedido, se da perícia que requereu viessem a resultar outros valores.

Vejamos se lhe assiste razão.

Nos termos do n.º 1 do art.º 467.º do CPC, na redacção que lhe foi dada pelo Decreto-Lei n.º 38/2003, de 8 de Março,
“Na petição, com que propõe a acção, deve o autor:
a) Designar o tribunal onde a acção é proposta, identificar as partes, indicando os seus nomes, domicílios ou sedes e, sempre que possível, profissões e locais de trabalho;
b) Indicar o domicílio profissional do mandatário judicial;
c) Indicar a forma do processo;
d) Expor os factos e as razões de direito que servem de fundamento à acção;
e) Formular o pedido;
f) Declarar o valor da causa;
g) Designar o solicitador de execução que efectuará a citação ou o mandatário judicial que a promoverá.”

O pedido é, pois, um dos elementos da petição inicial e, mais do que isso, é um elemento essencial da mesma, pois constitui a sua verdadeira razão de ser e isso explica que a sua falta ou a ininteligibilidade torne a petição inepta e que este vício acarrete a nulidade de todo o processo e a absolvição do réu da instância (artigos 193.º, n.º 1 e n.º 2, al. a) e 288.º, n.º 1, al. b), do CPC).

E compreende-se que assim seja, não só porque o tribunal não pode resolver o conflito de interesses que a acção pressupõe sem que tal lhe seja pedido por uma das partes (art.º 3.º, n.º 1, do CPC), mas também porque, na sentença, o juiz não pode condenar em quantidade superior ou em objecto diverso do que foi pedido (art.º 661.º, n.º 1, do CPC), salvo nos casos expressamente previstos na lei, como acontece nas situações referidas no art.º 74.º do CPT.

Impõe, por isso, que, na petição inicial, o autor concretize a providência que pretende ver decretada pelo tribunal, de modo a que este não fique com dúvidas acerca do efeito jurídico que ele visa obter com a acção, isto é, de modo a que não se veja impossibilitado de decidir por ignorar o que o autor realmente pretende.

Como é óbvio, os pedidos vagos e imprecisos não satisfazem aquela exigência e o mesmo acontece relativamente aos pedidos genéricos. Daí que estes (os genéricos) só excepcionalmente sejam admitidos, como decorre do disposto no n.º 1 do art.º 471.º do CPC, nos termos do qual a formulação de tais pedidos só é permitida:
“a) Quando o objecto mediato da acção seja uma universalidade, de facto ou de direito;
b) Quando não seja ainda possível determinar, de modo definitivo, as consequência do facto ilícito, ou o lesado pretenda usar da faculdade que lhe confere o artigo 659.º do Código civil;
c) Quando a fixação do quantitativo esteja dependente de prestação de contas ou de outro acto que deva ser praticado pelo réu”.

Como já foi referido, o que está em causa no presente recurso é saber se o autor formulou ou não um pedido genérico. Nas instâncias entendeu-se que sim, mas o autor com considera que não.

A lei não nos diz o que é um pedido genérico. Limita-se a admitir a sua formulação nos casos taxativamente referidos no n.º 1 do art.º 471.º do CPC. Trata-se, todavia, de um conceito que não suscita quaisquer dúvidas

Segundo A. Reis - (1), o pedido diz-se genérico quando é indeterminado no seu quantitativo e como essa indeterminação implica iliquidez, podemos considerar expressões equivalentes as de “pedido genérico” e “pedido ilíquido”. E no dizer de Anselmo de Castro - (2)., o pedido genérico contrapõe-se ao pedido específico e vem a significar o mesmo que pedido ilíquido.

Ora, tendo presente os termos do pedido formulado pelo autor (vide supra), é evidente que o mesmo nada tem de líquido, uma vez que nele não quantifica os créditos que a ré deve ser condenada a pagar-lhe. É certo que, na parte expositiva da petição, concretamente nos artigos 33.º a 36.º, o autor contabilizou uma série de créditos que, segundo ele, lhe eram devidos, ressalvando embora “melhores contas” em função do resultado do exame pericial que requereu à escrita da ré, mas, como já dizia A. Reis - (3), a petição inicial é uma peça que tem princípio, meio e fim que, vulgarmente, se designam por preâmbulo, narração e conclusão. O preâmbulo abarca os requisitos das alíneas a), b) e c) do n.º 1 do art.º 467.º, a narração compreende a exposição dos factos e das razões de direito em que assenta o pedido, ou seja, engloba os fundamentos da acção(os fundamentos de facto e de direito) e a conclusão destina-se a enunciar o pedido, ou seja, a indicar a providência, o meio de tutela jurisdicional, que o autor solicita ao tribunal. E, para ser uma peça bem elaborada e construída, dizia aquele mestre - (4), “deve ter a contextura lógica dum silogismo, deve poder reduzir-se, em esquema, a um raciocínio, com a sua premissa maior (razões de direito), a sua premissa menor (fundamentos de facto) e a sua conclusão (pedido)”.

A petição obedece, assim, a uma determinada estrutura que tem de ser respeitada e o pedido constitui uma das parte dessa estrutura que não pode confundir-se com as demais. Por isso, Castro Mendes - (5) afirmava que a petição é inepta por falta de pedido na conclusão, ainda que este conste da narração, não sendo de atender aos pedidos formulados só na narração. E citando Lobão, dizia “[c]onclusio libelli, non narratio, attendenda est”.

O pedido constitui, pois, uma parte da petição absolutamente distinta da sua parte narrativa e há-de ser formulado em separado e de forma inequívoca. E compreende-se que assim seja, uma vez que a exposição das razões de facto e de direito não podem ser confundidas com o pedido. Com efeito, nada obsta a que o autor na parte narrativa da petição afirme ter direito a determinada importância e depois acabe por formular um pedido de quantia inferior àquela.

O recorrente entende que o pedido formulado na conclusão da petição inicial deve ser integrado com o que havia sido alegado na parte narrativa da petição, mas isso implicaria que o juiz procedesse a uma interpretação da vontade do autor, o que a estrutura formal da petição não consente, uma vez que dessa interpretação poderia resultar um pedido diferente daquele que o autor realmente quis, o que constituiria uma violação do princípio dispositivo (art.º 3.º, n.º 1, do CPC).

De qualquer modo, exigindo a lei a formulação de um pedido expresso, sempre se poderia dizer que a interpretação do pedido formulado nunca poderia valer com um sentido que não tivesse um mínimo de correspondência verbal no teor literal do mesmo (art.º 238.º, n.º 1, do C.C.).

E, como nos parece óbvio, no caso em apreço, o elemento literal do pedido genericamente formulado pelo autor não comporta minimamente a interpretação que ele lhe pretende dar.

3. Decisão
Nos termos expostos, decide-se negar provimento ao agravo.
Custas pelo recorrente.

LISBOA, 22 de Março de 2007

Relator: Sousa Peixoto
Adjuntos: Sousa Grandão
Pinto Hespanhol
_________________________
(1) Comentário ao Código de Processo Civil, Volume 3.º Coimbra Editora, 1946, p. 170.
(2) Anselmo de Castro, Lições de Processo Civil coligidas por Abílio Neto, Livraria Almedina, 1970, Vol. I, p. 274
(3) Código de Processo Civil anotado, Volume II, 3.ª edição, reimpressão, Coimbra Editora, 1981, p. 342 e seguintes.
(4) Comentário ao Código de Processo Civil, Volume 2.º, Coimbra Editora, 1945, p. 381.
(5) Direito Processual Civil, Faculdade de Direito de Lisboa, 1974, III, p. 104