Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
03A2493
Nº Convencional: JSTJ000
Relator: MOREIRA CAMILO
Descritores: PROCESSO DE JURISDIÇÃO VOLUNTÁRIA
CASA DA MORADA DE FAMÍLIA
ACORDO
ALTERAÇÃO
DIVÓRCIO POR MÚTUO CONSENTIMENTO
Nº do Documento: SJ200309300024931
Data do Acordão: 09/30/2003
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: T REL GUIMARÃES
Processo no Tribunal Recurso: 1439/02
Data: 02/19/2003
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA.
Sumário : 1ª - A verificação do dolo pressupõe a existência de um erro, mas erro determinado intencionalmente por alguém, a fim de obter do declarante um compromisso ou uma renúncia. O dolo é, portanto, a provocação de um erro.
2ª - A sugestão ou artifício a que alude o nº 1 do artigo 253º do CC há-de traduzir-se em quaisquer expedientes ou maquinações tendentes a desfigurar a verdade (manobras dolosas) - e que realmente a desfiguram (de outro modo não haveria erro) -, quer criando aparências ilusórias, quer destruindo ou sonegando quaisquer elementos que pudessem instruir o enganado. Deve tratar-se, portanto, de qualquer processo enganatório. Podem ser simples palavras contendo afirmações sabidamente inexactas, ou tendentes essas palavras a desviar a atenção do enganado de qualquer pista que poderia elucidá-lo; e podem ser obras (factos), adrede realizadas para provocar ou manter o engano.
3ª - A dissimulação, por seu lado, também aí referida, consiste no simples silêncio perante o erro em que versa o outro contraente. É um simples dolo de consciência.
4ª - O dolo, como vício da vontade, consiste na noção de erro, em qualquer das suas modalidades, isto é, quer se refira à pessoa do declaratário, ao objecto do negócio (artigo 251º) ou aos motivos não referentes à pessoa do declaratário nem ao objecto do negócio (artigo 252º), desde que provocado, e traduz-se sempre numa representação inexacta ou na ignorância de uma qualquer circunstância de facto ou de direito que foi determinante na decisão de efectuar o negócio, em termos tais que, se o declarante tivesse sido esclarecido ou o tivesse conhecido, não teria realizado o negócio ou não o teria realizado nos mesmos termos.
Decisão Texto Integral: Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:

I - Em acção com processo ordinário intentada nos Juízos Cíveis da Comarca de Viana do Castelo contra "A- Veículos e Peças, Lda", e "B, Veículos e Peças, Lda", depois, a processar-se na Vara Mista de Braga, C pediu que, com a procedência da acção, seja anulada, por dolo, o contrato de compra e venda celebrado entre si e a 2ª Ré, relativo ao veículo LU, e sejam as Rés condenadas a restituir ao Autor a quantia de 3.467.500$00, referente ao preço por ele pago na aquisição do veículo, e a indemnizá-lo por perdas e danos que se vierem a liquidar em execução de sentença, atenta a anulação do contrato.

Para fundamentar a sua pretensão, alega, em síntese, que a 2ª Ré é concessionária da 1ª Ré na cidade de Braga, que comprou, no dia 24.09.1998, àquela o veículo de matrícula LU, pelo preço de 3.317.500$00, como novo, mas que detectou defeitos próprios de um carro já sinistrado - que denunciou -, que a viatura adquirida já dispunha de dois registos anteriores ao seu, que os vícios da viatura eram do conhecimento da 2ª Ré, que era elemento essencial para a decisão do Autor da compra do veículo em causa que este fosse novo e que jamais tivesse sofrido qualquer dano, pelo que as Rés, ao esconderem os danos já sofridos pela viatura e que esta já não era nova, agiram dolosamente, induzindo em erro o Autor sobre as qualidades do objecto a comprar, sendo, por isso, anulável o negócio e sendo a conduta das Rés fonte de prejuízos para o Autor.

Nas respectivas contestações, as Rés pugnaram pela improcedência da acção.

