Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça | |||
Processo: |
| ||
Nº Convencional: | JSTJ000 | ||
Relator: | LUCAS COELHO | ||
Descritores: | INCUMPRIMENTO DO CONTRATO EXCEPÇÃO DE NÃO CUMPRIMENTO ÓNUS DA PROVA RESOLUÇÃO DO CONTRATO DECLARAÇÃO RECEPTÍCIA AMPLIAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO CONTRATO DE PRESTAÇÃO DE SERVIÇOS DE ARQUITECTURA | ||
![]() | ![]() | ||
Nº do Documento: | SJ200502100040432 | ||
Data do Acordão: | 02/10/2005 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Tribunal Recurso: | T REL LISBOA | ||
Processo no Tribunal Recurso: | 6086/02 | ||
Data: | 03/09/2004 | ||
Texto Integral: | S | ||
Privacidade: | 1 | ||
![]() | ![]() | ||
Meio Processual: | REVISTA. | ||
Decisão: | NEGADA A REVISTA. | ||
![]() | ![]() | ||
Sumário : | I - O negócio jurídico celebrado entre o Estado e a «equipa projectista» composta pelos arquitectos e engenheiros autores, tendente à elaboração remunerada do projecto de adaptação do edifício de instalação dos Serviços da Direcção-Geral dos Recursos e Aproveitamentos Hidráulicos, em Coimbra, deve ser qualificado como contrato de direito privado de prestação de serviço, no sentido do artigo 1154 do Código Civil, na espécie, isolada no direito comparado, sob o nomen juris de contrato de arquitectura, ou de engenharia, que tem por objecto, justamente, um estudo ou projecto de arquitecto ou engenheiro (resultado de trabalho intelectual), mediante retribuição, por isso considerado atipicamente como «contrato de obra», equivalente ao contrato de empreitada do nosso ordenamento; II - Trata-se, pois, de um contrato bilateral, posto que do mesmo resultam obrigações para ambas as partes: para os autores, a obrigação de elaboração do projecto de adaptação do edifício nas condições detalhadas nas cláusulas contratuais; para o Estado o pagamento do preço, segundo o sistema de liquidação parcelada dos honorários em função da progressão do projecto contratualmente previsto; III - Demandado o Estado por inadimplemento, devido a recusa definitiva por parte deste, da obrigação de pagamento de uma prestação do preço relativa a determinada fase do projecto, e contrapondo o réu por via de excepção o não cumprimento pelos projectistas de certas especificações técnicas relativas a essa fase, compete aos autores, como elemento constitutivo do seu direito de crédito à prestação pecuniária aludida, o ónus probatório do incumprimento desta (artigo 342, n. 1, do Código Civil), incumbindo, por seu turno, ao Estado, na qualidade de devedor da mesma prestação, a prova dos factos impeditivos ou extintivos desse direito, integradores da "exceptio non adimpleti contratus" (n.º 2 do citado artigo); IV - Devendo a resolução do contrato ser declarada à contraparte (artigo 436, n. 1), a respectiva declaração tem natureza receptícia, não se tornando em princípio eficaz, conforme a teoria da recepção, consagrada em primeira linha no artigo 224, se não chegar ao poder do destinatário; V - O uso da faculdade de ampliação da decisão de facto, ao abrigo do n. 3 do artigo 729 do Código de Pocesso Civil, é inviável desde que não estejam alegados factos susceptíveis de constituir objecto de novos quesitos. | ||
![]() | ![]() | ||
Decisão Texto Integral: | Acordam no Supremo Tribunal de Justiça: I Os arquitectos A, e B, e os engenheiros C, e D, constituindo a «equipa projectista» da denominada Adaptação do Edifício para Instalação dos Serviços da Direcção-Geral dos Recursos e Aproveitamentos Hidráulicos, sito na Avenida Marginal em Coimbra, instauraram na actual 2.ª Vara Cível de Lisboa, em 24 de Novembro de 1993, contra o Estado Português, representado pelo Ministério Público, acção ordinária tendente a obter o pagamento de 2.800 contos a título de honorários ainda em dívida pela elaboração do respectivo projecto, a resolução do contrato n.º 197/RC entre as partes adrede celebrado, em 2 de Setembro de 1985, e a indemnização devida pela resolução, no montante contratual de 1.470.960$00, acrescendo os juros moratórios legais sobre a aludida prestação de honorários, desde Junho de 1990, liquidados em 1.459.068$00 até Novembro de 1993, e 43.702$00 relativos a despesas com a garantia bancária constituída, além do cancelamento desta, tudo no valor global de 5.773.730$50.Na contestação, além da defesa por impugnação, foram deduzidas a excepção de não cumprimento do contrato (cfr. os artigos 18 e segs. do articulado e as conclusões 15.