Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
03P359
Nº Convencional: JSTJ000
Relator: CARMONA DA MOTA
Nº do Documento: SJ200302130003595
Data do Acordão: 02/13/2003
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: 4 V CR LISBOA
Processo no Tribunal Recurso: 54/02
Data: 12/16/2002
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REC PENAL.
Sumário :
Decisão Texto Integral: Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:

Arguido/recorrente: A (1)

1. OS FACTOS
«No dia 17 de Abril de 2002, cerca das 11:30, o arguido desembarcou no Aeroporto de Lisboa, no voo número RG-8706, proveniente de São Paulo (Brasil), transportando, presas às pernas, nove embalagens de cocaína, com o peso líquido total de 2123,2 g. Trazia ainda consigo 1000 dólares americanos em numerário; um passaporte com o n.º CL..., emitido pela República Federativa do Brasil; um bilhete de avião da transportadora "Varig", válido para o percurso S. Paulo/Lisboa/Madrid/S. Paulo; a droga bem como o dinheiro haviam-lhe sido entregues, em S. Paulo, para que a transportasse desde o Brasil até Lisboa, recebendo o arguido por tal serviço a quantia de 3.000 dólares, de que os 1.000 apreendidos representavam um adiantamento. O arguido sabia que transportava consigo cocaína e conhecia a natureza estupefaciente dessa substância. Agiu livre e conscientemente, bem sabendo que a sua conduta era criminalmente punida por lei. Possui e sempre residiu nesse país. Não tem qualquer ligação familiar, profissional, ou outra, com Portugal, país onde, aliás, não conhece ninguém, tendo-se deslocado a Lisboa com o único intuito de transportar e entregar a droga. Confessou de forma integral e sem reservas os factos, com relevância para a descoberta da verdade. Mostra-se arrependido. No Brasil vivia com a sua companheira numa relação de há mais de 15 anos, e da qual tem três filhos, respectivamente com 15, 12 e 8 anos de idade. Trabalhou durante oito anos na Prefeitura de Porto Alegre, mas, como era meramente contratado, não adquiriu direito a reforma. Passou então a trabalhar como arrumador de carros e a fazer algumas reparações. O agregado familiar, com a sua prisão, passou a subsistir ainda com mais dificuldades económicas, confinando-se os respectivos rendimentos à confecção e venda de salgados, porta a porta, por parte da companheira. O arguido não regista em Portugal condenações penais (2).

2. A CONDENAÇÃO
2.1. Com base nestes factos, a 4.ª Vara Criminal de Lisboa (4), em 16Dez02, condenou A (5), como autor de um crime de tráfico comum de estupefacientes, na pena (principal) de cinco anos e meio de prisão e na pena (acessória) de expulsão do país durante sete anos:
«A função primordial de uma pena, sem embargo dos aspectos decorrentes de uma prevenção especial positiva, consiste na prevenção dos comportamentos danosos incidentes sobre bens jurídicos penalmente protegidos. O seu limite máximo, fixar-se-á - em salvaguarda da dignidade humana do agente - em função da medida da culpa, que a delimitará por maiores que sejam as exigências de carácter preventivo que se façam sentir. O seu limite mínimo é dado pelo quantum da pena, que em concreto, ainda realize eficazmente essa protecção dos bens jurídicos. Dentro destes dois limites, encontrar-se-á o espaço possível de resposta às necessidades da reintegração social do agente, sendo certo que, para o efeito, o tribunal deverá atender "a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, depuserem a favor do agente ou contra ele" (art. 71º, n.º 2, do CP). No caso em apreço o dolo é directo, já que a arguido quis praticar o acto, visando desse modo obter a vantagem patrimonial já acima quantificada. Em termos de ilicitude, a quantidade de produto detida assume já algum significado, um pouco mais de 2 Kg, sobretudo se raciocinarmos em termos de disseminação potenciada em termos de consumidores finais. Se é certo que a arguido se posiciona como mero "correio", a verdade é que é significativo o papel desempenhado pelos mesmos para o funcionamento das redes internacionais de tráfico de narcóticos, assegurando a ligação entre a produção e de comercialização. Produziu em audiência uma confissão integral e sem reservas, o que manifestamente o beneficia. Evidenciou arrependimento. É pessoa já com alguma idade, 65 anos à data da prática dos factos. Tal como é usual neste tipo de situações, é pessoa de débil condição económica. Neste condicionalismo, uma pena de 5 anos e 6 meses de prisão, mostra-se comportada pela culpa, e satisfaz as razões de prevenção geral para este tipo de delitos. Em face da expressão quantitativa da pena em que o arguido irá condenado, uma vez que é cidadão brasileiro, não possui quaisquer ligações familiares e/ou profissionais ao nosso País, por onde passou apenas em trânsito aqui praticando os factos ora descritos, que revestem manifesta gravidade, nos termos do art. 101º, n.º 1, do DL 244/98, de 8 de Agosto, importará aplicar-lhe ainda a pena acessória de expulsão, que se fixa em 7 (sete) anos».