A final, foi proferida sentença, segundo a qual a acção foi julgada improcedente, com a consequente absolvição das Rés dos pedidos contra elas formulados, decisão que foi confirmada por acórdão proferido no Tribunal da Relação de Guimarães.

Ainda inconformado, veio o Autor interpor o presente recurso de revista, o qual foi admitido.

O recorrente apresentou as suas alegações, formulando as seguintes conclusões:
1ª - Está provado que as Rés ocultaram ao autor, ora recorrente, que a viatura pretendida comprar como nova havia sofrido um acidente no trajecto de Lisboa para Braga.
2ª - Está provado que desse acidente se partiu o pára-brisas e que por isso mesmo veio a ser substituído.
3ª - Está ainda provado que a viatura apresentava no "capot" tonalidade diferente da restante pintura.
4ª - Foi ainda provado que a viatura tinha infiltração de água na mala, dificuldade na abertura da mesma, ruídos do limpa pára-brisas dianteiro.
5ª - Está provado que havia deficiências no revestimento interior do tecto da viatura, que atestam a sua substituição.
6ª - Provado que havia danos na blindagem plástica da zona do pára-brisas.
7ª - Provado que, mesmo depois da reparação, a pintura apresenta uma aparência diferente.
8ª - Foi ainda provado que o veículo em causa era um carro reparado.
9ª - Ficou ainda provado que os factos supra referidos são próprios de um carro sinistrado e reparado.
10ª - Ora, quem omite tais factos está dolosamente a faltar à verdade, omitindo conscientemente os vícios sofridos pelo carro alienado.
11ª - Esta actuação dolosa e conjugada das recorridas é contrária ao seu dever de actuação pré-negocial, contrária à boa fé que deve estar presente nos negócios.
12ª - O recorrente pautou a sua actuação do rigoroso cumprimento da boa fé, que viu defraudada.
13ª - Tem, por isso, o recorrente, porque preenchidos os requisitos do dolo, direito à anulação do negócio.
14ª - A referida nulidade confere também o direito a ser indemnizado pelos danos que não teria sofrido se não tivesse sido enganado como foi.
15º - Impunha-se, por isso, face à matéria provada, a aplicação das regras de direito conducentes à anulação do negócio - artºs 227º, 253º e 254º, todos do C.C..

Pede, assim, que se altere neste sentido a decisão recorrida, julgando-se totalmente procedente a acção.

Contra-alegou a recorrida "A- Veículos e Peças, Lda", pedindo que se negue provimento ao recurso.

Colhidos os vistos, cumpre apreciar e decidir.