ª e 21.ª da alegação da revista, infra, II, 3.15. e 3.21.), e a incompetência em razão da matéria, fundada na qualificação como contrato administrativo do negócio jurídico que integra a causa de pedir, com a consequente sujeição do litígio à jurisdição administrativa. Esta última excepção improcedeu no saneador, de que o Estado interpôs agravo com subida diferida. Por decesso dos autores arquitectos A, e B, foram habilitados os seus sucessores e os de uma sucessora do primeiro entretanto também falecida. Prosseguindo o processo os trâmites legais, veio a ser proferida sentença final, em 8 de Janeiro de 2002, julgando a acção totalmente procedente. O Estado apelou inconformado, e subindo apelação e agravo à Relação de Lisboa, esta negou provimento a ambos o recursos, confirmando o saneador e a sentença. Do acórdão neste sentido proferido, em 9 de Março de 2004, traz o demandado a presente revista, cujo objecto, deixando já de incluir o tema da competência em razão da matéria, consiste nuclearmente na questão de saber se deve ter-se como incumprido pelos autores o contrato de engenharia e arquitectura que integra a causa de pedir, de modo a justificar-se o não cumprimento, por parte do Estado, da prestação de honorários contratualmente acordada. II A Relação considerou assente a matéria de facto já dada como provada na 1.ª instância, para a qual, devendo aqui manter-se inalterada, desde já se remete nos termos do n.º 6 do artigo 713.º do Código de Processo Civil, sem prejuízo das alusões pertinentes.1. A partir dessa factualidade, considerando o direito aplicável, a sentença respondeu afirmativamente à questão que vem de se colocar, julgando, por conseguinte, a acção integralmente procedente, como se referiu no intróito. E a Relação de Lisboa, por seu turno, negou provimento à apelação, confirmando a sentença com diferenças de fundamentação. Interessa daí recortar os aspectos de primacial interesse. 1.1. A cláusula 17.ª do contrato, vertida na alínea F) da especificação, estipulava o seguinte sistema de pagamentos parcelares dos honorários dos autores, totalizando o quantitativo de 7.765.381$20: «- após o visto de Tribunal de Contas............................... 776.538$00 - com a aprovação do Programa Base .......................776.538$00 - Idem, idem do Estudo Prévio ............1.164.807$00 - Idem, idem do Projecto de Execução, 1.ª fase.............2.800.000$00 - Idem, idem do Projecto de Execução, 2.ª fase.............1.470.960$00 - Assistência Técnica..................................776.538$00» Neste quadro, os autores receberam, executados os trabalhos respectivos, as três primeiras prestações no montante de 2.717.883$00 [alínea G) da especificação], mas já não receberam a quarta, no montante de 2.800 contos, que o Estado se recusa a pagar-lhes. Com efeito, os autores elaboraram e apresentaram o Projecto de Execução, 1.ª fase, a que respeitava esta prestação, mas sobre essa versão recaíram objecções de carácter técnico constantes do memorial junto a fls. 38 e segs., respeitante a reunião na Direcção--Geral dos Edifícios e Monumentos Nacionais de 14 de Dezembro de 1989, com participação de um dos autores (cfr. a resposta ao quesito 8.º). Na sequência desta, os autores apresentaram uma 2. versão, em 15 de Maio de 1990, no departamento estadual competente, reformulando o Projecto de Execução, 1. fase. Foi, todavia, considerado por banda do Estado que a versão reformulada não respeitava as objecções constantes do memorial, quedando incumprida pelos autores a 1.ª fase, com a declarada recusa de pagamento da prestação correspondente. Em 25 de Março de 1992 receberam os autores, ademais, da Direcção-Geral dos Recursos Naturais o ofício, de 25 de Março de 1992 [fls. 19; alínea H) da especificação], no qual eram informados de que, face à situação de incumprimento, iria ser proposta a resolução do contrato. Os projectistas demandantes não deixaram de responder que «as alterações pretendidas tinham sido efectuadas e que o Projecto de Execução, 1.ª fase, estava há muito concluído em condições» (resposta ao quesito 3.º). Provou-se em resumo a este respeito que «os autores tentaram satisfazer, na 2.ª versão da 1.ª fase do projecto de execução, na generalidade, as objecções técnicas levantadas no memorial a que se refere o documento de fls. 38 dos autos, apresentando tal 2.ª versão a potência do posto de transformação a instalar como sendo de 500 KVA e que tal 2.