Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
05A4336
Nº Convencional: JSTJ000
Relator: FERNANDES MAGALHÃES
Descritores: COMPROPRIEDADE
ARRENDAMENTO
Nº do Documento: SJ200602070043366
Data do Acordão: 02/07/2006
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA.
Decisão: NEGADA A REVISTA.
Sumário : I - A qualificação de um contrato concretamente celebrado entre as partes é um juízo predicativo que tem por conteúdo o reconhecimento nesse contrato de corresponder, ou não, a este ou àquele tipo.

II - E envolve dois juízos: um primário de natureza tipológica, de semelhança entre o caso e o tipo, e um secundário de natureza subsuntiva, de carácter binário, sim ou não.

III - Ora não pode haver um típico contrato de arrendamento entre as duas partes contratem quando ambas são comproprietários do mesmo imóvel.

IV - Nem tem fundamento a propositura de acção de despejo com base em falta de pagamento de rendas por um dos comproprietários.
Decisão Texto Integral: ACORDAM NO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:


"AA", intentou acção de despejo contra Empresa-A pedindo a resolução do contrato identificado na petição inicial como arrendamento e, em consequência, o despejo de pessoas e coisas e a condenação também da Ré a pagar-lhe rendas vencidas, e não pagas, no montante de 10.350.000$00, e vincendas até à entrega do locado.
O processo correu seus termos com contestação da Ré e resposta da A..
Findos os articulados foi proferido despacho saneador sentença a julgar a acção improcedente.
Inconformado com tal decisão dela interpôs o Autor recurso de apelação sem êxito, recorrendo agora de revista.
Formula nas suas alegações as seguintes conclusões:
«(...)
1. Não foram alegados quaisquer factos por BB, CC, DD, EE, FF, GG que permitam qualificar a herança do falecido sócio e em nome do qual pretendem exercer a faculdade processual da contestação, como sendo herança, aceite.
2. É preciso alegar factos de onde se extrai sem sombra de dúvida de que a herança já foi aceite.
3. Consequentemente os contestantes não são contitulares das quotas nem tal resulta de qualquer facto ou documento, mas apenas co-herdeiros das referidas quotas.
4. Pelo que cada quota há-de ser representada pela herança aberta do falecido sócio e é esta, como património autónomo, quem possui capacidade judiciária para representar a quota do sócio falecido do artº 22 do CPC.
5. As contestações apresentadas por quem não é parte, não deverão assim ser consideradas.
6. O contrato ajuizado não é nulo.
7. De harmonia com o preceituado do art° 2776 do C.C. é lícito ao comproprietário dispor da sua quota-parte do prédio em compropriedade.
8. No caso dos autos a totalidade dos comproprietários acordaram em que o uso e fruição relativo ao prédio ajuizado fosse detido, exclusivamente pelo contitular do 1/6 deste prédio.
9. Foi fixado prazo certo para o uso deste direito.
10. Foi fixada a contrapartida.
11. A capacidade das partes para celebrarem este contrato foi mutuamente aceite.
12. A vontade das partes e a sua interpretação, nomeadamente de sujeitarem este contrato às regras do contrato de arrendamento, é lícita de harmonia com art° 672 e 702 do então C. C. em vigor.
13. No domínio do respeito pela liberdade da estipulação e aproveitamento dos contratos só serão nulos aqueles a que faltar algum dos elementos do contrato, constantes do art° 643 do C.C., nada impedindo que se constate que todos os elementos para que o contrato seja válido, se encontrem verificados.
14. Nunca o contrato seria nulo por falta de capacidade de uma das partes, uma vez que a tal obsta o disposto no art° 695 do C.C.
15. O objecto sobre que as partes contrataram não foi extraído do comércio jurídico por nenhuma disposição legal, nomeadamente tal não resulta do art° 2177 do C.C..
16. E a verificar-se, o que se contesta, a não verificação de algum dos elementos essenciais, tal não terá como consequência a anulação do contrato desde que, art° 684 do C.C., dos seus termos natureza e circunstâncias, ou do uso, costume ou lei, possa depreender-se qual fosse a intenção ou vontade dos contraentes e mútuo consenso indispensáveis.
17. Deixaria todavia de ser contrato de arrendamento mas antes um contrato inominado e teria de se reger pelas normas convencionadas pelas partes, e subsidiariamente pelas disposições dos contratos com que tiver maior afinidades, aplicáveis por analogia.
18. Este contrato permanecerá com todas as suas virtualidades, enquanto se mantiver em compropriedade, cessando com a partilha, na esteira do decidido pelo acórdão STJ de 15/5/908 publicado na Gaz. Rel. Lx., 22° 77).
19. O objecto deste contrato pode ser objecto de disposição definitiva ou temporária, art° 671 do C.C.
20. Não ocorre nenhum vicio que seja de conhecimento oficioso ou nenhum vicio foi invocado pela Ré validamente ou alegado na sua contestação.
21. Por decisão transitada em julgado no processo de avaliação fiscal n' 10/90 foi proferida decisão sobre a relação material controvertida, que por isso tem força obrigatória dentro do processo e fora dele nos termos do art° 671 do C.P.C.
22. Neste invocado processo o Senhor Juiz prenunciou-se e não apenas para efeitos fiscais sobre a qualificação deste contrato como sendo de arrendamento e prenunciou-se pela fixação de novo valor da renda, actualizada, para 150.000$00.
23. A actual sentença revoga a decisão aí proferida nesses autos, o que só seria possível através de recurso de revisão prevista no art° 771 C.P.C.
24. O contrato ajuizado pretendeu atribuir ou encabeçar, num dos comproprietários do mesmo prédio, a totalidade deste, mediante a contrapartida de fazer suas as rendas produzidas pelo prédio exclusivamente encabeçado pela Ré, tal como ocorre nos termos do disposto do art° 2190 do C.C.
25. O uso e fruição de 5/6 deste prédio constitui coisa imóvel por disposição da lei, com todas as consequências nomeadamente a configuração especial nos contratos nominados.
26. Nada impede que o co-titular de 1/6 goze com exclusividade o prédio, desde que os restantes co-titulares dos 5/6, expressamente lho permitam e recebam contrapartida em dinheiro relativa á sua quota parte.
27. A aliás muita douta sentença proferida, violou os acima citados preceitos legais.».