II - Tendo em conta a matéria de facto dada inicialmente como provada, as respostas dadas à base instrutória e as alterações introduzidas à matéria de facto pela Relação, consideram-se provados os seguintes factos:
a) A "A-Veículos e Peças, Lda", importa e comercializa os veículos e acessórios da marca ....r, sendo a representante da .... em Portugal (A)).
b) No exercício dessa sua actividade, efectua a venda e dá assistência aos produtos daquela marca, através dos concessionários que tem em várias localidades do território nacional (B)).
c) A segunda Ré é concessionária da ... na cidade de Braga, onde comercializa e dá assistência técnica às viaturas da marca (C)).
d) Esta assistência é prestada em oficinas cujo funcionamento está sob as ordens e controlo da gerência daquela firma (D)).
e) Das condições da venda das viaturas novas daquela marca (tal como de qualquer outra) faz parte a prestação de garantia contra deficiências que impeçam o normal funcionamento da viatura ou de algum dos seus componentes, sendo de um ano o prazo de validade desta garantia, a contar da respectiva venda ao primeiro proprietário e abrange a reparação e substituição dos componentes considerados defeituosos (E)).
f) O Autor comprou na "B, Lda", em 24 de Setembro de 1998, a viatura ligeira de passageiros marca Rover Tourer 1.6, matrícula LU, sendo certo que o veículo foi comprado com intervenção do D, que o vendeu posteriormente ao Autor com concessão de um financiamento pela "E - Sociedade Financeira de Aquisições a Crédito, Lda" (1º e 2º).
g) Seis dias após a compra, o Autor reclamou pessoalmente junto da segunda Ré defeitos encontrados no carro, designadamente, pintura do "capot" (tonalidade diferente da restante pintura), infiltração de água na mala, porta da mala com significativo desalinho, dificuldade na abertura da mesma porta com utilização da chave e ruídos dos limpa-vidros dianteiros (3º).
h) A Ré B reconheceu os defeitos supra referidos em g) e logo nesse mesmo dia mandou proceder às reparações (4º).
i) O trabalho foi executado nas oficinas da segunda Ré e, pela sua execução, nada foi debitado ao Autor (5º).
j) O Autor continuou a utilizar o Rover nas suas deslocações como fazia (6º).
k) Após, o Autor encontrou bocadinhos de vidro em diversas partes do carro e partes do revestimento do interior do tecto com acabamentos muito deficientes (7º).
l) E em pormenor observou também danos nos revestimentos interiores da pintura, junto do vidro lateral traseiro do lado do condutor, sobre a porta do condutor e junto do pára-brisas (8º).
m) E encontrou danos na blindagem plástica da zona onde funcionam os pára-brisas dianteiros (9º).
n) A pintura do "capot" apresenta uma aparência diferente (10º).
o) E a alcatifa que reveste o fundo do lado esquerdo sob o banco do condutor estava enfolada (11º).
p) O responsável da área pós-venda da B, Eng. F, entrou em contacto com o Autor, por instruções da gerência, dizendo-lhe para trazer o veículo, a fim de serem eliminados os defeitos que o veículo apresentasse na altura (13º).
q) Em 17.11.1998, o Autor enviou à Ré B, com cópia à A Portugal, a carta que se encontra junta por cópia a folhas 16 e 17, na qual apontava diversos defeitos no veículo LU, parte dos quais haviam sido reparados pela referida Ré, mas outra parte persistindo, e que detectou novos defeitos na viatura, os quais enumera, dizendo que, embora a B se tenha prontificado a eliminar esses defeitos e a viatura seja nova, face à quantidade e gravidade dos mesmos, entendia dar sem efeito a reparação da mesma e passava a exigir a substituição da viatura em causa por uma nova com as mesmas características, ou a anulação do contrato de venda, ou a renegociação da venda com indemnização do abuso de confiança verificado e dos prejuízos causados (14º).
r) E entendeu também o Autor dar conhecimento à A Portugal, primeira Ré, para solucionar e intervir em semelhante situação (15º).
s) A que a A respondeu nos termos constantes da carta junta a folhas 18, na qual dizia que era ao concessionário B que o Autor se devia dirigir, o qual era directamente responsável pela assistência às viaturas que vendia e que o Autor aguardasse um contacto da mesma B, a quem tinha remetido uma cópia da carta do Autor (16º).
t) O Autor, quando se deslocou à segunda Ré, fê-lo com um único e exclusivo propósito de comprar uma viatura nova (19º e 23º).
u) Os factos supra referidos são próprios de um carro sinistrado e reparado (20º).
v) O carro em questão já tinha sofrido danos (21º e 22º).
w) Era elemento essencial para a decisão do Autor da compra do veículo em causa que este fosse novo e que jamais tivesse sofrido qualquer dano(24º).
x) O Autor havia comprado a viatura para dela desfrutar sem qualquer limite, querendo utilizá-lo nas suas deslocações, no acompanhamento dos filhos e nos passeios de fim de semana com a família (25º e 26º).
y) Desde 10 de Dezembro de 1998 que o Autor colocou a viatura à disposição das Rés, e não mais o utilizou, a qual contava cerca de 5000 Km, fazendo-a deslocar para uma sua propriedade sita no lugar da Igreja, freguesia de Mato, da comarca de Ponte de Lima, já que no local onde tem a sua residência permanente não dispõe de garagem e a viatura em causa teria de ficar ao tempo (27º, 30º e 31º).
z) Nessa altura, o Autor deslocava-se com frequência a Braga, Porto e Lisboa, pois estava a preparar o seu doutoramento (29º).
aa) Na deslocação entre o armazém das viaturas novas da ... em Lisboa e as instalações do concessionário B, em Braga, o pára-brisas do veículo partiu-se (32º).
bb) O qual foi substituído pela Ré B, Lda (33º).
cc) Os dois registos que a viatura apresenta são um a favor da Ré A Portugal, e outro a favor da titular da reserva de propriedade, por o Autor ter recorrido ao crédito para a sua aquisição (34º).
dd) O Autor comprou uma viatura nova, onde apenas tinha sido substituído o pára-brisas (35º).
ee) O vendedor da Ré B, após a reclamação do Autor (a referida em g)), marcou de imediato uma vistoria ao veículo, a efectuar nas instalações da B (36º).
ff) Após atenta vistoria ao veículo, todos os potenciais defeitos apontados foram eliminados (37º).
gg) Os defeitos invocados pelo Autor não são impeditivos do uso normal da viatura pelo Autor(39º).

