Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça | |||
Processo: |
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Nº Convencional: | JSTJ00000192 | ||
Relator: | CARMONA DA MOTA | ||
Descritores: | RECURSO PARA O SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA PODERES DA RELAÇÃO PODERES DE COGNIÇÃO | ||
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Nº do Documento: | SJ200205160010715 | ||
Data do Acordão: | 05/16/2002 | ||
Votação: | UNANIMIDADE COM 2 DEC VOT | ||
Tribunal Recurso: | T REL PORTO | ||
Processo no Tribunal Recurso: | 1002/01 | ||
Data: | 12/05/2001 | ||
Texto Integral: | S | ||
Privacidade: | 1 | ||
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Meio Processual: | REC PENAL. | ||
Decisão: | PROVIDO PARCIAL. | ||
Área Temática: | DIR PROC PENAL - RECURSOS. | ||
Legislação Nacional: | CPP98 ARTIGO 427 ARTIGO 428 N1 ARTIGO 432 B D ARTIGO 434. | ||
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Sumário : | Actualmente, a impugnação do acórdão final do Tribunal Colectivo, faz-se por uma de duas vias: se se visa, exclusivamente, o reexame da matéria de direito, recorre-se, directamente, para o S.T.J.; se assim não for, recorre-se para a Relação. Nesta última hipótese, do acórdão da Relação, poderá, depois, recorrer-se para o S.T.J. mas o recurso, puramente de revista, terá de visar, exclusivamente, o reexame da decisão da Relação em matéria de direito, com exclusão, portanto, dos eventuais erros das instâncias na apreciação das provas e na fixação dos factos materiais da causa. | ||
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Decisão Texto Integral: | Acórdão no Supremo Tribunal de Justiça Arguido/recorrente: A (1) 1. OS FACTOS (2) O arguido é casado com B, de quem tem 5 filhos. Desde há bastante tempo que o arguido dá maus tratos aos seus familiares, designadamente à sua mulher e filhos, tendo havido já algumas queixas por tais factos que terminaram sempre por desistência. No dia 9 de Abril de 2000, por volta das 20:30, o arguido, mais uma vez, insultou os filhos (3) e a mulher, exigindo que aqueles recolhessem de imediato a casa para trancar as portas, às 21:00, como fazia já há anos. No desenvolvimento, gerou-se alteração entre o arguido e uma das filhas do casal, C, na sequência da qual o arguido, com a arma de fogo que sempre trazia consigo, mesmo dentro de sua casa, em ambiente familiar, apareceu no corredor, empunhando-a, em tom (4) ameaçador. O arguido estava nesse dia muito exaltado, pelo que os filhos e mulher saíram para o exterior da residência com o objectivo de o deixar sózinho e ver se conseguiam que ele acalmasse. Entretanto, D chegou, pelo que resolveram todos - ele, irmãos e a mãe - entrar na residência familiar. Já dentro de casa, a filha C deu pela falta de um telemóvel que havia pousado em cima de uma mesa, no seu quarto, pelo que, calculando que tinha sido o arguido quem dele se apoderara, dirigiu-se ao quarto dele, verificando que o mesmo tinha numa mão o telemóvel e na outra a arma com que já ameaçara disparar sobre quem o afrontasse (5). C pediu ao pai que lhe devolvesse o telemóvel, tendo aquele jogado ao solo o aparelho, pisando-o com o intuito de o destruir e de impedir que a filha dele se apoderasse (6). Enquanto C discutia com o pai, agachando-se e tentando retirar o pé do pai de cima do telemóvel, D dirigiu-se ao quarto onde decorria a discussão para tentar inteirar-se do que se passava, pois que a discussão era claramente audível por todas as pessoas dentro de casa. Mal D transpôs a porta do aposento, o arguido, apontando-lhe a arma, disparou, sobre o filho, dois tiros à queima-roupa (7). Os disparos atingiram-no em zonas vitais do corpo, designadamente a região torácica e abdominal, provocando-lhe os ferimentos descritos e analisados no relatório de autópsia de fls. 42 e ss., causa directa e necessária da sua morte. A arma que o arguido disparou contra o filho é a que se encontra apreendida à ordem destes autos e cujos documentos se encontram juntos a fls. 6 e 7. O ofendido, que ficou logo ali prostrado no chão, foi de imediato socorrido e conduzido por uma ambulância ao H. S. Marcos de Braga onde lhe foram prestados os primeiros socorros, que se mostraram infrutíferos, vindo posteriormente a falecer. No dia e condições em que ocorreram os factos, o arguido, sem que nada o justificasse, não se coibiu de trazer e empunhar a arma, carregá-la, sair a porta de seu quarto e exibi-la perante os seus familiares, ameaçando-os, culminando com os disparos feitos sobre o filho. Deste modo, quis, com tais actos, produzir um resultado que tinha consciência de ser adequado à sua conduta. Agiu o arguido livre, voluntária e conscientemente, com o propósito concretizado de atingir mortalmente o filho, tendo consciência de que a sua conduta era proibida por lei. O arguido construiu um significativo património, mercê do seu trabalho e do seu rigor. Teve uma vivência de pobreza e miséria na juventude e sempre foi muito rigoroso com os filhos. Emigrou e esteve em França e na Alemanha, regressou ao seu país quando as duas filhas mais velhas atingiram a idade escolar, para evitar que mais tarde uma mudança de escola as prejudicasse. Impunha regras severas aos filhos quanto a horas, comportamento e trabalho. Cumpriu serviço militar nos anos 60, na Guiné. É um homem rigoroso, intransigente e duro, resultado da educação que recebeu e de um percurso de vida, mas é também um homem trabalhador. Pautou a sua relação familiar por princípios inflexíveis. Para tudo e todos existiam regras que tinham que ser pontualmente cumpridas. Sentiu a atitude dos seus familiares naquele dia como um desafio à sua autoridade. Em termos de estrutura psicológica, revela uma perturbação paranóide da personalidade, que condiciona a interiorização da realidade afectiva e relacional e lhe provoca uma postura vivencial ambivalente, ora coarctada, ora explosiva (rigidez cognitiva), podendo atingir níveis de perigosidade. Desde há muitos anos que tratava o seu agregado familiar com severidade desproporcionada, habituado a que ninguém questionasse a sua autoridade. Insultava a filha C, hoje com 28 anos de idade, bem como sua mulher e, particularmente, fazia-o também à filha mais velha do casal, portadora de atraso intelectual, chamando-lhes "putas", o que designadamente fez no dia dos factos dos autos à filha C. Em data anterior à dos factos dos autos, após discussão, atirou uma tigela à cabeça desta sua filha, provocando-lhe ferida incisa na cabeça, ferida que necessitou de tratamento hospitalar. Designadamente, era seu hábito agredir corporalmente, com violência, seus filhos, deixando-lhes pisaduras. Não procurava a companhia dos seus familiares, designadamente jantava sozinho, o que fez no dia dos factos. Em casa permanecia por grandes períodos de tempo no quarto de dormir, designadamente de luzes apagadas. Por várias vezes, por se encontrar irritado ou alterado, cortou a electricidade em casa, no fito de contrariar os que consigo coabitavam. As filhas, que trabalhavam com o arguido no supermercado do casal, nunca foram remuneradas por tal trabalho. A situação de dependência económica dos familiares chegados reforçava o sentimento de autoridade do arguido perante eles e, por parte destes, designadamente da mulher e filhas, um sentimento de dependência sem alternativa. Os filhos do arguido chegaram a estar recolhidos em casa de uma irmã e cunhado, por vários dias, com o fito de se protegerem do mau humor do arguido. D tinha abandonado o trabalho com os pais, para se empregar num talho, no mercado de Braga e tinha gozado férias, factos que muito contrariaram o arguido. No dia anterior aos factos, um sábado, deslocara-se ao casamento de um amigo e chegara perto da meia noite, mas não lhe foi permitida a entrada em casa pelo arguido, já que não tinha chave e este trancara a porta de entrada. D passou essa noite fora de casa por via de tal facto, só tendo podido entrar quando o arguido abriu a porta, perto das 6:00. O arguido vivia para o trabalho, que prezava acima de tudo. Possui património imobiliário (dedicou-se também à construção civil, após regressar do estrangeiro) e trabalhava como comerciante: explorava um supermercado, com a mulher e os filhos, e transaccionava em cereais, o que fazia designadamente na feira de Braga, actividade a que se dedicava sozinho. Fora do seu ambiente familiar, era há muito conhecido como problemático, designadamente pelas autoridades policiais, era conhecido como pessoa severa, mas trabalhadora. Desenvolveu contactos com inúmeros comerciantes da cidade de Braga, seus fornecedores, com quem manteve boas relações. 2. a condenação No dia 30Mai01, a Vara Mista de Braga (8) condenou A, como autor de um crime de homicídio qualificado, na pena de 19 anos de prisão e, a título de indemnização, no pagamento aos sucessores da vítima da importância de 14000 contos e juros: Apreciando a incriminação levada a cabo no libelo acusatório, começaremos por constatar o que de há muito vem sendo salientado pela dogmática e pela jurisprudência, desde a publicação do Código Penal de 82 - que o tipo de culpa agravado em que assenta o tipo legal do homicídio qualificado tem completa autonomia para a verificação da existência in casu dos elementos do crime. Por outras palavras, exige-se, de acordo com o disposto no art. 132.2 CP, que a morte seja produzida em circunstâncias que revelem a especial censurabilidade ou perversidade do agente e tais circunstâncias são meramente indiciadas por elementos, quer relativos aos facto, quer relativos ao agente, elencados no n.º 2 do art. 132.º CP. Para exemplificar, da verificação dos citados elementos não pode retirar-se automaticamente a qualificação do homicídio, bem como, inversamente, a respectiva ausência não impede quer a verificação da culpa agravada do n.