3. O RECURSO
3.1. Inconformado, o arguido (5) recorreu em 20Dez02 ao Supremo Tribunal de Justiça, pedindo «uma medida de pena de prisão, que se considerar como suficiente, abaixo dos 5,5 anos de prisão»:
«A pena revela-se desproporcionada na perspectiva da reintegração do agente na sociedade. O recorrente confessou, colaborou na busca da verdade e demonstra arrependimento. Não possui nenhuma ligação ao país, encontra-se em situação económica difícil, tem três filhos menores cujas dificuldades se agravaram com a prisão do pai. A expulsão aplicada representa que, na prática, nenhum esforço eficaz será realizado, com sucesso para a reintegração social do recorrente. O art. 40º.1 do Código Penal busca, além da protecção dos bens jurídicos, a reintegração do agente na sociedade. Uma pena de prisão abaixo dos 5,5 anos evitará - uma vez que o recorrente nunca beneficiará de libertação antecipada no âmbito da execução - um desnecessário prolongamento da sanção»

3.2. O Ministério Público (6), na sua resposta de 09Jan03, apoiou a decisão recorrida:
«O acórdão alcançou adequadamente a pena. Se algo lhe há a apontar será a sua proximidade ao limite mínimo. A medida da pena é justa e com ela alcançam-se os fins das penas. Tendo em conta a expulsão acessória, o arguido poderá vê-la executada em 17Jan ou 17Dez05, dessa forma regressando ao seu país de origem muito antes de decorridos 5,5 anos».

4. CORREIOS INTERNACIONAIS OU INTERTERRITORIAIS DE DROGA
4.1. Relativamente aos crimes de «tráfico de droga» da responsabilidade de «correios» (internacionais ou interterritoriais) de droga, haverá, antes de mais, que proceder a uma breve resenha (7) da medida concreta que o Supremo Tribunal de Justiça tem, ultimamente, atribuído (por confirmação ou alteração em recurso) às correspondentes penalidades:

RecursoDrogaPeso (em g)Trajecto1.ª instânciaSTJObs.
1233/96-3Cocaína13500,00 Brasil > PortugalTráfico maior
(10 anos de prisão)
Tráfico comum
(7,5 anos de prisão)
16-04-1997
(Relator: Virgílio Oliveira)
1390/98 -5Cocaína9028,34Brasil > PortugalTráfico comum
(7 anos de prisão)
Tráfico comum
(7 anos de prisão)
18-02-1999
(Relator: Oliveira Guimarães)
3710/00-5Cannabis946,77Porto > MadeiraTráfico menor
(2 anos de prisão)
Tráfico comum
(4 anos de prisão)
25-01-2001
(Relator: Simas Santos)
0227/02-5Haxixe2178,31Lisboa > AçoresTráfico comum
(4 anos de prisão)
21-02-2002
(Relator: Simas Santos)
0762/02-3Cocaína 997,64Brasil > PortugalTráfico comum
(7 anos de prisão)
Tráfico comum
(6 anos de prisão)
10-04-2002
(Relator: Borges de Pinho)
1258/02-5Cocaína747,29 Brasil > PortugalTráfico comum
(4,5 anos de prisão)
Tráfico comum
(4,5 anos de prisão)*
16-05-2002
(Relator: Dinis Alves)
1260/02-5Heroína 3700,85Holanda > PortugalTráfico comum
(6 anos de prisão)
Tráfico comum
(6 anos de prisão)
16-05-2002
(Relator: Pereira Madeira)
1381/02-5Cocaína5923,20Brasil > Portugal > (Espanha)Tráfico comum
(6,5 anos de prisão)
Tráfico comum
(6,5 anos de prisão)**
27-06-2002
(Relator: Dinis Alves)
1684/02-5Cannabis1849,00Angola > PortugalTráfico comum
(5 anos de prisão)
Tráfico comum
(4 anos de prisão)
06-06-2002
(Relator: Dinis Alves)
3080/02-5Cannabis8808,50Holanda > Portugal > (Brasil)Tráfico comum
(5 anos de prisão)
Tráfico comum
(5 anos de prisão)***
07-11-2002
(Relator: Dinis Alves)
(*) c/ 1 voto de 3 ou 4 anos de prisão.
(**) c/ 1 voto de 5 anos de prisão.
(***) c/ 1 voto de 4 anos de prisão.