III - 1. No acórdão recorrido, entendeu-se não ter ficado demonstrado que tenha havido da parte das Rés qualquer conduta dolosa.

Pode aí ler-se:

"Alega o Autor, por um lado que, quando se deslocou à segunda Ré, fê-lo com um único e exclusivo propósito de comprar uma viatura nova, sendo elemento essencial para a decisão do Autor da compra do veículo em causa que este fosse novo e que jamais tivesse sofrido qualquer dano e por outro que, só em 11/02/99 tomou conhecimento de que a viatura adquirida como nova já dispunha de dois registos anteriores ao seu.

Sendo, pois, estas as circunstâncias de facto cuja representação inexacta ou ignorância, na tese do Apelante, foi determinante na sua decisão de efectuar o negócio, em termos tais que, se ele tivesse sido esclarecido ou o tivesse conhecido, não teria realizado o negócio ou não o teria realizado nos mesmos termos, a verdade é que se provou que a viatura era efectivamente nova, a que apenas tinha sido substituído o pára-brisas, pois que na deslocação entre o armazém das viaturas novas da ... em Lisboa e as instalações do concessionário B, em Braga, o pára-brisas do veículo partiu-se e foi substituído por esta.
Do mesmo modo, também se provou que os dois registos que a viatura apresenta são, um a favor da Ré A (por lapso, escreveu-se ... ....) e outro a favor da titular da reserva de propriedade, por o Autor ter recorrido ao crédito para a sua aquisição, pois o veículo foi comprado com intervenção do D que o vendeu posteriormente ao Autor com concessão de um financiamento pela "E - Sociedade Financeira de Aquisições a Crédito, Ldª", o que, por serem factos pessoais, o Autor não podia desconhecer.
Finalmente, dir-se-á ainda que se não vislumbra que qualquer das Rés tenha usado de sugestão ou artifício com a intenção ou consciência de induzir ou manter em erro o Apelante, bem como a dissimulação do seu erro, ao invés, sempre a 2ª Ré se dispôs a colmatar qualquer deficiência que o veículo apresentasse, ao abrigo, de resto, da garantia contratualmente por si assumida".

2. Para a sua pretensão de anular o negócio, o Autor alega que a viatura que comprou não é nova, tendo mesmo já sofrido danos, e que tem já dois registos anteriores ao seu registo de propriedade, o que foi ocultado pelas Rés, agindo estas, assim, com dolo.

Invoca o disposto no artigo 254º, nº 1, do Código Civil.

Segundo o nº 1 do artigo 253º do citado diploma, "Entende-se por dolo qualquer sugestão ou artifício que alguém empregue com a intenção ou consciência de induzir ou manter em erro o autor da declaração, bem como a dissimulação, pelo declaratário ou terceiro, do erro do declarante".

"O declarante cuja vontade tenha sido determinada por dolo pode anular a declaração" - artigo 254º, nº 1, acima referido.