º 1, quer que se venham a descortinar elementos substancialmente análogos aos elencados (Figueiredo Dias, CJ 1987-IV-49, e Teresa Serra, Homicídio Qualificado, Almedina, p. 50). E, assim, quando a lei se refere a "especial censurabilidade" reporta-se àquelas condutas em que o especial juízo de culpa se fundamenta na refracção, ao nível da atitude do agente, de formas de realização do facto especialmente desvaliosas; quando se refere a "especial perversidade" reporta-se às qualidades da personalidade do agente especialmente desvaliosas (neste sentido, Figueiredo Dias, Comentário Conimbricense, art. 132º, §7). Sem embargo, ainda que cada um dos exemplos padrão do art. 132.2 apontem, neste sentido, ou para uma maior censurabilidade ou para uma maior perversidade, certo é que o agente pode indistintamente demonstrar merecer essa maior censura ou uma maior perversidade em qualquer que seja dos apontados exemplos do art. 132.2. Na formulação da jurisprudência suíça (9) o agente de homicídio qualificado enquadra-se na definição do psiquiatra Hans Binder, a saber, uma pessoa que age com sangue frio, sem escrúpulos, demonstra um egoísmo primário e odioso com uma ausência quase total de tendências sociais e que, no objectivo de prosseguir os seus próprios interesses, não tem absolutamente em conta a vida de outrém. Acentua tal jurisprudência, agora sob um ponto de vista jurídico-penal, que, nesse agente, o egoísmo sobreleva qualquer outra consideração; para a satisfação de interesses egoístas sacrificará um ser humano que a ele se não opôs, demonstrando ausência completa de escrúpulos e frieza afectiva. Revertendo para o caso concreto. O arguido possuía uma relação de forte domínio sobre todo o seu agregado familiar; começando pelo facto de todos trabalharam numa empresa familiar, naturalmente liderada pelo arguido (exceptua-se a vítima, que decidira recentemente empregar-se noutro local), continuando porque usufruía de um trabalho não remunerado (naturalmente sob a alegação de que todos trabalhavam para um fundo comum, mas fundo esse de que o arguido era administrador). Depois, porque o arguido reforçara com os anos um sentimento de verdadeiro desprezo pelos seus familiares, fosse a sua mulher fossem os seus filhos. Começando por maus tratos físicos que dispensava a todos, ainda que filhos já adultos ou mulher, obrigando até a tratamento hospitalar, continuando nos qualificativos insultuosos com que apodava a mulher e as filhas, levando-os a abandonar temporariamente o lar a fim de não suportarem a respectiva fúria. Andava habitualmente armado, mesmo dentro de sua casa; exibia a arma dentro de casa, em manifestação de puro poder tirânico. É certo que no julgamento se esgrimiu com a formação rígida e as necessidades que passou, enquanto jovem, formadoras de uma personalidade atreita à imposição de regras (e, naturalmente, os conflitos familiares possuem sempre uma carga relativa a convenções culturais); trata-se, todavia, não de julgar convenções culturais mas um acto e o seu autor e regras não são tirania - impor aos familiares que saiam de casa com medo da exaltação do arguido, ou do uso de uma arma muito potencialmente letal; impor a um filho de 17 anos que passe uma noite fora de casa apenas porque a hora de entrada pré-estabelecida unilateralmente pelo arguido foi excedida, não é educar: é humilhar. Todas as referidas condições se conjugaram para os acontecimentos a que os autos se reportam - basicamente, o arguido encontrava-se particularmente irado e alterado, sem que alguma razão objectiva o justificasse, para lá de um forte acumular de desprezo pelos seus familiares, que os anos vinham acentuando. Exibira a arma, forçara filhos e mulher a sair de casa, por medo do comportamento do arguido. Inexplicavelmente, que não por uma razão de puro poder tirânico, decidira guardar um telemóvel, na posse de sua filha, obrigando-a a confrontar-se com ele arguido e com a sua ira. Jogara o telemóvel ao chão, obrigando essa filha a tentar apanhá-lo do chão. Contrariado, viu seu filho D entrar no quarto. Nada se apurou que o pudesse confrontar com este seu filho, uma vez que o telemóvel pertencia à filha C. Mal o seu único filho homem entrou no quarto, desfechou-lhe dois tiros, com uma pistola semi-automática, premindo duas vezes o gatilho e apontando a duas regiões letais, tórax e abdómen. Uma das balas atingiu o coração de seu filho, a uma distância de até 50 cm. Decidiu punir de morte um filho; ainda que fosse um filho que com ele particularmente se confrontasse naquele momento e não se submetesse à vontade do arguido, agiria ele de forma cruelmente despótica e perversa. Notar-se-á, todavia, que a vítima D era um terceiro na divergência com a filha C e incomodava o arguido, à semelhança de todo o seu agregado familiar; constituiu a sua morte um elemento da "punição" que entendeu infligir, naquele momento, a todo o seu agregado familiar. Este elemento que consiste em fazer alguém pagar por um diferendo que de nenhuma maneira lhe dizia respeito, apenas porque esse alguém o incomodava e devia ser afastado, como se afasta um objecto, demonstra um sentimento de nulo apreço pela vida humana e constitui um dos traços mais característicos da perversidade. Por perversidade entenda-se - ausência de empatia, motivação moral, sentimento de culpa inerente ao agir humano, forte motivação narcísica. Ex abundanti, a ausência de motivação moral e empatia com o sofrimento e a morte, mais a mais de um filho, que ainda hoje persistem extraem-se também da ausência de arrependimento, bem patente na versão dos factos dada pelo Arguido em audiência. Este conjunto de elementos aponta inequivocamente para a verificação in casu do disposto na previsão do art. 132.º CP. Apreciemos agora se ocorrem as circunstâncias a que alude o n.º 2 do art. 132º CP. Sobre a al. i), isto é, a pretendida "reflexão sobre os meios empregues" para matar, nada se apurou. Sobre a al. g), valem os considerandos de Figueiredo Dias, in Comentário Conimbricense, art. 132º, §24, oportunamente citados na contestação: "Deve sobretudo ponderar-se que a generalidade dos meios usados para matar são perigosos e mesmo muito perigosos. Exigindo a lei que eles sejam particularmente perigosos, há que concluir duas coisas: ser desde logo necessário que o meio revele uma perigosidade muito superior à normal nos meios usados para matar (não cabem seguramente no exemplo-padrão e na sua estrutura valorativa revólveres, pistolas, facas ou vulgares instrumentos contundentes); em segundo lugar, ser indispensável determinar, com particular exigência e severidade, se da natureza do meio utilizado - e não de quaisquer outras circunstândas acompanhantes - resulta já uma especial censurabilidade ou perversidade do agente". De afastar portanto a qualificação da conduta do Arguido pela al. g) do n.º 2 do art. 132º CP. Sobre a al. f), de resto, também nada se apurou (a invocação desta alínea na peça acusatória resulta de lapso manifesto, quando se queria invocar a al. i). Acerca da al. d), suscitou-se em audiência a possível qualificação da conduta do arguido por esta alínea, tendo em vista a eventual futilidade da motivação do arguido. Figueiredo Dias interpreta esta previsão como significando a gratuitidade da actuação do agente, segundo as concepções éticas e morais ancoradas na comunidade (Comentário, art. 132º, § 13). A jurisprudência vem insistindo para que a ausência de motivo não deva constituir a prova da futilidade do motivo - neste sentido, STJ 7/12/99 Col. III-234; STJ 4/2/93 Col. I-184; RP 20/4/88 BMJ 376/655). Se bem atentarmos na factualidade dos autos, o acto do arguido, na medida em que praticado contra alguém que simplesmente entra num aposento onde ele arguido se encontra em disputa com um terceiro, é um acto sem motivo (de outra forma seria, naturalmente, se o acto tivesse sido praticado na pessoa da sua filha C, por via de esta lhe tentar tirar um telemóvel a que ele arguido entendesse que essa sua filha não tinha direito - nesse caso, haveria um motivo a analisar, eventualmente fútil, gratuito); todavia, praticados os factos que foram na pessoa da vítima, que simplesmente entrava no aposento, a motivação do arguido nem fútil chega a ser; esse facto, obviamente, em nada retira intensidade ao ilícito ou à culpa espelhados no facto e acima já expostos. Somos pois de opinião que a conduta do arguido também não sofre qualificação pelo disposto no art. 132º n.º 2 al. c) CP. Resta a qualificação pela al. a) - a circunstância de o agente ser ascendente da vítima. Os autos denunciam como o arguido, com especial censurabilidade e perversidade, venceu as contra-motivações éticas relacionados com os laços básicos de parentesco, contra-motivações essas que se encontram especialmente na base desta qualificação (Figueiredo Dias, Comentário, art. 132º, §8). Verificada se encontra, sem margem para quaisquer dúvidas, a qualificativa do art. 132º n.º 2 al. a) CP. A conduta do Arguido acha, nestes termos, previsão no disposto no art. 132º n.