ª versão era conforme com tal memorial, no essencial» (resposta conjunta aos quesitos 4.º e 9.º (1) . 1.2. Nos termos expostos, concluiu a Relação «que a tese dos autores deve ser dada como provada, no essencial, justificando-se por isso a procedência da acção». Ademais, «parece não corresponder à verdade - pondera - o que foi alegado (e seria importante) no artigo 28.º da contestação, ou seja, que o Estado, antes de comunicar aos autores que iria ser proposta a resolução do contrato, lhes comunicou, ‘por ofício, anteriormente, em 1991, que a 2.ª versão não satisfazia os objectivos do contrato’», comunicação, frisa o acórdão recorrido, de que não foi feita qualquer prova. E estando «sobretudo em causa a resolução unilateral do contrato pelo Estado, imputando aos autores o não cumprimento e daí a recusa do pagamento dos honorários e da respectiva indemnização», observa-se também no aresto sub iudicio, «o contrato não poderia ser resolvido pelo referido organismo do Estado por razões imputáveis aos autores, por falta de prova dos factos alegados pelo réu», e ainda por não ter sido dado cumprimento nem se verificarem os pressupostos do artigo 808 do Código Civil. 3. Da decisão dissente o Estado, mediante a presente revista, rematando a alegação nas conclusões seguintes: «Da matéria de facto apenas resultou provado que: 3.1. «A 1a. versão da 1.a fase do Projecto de Execução elaborada pelos autores continha erros e defïciências que motivaram uma reunião conjunta entre autores e réu, da qual resultou o memorial de fls. 38/40; «que os autores aceitaram que a 1a versão do projecto de execução continha deficiências e, por isso, aceitaram reformular o projecto; «que na sequência da verificação desses erros e deficiências, os autores apresentaram uma 2.ª versão do Projecto que enviaram ao Réu; «que, nessa 2.ª versão da l.ª fase do Projecto de Execução, os autores tentaram satisfazer, na generalidade, as objecções técnicas levantadas no memorial a que se refere o doc. de fls. 38, apresentando tal versão a potência do posto de transformação a instalar como sendo de 500 Kva e que tal segunda versão era conforme com tal memorial, no essencial; 3.2. «Da matéria fáctica provada nas instâncias resulta provado - e só - que os autores tentaram satisfazer as objecções técnicas e corrigir as deficiências apontadas na reunião conjunta, mas não que o conseguiram; 3.3.«Pelo contrário, a 2.ª versão apresentada pelos autores constituía tentativa sem sucesso com a qual os autores não lograram cumprir as especificações do contrato celebrado com o Estado, embora tivessem tentado fazê-lo, na generalidade e no essencial; 3.4. «Para além de essa tentativa se ter mostrado infrutífera, sem sucesso, também não abrangia todas as questões que deviam ser corrigidas na 1.a versão, pois ficou provado que os autores apenas tentaram, com a 2.ª versão, satisfazer as objecções técnicas, na generalidade ...e no essencial; 3.5. «Assim, a afirmação de que, na generalidade e no essencial, os autores tentaram corrigir as deficiências da 1.a versão do projecto, mesmo tratando-se da qualificação de uma mera tentativa por parte dos autores, é uma afirmação imprecisa e vaga, infundamentada; 3.6. «Além do mais, porque, havendo omissão da matéria de facto sobre tal item, se ignora, porque o Tribunal o não apurou, o que era essencial ou não no projecto e na reformulação da 1.a versão para que o contrato pudesse ser cumprido e qual o conteúdo factual do advérbio genericamente usado para caracterizar a tentativa de correcção das deficiências da l.ª versão da l.ª fase do Projecto; 3.7.«Assim, a matéria de facto apenas permite concluir que os autores tentaram satisfazer o Projecto, mas não o conseguiram, caso contrário seria outra a resposta ao quesito; «As tentativas nem sempre são coroadas de sucesso, e os autores, apesar de terem tentado, não conseguiram que a 2.ª versão do Projecto tivesse sido efectuada de acordo com as exigências a que se haviam obrigado perante o Estado Português e que constavam do contrato que haviam celebrado e, posteriormente, do memorial; 3.8. «Não era, pois, lícito, ao acórdão recorrido concluir, como concluiu (sem fundamentar tal conclusão), que ’...a tese dos autores deve ser dada como provada, no essencial, justificando-se, por isso, a procedência da acção’; 3.9. «E muito menos podia o acórdão recorrido chegar a tal conclusão, depois de afirmar que as respostas aos quesitos não primam pela clareza, o que poderia justificar a anulação do julgamento nos termos do n.