Ora, como diz o Conselheiro Jacinto F. Rodrigues Bastos ( in "Notas ao Código Civil", vol. I, 1987, pág. 342), a verificação do dolo pressupõe a


existência de um erro, mas erro determinado intencionalmente por alguém, a fim de obter do declarante um compromisso ou uma renúncia. O dolo é, portanto, a provocação de um erro.

Refere o Prof. Manuel Andrade (in "Teoria Geral da Relação Jurídica", Vol. II, 1992, pág. 256) - citado no acórdão recorrido, quando aí se refere que o segundo dos elementos do dolo reside no emprego de qualquer sugestão ou artifício, usado com a intenção ou consciência de induzir ou manter em erro o autor da declaração - que a sugestão ou artifício há-de traduzir-se em quaisquer expedientes ou maquinações tendentes a desfigurar a verdade (manobras dolosas) - e que realmente a desfiguram (de outro modo não haveria erro) -, quer criando aparências ilusórias (suggestio falsi; obrepção), quer destruindo ou sonegando quaisquer elementos que pudessem instruir o enganado (suppressio veri; subrepção). Deve tratar-se, portanto, de qualquer processo enganatório. Podem ser simples palavras contendo afirmações sabidamente inexactas (allegatio falsi; mentira), ou tendentes essas palavras a desviar a atenção do enganado de qualquer pista que poderia elucidá-lo; e podem ser obras (factos) adrede realizadas para provocar ou manter o engano. A dissimulação, por seu lado, consiste no simples silêncio perante o erro em que versa o outro contraente. É um simples dolo de consciência.

Ainda segundo o Conselheiro Rodrigues Bastos (obra citada, pág. 343), são requisitos do dolo: a) uma actividade enganatória, isto é, um conjunto de sugestões e artifícios; b) que ela seja desenvolvida pelo declaratário ou por terceiro; c) que haja nexo causal entre o engano assim ocasionado e a declaração; d) a intenção de enganar, por parte do causante do dolo, o que pressupõe a consciência que este tenha da falsidade da representação que a sua conduta produzirá na vítima; e) a convicção de que seja possível determinar, por meio daquela actividade enganatória, a vontade do declarante.

Temos, assim, que - e como se diz no acórdão recorrido - o primeiro dos elementos do conceito de dolo, como vício da vontade, consiste na noção de erro, em qualquer das suas modalidades, isto é, quer se refira à pessoa do declaratário, ao objecto do negócio (artigo 251º) ou aos motivos não referentes à pessoa do declaratário nem ao objecto do negócio (252º), desde que provocado, e traduz-se sempre numa representação inexacta ou na ignorância de uma qualquer circunstância de facto ou de direito que foi determinante na decisão de efectuar o negócio, em termos tais que, se o declarante tivesse sido esclarecido ou o tivesse
conhecido, não teria realizado o negócio ou não o teria realizado nos mesmos termos - Mota Pinto, in "Teoria Geral do Direito Civil", 3ª edição. Páginas 505 e 506.

3. Postos estes princípios, não podemos deixar de concluir pela inexistência de dolo por parte das Rés, aqui recorridas.

Na verdade, não se vislumbra da matéria de facto apurada que qualquer das Rés tenha usado de sugestão ou artifício com a intenção ou consciência de induzir ou manter em erro o apelante, bem como a dissimulação do seu erro, tendo antes ficado demonstrado, não só que a viatura era nova - com a devida justificação dos dois registos já existentes -, onde apenas tinha sido substituído o pára-brisas, o qual se havia partido na deslocação entre o armazém das viaturas novas da ... em Lisboa e as instalações da concessionária B, em Braga, como que a 2ª Ré sempre se disponibilizou para reparar qualquer deficiência que o veículo apresentasse, ao abrigo, de resto, da garantia resultante das condições da sua venda.