4.2. Estes dados, conjugados entre si, permitem definir os contornos, na perspectiva (predominante) do Supremo Tribunal de Justiça, da moldura média de prevenção correspondente - conforme se trate de drogas leves ou de drogas duras - ao crime de tráfico comum de droga da responsabilidade de correios internacionais ou interterritoriais de droga:

DrogaPeso (em gramas)Pena média (em anos de prisão)Moldura média de prevenção
Cannabis + haxixe8808,50 + 1849,00 + 2178,31 + 946,77
= 13782,58
5 + 4 + 4 + 4 = 17
/4
= 4,25
1,2 anos de prisão por cada quilo de droga, numa moldura média de prevenção de 4 a 4,5 anos de prisão
Cocaína + heroína 5923,20 + 747,29 + 997,64 + 3700,85 + 9028,34 + 13500,00 = 33897,326,5 + 6 + 4,5 + 6 + 7 + 7,5 = 37,5
/6
= 6,25
1,1 anos de prisão por cada quilo de droga, numa moldura média de prevenção de 4,5 a 8 anos de prisão

5. A PENA CONCRETA
5.1. Descendo ao caso concreto, a moldura de prevenção (8) terá, como base, o limite mínimo (já visto: 4,5 anos de prisão) da moldura média de prevenção em casos congéneres (pois que o facto implicou, apenas, uma movimentação, felizmente frustrada, de pouco mais de dois quilogramas de cocaína - apreendidos na sua totalidade) e, como topo, o limite (máximo) - que se poderá, cautelosamente, fixar em 6 anos de prisão - decorrente da culpa do agente (que - já com 65 anos de idade, com três filhos menores a cargo, sem pensão de reforma nem trabalho regular, vivendo de «arrumar carros» e «algumas reparações» - terá agido sob o acicate das dificuldades financeiras próprias e do agregado familiar).

5.2. Era, pois, entre estas estremas que, em atenção às exigências penais de prevenção especial, se haveria concretizar a medida da pena.

5.3. Ora, a este respeito, não poderia deixar de se considerar (minorando-as): a) que o arguido confessou integralmente e sem reservas e se mostra arrependido; b) que uma pena de prisão sofrida em país estranho constitui - num forçado convívio com gente diferente e na falta de visitas de amigos e parentes e de saídas precárias - um sacrifício redobrado («prisão dentro da prisão»); c) que foram integralmente aprendidos 1.000 dólares que o «dono do negócio» adiantara ao arguido em S. Paulo; d) que é de evitar a aplicação - inútil (9) e dispendiosa» (10) - de penas "demasiado longas" a estrangeiros (11), sendo certo que o arguido é cidadão estrangeiro («não possuindo quaisquer ligações familiares e/ou profissionais em Portugal») - e, por isso, sem condições de beneficiar, no nosso país, da agilização da pena com vista a consecução da sua finalidade de «reintegração do agente na sociedade» (art. 40º.1 do CP), se bem que, em contrapartida, possa o juiz das penas, a meio da execução, substituir a «saída prolongada» (se se verificarem os respectivos requisitos) pela antecipação da pena acessória de «expulsão» (art. 101º.5 do Decreto-Lei 244/98, na redacção do Decreto-Lei 4/2001) (12).

5.4. E que contar, majorando-as, com a circunstância (não despicienda) de o arguido, no seu país, haver saído da prisão em 1997, após cumprimento de uma pena de «12 anos de prisão por furto agravado» e de outra de «3 anos de prisão por falsificação de documentos» (fls. 27).

5.5. E assim se chegaria - como se chegou - a uma pena entre 5 e 5,5 anos de prisão.

5.6. É certo que «a doutrina (13) se mostra de acordo com a ideia de que é susceptível de revista a correcção do procedimento ou das operações de determinação, o desconhecimento pelo tribunal ou a errónea aplicação dos princípios gerais de determinação, a falta de indicação de factores relevantes para aquela, e a indicação de factores que devam considerar-se irrelevantes ou inadmissíveis» (14).

5.7. «A questão do limite ou da moldura da culpa estará, pois, plenamente sujeita a revista, assim como a forma de actuação dos fins das penas no quadro da prevenção» (ibidem).

5.8. «Mas já não a determinação, dentro daqueles parâmetros, do quantum exacto de pena, para controlo do qual o recurso de revista será inadequado, salvo se tiverem sido violadas regras da experiência ou a quantificação se revelar de todo desproporcionada» (ibidem).