º s 1 e 2 al. a) CP. e é punida, em abstracto, com pena que oscilará entre 12 e 25 anos de prisão. Olhando agora a todo o circunstancialismo que acompanha os factos e que depõe a favor e contra o Arguido, a fim de se determinar a concreta pena a aplicar. O bem jurídico violado no crime de homicídio é o bem jurídico supremo, o valor a partir do qual tudo se conhece e frui - a vida. Tem assim tal bem jurídico um notório significado prospectivo, já que são fortes as expectativas da comunidade na manutenção e mesmo no reforço da vigência da norma infringida (Figueiredo Dias, Direito Penal Português, § 302). Todavia, a prevenção geral positiva ou prevenção geral de reintegração ou de ressocialização fornece-nos tão só a "moldura penal de prevenção" (Figueiredo Dias, op. cit., § 306), cujo limite máximo nos é fornecido pela culpa do agente (Anabela Miranda Rodrigues, A Determinação da Medida da Pena Privativa da Liberdade, p. 557). Vertendo para o caso concreto, o que mais ressalta nos factos é que são indiciadores de dolo directo, e de uma forte mobilização da vontade para a prática do ilícito. Acresce a ausência de arrependimento que transparece da postura do arguido em julgamento, persistindo numa postura alheia à culpa ética, fria e indiferente ao Direito. Mesmo assim, a duração da pena de prisão a aplicar deverá ser moderada pela respectiva necessidade, proporcionalidade e adequação à culpa concreta, tendo em vista que qualquer pena a aplicar deve ter por norte orientador a defesa mínima da ordem jurídica, o princípio da culpa como limite máximo moderador das reacções penais e os princípios de proporcionalidade, de humanidade e de proibição do excesso das penas (art. 30º CRP). Face a todo o circunstancialismo supra descrito, designadamente à gravidade do facto e às circunstâncias da sua consumação, entendemos que a medida concreta da pena não se deverá distanciar do meio da pena abstracta. 3. O RECURSO PARA A RELAÇÃO 3.1. Inconformado, o arguido (10) recorreu em 21Jun01 à Relação, pedindo a absolvição do crime por que fora condenado e a subsunção dos factos praticados no tipo de crime de homicídio negligente p. art. 137.º do CP. 3.2. Em 5Dez01, a Relação do Porto (11) negou provimento ao recurso: A questão está em saber se foi ou não bem valorada a prova produzida. E desde já se diga que a resposta é afirmativa. Preceitua o art. 127º do CPP que "salvo quando a lei dispuser diferentemente, a prova é apreciada segundo as regras da experiência e a livre convicção da entidade competente". Como é sabido, a livre apreciação da prova de modo algum se confunde com apreciação arbitrária ou com a mera impressão gerada no espírito do julgador pelos vários meios de prova. "A prova livre tem como pressupostos valorativos a obediência a critérios da experiência comum e da lógica do homem médio suposto pela ordem jurídica. Dentro destes pressupostos se deve portanto colocar o julgador ao apreciar livremente a prova. Vejam-se, nesta orientação, Alberto dos Reis, Código de Processo Civil Anotado e Comentado, III, 246; Cavaleiro de Ferreira, Curso de Processo penal, II, 288; Eduardo Correia, Les Preuves en Droit Penal Portugais, RDES, XIV; Germano Marques da Silva, Curso de Processo penal, II, 107 e segs. E Marques Ferreira, Jornadas de direito Processual penal, 228 (cfr. Maia Gonçalves, CP Penal anot. 9ª ed., pag. 323). Por isso se consagrou a necessidade de fundamentar a decisão "com indicação e exame crítico das provas que serviram para formar a convicção do Tribunal" (art. 374º nº 2 do CPP). E foi o que se fez no acórdão recorrido. Sem que se mostre incorrecta a apreciação da matéria de facto. Como se observa no acórdão desta Relação de 20.06.2001, proc. 0140478, de que foi 2º adjunto o que ora relata o presente, "embora com documentação da prova, a alteração da convicção provada no tribunal "a quo" é questão de alguma nulidade. É que o conhecimento de facto é necessariamente limitado, pois estão ausentes da nossa apreciação dois dos princípios basilares da boa e justa apreciação da prova: o da oralidade e o da imediação. Estes princípios, somente ao dispor do tribunal de 1ª instância e tantas vezes relevantes na formação da convicção sobre a matéria de facto, levam a que se não possam menosprezar as impressões colhidas naquele tribunal quanto ao modo como certas pessoas depuseram. Ou seja, a prova documentada deverá ser avaliada com autonomia, mas, a menos que o contrário resulte inequivocamente da documentação, não podemos deixar de estar vinculados àquela situação de privilégio de que desfrutam os julgadores na 1ª instância". Sendo mister assinalar, como se escreveu no acórdão de 26.9.2001 também desta Relação, proc. 1352/00, 4ª secção, que "o recurso não traduz uma repetição do julgamento, com análise da prova, mas sim um remédio para situações que patenteiam erro de julgamento. Com efeito, o tribunal de recurso sofre de certo handicap relativamente ao tribunal perante o qual se produziu directamente a prova, onde têm pleno cabimento os princípios da imediação e oralidade, complementados pelos do contraditório, livre apreciação da prova e in dubio pro reo. A prova escrita não consente a percepção do que aconteceu e não é inscrito... os olhares, os esgares, as hesitações, o recado feito de personagem com papel bem desempenhado". E, neste âmbito, a prova não consente que se faça um desmentido da apreciação que dela faz, na sua globalidade, o tribunal colectivo. Como responde o Ministério Público com referência aos pontos que, no essencial e em síntese, são questionados pelo recorrente: - É irrelevante que a C (filha do arguido) tenha logo que este empunhava a arma. O que releva é a conclusão de que ele já tinha a arma na mão direita. - Não é essencial sobre se a mesma "pediu" ou "exigiu" o telemóvel de que o pai se apoderou. - Inexistem motivos para pôr em causa o depoimento de B (mulher do arguido) por ter ela dito que D passou pelo quarto do pai, quando este fica no fim do corredor, já que se não faz prova sobre a organização espacial da casa. - A expressão "tamanha confusão" utilizada por E (filha mais nova do arguido) descreve o que se passou entre este e C e não que no momento do crime os filhos se concentravam à sua volta. - Não há qualquer contradição pelo facto de o tribunal ter considerado provado que o arguido disparou dois tiros à queima-roupa sobre o filho, mal este transpôs a porta do aposento. - Ao ter sido atingido por uma arma que não é de guerra, D não tinha de cair para trás, não havendo, pois, também qualquer contradição com o facto de o mesmo ter caído para o interior do quarto. - A versão do recorrente de que alguém lhe desviou a arma em direcção ao corpo de D, quando pretendia apenas disparar um tiro para o ar, sendo que foi a pistola que, em resultado do automatismo do seu mecanismo, disparou dois tiros, não tem qualquer sentido. - A falta de unanimidade dos depoimentos das testemunhas quanto ao local exacto em que ficou prostrado o corpo de D não exclui a convicção de que o mesmo caiu entre a cama e a cómoda, sendo depois removido para a zona da janela. - Não é crível que a família tivesse decidido atacar o recorrente, que este queria disparar para o ar e alguém lhe puxasse a arma para baixo fazendo-a apontar a D, que alguém lhe pressionasse o dedo contra o gatilho, que o recorrente não tivesse visto D a ser atingido, que decidiu fugir por ter disparado dois tiros para o ar, que tão perturbado que nem viu o corpo do filho caído à sua frente se lembrasse de ir buscar os documentos do veículo, que se fosse entregar à Polícia sem saber que tinha morto o filho e apenas para confessar que disparou dois tiros para o ar. Não se suscita, pois, qualquer dúvida razoável de que os factos ocorreram tal como foram dados como provados. E, sendo assim, inquestionável é que integram o crime de homicídio voluntário qualificado que ao arguido vem imputado. Em conformidade com o exposto e sem necessidade de mais considerações, acordam os juízes desta Relação em, negando provimento ao recurso, confirmar o decidido. 4. O RECURSO PARA O STJ 4.1. Mais uma vez irresignado, o arguido (notificado por c/r de 6Dez) recorreu em 27Dez01 ao STJ, pedindo a «absolvição da prática do crime de homicídio qualificado p. p. art.s 131.º e 132.º do CP, pelo qual foi condenado, e a subsunção da sua conduta no tipo de crime de homicídio negligente p. p. art. 137.º do CP» ou, subsidiariamente, a redução da pena ao mínimo correspondente ao ilícito: A Relação confirmou a condenação do arguido pela prática do crime de homicídio qualificado p. e p. pelo art. 131° e 132° al. a) do C. Penal. O arguido não se conforma com tal decisão, considerando que o disparo por si proferido foi efectuado de forma negligente e o tribunal, ao condená-lo, fê-lo com base em contradição insanável da fundamentação e entre a fundamentação e a decisão, tendo interpretado e aplicado erradamente as normas jurídicas (art. 410.2.b do CPP). O tribunal aplicou indevidamente o preceituado na al. a) do n.º 2 do art. 132° do C. Penal. O arguido deveria ter sido condenado pela prática de homicídio negligente nos termos dos art.s 15° e 137º do C. Penal, sendo que, pelo facto de inexistir qualquer indício de uma vontade fria e racional de querer matar o seu filho, jamais se poderá em bom rigor afirmar que aquele venceu "as contra-motivações éticas relacionadas com os laços básicos de parentesco", parafraseando Figueiredo Dias, Comentário Conimbricense do Código Penal. Pelo que se impunha ao tribunal, de acordo com todos os factos, bem como pela leitura conjugada dos art.s 13°, 15° e 137º do C. Penal, ter qualificado diferentemente a conduta do arguido, razão pela qual ora se recorre. A prova produzida, quando analisada numa perspectiva eminentemente jurídica, exige que o arguido seja absolvido da pratica de um crime de homicídio qualificado p. e p. pelas norma do art. 131° e 132.a do CP e condenado pela prática de um crime de homicídio negligente p. e p. no art. 137° do C. Penal. Sem prescindir, o tribunal calculou exageradamente a dosimetria penal a aplicar ao arguido, negligenciando as condições pessoais e sociais do ora recorrente. A interpretação correcta obrigava à ponderação pelo tribunal do circunstancialismo exposto, de modo à aplicação da pena mínima aplicável ao ilícito em questão, violando desta forma o preceituado nos art.s 70° e 71° do C. Penal. 