Aliás, havendo cumprimento imperfeito da obrigação do vendedor, nomeadamente devido a defeito da coisa vendida, o comprador tem o direito de exigir do vendedor a reparação ou, se for necessário e a coisa tiver natureza fungível, a substituição dela - artigo 914º, 1ª parte, do Código Civil. A lei reconhece, assim, a acção de cumprimento, para reparação ou substituição da coisa defeituosa, facultando ao comprador a obtenção da condenação do vendedor na "realização da originária prestação devida", independentemente da verificação de prejuízo com o acto ilícito do direito de crédito do comprador (cfr. Calvão da Silva, in "Compra e Venda de Coisas Defeituosas", pág. 62).

Nos mesmos termos se passam as coisas quando o vendedor esteja obrigado a garantir o bom funcionamento da coisa vendida, mas, agora, independentemente da existência de culpa do vendedor, ainda que presumida, como previsto na 2ª parte do citado artigo 914º (cfr. artigo 921º, nº 1, do mesmo diploma).

Mediante a garantia de bom funcionamento, o vendedor assegura, durante certo período de tempo, o bom funcionamento e as boas condições de utilização da coisa, em termos de uso normal, assumindo a responsabilidade pela sanação das eventuais deficiências de materiais ou componentes, avarias e deficiências de funcionamento. Numa palavra, o vendedor assume "a garantia de um resultado" (pág. 63 da obra e do Autor citados).

Cumulável com o direito à reparação ou substituição da coisa defeituosa, seja nos termos gerais, seja por via da obrigação da garantia a que alude o indicado artigo 921º, e paralelamente com ele, pode existir o direito a indemnização pelos danos decorrentes do mau funcionamento, ou seja, nas palavras do Autor citado, "pelos prejuízos derivados do cumprimento inexacto da prestação garantida (prometida) ou, se se preferir, do atraso com que o comprador recebeu a coisa em perfeito funcionamento" (local citado, pág. 65, e "Responsabilidade Civil do Produtor", pág. 207).

4. Infere-se, assim, do exposto que não colhem as conclusões do recorrente, tendentes ao provimento do recurso.

IV - Podem, pois, extrair-se as seguintes conclusões:

1ª - A verificação do dolo pressupõe a existência de um erro, mas erro determinado intencionalmente por alguém, a fim de obter do declarante um compromisso ou uma renúncia. O dolo é, portanto, a provocação de um erro.
2ª - A sugestão ou artifício a que alude o nº 1 do artigo 253º do CC há-de traduzir-se em quaisquer expedientes ou maquinações tendentes a desfigurar a verdade (manobras dolosas) - e que realmente a desfiguram (de outro modo não haveria erro) -, quer criando aparências ilusórias, quer destruindo ou sonegando quaisquer elementos que pudessem instruir o enganado. Deve tratar-se, portanto, de qualquer processo enganatório. Podem ser simples palavras contendo afirmações sabidamente inexactas, ou tendentes essas palavras a desviar a atenção do enganado de qualquer pista que poderia elucidá-lo; e podem ser obras (factos), adrede realizadas para provocar ou manter o engano.
3ª - A dissimulação, por seu lado, também aí referida, consiste no simples silêncio perante o erro em que versa o outro contraente. É um simples dolo de consciência.
4ª - O dolo, como vício da vontade, consiste na noção de erro, em qualquer das suas modalidades, isto é, quer se refira à pessoa do declaratário, ao objecto do negócio (artigo 251º) ou aos motivos não referentes à pessoa do declaratário nem ao objecto do negócio (artigo 252º), desde que provocado, e traduz-se sempre numa representação inexacta ou na ignorância de uma qualquer circunstância de facto ou de direito que foi determinante na decisão de efectuar o negócio, em termos tais que, se o declarante tivesse sido esclarecido ou o tivesse conhecido, não teria realizado o negócio ou não o teria realizado nos mesmos termos.

V - Nos termos expostos, acorda-se em negar a revista, com custas pelo recorrente.

Lisboa, 30 de Setembro de 2003
Moreira Camilo
Lopes Pinto
Pinto Monteiro