Corridos os vistos, cumpre decidir.
É a seguinte a matéria de facto considerada provada no acórdão recorrido:
«(...)
- Por escritura pública celebrada em 25/03/1929, na qual foram outorgantes:
1.° HH, 2.° - II e esposa e 3.° - JJ e KK, este na qualidade de gerente da soe. "Empresa-B" e outorgando esta sociedade e aquele Juncal na qualidade de únicos gerentes da soc. "Empresa-A, Lda.", sendo todos proprietários em comum do prédio urbano sito na Rua 31 de Janeiro, n.°s 43 a 45, nessa propriedade comum tendo o 1.° outorgante uma perfeita metade, tendo o casal dos 2°s, duas sextas partes e a sociedade 3.ª outorgante o restante sexto, pelos mesmos foi dito "Que pela presente escritura, eles primeiro e segundo outorgantes dão de arrendamento à comproprietária terceira outorgante a parte do prédio que corresponde aos cinco sextos de sua compropriedade. Que fazem este arrendamento pelo prazo de quinze anos (...). Que a renda anual é de dezoito contos e deverá ser paga pela arrendatária (...). Que o prédio aqui mencionado poderá ser destinado a habitação e a toda e qualquer espécie de comércio e ainda a café, restaurante, bar, salões de bilhares e jogos não proibidos por lei (...) (certidão de fls. 16 a 20 destes autos).».