4.2. O MP (12), na sua resposta de 4Fev02, apoiou a decisão recorrida: Quem recorre, não pode limitar-se a proclamar violações normativas; tem obrigatoriamente, sob pena de rejeição, de fazer a crítica das soluções para que propendeu a decisão de que recorre, aduzindo os motivos do seu inconformismo, a base jurídica em que se apoia e o caminho de direito que deveria ter sido percorrido ou que haverá de percorrer-se. Ora, ao apreciar as conclusões do recorrente, constatamos que, aparentemente, as mesmas não obedecem às regras referidas, pois não só não atacou, fundamentadamente, os motivos de direito em que o tribunal a quo assentou a sua decisão como, igualmente, não forneceu as razões pelas quais - a seu ver - outra deveria ter sido a dosimetria punitiva. Consideramos, porém, que a motivação satisfaz minimamente os preceitos normativos. No entanto, certos pontos das conclusões não devem ser conhecidos, pois que se esgotou o duplo grau de jurisdição penal de matéria de facto. Nessa base/amparo recursório, a solução é a rejeição do recurso por ser manifestamente improcedente. O que não impede, porém, que o STJ possa conhecer oficiosamente dos vícios do art. 410º, nº 2, do Código de Processo Penal. Porém, para que os vícios do nº 2 do art. 410 do CPP possam assumir repercussão processual, é necessário que resultem do texto da decisão recorrida e impossibilitem a decisão da causa. Ora, os vícios invocados não só não resultam da decisão recorrida mas, antes, de premissas que não representam mais do que decisão de facto da causa, não havendo, no caso, espaço processual para conhecer do erro sobre a ilicitude, pois, por um lado, não se apontam as proposições de tal juízo e, por outro, não se argumenta nessa sede quer na motivação quer nas conclusões. A norma incriminadora básica entre as normas que prevêem os crimes contra a vida é a norma que incrimina o chamado homicídio simples (artº 131º). Em relação a ela todas as outras normas se configuram como normas especiais, como casos especiais de homicídio doloso. A referida relação de especialidade não tem um fundamento estritamente lógico, mas corresponde ao interesse político-criminal de dar somente a certos casos de homicídio uma pena agravada ou atenuada. Não seria assim se, por exemplo, o artigo que prevê o homicídio qualificado (art. 132º) fosse visto como o caso geral de homicídio, sendo a incriminação do homicídio baseada sempre na especial "perversidade" que a intencional morte de outrem tenderia a revelar e «casos especiais» os casos em que uma tal perversidade não se revelasse. O que se faz no Código é partir de um caso "normal" ou "médio" de homicídio e depois autonomizar-se, por razões éticas ou ético-psicológicas, casos específicos. Este tipo de construção é utilizado em todos os sistemas penais modernos e foi utilizado em sistemas antigos, embora o fundamento e a configuração dos diversos casos de homicídio tenha variado bastante. A análise das circunstâncias do n.º 2 do art. 132º revela que elas são basicamente de duas espécies: circunstâncias relativas ao modo de ser objectivo da acção e circunstâncias relativas à implicação pessoal do agente na acção. No art. 132º o legislador renunciou expressamente à subordinação da matéria da culpa ao principio da legalidade. Entendeu que na área do juízo de censura pessoal ao agente, as razões de previsibilidade e segurança dos destinatários da norma que são próprias da definição do ilícito não têm de todo expressão . Na culpa, diferentemente do lícito, o legislador pensou o destinatário da norma como ausente do processo de comunicação inerente a uma linguagem de proibições e comandos em que consiste o sistema normativo penal. Tudo se passa como se o legislador falasse somente com o julgador, quando descreve os factos reveladores de maior culpa, tentando ajudá-lo a configurar o conteúdo do critério da agravação, mas deixando-lhe totalmente nas mãos a concretização e aplicação do critério. O que é "mais censurável" diferentemente do que é "mais ilícito" não precisa, no entanto, de ser previamente identificado por aqueles a quem as normas se dirigem, porque a norma de culpa não assume para o legislador qualquer função de motivação dos destinatários. Será talvez esta a lógica inerente ao pensamento legislativo. Num Estado Social de Direito, essa legitimidade é conferida pela necessidade de proteger bens jurídicos e de acautelar a realização das prestações sociais imprescindíveis a uma justa vivência social. Por esse motivo, a censurabilidade de uma acção humana é sempre, em primeira linha, fundamentada e medida pela sua danosidade social. O desvalor pessoal do agente não fundamenta, por si, a intervenção penal. Mas como o direito penal se dirige a sujeitos e não a meros suportes de acções, a sua medida tem de considerar o valor do pessoal dos agentes para a ordem jurídica. Temos que com o disposto no art. 132.1 CP se prevê que a morte seja produzida em circunstâncias que revelem a especial censurabilidade ou perversidade o agente e tais circunstâncias são meramente indiciadas por elementos relativos ao facto ou ao agente. Para exemplificar, da verificação dos citados elementos não pode retirar-se automaticamente a qualificação do homicídio, bem como, inversamente, a respectiva ausência não impede quer a verificação da culpa agravada do n.º 1 quer que se venham a descortinar elementos substancialmente análogos aos elencados. Entendemos que a subsunção jurídico-penal das instâncias é correcta e condenação é justa/justificada/bem medida. O arguido possuía uma relação de forte domínio sobre todo o seu agregado familiar; começando pelo facto de todos trabalharem numa empresa familiar, liderada pelo arguido (exceptuada a vítima, que decidira recentemente empregar-se noutro local) e continuando porque usufruía de um trabalho não remunerado (naturalmente sob a alegação de que todos trabalhavam para um fundo comum, de que o arguido era administrador). Depois, porque o arguido reforçara com os anos um sentimento de verdadeiro desprezo pelos seus familiares, fosse a sua mulher fossem os seus filhos. Começando por maus tratos físicos e psíquicos que dispensava a todos, ainda que filhos já adultos ou mulher, obrigando até a tratamento hospitalar, continuando nos qualificativos insultuosos com que apodava a mulher e as filhas, levando-os a abandonar temporariamente o lar a fim de não suportarem a respectiva fúria. Andava habitualmente armado, mesmo dentro de sua casa; exibia a arma dentro de casa, em manifestação de puro poder tirânico. Todas as referidas condições se conjugaram para os acontecimentos a que os autos se reportam - basicamente, o arguido encontrava-se particularmente irado e alterado, sem que alguma razão objectiva o justificasse, para lá de um forte acumular de desprezo pelos seus familiares, que os anos vinham acentuando. Exibira a arma, forçara filhos e mulher a sair de casa, por medo do comportamento do arguido. Inexplicavelmente, que não por uma razão de puro poder tirânico, decidira guardar um telemóvel de sua filha, obrigando-a a confrontar-se com ele arguido e com a sua ira. Jogara o telemóvel ao chão, obrigando essa filha a tentar apanhá-lo do chão. Contrariado, viu seu filho D entrar no quarto, nada se apurando que o pudesse confrontar com este seu filho, uma vez que o telemóvel pertencia à filha C. Mal o seu único filho homem entrou no quarto, desfechou-lhe dois tiros, com uma pistola semi-automática, premindo duas vezes o gatilho e apontando a duas regiões letais, tórax e abdómen. Uma das balas atingiu o coração de seu filho, a uma distância de até 50 cm. Notar-se-á, todavia, que a vítima era um terceiro na divergência com a filha C e incomodava o arguido, à semelhança de todo o seu agregado familiar. Constituiu a sua morte um elemento da "punição" que entendeu infligir, naquele momento, a todo o seu agregado familiar. Este elemento, que consiste em fazer alguém pagar por um diferendo que de nenhuma maneira lhe dizia respeito, apenas porque esse alguém o incomodava e devia ser afastado, como se afasta um objecto, demonstra um sentimento de nulo apreço pela vida humana e constitui um dos traços mais característicos da perversidade. Por perversidade entenda-se ausência de empatia, motivação moral, sentimento de culpa inerente ao agir humano, forte motivação narcísica. Ex abundanti, a ausência de motivação moral e empatia com o sofrimento e a morte, mais a mais de um filho, que ainda hoje persistem, extraem-se também a ausência de arrependimento, bem patente na versão dos factos dada pelo arguido em audiência. Os autos denunciam como o arguido, com especial censurabilidade e perversidade, venceu as contra-motivações éticas relacionados com os laços básicos de parentesco, contra-motivações essas que se encontram especialmente na base desta qualificação (Figueiredo Dias, Comentário, art. 132°, § 8). A formação ético-jurídica revelada pelo recorrente leva-o a tratar a família com desprezo, um entranhado e cultivado desprezo e ódio, que configuram uma situação permanente de maus tratos, para todos, e daí releva o acto de disparar sobre o filho D, que, não se manifestando no caso contra o pai, se manifestou não se manifestando, pois a entrada dele no quarto do pai, quando este discutia com a filha C, por causa de um telemóvel, colocou o arguido face às limitações humanas de um poder que ele queria/representava ilimitado, nomeadamente o seu poder de desprezar, de odiar, de humilhar, de maltratar, e, deste modo, no seu universo, redutor de sensibilidades, a entrada o filho, sem se manifestar, representa, para ele, naquele momento, um limite ao seu poder e maltratar, de desprezar, de humilhar, pois representa a solidariedade familiar. O