° 4 do artigo 712 do Código de Processo Civil; 3.10. «Até porque as respostas aos quesitos são as respostas possíveis, atenta a escassez da indagação feita pelo tribunal e da prova produzida, designadamente, o resultado da perícia requerida pelos autores, cujo quesito 2.° obteve a seguinte resposta: «Considerando o constante na ‘2.ª Versão’ (fls. 431 e seguintes) parece ter havido da parte do técnico a intenção de pretender dar satisfação, na generalidade, às instruções recebidas e constantes do supra citado memorial. No entanto, em termos específicos, notam-se algumas deficiências’ (fls. 667); «Assim, ao tribunal recorrido, restava uma de duas soluções: 3.11. «Ou anulava o julgamento, por imprecisão e insuficiência da matéria de facto, nos termos do artigo 712.°, n.° 4, do Código de Processo Civil, como o próprio acórdão admite que se justificaria; 3.12. «Ou considerava a matéria de facto suficiente e suficientemente claras as respostas sobre a mesma, impondo-se decisão diversa, julgando a acção improcedente e absolvendo o réu; 3.13. «Ora, o tribunal a quo aceitou, embora criticando-a, toda a matéria fáctica provada na 1.a instância, e, portanto, aceitou que os autores, embora tivessem tentado, não cumpriram o contrato celebrado com o Estado Português; 3.14. «Ou que o contrato foi defeituosamente cumprido, pelos autores; 3.15. «Pelo que, ao contrário do afirmado na decisão recorrida, o Estado provou que os autores é que não cumpriram o contrato, e que só por tal motivo - que lhes é imputável - não receberam, por parte do Estado os montantes acordados; 3.16. «Logo, não poderia o acórdão recorrido condenar o Estado a pagar aos autores qualquer quantia, nem a título de prestações devidas pela conclusão da primeira fase do Projecto de Execução, nem a título de qualquer indemnização por rescisão do contrato; 3.17. «E muito menos poderia declarar a resolução do contrato, por causa não imputável aos autores, já que está provado que, apesar da tentativa que fizeram, os autores não deram cumprimento pontual ao contrato que haviam celebrado com o Estado Português; 3.18. «O que motivou a comunicação (documentada a fls. 19) que o réu fez aos autores informando-os de que, por estes não conseguirem ultrapassar as incorrecções e omissões do projecto apresentado e, dado o lapso de tempo recorrido, iria ser proposta a resolução do contrato; 3.19. «Por fim, afirma o acórdão recorrido que o réu não fixou aos autores qualquer prazo para corrigirem eventuais defeitos, como não se provou que o Estado tenha perdido interesse na prestação, motivo pelo qual os autores não entraram em mora e, portanto, não poderia o Estado Português declarar resolvido o contrato por razões imputáveis aos autores; 3.20. «Porém, salvo melhor opinião, não assiste razão ao tribunal a quo, já que a obrigação tinha prazo certo (questão de direito), como resulta da cláusula 12.ª do Contrato alterada pelo artigo 3.° do Termo Adicional ao contrato, pelo que lhe é aplicável o disposto no artigo 805, n.° 2, alínea b), do Código Civil; «Assim sendo, 3.21. «A matéria de facto provada nas instâncias impunha decisão diversa da que foi tomada pelo tribunal a quo, designadamente quanto à verificação da causa de excepção do não cumprimento do contrato por parte do Estado; 3.22. «Pelo que, ao decidir como decidiu, o douto acórdão recorrido incorreu em erro de julgamento, fazendo incorrecta apreciação e aplicação da lei, designadamente, dos artigos 342, 406, n. 1, 804 e 805, todos do Código Civil; «Devendo ser revogado e substituído por outro que julgue a acção improcedente, por não provada, e absolva o Estado Português; «De todo o modo, se assim se não entender, 3.23. «Cabendo às instâncias exaurir a matéria de facto, segundo todas as soluções de direito plausíveis, sempre a insuficiência da matéria [de facto], a contraditoriedade e obscuridade das respostas dadas aos quesitos impunham - como reconhece o próprio acórdão recorrido - a anulação do julgamento, nos termos do disposto no artigo 712, n.