Feita esta enumeração, e delimitado como está o objecto do recurso pelas conclusões das alegações do recorrente, começaremos por dizer que ele carece de razão.
Com efeito, desde logo não é de aceitar a sua tese quanto à questão da legitimidade da Ré (e de seus representantes) que continua a levantar.
Já muito foi referenciado a esse propósito pelas instâncias sendo, portanto, agora apenas de salientar, como o faz de todo o modo o acórdão recorrido, que "a aceitação da herança pode ser tácita (art.º 2056º C. Civil) não sendo verdade que os contestantes tivessem de alegar factos "de onde se extraia sem sombra de dúvida que a herança já foi aceite".
Sabe-se, aliás, que na prática a herança é, as mais das vezes aceite tacitamente, por factos (e não por palavras) ou por meras declarações verbais, sem os requisitos da declaração expressa exigidos no n.º 2 do art.º 2056.
"A aceitação é tácita quando o sucessível pratica algum acto que pressupõe necessariamente a vontade de aceitar e que só poderia realizar na qualidade de herdeiro" (v. Prof. P. Lima e A. Varela, Código Civil Anotado, VI, pág. 92 e 93).
Ora até os actos que os herdeiros aqui praticaram no processo só por si revelam inequivocamente que aceitaram a mencionada herança, estando, assim, assegurada a legitimidade passiva que o recorrente contínua, sem fundamento, a pôr em crise.
Posto isto, se acrescentará que estamos em presença de uma acção de despejo (anote-se que a 1ª instância decidiu que o Autor deveria ter intentado uma acção de divisão de coisa comum e não uma acção despejo, mas aquele recorreu de tal decisão com êxito).
E como se preceitua no art.º 55º do R.A.U. tal acção destina-se a fazer cessar a situação jurídica do arrendamento, sempre que a lei imponha o recurso à via judicial para promover tal cessação.
Ora foi com a finalidade de fazer cessar uma relação jurídica, no seu entender de arrendamento, que o Autor intentou esta acção de despejo contra a Ré.
Só que em boa verdade no caso "sub judice" não há qualquer contrato de arrendamento.
A este propósito não poderemos deixar de pôr em destaque que a qualificação de um contrato concretamente celebrado entre as partes é um juízo predicativo que tem por conteúdo o reconhecimento nesse contrato da qualidade de corresponder, ou não, a este ou àquele tipo, a este ou àquele modelo paradigmático.
Envolve dois juízos (ou sub-juízos se se preferir): um juízo primário de natureza tipológica, de semelhança entre o caso e o tipo, e um juízo secundário de natureza subsuntiva, de carácter binário, de sim ou não.
Estes juízos são interferentes e as divergências entre ambos, quando se verifiquem, são resolvidas pela ponderação respectiva de acordo com um critério de predominância que há-de ser encontrado na "ratio juris" e na natureza das coisas, e nas consequências concretas que os respectivos resultados venham trazer à questão.
De salientar aqui que entre um contrato francamente típico, isto é, correspondente ao cerne do tipo, e um contrato atípico puro, que não tenha qualquer semelhança com qualquer tipo contratual, existe uma graduação fluída que permite um juízo de qualificação do contrato como mais ou menos típico ou como mais ou menos atípico.
E sabe-se, por outro lado, que dentro dos limites que o Direito põe à autonomia privada as partes podem contratar, como entenderem, dentro ou fora dos tipos que a lei e a prática lhes oferecem, e combinar ou modificar esses mesmos tipos.
Nada impede também que as partes celebrem entre si contratos que não correspondam a qualquer tipo e que não sejam construídos a partir da sua modificação ou combinação. São os contratos atípicos puros (na construção destes as partes raramente dispensam o contributo dos tipos já conhecidos e consagrados na lei e na prática).
Ora o contrato que aqui está em causa não é o contrato típico de arrendamento, e isto desde logo porque as partes que entre si celebraram o contrato são ambas comproprietárias do imóvel.
Daí decorre que se não torna possível ao A. comproprietário do imóvel despejar, como pretende, a Ré também comproprietária daquele alegando que esta é ao mesmo tempo sua arrendatária.
Outro poderá, eventualmente, ser o modo de pôr fim a situação jurídica criada com o contrato mencionado, que não a pura e simples acção de despejo.
Equivale isto a dizer que improcede a pretensão ou pedido do Autor formulado contra a Ré.
Resta, por último, acrescentar que, contrariamente ao alegado pela recorrente, não há qualquer provado caso julgado decorrente de uma mera avaliação extraordinária de renda feita numa diferente base dada a natureza da mesma (refere-se a este propósito no acórdão recorrido que conforme se se escreveu no acórdão da mesma Relação do Porto de 26/10/93, Proc. 9310007 que "A decisão tomada em processo de avaliação fiscal extraordinária não constitui caso julgado relativamente a acção de despejo em que se pede a resolução do contrato de arrendamento, seja qual for o fundamento que se invoque").
Assim, pelo que se explanou não existe qualquer relevante violação de caso julgado no sentido pretendido pela recorrente.
Por tudo o exposto, e sem necessidade de mais amplas considerações, improcedem as conclusões das alegações do recorrente, sendo de manter o decidido no acórdão recorrido, que não violou quaisquer preceitos legais, "maxime" os referidos pelo recorrente.
Decisão:
1- Nega-se a revista.
2- Condena-se o recorrente nas custas.

Lisboa, 7 de Fevereiro de 2006
Fernandes Magalhães
Azevedo Ramos
Silva Salazar