braço estendido de D a C, representa, de certa forma, o temido limite ao poder de maltratar, ao seu poder de humilhar, à sua perversidade, enfim. D morreu, passe a tautologia, por existir e, nomeadamente, por existir naquele momento. Olhando agora a todo o circunstancialismo que acompanha os factos e que depõe a favor e contra o Arguido, haverá que determinar a pena concreta aplicável ao arguido. O bem jurídico violado no crime de homicídio é o bem jurídico supremo valor a partir do qual tudo se conhece e frui - a vida. Tem assim tal bem jurídico um notório significado prospectivo, já que são fortes as expectativas da comunidade na manutenção e mesmo no reforço da vigência da norma infringida (Figueiredo Dias). Todavia, a prevenção geral positiva ou prevenção geral de reintegração ou de ressocialização fornece-nos tão só a "moldura penal de prevenção" (Figueiredo Dias), cujo limite máximo nos é fornecido pela culpa do agente (Anabela Miranda Rodrigues). O que mais ressalta nos factos é que são indiciadores de dolo directo e de uma forte mobilização da vontade para a prática do ilícito. Acresce a ausência de arrependimento, que transparece da postura do arguido em julgamento, persistindo numa postura alheia à culpa ética, fria e indiferente ao direito. A pena aplicada nas instâncias, 19 anos, mostra-se adequada à respectiva necessidade, proporcionalidade e adequação à culpa concreta, tendo em vista que qualquer pena a aplicar deve ter por função a defesa mínima da ordem jurídica, o princípio da culpa como limite máximo moderador das reacções penais e os princípios de proporcionalidade, de humanidade e de proibição do excesso das penas. 5. HOMICÍDIO DOLOSO OU NEGLIGENTE? «O arguido não se conforma com tal decisão, considerando que o disparo por si proferido foi efectuado de forma negligente e o tribunal, ao condená-lo, fê-lo com base em contradição insanável da fundamentação e entre a fundamentação e a decisão» 5.1. Entende o recorrente que «o disparo foi efectuado de forma negligente» e que, por isso, «se impunha ao tribunal a quo, de acordo com todos os factos, ter qualificado diferentemente a conduta do arguido», condenando-o «pela prática de homicídio negligente». 5.2. Mas se «age com dolo directo quem, representando um facto que preenche um tipo de crime, actuar com intenção de o realizar» (art. 14.1 do CP) e, «com negligência», «quem (...) não (...) representar a possibilidade de realização do acto» (art. 15.b) ou, representando-a, «actuar sem se conformar com essa realização» (art. 15.a), não se vê como, «de acordo com todos os factos» (nomeadamente os de que «o arguido, apontando-lhe a arma, disparou, sobre o filho, dois tiros à queima-roupa», «quis, com tais actos, produzir um resultado que tinha consciência de ser adequado à sua conduta» e «agiu livre, voluntária e conscientemente, com o propósito concretizado de atingir mortalmente o filho, tendo consciência de que a sua conduta era proibida por lei»), se possa pretender - como pretende o recorrente - a condenação, tão só, «pela prática de homicídio negligente». 5.3. Além disso, mesmo que entre os «factos provados» e os «enunciados de facto não provados» possam detectar-se algumas incongruências, nenhuma delas constitui «contradição insanável» (pois que facilmente «sanável») que, por si ou no seu conjunto, pudesse interferir no juízo de «dolo» feito e assente pelas instâncias. 5.4. Por um lado, a afirmação de que «o arguido, no dia 9Abr, por volta das 20:30, insultava todos os filhos e a mulher, exigindo que recolhessem a casa» tinha a ver, obviamente, com os filhos presentes. Por outro, o facto de o arguido impor «regras severas aos filhos quanto a horas» concilia-se, de algum modo, com a incomprovação de «que uma dessas regras fosse a obrigatoriedade de todos estarem em casa às 21 horas» (se bem que fosse exactamente «às 21:00 que o arguido, como fazia já há anos, trancava as portas»). Em terceiro lugar, é compatível a afirmação (não localizada) de que o arguido «já ameaçara disparar sobre quem o afrontasse» com a incomprovação de que «o arguido, na discussão tida no corredor da casa, tivesse ameaçado abater quem lhe fizesse frente». Em quarto lugar, a afirmação - reportada às 20:30 - de que «o arguido estava nesse dia muito exaltado» (tendo sido essa a razão «pela qual os filhos e mulher saíram da residência com o objectivo de o deixar sozinho e ver se conseguiam que ele acalmasse») também não é incompatível com a incomprovação de que, mais tarde (à hora do crime), «o arguido se encontrasse bastante irritado e enervado». Enfim, e uma vez que os «factos provados» não identificam em que local exacto do seu quarto é que o arguido se encontrava quando o filho «transpôs a porta do aposento», não se vê que «contradição insanável na fundamentação» possa viciar a afirmação de que «mal D transpôs a porta do aposento, o arguido, apontando-lhe a arma, disparou, sobre o filho, dois tiros à queima-roupa». 5.5. Ademais, «a competência das relações, quanto ao conhecimento de facto, esgota os poderes de cognição dos tribunais sobre tal matéria, não podendo pretender-se colmatar o eventual mau uso do poder de fazer actuar aquela competência, reeditando-se no Supremo Tribunal de Justiça pretensões pertinentes à decisão de facto que lhe são estranhas, pois se hão-de haver como precludidas todas as razões quanto a tal decisão invocadas perante a Relação, bem como as que o poderiam ter sido» (13). Com efeito, o reexame/revista (por este) exige/subentende a prévia definição (pelas instâncias) dos factos provados (art. 729.1 do CPC). E, no caso, a Relação - avaliando a regularidade do processo de formação de convicção do tribunal colectivo a respeito dos factos impugnados no recurso - manteve-os, em definitivo, no rol dos «factos provados». 5.6. A revista alargada ínsita no art. 410.2 e 3 do CPP pressupunha (e era essa a filosofia original, quanto a recursos, do Código de Processo Penal de 1987) um único grau de recurso (do júri e do tribunal colectivo para o STJ e do tribunal singular para a Relação) e destinava-se a suavizar, quando a lei restringisse a cognição do tribunal de recurso a matéria de direito (o recurso dos acórdãos finais do júri ou do colectivo; e o recurso, havendo renúncia ao recurso em matéria de facto, das sentenças do próprio tribunal singular), a não impugnabilidade (directa) da matéria de facto (ou dos aspectos de direito instrumentais desta, designadamente «a inobservância de requisito cominado sob pena de nulidade que não devesse considerar-se sanada»). Essa revista alargada (do STJ) deixou, porém, de fazer sentido - em caso de prévio recurso para a Relação - quando, a partir da reforma processual de 1998 (Lei 59/98), os acórdãos finais do tribunal colectivo passaram a ser susceptíveis de impugnação, «de facto e de direito», perante a Relação (art.s 427.º e 428.1). 5.7. Actualmente, com efeito, quem pretenda impugnar um acórdão final do tribunal colectivo, de duas uma: se visar exclusivamente o reexame da matéria de direito (art. 432.d), dirige o recurso directamente ao Supremo Tribunal de Justiça (14) e, se o não visar, dirige-o, «de facto e de direito», à Relação, caso em que da decisão desta, se não for «irrecorrível nos termos do art. 400.º», poderá depois recorrer para o STJ (art. 432.b). Só que, nesta hipótese, o recurso - agora, puramente, de revista - terá que visar exclusivamente o reexame da decisão recorrida (a da Relação) em matéria de direito (com exclusão, por isso, dos eventuais «erro(s)» - das instâncias «na apreciação das provas e na fixação dos factos materiais da causa») (15). 6. HOMICÍDIO QUALIFICADO? «O tribunal aplicou indevidamente o preceituado na al. a) do n.º 2 do art. 132° do C. Penal (...), sendo que, pelo facto de inexistir qualquer indício de uma vontade fria e racional de querer matar o seu filho, jamais se poderá em bom rigor afirmar que aquele venceu "as contra-motivações éticas relacionadas com os laços básicos de parentesco", parafraseando Figueiredo Dias, Comentário Conimbricense do Código Penal» 6.1. «O legislador português seguiu, em matéria de qualificação do homicídio, um método de combinação de um critério generalizador, determinante de um especial tipo de culpa, com a técnica chamada dos exemplos-padrão. A qualificação deriva da verificação de um tipo de culpa agravado, assente numa cláusula geral extensiva e descrito com recurso a conceitos indeterminados: a «especial censurabilidade ou perversidade» do agente; verificação indiciada por circunstâncias ou elementos uns relativos ao facto, outros ao autor. Elementos estes assim, por um lado, cuja verificação não implica sem mais a realização do tipo de culpa e a consequente qualificação; e cuja não verificação, por outro lado, não impede que se verifiquem outros elementos substancialmente análogos aos descritos e que integrem o tipo de culpa qualificador. Deste modo devendo afirmar-se que o tipo de culpa supõe a realização dos elementos constitutivos do tipo orientador, que resulta de uma imagem global do facto agravada correspondente ao especial conteúdo de culpa tido em conta no art. 132.2» (Comentário Conimbricense do Código Penal, Coimbra Editora, 1999, I, 25-26). 6.2. «Concedendo ao aplicador uma maior flexibilidade na valoração do caso concreto do que aquela que lhe seria permitida se os elementos qualificadores tivessem sido considerados como puros elementos do ilícito, vem este método permitindo à jurisprudência portuguesa um uso moderado e criterioso da qualificação, impeditivo da multiplicação ad nauseam das hipóteses respectivas» (Comentário, I, 26). 6.3. «Face ao art. 132.