º 4, do Código de Processo Civil; 3.24. «Ora, não sendo da competência do Supremo Tribunal de Justiça a reapreciação da matéria de facto fixada pelas instâncias, pode, contudo, como tribunal de revista, exercer censura sobre o uso que as Relações fazem dos poderes de anulação conferidos pelo artigo 712 do Código de Processo Civil; 3.25. «Pelo que o douto acórdão recorrido deve ser anulado e substituído por outro que declare a anulação do julgamento e a ampliação da matéria de facto, nos termos do disposto no artigo 712, n. 4, do Código de Processo Civil.» 4. Os autores contra-alegam, pronunciando-se pela confirmação do acórdão recorrido. III Coligidos conforme o exposto os necessários elementos de apreciação, cumpre decidir.1. Em apreciação do agravo e da excepção de incompetência material, a Relação qualificou o negócio jurídico celebrado entre as partes como contrato de direito privado de prestação de serviço, no sentido do artigo 1154 do Código Civil. Concorda-se com a qualificação, interessando porventura precisar que se tratará da espécie, isolada no direito comparado, sob o nomen iuris do contrato de engenharia ou de arquitectura - assim inicialmente o sugerimos. Uma modalidade do contrato de prestação de serviço, numa palavra, que tem por objecto, como no nosso caso sucede, «um estudo ou projecto de engenheiro ou arquitecto (resultado de um trabalho intelectual)», mediante retribuição, considerado atipicamente como contrato de obra, equivalente grosso modo ao contrato de empreitada do nosso ordenamento 2) . Trata-se, como quer que seja, de um contrato bilateral, posto que do mesmo resultam obrigações para ambas as partes. Isto é, na concreta tónica do contrato ajuizado, para a «equipa projectista» constituída pelos quatro autores, a obrigação de elaboração do projecto de adaptação do edifício de instalação dos Serviços da Direcção-Geral dos Recursos e Aproveitamentos Hidráulicos, em Coimbra, nas condições detalhadas nas cláusulas contratuais; para o Estado, o pagamento do preço, pela forma faseada constante da cláusula 17.ª, oportunamente transcrita (supra, II, 1.1). Pois bem. Os projectistas demandaram o Estado alegando o incumprimento, por recusa definitiva da parte deste, da obrigação que sobre aquele impendia de pagamento da prestação do preço correspondente ao Projecto de Execução, 1.ª fase, elaborado e apresentado pelos demandantes, ademais reformulado em virtude de objecções técnicas que lhe forem dirigidas pelos Serviços envolvidos. O Estado contrapôs em defesa por via de excepção que os autores não haviam dado tradução às aludidas objecções, justificando por isso a recusa de cumprimento da correspondente prestação do preço. 2. Competia, pois, aos autores, como elemento constitutivo do seu direito de crédito à prestação pecuniária, o ónus probatório do incumprimento desta, (artigo 342, n.º 1, do Código Civil), o que a todas as luzes resultou provado. Incumbindo ao Estado, por seu lado, na qualidade de devedor da mesma prestação, provar os factos impeditivos ou extintivos desse direito, integradores da exceptio non adimpleti contratus (n.º 2 do artigo 342.º). Tratava-se dos factos - que outros não foram alegados - constantes do artigo 24 da contestação, apoiado no documento n.º 2, junto com esse articulado a fls. 41/43, que originou, já o dissemos, o quesito 9.º (supra, nota 1), e dos artigos 25 e 28 da mesma peça processual, com esteio no documento n.º 3, anexo a fls. 44, com base nos quais se formulou o quesito 10.º, perquirindo se a desconformidade, aludida no quesito 9.º, entre o projecto reformulado e as objecções do memorial, quanto à potência do posto de transformação, havia sido comunicada aos autores (3) . Ora, no entendimento concorde das instâncias, a prova dessas alegações impeditivas ou extintivas do direito dos autores, consubstanciando a excepção de não cumprimento do contrato, não foi lograda pelo Estado. Desde logo, o quesito 10.º foi considerado não provado, apesar do documento n.º 3 anexo à contestação a fls. 44, um ofício do Director-Geral do Recursos Naturais endereçado ao arquitecto A, sem data nem assinatura, contendo efectivamente um parágrafo acerca da desconformidade quanto à potência do posto de transformação, cuja expedição, porém, não se provou, por não passar de simples minuta, como escreveu o tribunal colectivo em fundamentação da resposta negativa (fls. 703). Por outro lado, o quesito 9.º também não se provou no tocante a essa anomalia, e o documento n.º 2 junto com a contestação a fls. 41/43, que à mesma aludia, é um documento interno da Direcção-Geral dos Recursos Naturais, que o próprio Estado admitiu, no artigo 8.