5.9. Sendo assim, é óbvio - como se viu - não merecerem censura - neste recurso circunscrito à questão da determinação da sanção (art. 403º.2.c e e do Código de Processo Penal) - nem a decisão da «questão do limite ou da moldura da culpa» nem a forma como o tribunal recorrido se desembaraçou no âmbito da «actuação dos fins das penas no quadro da prevenção».

5.10. E, quanto à «determinação, dentro daqueles parâmetros, do quantum exacto de pena», não se vê que hajam sido «violadas regras da experiência» nem a operada «quantificação» se revela «de todo desproporcionada».

6. DECISÃO
6.1. Tudo visto, o Supremo Tribunal de Justiça, reunido em audiência, julga improcedente o recurso oposto em 20Dez02, pelo cidadão brasileiro A ao acórdão que, no âmbito do comum colectivo n.º 54/02 da 1.ª secção da 4.ª Vara Criminal de Lisboa, acabara de o condenar, como autor de um crime de tráfico comum de estupefacientes, na pena (principal) de cinco anos e meio de prisão e na pena (acessória) de expulsão do país por sete anos.

6.2. O recorrente pagará as custas do recurso, com 4 (quatro) UC de taxa de justiça e 1 (uma) UC de procuradoria, e, ainda - lhes terá a adiantar pelo Tribunal - os honorários devidos - pela sua intervenção acidental - à defensora que oficiosamente o apoiou na audiência.

Supremo Tribunal de Justiça, 13 de Fevereiro de 2003
Carmona da Mota
Pereira Madeira
Simas Santos
Abranches Martins
_________________
(1) Preventivamente preso à ordem destes autos desde 17Abr02.
(2) Mas, no Brasil, terá sido «condenado em 12 anos de prisão por furto agravado e em 3 anos de prisão por falsificação de documentos, tendo saído da prisão em 1997» (fls. 27)
(3) Juízes Luís Gominho, Agostinho Torres e Elisabete dos Reis.
(4) «Solteiro, natural de Rio Grande do Sul - Brasil, onde nasceu a 06/12/1936, funcionário público reformado, residente antes de preso em São Paulo - Brasil»
(5) Adv. João Normanha Salles
(6) Proc. Brites Reis
(7) Com dados recolhidos pelos serviços de assessoria jurídica deste Supremo Tribunal de Justiça.
(8) Limitada, no topo, pela medida da culpa do agente e, na base, pela exigências mínimas - ante o facto - de defesa do ordenamento jurídico.
(9) «O sistema prisional português está em vias de rotura. Criam-se espaços, mas estes têm pouco mais utilidade de que a de servir para «armazenar» presos. Não há tempo para cuidar da sua recuperação social, embora esse seja objectivo primário da condenação» (António Pires de Lima, advogado e ex-bastonário da Ordem do Advogados, DN, 15Jun02)
(10) «Cada recluso implica para o Estado um gasto de 230 contos mensais» (ibidem)
(11) «Afinal, ao fim da pena de prisão, são expulsos e não é feito qualquer esforço de reintegração social, porque esta só faz sentido no país de origem. E como à pena de prisão acresce, em regra, a pena acessória de expulsão, o IRS não intervém no sentido da seu posterior reinserção. Por outro lado, são-lhes vedadas formas de flexibilização da pena, não recebem visitas e o IRS limita-se a dar-lhes apoio psicossocial. Para estes reclusos estrangeiros, existe, pois, como que "uma prisão dentro da prisão". A média de penas cumpridas pelos reclusos estrangeiros em Portugal é alta, o que não serve às finalidades da pena, a reintegração do agente e a protecção dos bens jurídicos. Quanto a esta, porque as penas longas não se demonstram produtivas: trata-se sobretudo de correios de droga originários da América Latina, Tailândia e África do Sul, cujo encarceramento não afecta o funcionamento das redes de droga. É que são pequenos intermediários "usados uma única vez", não havendo, porque dispensáveis, "perigo de reincidência". Daí que não haja "interesse em puni-los com especial severidade". Para Moraes Rocha, a solução para esta situação recairia, em primeiro lugar, no encurtamento de penas» (Público, 4Jul00, apud João Moraes Rocha, juiz do TEP de Lisboa).
(12) Sendo decretada a pena acessória de expulsão, a mesma será executada: a) cumpridos que sejam dois terços da pena de prisão; b) ou, depois de cumprida metade da pena, logo que o juiz de execução de penas determine a sua execução, em substituição de tais medidas, quando preenchidos os pressupostos que determinariam a concessão de saída precária prolongada ou liberdade condicional.
(13) Figueiredo Dias, As Consequências Jurídicas do Crime, § 255.
(14) Simas Santos e Marcelo Ribeiro, Medida Concreta da Pena, Vislis, 1998, ps. 339/40.