º não parece que possa defender-se outra doutrina que não seja a de ver ali elementos constitutivos do tipo de culpa. É exacto que muitos dos elementos constantes das diversas alíneas do art. 132.2, em si mesmo tomados, não contendem directamente com uma atitude mais desvaliosa do agente, mas sim com um mais acentuado desvalor da acção e da conduta, com a forma de cometimento do crime. Ainda nestes casos, porém, não é maior desvalor da conduta o determinante da agravação, antes ele é mediado sempre por um mais acentuado desvalor da atitude: a especial censurabilidade ou perversidade do agente, é dizer, o especial tipo de culpa do homicídio agravado. Só assim se podendo compreender e aceitar que haja hipóteses em que aqueles elementos estão presentes e, todavia, a qualificação vem em definitivo a ser negada» (Comentário, I, 27). 6.4. «A agravação da culpa é em todos os casos suportada por (ou se reflecte necessariamente em) uma correspondente agravação (gradual/quantitativa) do conteúdo do ilícito» (Comentário, I, 27). 6.5. «O especial tipo de culpa do homicídio doloso é em definitivo conformado através da verificação da "especial censurabilidade ou perversidade" do agente» (Comentário, I, 29). 6.6. «A lei pretende imputar à "especial censurabilidade" aquelas condutas em que o especial juízo de culpa se fundamenta na refracção, ao nível da atitude do agente, de formas de realização do facto especialmente desvaliosas, e à "especial perversidade" aquelas em que o especial juízo de culpa se fundamenta directamente na documentação no facto de qualidades de personalidade do agente especialmente desvaliosas» (Comentário, I, 29). 6.7. «A alínea a) aponta como exemplo padrão a circunstância de o agente "ser ascendente da vítima" (16). Nela se tem pretendido encontrar uma particular justificação para a ideia de que circunstâncias como esta seriam particularmente indicativas de que a agravação do homicídio tem (ao menos por vezes) que ver também com um maior desvalor do tipo de ilícito, só por essa via relevando (mediatamente) para verificação de um tipo de culpa especialmente agravado (Fernanda Palma). Mas, ao que cremos, sem razão. Não parece exacto que, como defende F Palma, que nestes caos "não é necessária nenhuma motivação especial do agente para que o homicídio seja qualificado, bastando que o agente tenha consciência da sua relação de parentesco com a vítima". Exacto é, pelo contrário, que ainda nestes hipóteses se exige que a prática do homicídio revela uma especial censurabilidade ou perversidade do agente, indiciada (mas não automaticamente verificada) por aquele ter vencido "as contra/motivações éticas relacionadas com os laços básicos de parentesco"» (Comentário, I, 29). 6.8. O que se questiona, pois, é se o arguido, ao disparar sobre o filho, vencendo "as contra/motivações éticas relacionadas com os laços de parentesco», revelou uma «especial perversidade», ou seja, deixou «documentadas no facto qualidades de personalidade especialmente desvaliosas». 6.9. E isso porque a circunstância de o agente ser ascendente da vítima, embora «susceptível de revelar a especial perversidade do agente», não significa que a revele pelo facto simples de se ter verificado. Na verdade, «quem preenche uma das alíneas do art. 132.º não "entra" automaticamente no âmbito da norma» (Maria Margarida Silva Pereira, Textos, Direito Penal II, Os homicídios, vol. II, AAFDL, 1998). 6.10. Aliás, «o nosso Código usa a expressão "perversidade" e não "perigosidade"»: «Apesar de a perversidade poder sugerir à primeira vista também uma imagem de perigosidade do agente (...), não creio que seja um juízo de perigosidade que deva formular-se para o qualificar. É verdade que a qualificação de muitos crimes, e talvez do homicídio de uma forma particular, disfarça sob o discurso da maior ilicitude razões essencialmente preventivas (...). A lei usa, porém, uma disjuntiva (censurabilidade ou perversidade) incompatível com a articulação de culpa e prevenção nos termos em que nosso direito penal as aceita, que são de acumulação e não de disjunção. (...) Coerente com o ser um direito penal do facto, o nosso Direito não se enreda pela ideia de perigosidade e utiliza o princípio da culpa na construção do homicídio agravado (...)» (Maria Margarida Silva Pereira, ob. cit.). 6.11. Donde que a qualificação (ou não) do homicídio do arguido tenha a ver com a caracterização, natureza e etiologia das «qualidades de personalidade» - sem dúvida, «especialmente desvaliosas» - documentadas no facto. No fundo, tudo estará em saber - perante o facto de ter atirado («a matar»), apesar de se tratar do seu próprio filho - se foi a «corrupção de alma» («perversidade») do arguido - ou, antes, a sua «perigosidade» psicopática e/ou sociopática - que, na passagem ao acto, o levou a romper as correspondentes «contra-motivações» ético/sociais. 6.12. Em primeiro lugar, é preciso ter em conta que o arguido, o «segundo de uma fratria de nove irmãos», «teve uma vivência de pobreza e miséria na juventude». Ora, «se uma criança (...) for rodeada de abandono, de rejeição, de violência, o que vai aprender é que o mundo de que faz parte é horrível, internalizando uma visão violenta das coisas (...)» (José Carlos Dias Cordeiro, psiquiatra, Notícias Magazine, 14Abr02). 6.13. Depois, é preciso compreender (!) por que o arguido «sempre foi muito rigoroso com os filhos, pautando a sua relação familiar por princípios inflexíveis, impondo-lhes regras severas quanto a horas, comportamento e trabalho, para tudo e todos existindo regras que tinham que ser pontualmente cumpridas». No fundo, foi/é a sua (doentia) (17) «preocupação com a possibilidade de os seus filhos estarem expostos a diferentes perigos» - a que não seria nem será estranha a sua declarada «religiosidade» (18) - que, por um lado, o fez, quando «emigrado em França e na Alemanha», «regressar ao seu país quando as duas filhas mais velhas atingiram a idade escolar», e que, por outro, o leva a «justificar o facto de os educar segundo parâmetros muito restritivos». 6.14. E, se à mulher e às filhas, particularmente à mais velha do casal, portadora de atraso intelectual, chamava «putas», isso terá a ver com a «perturbação» decorrente de, conforme referiu à psicóloga que o examinou em 16Mar01, «o filho manter relações incestuosas com a irmã deficiente intelectual, que acabaria por engravidar e mais tarde abortar em cumplicidade com a mãe» (cfr. exame psicológico de fls. 212). 6.15. O rigor, a intransigência, a dureza e a desproporcionada severidade com que o arguido - «habituado a que ninguém questionasse a sua autoridade» - tiranizava o seu agregado familiar radicavam, afinal, na sua peculiar «estrutura psicológica», caracterizada por um «potencial cognitivo global ao nível da deficiência mental ligeira» (19) e por uma «perturbação paranóide da personalidade, condicionante da interiorização da realidade afectiva e relacional («indiferença afectiva», «humor neutro» e «discurso de tonalidade paranóide») e de uma postura vivencial ambivalente, ora coarctada («perfil de personalidade caracterizado por um nível baixo de extroversão e alto de neuroticismo»), ora explosiva («rigidez cognitiva», «hiper-reactividade»), podendo atingir níveis de perigosidade («discurso de claro colorido persecutório») (20)». 6.16. Para o caso, pois que envolve uma «acção cometida em estado de afecto», interessará sobremaneira surpreender o modo de «funcionamento afectivo» do arguido, que - como resulta do exame psicológico de fls. 212/213 - «apresenta um perfil de personalidade caracterizado por um nível baixo de extroversão e alto de neuroticismo, facto esse operacionalizado numa labilidade emocional e numa hiper-reactividade, associado a uma postura basicamente pessimista e desconfiada em relação ao seu contexto vivencial». E, bem assim, a sua «caracteriologia», em que sobressai uma «ressonância íntima do tipo coarctativo, caracterizado por um certo amortecimento afectivo, associado a uma acentuada estereotipia do pensamento (basicamente concreto)». 6.17. «A situação de dependência económica dos familiares chegados» - que o arguido, de algum modo, fomentava, com os obstáculos que colocava à sua «autonomização» - «reforçava o sentimento de autoridade do arguido perante eles e, por parte destes, designadamente da mulher e filhas, um sentimento de dependência sem alternativa». 6.18. A prepotência do arguido (que, apavorado pelos «universos culturais» que envolviam e «ameaçavam» os filhos, se esforçava, «como forma de assegurar a manutenção das relações de dominação instituídas» (21), por lhes impor, com os «capitais» ao seu dispor (22), os seus «sistemas simbólicos próprios», «desvalorizando», ao mesmo tempo, «os universos culturais» envolventes), associada ao «medo» que os filhos e a mulher lhe ganharam, «habituou-o a que ninguém questionasse a sua autoridade». 