º do articulado em que tomou posição quanto à réplica (fls. 54), não ter chegado ao conhecimento dos autores. Bem ao invés, a resposta conjunta aos quesitos 4.º e 9.º - há momentos transcrita (supra, II, 1.1.) - é assaz elucidativa, como se observa na sentença, do cumprimento inclusive, por parte dos demandantes, da obrigação contratual quanto à 1.ª fase do projecto de execução, uma vez que elaboraram e entregaram uma 2.ª versão deste projecto que, não só tentara satisfazer as objecções técnicas do memorial de fls. 38 e segs., apresentando a potência do posto de transformação como sendo de 500 KVA, mas ainda se mostrava conforme, no essencial, ao mesmo memorial. Acrescenta a propósito a decisão da 2.ª Vara Cível - recordando em certa medida um passo da fundamentação das respostas aos quesitos (fls. 702/703) - terem os peritos, ouvidos em julgamento, esclarecido «que as eventuais desconformidades ainda existentes na 2.ª versão do projecto de execução com o memorial supra aludido eram de mero pormenor ou que tal versão ‘não seria chumbada’, apesar de carecer de rectificações que, porém, o demandado não comunicou aos demandantes serem necessárias, face à 2.ª versão de tal projecto e que, contrariamente ao alegado pelo Estado, a potência do posto de transformação seria a adequada a edifícios da natureza do edifício em causa, embora daí resultassem mais custos por se tratar de um posto de transformação de maior potência». 3. Cumprido o ónus da prova do inadimplemento da obrigação pecuniária do demandado, impendente sobre os autores, sem que o Estado haja cumprido o ónus probatório da excepção de não cumprimento, lograda inclusive a prova do contrário, como resulta topicamente do exposto, um derradeiro aspecto da defesa estadual importa em todo ocaso abordar ainda. Pretendendo que os demandantes não cumpriram a 1.ª fase do projecto de execução, alega o réu Estado nos artigos 28.º e segs. da contestação (cfr. em especial o artigo 32.º) que, em sequência do ofício de 25 de Março de 1992, noutro ensejo já referenciado (supra, II, 1.1.), veio efectivamente a resolver o contrato por despacho, de 12 de Maio de 1992, do membro do Governo competente, conforme o documento n.º 4, junto com aquele articulado a fls. 45/46. Pelo que, alega, não podem os autores vir agora pretender a resolução por sua parte, faltando motivo de incumprimento contratual do réu. Para além, todavia, do não cumprimento imputável ao Estado, e não aos autores, em sintonia com a exposição antecedente, duas razões fundamentais obstariam sempre à validade, ou pelo menos à eficácia da resolução alegada. Em primeiro lugar, o documento de fls. 45/46, é uma informação dos serviços da Direcção-Geral dos Recursos Naturais em que, prescindindo-se não obstante das indispensáveis especificações, se procuram relatar os motivos de incumprimento contratual dos autores, propondo-se ao Secretário de Estado competente a resolução do contrato. O despacho adrede proferido é do seguinte teor: «Autorizo face ao que me é exposto» (data ilegível, admitindo-se que possa tratar-se da data alegada no artigo 32 da contestação). Posto isto, o teor literal do acto não constitui uma declaração de resolução. Talvez possa conceber-se como autorização no sentido de que outro órgão ou agente administrativo declare a resolução, tudo, porém, se ignorando a esse respeito. Por outro lado, o próprio Estado afirmou no artigo 11 do articulado em que tomou posição quanto à réplica (fls. 55), à semelhança do documento n.º 2 junto com a contestação, como há instante se constatou, que os autores não deveriam ter conhecimento destoutro documento. Em suma. Não se mostra que uma declaração de resolução do contrato tenha sido transmitida aos autores. Todavia, devendo a resolução do contrato ser declarada à outra parte (artigo 436, n. 1, do Código Civil), a respectiva declaração tem natureza receptícia, tornando-se enquanto tal eficaz, segundo a teoria da recepção acolhida em primeira linha no artigo 224, em princípio quando chega ao poder do destinatário. Daí que, além do mais, se perfile, salvo melhor prova, a ineficácia da resolução alegada pelo Estado. A resolução do contrato a favor dos autores mediante a presente acção foi, ao invés, considerada procedente nas instâncias, e a verificação dos respectivos pressupostos não constitui objecto da revista, salvo em quanto concerne ao incumprimento do contrato pelos autores, sustentado pelo Estado, em termos cujo mérito não podemos, salvo o devido respeito, subscrever, como resulta do anteriormente exposto. 4. Resta, no conspecto precedente, abordar certas ordens de objecções à procedência da acção, contrapostas em síntese nas conclusões da alegação da revista oportunamente extractadas. 4.1. Assim, desde logo, as extrapolações sobre a resposta aos quesitos 4 e 9, da qual resultaria que os autores tentaram satisfazer as exigências técnicas do memorial, «mas não que o conseguiram» - mais ainda, «que não o conseguiram» -, numa «tentativa sem sucesso», e «infrutífera» que não logrou cumprir «as especificações do contrato», «todas as que deviam ser corrigidas» (v. g., conclusões supra, II, 3.2., 3.3., 3.4., 3.7.). Trata-se, porém, de um exercício retórico, salvo o devido respeito, em torno da expressão introdutória da resposta, conforme a qual «os autores tentaram satisfazer, na generalidade, as objecções técnicas», que deixa no olvido e chega inclusivamente a negar os resultados provados da reformulação operada pelos autores, a saber: a satisfação das exigências quanto à potência do posto de transformação, e o facto de a 2.ª versão do projecto se encontrar no essencial em conformidade com o memorial. Tanto mais quando a questionada omissão, se não o falseamento, da potência foi o único facto alegado pelo Estado na contestação de entre as correcções que eventualmente importasse efectuar. 4.2. Não se mostra, também por isso, justificada a nosso ver a asserção absoluta de que este resultado se traduz numa «afirmação imprecisa e vaga, infundamentada», pela circunstância de, «havendo omissão da matéria de facto sobre tal item», «se ignorar, porque o tribunal o não apurou, o que era ou não essencial», e atendendo ainda à «escassez da indagação feita pelo tribunal e ao resultado da perícia requerida pelos autores», a cujo quesito 2.º se respondeu reconhecendo-se ter havido a pretensão de dar satisfação na generalidade ao memorial, acrescentando-se, porém, a rematar que, «em termos específicos, notam-se algumas deficiências» (conclusões supra, II, 3.5., 3.6., 3.10.). Anota-se que o Estado não considera vaga, imprecisa e infundamentada esta derradeira referência da resposta ao quesito 2.º da perícia, quando, se bem julgamos, se lhe diria aplicável o mesmo critério pelo qual assim qualificou a resposta conjunta aos quesitos 4.º e 9.º do questionário - ou o inverso. Interessa em todo o caso salientar que a perícia compreendia ademais um quesito 3.º, que é muito elucidativo recordar, dispensando comentários, seja na interrogação endereçada aos senhores peritos, seja na resposta que destes mereceu (cfr. o relatório da diligência a fls. 666/667). «Pergunta: - As reformulações apresentadas pelos autores não respeitaram as objecções técnicas referidas no documento de fls. 38 e apresentaram cálculos que falsearam a realidade como por ex.: a definição da potência a instalar no posto de transformação, consequência sobretudo da avaliação incorrecta da potência necessária no futuro sistema central de ar condicionado? «Resposta: - Relativamente à primeira parte do quesito, considera-se a mesma respondida através da resposta ao quesito 2.º Dos documentos que constituem o processo não consta nem o programa funcional, nem o parecer sobre o estudo prévio, nem tão--pouco programa preliminar e, ou, equipamento previsto ou a instalar - eventualmente indicado pelo dono da obra-, o que não nos permite concluir que os ’cálculos apresentados falsearam a realidade, nomeadamente a potência a instalar no posto de transformação’. Será no entanto de realçar, que o valor estimado [frisado no original] nos parece estar dentro dos padrões habituais para edifícios similares.» E, revertendo às conclusões 3.6. e 3.10., diga-se que o tribunal não terá pecado por não ter apurado o que era ou não essencial, nem por escassez de indagação dos factos, uma vez que se encontrava balizado pelas alegações do Estado, que se restringiram ao facto da potência do posto de transformação, quando, competindo-lhe o ónus da prova, como se mostrou, dos factos integradores da excepção de não cumprimento, necessariamente lhe incumbia em lógico corolário alegar, com precisão, os factos integradores do incumprimento de todas as especificações que acaso devessem pelos autores ser corrigidas. 4.4. O Estado aduz, aliás, ter a própria Relação de Lisboa considerado que as respostas aos quesitos 4.º e 9.