6.19. Como, porém, este estado de coisas - na sua dialéctica de contrários (23) - não podia eternizar-se, conjugaram-se, em princípio do ano 2000, uns quantos factores que, pondo em causa a sua subsistência, descontrolou o arguido e, numa extrema manifestação da sua autoridade ferida, o levou a disparar sobre o próprio filho. Desde logo, a «descoberta» (real ou imaginária) (24) de que este engravidara a irmã mais velha, débil mental, e de que a mulher - às suas ocultas - a levara, para encobrir o incesto, a abortar. Depois, o facto de o filho, de 17 anos, «ter abandonado o trabalho com os pais, para se empregar num talho, no mercado de Braga» e «gozado férias». Em terceiro lugar, o facto de, «no dia anterior aos factos, um sábado, o filho se ter deslocado ao casamento de um amigo, chegando a casa perto da meia noite». Em quarto lugar, o facto de a mulher e as filhas, no dia seguinte, se terem solidarizado com o filho e irmão, saindo de casa à hora a que o arguido pretendia trancar a porta de entrada, assim lhe boicotando, nessa noite, o seu hábito (25) de há muito anos de «trancar as portas às 21:00». Em quinto lugar, a «descoberta», no quarto de uma das filhas, de um telemóvel, cuja presença a sua paranóia representou como cedência a «universos culturais» hostis e cujos ruídos característicos, perturbando-lhe o sono (26), o levaram a «apreendê-lo». Logo a seguir, o conflito tido com a filha, que, pondo em causa a sua «autoridade», lhe exigiu a devolução do telemóvel (que nem seria dela, mas emprestado) e o levou (de posse da arma de defesa que o acompanhava de noite e de dia e que, na ocasião, empunhava), para a reiterar, a espezinhá-lo diante dela. Enfim, o aparecimento, em defesa da irmã, do filho rebelde (o tal que «engravidara» a irmã; que enjeitara o trabalho que o pai lhe proporcionara; que pela segunda vez, em dias seguidos, se permitira chegar a casa a desoras; que, com a sua chegada tardia, mobilizara contra o pai a mãe e as irmãs; e que, por último, acorrera logo, ao chegar a casa, em defesa da irmã). 6.20. A violenta reacção do arguido radicará, pois, não só na sua psicopatia (a tal «perturbação paranóide da personalidade, que, condicionando a percepção e a interiorização funcional da realidade afectivo/relacional, se operacionaliza numa postura vivencial ambivalente, ora coarctada, ora explosiva, comprometendo o seu potencial adaptativo») como também nesta sua inadaptação sociopática (decorrente de «uma falha grave na aprendizagem da tolerância, das relações e do amor») (27). «Os homens nesta famílias representam a estrutura patriarcal da sociedade. Não posso falar de uma sociedade assim e fazer dos homens desta famílias puros, inocentes e bons. Eles são os polícias da sociedade dentro da família. Representam todos os tabus e medos e regras a que as mulheres devem obedecer. A violência doméstica não acontece geralmente porque o homem é mau, acontece porque ele foi criado para tratar uma mulher assim» (Dorit Rabinyan, escritora israelo-afegã, Público/Mil Folhas, 27Abr02).. 6.21. O que levou o arguido, enfim, a superar, em relação ao filho, as contra-motivações ético-sociais decorrentes da sua proximidade biológica e familiar, não foi, pois, um «especial conteúdo de culpa». Com efeito, tal superação, se bem que implicando uma «agravação (gradual/quantitativa) do conteúdo do ilícito», não suportará uma especial «agravação da culpa», pois que não foi ao nível da perversidade moral ou da corrupção da alma (mas da «perigosidade psicopática e/ou sociopática) que o arguido documentou, com essa superação, «qualidades de personalidade do agente especialmente desvaliosas»: «Dada a rigidez cognitiva revelada e o grau de impulsividade poder-se-á concluir estarmos perante um indivíduo com certo grau de perigosidade» (conclusões do exame mental de fls. 211). 6.22. E, como já se viu, não é um juízo de perigosidade que deve formular-se para qualificar o homicídio. É verdade que «a qualificação de muitos crimes disfarça sob o discurso da maior ilicitude razões essencialmente preventivas». Mas, na qualificação do homicídio, «a lei usa uma disjuntiva (censurabilidade ou perversidade) incompatível com a articulação de culpa e prevenção nos termos em que nosso direito penal as aceita, que são de acumulação e não de disjunção». «Coerente com o ser um direito penal do facto, o nosso Direito não se enreda pela ideia de perigosidade e utiliza o princípio da culpa na construção do homicídio agravado» (29). 6.23. Enfim, e uma vez que «um tipo de culpa e de medida da pena não se aplica, ainda que o agente realize a circunstâncias qualificadora, sempre que o comportamento não revelar censurabilidade ou perversidade agravadas» (Maria Margarida Silva Pereira, ob. e loc. cits.), é de concluir - correspondendo, aliás, ao apelo da melhor doutrina para «um uso moderado e criterioso da qualificação, impeditivo da multiplicação ad nauseam das hipóteses respectivas» (Comentário, I, 26) - que a conduta do arguido integra, simplesmente, um crime de homicídio (não qualificado) p. p. art. 131.º do CP. 7. A PENA «Sem prescindir, o tribunal calculou exageradamente a dosimetria penal a aplicar ao arguido, negligenciando as condições pessoais e sociais do ora recorrente. A interpretação correcta obrigava à ponderação pelo tribunal do circunstancialismo exposto, de modo à aplicação da pena mínima aplicável ao ilícito em questão, violando desta forma o preceituado nos art.s 70° e 71° do C. Penal» 7.1. Ante a «realização dos elementos constitutivos do tipo orientador», resulta do facto, apesar de se não verificar concomitantemente o correspondente «tipo de culpa», «uma imagem global agravada». 7.2. A penalização do facto há-de, porém, procurar e achar-se, na ausência do tal «especial conteúdo de culpa» (e, até, por força do princípio de que «em caso algum a pena pode ultrapassar a medida da culpa» - art. 40.2 do CP), no quadro punitivo traçado pelo art. 131.º do CP. 7.3. Mas, «não havendo uma secante entre a pena do art. 131.º e a do art. 132.º, mas uma necessária relação de complementaridade» («pois um "não tipo" - o art. 132.º - é por definição destituído de moldura penal própria»), a maior ilicitude decorrente da sua paternidade do arguido em relação à vítima e a perigosidade que ele, com o seu crime, revelou sugerem que o âmbito da busca da pena concreta se circunscreva ao espaço (de 12 e 16 anos de prisão) - «singularidade deste Código» - de «aplicação cumulativa de uma pena de média gravidade e de gravidade superior». 7.4. A pena - recorde-se «não serve "para dar vazão a sentimentos comunitários de castigo, repugnância e vingança social": é sabido que a satisfação destes sentimentos em nada auxilia (bem pelo contrário) a prevenção; e que, por outro lado, a penitenciária é lugar de todo em todo inadequado para os ter em conta» (Comentário, I, 46) 7.5. Tendo em conta, enfim, a culpa do agente (de algum modo, mitigada pela sua «deficiência mental ligeira» e pela «perturbação paranóide» da sua personalidade) (29) e as especiais exigências de prevenção (decorrentes, por um lado, do grau de ilicitude do crime e, por outro, da especial perigosidade do arguido), as consequências do crime no que a ele próprio respeita (pois que não pode esquecer-se que o arguido, matando-o embora, perdeu o seu filho mais novo e o seu único filho rapaz), as suas condições pessoais («Vivia para o trabalho, que prezava acima de tudo; dedicou-se também à construção civil, após regressar do estrangeiro; trabalhava como comerciante, explorando um supermercado, com a mulher e os filhos, e transaccionando cereais, o que fazia designadamente na feira de Braga, actividade a que se dedicava sozinho; fora do seu ambiente familiar, era conhecido como pessoa severa, mas trabalhadora; desenvolveu contactos com inúmeros comerciantes da cidade de Braga, seus fornecedores, com quem manteve boas relações») e a sua conduta anterior ao facto (despótica no âmbito familiar mas, a nível social e profissional, de inteira dedicação ao trabalho), a pena correspondente será de fixar, naquele espaço de «sobreposição relativa das penas do art. 131.º e do art. 132.º», em 15 (quinze) anos de prisão. 8. decisão 8.1. Tudo visto, o Supremo Tribunal de Justiça, concedendo parcial provimento ao recurso de 27Dez01 do cidadão A e revogando nessa parte os recorridos acórdãos de 30Mai e 5Dez01 da Vara Mista de Braga e da Relação do Porto, condena-o, como autor de um crime de homicídio p. p. art. 131.º do CP, na pena de 15 (quinze) anos de prisão. 8.2. O arguido/recorrente, porque decaiu em parte, pagará as custas do recurso, com 3 UCs de taxa de justiça e 1 UC de procuradoria. Lisboa 16 de maio de 2002. Carmona da Mota, Pereira Madeira, (c/ dúvidas quanto à desqualificação do homicídio e o efeito atenuativo da «perda» do filho pelo arguido) Simas Santos, Abranches Martins (c/ a declaração de que entende que, no caso de decisões que não sejam irrecorríveis proferidas pelas Relações, em recurso, podem ser apreciados por este STJ os vícios ps. no art. 410.2 do CPP se forem imputados autonomamente àquelas decisões e não às decisões de 1.ª instância, nomeadamente se tiver havido renovação da prova nos termos do art. 430.º do CPP; é o que se extrai do confronto entre os art.s 432.º e 434.º do CPP) -------------------------------------------- (1) Perventivamente preso desde 9ABR00. (2) os factos ( «Factos Não Provados Referentes à Acusação: Que, no desenvolvimento do desiderato de fechar a porta, se tenha gerado uma altercação entre o arguido e sua mulher. Que o arguido, na discussão tida no corredor de casa, prévia aos factos, tivesse ameaçado abater quem lhe fizesse frente, sem prejuízo de ter empunhado pistola. Que D se tivesse dirigido ao quarto de seu pai, onde decorria a discussão com a sua irmã, para tentar ajudar esta a reaver o telemóvel. Que o arguido tenha disparado três tiros sobre o filho, para lá do que ficou demonstrado. Que o A. tenha agido de forma reflectida sobre os meios empregues na agressão a seu filho. Factos Não Provados Relativos à Contestação: Que o arguido sempre se orgulhasse dos cinco filhos que tinha. Que o arguido sentisse necessidade de incutir nos seus filhos, desde muito novos, noções de responsabilidade e incutir-lhes valores como trabalho, respeito, moralidade e horários para a família. Que o desejo de proporcionar uma vida desafogada à sua família, levasse o arguido a emigrar. Que o arguido tenha desejado, desde sempre, preservar os filhos das malhas da droga, vida muito comum entre os jovens daquela região, alguns amigos do filho. Que o arguido pautasse a sua vida profissional por princípios inflexíveis. Que uma das regras a cumprir em casa do arguido fosse a obrigatoriedade de todos estarem em casa às 21 horas. Que, no horário preestabelecido para todos estarem em casa com a porta fechada e o alarme ligado, D ainda não tivesse chegado e que as irmãs, numa atitude de protecção, também não tivessem subido para casa, conscientes da afronta que estavam a fazer ao seu pai que já as tinha mandado subir por várias vezes. Que o arguido, surpreso com a atitude das filhas e enervado com o desrespeito por instruções que sempre por aquelas fossem cumpridas, tivesse saído do seu quarto, onde tinha passado a maior parte do dia a descansar, para indagar o que se estava a passar. Que o arguido considerasse um telemóvel um capricho supérfluo e dispendioso. Que tivesse pegado nele para mais tarde averiguar de quem era, quem o tinha comprado e para quê. Que o arguido, devido à demora dos seus filhos em cumprir tão costumeira regra, já se encontrasse bastante irritado e enervado, estado este que se agravou consideravelmente quando a filha entrou no quarto exigindo-lhe a devolução do telemóvel. Que esta estivesse consciente de que aos olhos do pai ela o estava a desrespeitar, mas nem assim tivesse desistido de o interpelar agressivamente. Que, no momento em que C se baixou para apanhar o telemóvel, tivessem entrado no quarto os seus irmão, que, ao verem-na naquela posição, aos pés do pai, se lançaram em sua ajuda, agarrando o arguido. Que nunca o arguido tivesse tentado calcar o telemóvel para desta forma o danificar. Que, no quarto onde tudo se passou, o arguido e sua filha dificilmente conseguissem movimentar-se agilmente. Que os filhos do arguido se amontoassem à volta do seu pai para ajudar a irmã. Que o arguido tivesse visto, de repente, os seus movimentos limitados enquanto os seus filhos o rodeavam agarrando-lhe as pernas. Que a sua aflição tivesse sido enorme e o seu estado de nervos também. Que só nessa altura o arguido se tivesse lembrado de que trazia no bolso das calças a pistola, que, num movimento reflexo, empunhou. Que a sua intenção fosse disparar para o ar para, desta forma, afastar os filhos de si. Que nunca tivesse desejado ou previsto tão trágico desfecho com esta sua atitude. Que o facto de a pistola ser automática, aliado ao estado de nervos em que o arguido se encontrava, fizesse com que vários tiros fossem disparados. Que o arguido não soubesse que dois dos tiros por si desferidos tinham atingido mortalmente o filho. Que D tivesse caído prostrado no solo entre a cama e a janela, ou seja, do lado oposto à porta para onde o arguido se dirigiu logo após os disparos que pensava ter desferido para o ar. Que o arguido só tivesse sabido da morte do seu filho quando se dirigiu ao posto da GNR Que o arguido, perante a morte de seu filho, tivesse experimentado momentos de profunda dor, angústia e tristeza, que o acompanhará pelo resto da sua vida, assim como a saudade deixada pela sua ausência. Que o arguido, em particular, carregue para sempre a cruz de ter morto seu filho D. Que a demandante seja conhecedora do profundo amor que o arguido tem pelos filhos, sabendo a requerente que também o arguido sente a mesma dor, angústia, sofrimento e vergonha, sendo que a do ora arguido seja agravada pelo facto de ter sido ele quem acidentalmente matou o seu filho».) (3) À excepção do filho D, que ainda não chegara a casa. (4) «Ou «em jeito ameaçador» ou «com ar ameaçador», conforme as ameaças tenham sido verbais («tom»), gestuais («jeito») ou faciais («ar»). (5) Ou, melhor, «a arma que já exibira ameaçadoramente», pois que - conforme resulta dos «enunciados de facto não provados» - se não provou «que o arguido, na discussão tida no corredor de casa, prévia aos factos, tivesse ameaçado abater quem lhe fizesse frente». (6) «O arguido, ao aperceber-se da existência do telemóvel, pegou nele e meteu-o no seu bolso. Após isto regressou ao seu quarto. O arguido atirou o telemóvel para o chão. A filha do arguido, C, tentava, agachada, apanhar o telemóvel que o pai tinha atirado ao chão e pisado. O quarto onde tudo se passou não é grande, e a localização do arguido e da filha era entre a cómoda e os pés da cama» («Factos Provados Relativos à Contestação»). (7) «A direcção do trajecto do orifício torácico é anteroposterior e ligeiramente de cima para baixo; a direcção do trajecto do orifício abdominal é anteroposterior, ligeiramente de fora para dentro e praticamente na horizontal. Tais projécteis foram disparados a curta distância do alvo respectivo, até 50 cm» («Factos Provados Decorrentes da Audiência de Julgamento e Demais Prova dos Autos»). (8) Juízes Vieira da Cunha, Estelita de Mendonça e Costa Sobrinho. (9) «Aqui se recorda que o texto penal europeu mais próximo do Código português é o Código Penal suíço; este Código prevê o homicídio qualificado no respectivo art. 112º, contendo apenas uma cláusula genérica de maior censurabilidade ou perversidade do agente ("Si le délinquant a tué avec une absence particulière de scrupules, notamment si son mobile, son but ou sa façon d`agir est particulièrement odieux, il sera puni ... )». (10) Adv.ª Sónia Carneiro. (11) Desembargadores Teixeira Mendes, Dias Cabral, Isabel Pais Martins e Fonseca Guimarães. (12) P-G Adj. Pereira Bártolo. (13) Manuel Leal-Henriques e Manuel Simas Santos, Conselheiros do Supremo Tribunal de Justiça, «O Novo Código e os Novos Recursos», 2001, edição policopiada, ps. 9/10.) (14) Ou à Relação, se se entender admissível, nestes casos, a «opção». (15) «Salvo havendo ofensa de uma disposição expressa de lei que exija certa espécie de prova para a existência do facto ou que fixe a força de determinado meio de prova» (art. 722.2 do CPC). (16) Por se entender "anacrónica a qualificação do homicídio em função dos laços familiares" (Teresa Serra, Jornadas de Direito Criminal - CEJ, 1998,152), «uma proposta no sentido da revogação desta al. a) foi apresentada mas recusada na Comissão Revisora» (Actas, 1993, 190 ss.)). (17) Cfr. exame às faculdades mentais de fls. 209/211. (18) «Diz que sempre foi "muito religioso"» (cfr. relatório de exame mental de fls. 209). Ora, «por vezes», «os que mais invocam a religião, a tradição e a permanência são (...) os mais capazes de desconsiderar em absoluto o valor da vida e da individualidade alheia» (Inês Pedrosa, Expresso/Revista, 20Abr02).) (19) «Q.I. verbal: 63; Q.I. performance: 67; Q.I. global: 63». «Em termos estruturais revela dificuldades especificas, sobretudo quanto ao raciocínio lógico e quanto à abstracção» (cfr. relatório de exame psicológico de fls. 212). (20) «Acusa-os constantemente de traição, de o tentarem agredir fisicamente» (cfr. relatório de exame psicológico de fls. 212)». (21) Parafraseando Pierre Bourdieu. (22) «Culturais» (anatematizando as «culturas emergentes»), «económicos» (impedindo os filhos de se autonomizarem) e «sociais» (extremando, em relação a eles, a sua «autoridade» paternal). (23) Pois que - parafraseando, de novo, Pierre Bourdieu - o «campo» (esse «universo relativamente autónomo de relações específicas definido por uma lógica própria e um sistema de referências comum») «determina um "espaço dos possíveis", dentro do qual os agentes lutam pela afirmação e dominação». (24) «O que o aplicador tem de fazer é tão só partir da situação tal como ela foi representada pelo agente. E a partir dela perguntar se a situação, tal como foi representada, corresponde a um exemplo padrão ou a uma situação substancialmente análoga; e se, em caso afirmativo, se comprova uma especial censurabilidade ou perversidade do agente» (Comentário, I, 42). (25) Que, para lá da sua faceta «maníaca», tinha uma explicação «razoável»: o arguido, uma vez que o seu negócio no mercado o obrigava a levantar-se entre as 3 e as 4 horas da madrugada, tinha que se deitar cedo; a sua «psicose securitária» e a sua falta de confiança no cuidado dos filhos, porém, obrigavam-no a trancar-se antes de adormecer. (26) «Há 3 anos, esteve internado por provável quadro depressivo em clínica privada. Desde aí que se descreve como mais irritável. Diz que actualmente dorme mal, lhe incomodam os ruídos e anda triste» (cfr. exame médico-legal de fls. 209). (27) «Das duas, uma: ou a pessoa é violenta porque tem uma doença neurológica ou psiquiátrica, sente-se ameaçada e, num gesto de defesa, no seu sofrimento, pode agredir os outros; ou então teve, de facto, uma falha grave na aprendizagem da tolerância, das relações, do amor, e não internalizou o prazer de dar e receber. Portanto, vai passar a vida na vingança, a vingar-se dos outros, e acaba por ser ele próprio uma das vítimas. Transportamos dentro de nós a vida e a morte, o bem o mal, deus e o diabo. É como se fossem as duas faces da mesma moeda, e compete-nos a nós ser capazes de fazer o equilíbrio das duas coisas. É preciso que sejamos capazes de controlar as forças imensas que temos dentro de nós e utilizá-las para o bem. A isto chamamos sublimação, que é transformar energia que em si própria pode ser destruidora, em energia positiva» (José Carlos Dias Cordeiro, loc. cit.). (28) Maria Margarida Silva Pereira, Textos, Direito penal II, Os homicídios, vol. II, AAFDL, 1998). (29) Se bem que «a imputabilidade diminuída não deva necessariamente conduzir a uma pena atenuada, podendo haver casos em que a diminuição da imputabilidade conduza à não-atenuação ou até mesmo à agravação da pena; isso sucederá quando as qualidades pessoais do agente que fundamentam o facto se revelem, apesar da diminuição da imputabilidade, particularmente desvaliosas censuráveis, v. g., em casos como os da brutalidade e da crueldade que acompanham muitos factos dos psicopatas insensíveis, os da inconstância dos lábeis ou os da pertinácia do fanáticos» (Figueiredo Dias, Jornadas de Direito Criminal de 1982, Centro de Estudos Judiciários, Fase I, p. 77). |