º não primam pela clareza, o que poderia justificar a anulação do julgamento nos termos do n. 4 do artigo 712 do Código de Processo Civil, reclamando subsidiariamente, para a hipótese de o acórdão não ser revogado por erro de julgamento, a sua anulação com vista à ampliação da matéria de facto, nos termos do citado normativo, tanto mais que, não sendo da competência do Supremo a reapreciação da factualidade fixada pelas instâncias, pode, contudo, como tribunal de revista, exercer censura sobre o uso que as Relações fazem dos poderes de anulação conferidos pelo artigo 712 (conclusões supra, II, 3.9., 3.11. e 3.21. a 3.25.). Sobre este ponto observar-se-á, todavia, o seguinte. Em primeiro lugar entendemos, sem quebra do respeito devido, que a Relação de Lisboa bem podia ter-se dispensado do citado comentário, tanto mais que não anulou efectivamente o julgamento quanto aos mencionados quesitos. E parece que na realidade usando, em derradeiro termo, de avisado de critério. Se a resposta conjunta aos quesitos 4.º e 9.º pode não primar pela integral precisão, numa demanda que mobilizou os esforços das estruturas judiciais desde 1993 - e já se deixaram anotadas algumas das razões que concorreram nesse sentido -, o certo é que apesar de tudo a resposta oferece ainda um contributo não despiciendo na consecução da justiça do caso. Daí porventura não ter sido objecto de reclamação das partes no acto das respostas do tribunal colectivo. Por nossa parte também não somos sensíveis ao apelo subsidiário do Estado. Por duas razões. Primeiro, tendo presente a jurisprudência uniforme deste Supremo Tribunal no sentido de que não lhe cabe sindicar o não uso - pois é disso que se trata - dos poderes conferidos em matéria de facto à Relação pelo artigo 712 Segundo, e no que especificamente concerne à ampliação da matéria de facto ao abrigo do n. 3 do artigo 729, sempre do Código de Processo Civil, porque não se encontram alegados factos, nomeadamente pelo Estado, que pudessem tornar-se objecto de novos quesitos. 4.3. Quanto por fim à resolução do contrato a que se reportam as conclusões supra, II, 3.16., 3.17., 3.18., 3.19. e 3.20., já oportunamente se teceram as considerações pertinentes, interessando neste momento apenas corrigir uma imprecisão de pormenor, em termos de objecto da revista, que ressalta das duas últimas, quando aí se refere que o acórdão sub iudicio afirma não terem os autores incorrido em mora, razão por que não poderia o Estado declarar resolvido o contrato. Sem falar de que a mora dos autores é, tanto quanto vemos, uma questão nova, o que resulta do aresto nessa parte, se bem se interpreta, é que, como deixámos já entrever, o Estado não podia resolver o contrato com fundamento na simples mora, independentemente da verificação dos pressupostos do artigo 808, maxime da conversão da mora em incumprimento definitivo. 5. Na improcedência, por todo o exposto, das conclusões da alegação, acordam no Supremo Tribunal de Justiça em negar a revista, confirmando, com as diferenças de fudamentação que se deixaram explanadas, o acórdão recorrido. Sem custas por isenção do Estado [artigo 446.º do Código de Processo Civil; artigo 2, n.º 1, alínea a), do Código das Custas Judiciais]. Lisboa, 10 de Fevereiro de 2005 Lucas Coelho, Bettencourt de Faria, Moitinho de Almeida. ------------------------------------ (1) O quesito 4.º, formulado com base no artigo 14.º da petição, era do seguinte teor: «Todas as alterações pretendidas pela Direcção-Geral dos Recursos Naturais foram introduzidas em conformidade com as instruções recebidas?». O quesito 9.º, por sua vez, gizado segundo o artigo 24.º da contestação do Estado, tinha a redacção que segue: «As reformulações apresentadas pelos autores não respeitaram as objecções técnicas referidas no documento de fls. 38 e apresentaram cálculos que falsearam a realidade como por exemplo: a definição da potência a instalar no posto de transformação, consequência sobretudo da avaliação incorrecta da potência necessária ao futuro sistema central de ar condicionado?». (2) Tópicos colhidos no acórdão, de 18 de Setembro de 2003, revista n.º 19/03, 2.ª Secção, com outros desenvolvimentos para que se remete. (3) Transcreva-se em todo o caso o quesito 10.º: «Esta desconformidade de reformulação do projecto com o memorial referido no quesito 8.º foram objecto de comunicação à equipa projectista na pessoa do arquitecto A, pelo Director-Geral dos Recursos Naturais?» |