Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça | |||
Processo: |
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Nº Convencional: | JSTJ00032246 | ||
Relator: | MIRANDA GUSMÃO | ||
Descritores: | TRANSPORTE MARÍTIMO CONHECIMENTO DE EMBARQUE OPERAÇÃO PORTUÁRIA RESPONSABILIDADE CONTRATUAL INTERPRETAÇÃO DO NEGÓCIO JURÍDICO MATÉRIA DE FACTO MATÉRIA DE DIREITO COMPETÊNCIA DOS TRIBUNAIS DE INSTÂNCIA COMPETÊNCIA DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA DECLARAÇÃO NEGOCIAL | ||
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Nº do Documento: | SJ199709230008272 | ||
Data do Acordão: | 09/23/1997 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Referência de Publicação: | BMJ N469 ANO1997 PAG598 | ||
Texto Integral: | S | ||
Privacidade: | 1 | ||
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Meio Processual: | REVISTA. | ||
Decisão: | CONCEDIDA A REVISTA. | ||
Indicações Eventuais: | V SERRA RLJ ANO109 PAG95. | ||
Área Temática: | DIR CIV - DIR CONTRAT / TEORIA GERAL. DIR TRIB - DIR CUSTAS JUD. DIR COM - TRANSP MAR. | ||
Legislação Nacional: | CCIV66 ARTIGO 236 N1 ARTIGO 238 N1 ARTIGO 800. DL 352/86 DE 1986/10/21 ARTIGO 1 ARTIGO 3 ARTIGO 7 ARTIGO 9 ARTIGO 10 ARTIGO 11 ARTIGO 28. DL 282-B/84 DE 1984/08/20 ARTIGO 1 ARTIGO 12 N1 N2 ARTIGO 15 N1 N3. D 24831 DE 1934/12/31 ARTIGO 66. DL 37748 DE 1950/02/01 ARTIGO 2. DL 366/88 DE 1988/10/14. CCJ62 ARTIGO 18 N2. | ||
Referências Internacionais: | CONV DE BRUXELAS DE 1924/08/25 ART1 ART8. | ||
Jurisprudência Nacional: | ACÓRDÃO STJ DE 1993/04/29 IN CJSTJ ANOI TII PAG93. ACÓRDÃO STJ PROC88144 DE 1996/04/18. | ||
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Sumário : | I - O contrato de transporte de mercadorias por mar é um contrato formal realizado mediante conhecimento de embarque ou carga em que uma das partes - o transportador -, se obriga perante a outra parte - o destinatário -, à execução das operações de carga e descarga das mercadorias, de um porto para outro, e ainda à sua entrega no local convencionado. II - As operações de carga e descarga são, no plano contratual, da responsabilidade do transportador, ao passo que a actividade do operador portuário, (ou da autoridade portuária, na hipótese prevista no artigo 15, n. 1, do Decreto-Lei 282-B/84, de 20 de Agosto) se desenvolve no plano material ou técnico. III - No contrato de transporte de mercadorias por mar, sujeito ao regime definido no Decreto-Lei 352/86, de 21 de Outubro, é aplicável imperativamente a Convenção de Bruxelas, de 25 de Agosto de 1924. IV - Os operadores portuários e a autoridade portuária respondem perante o transportador pelas perdas e danos causados nas mercadorias durante o período em que se encontrem à sua guarda. V - A interpretação das declarações negociais constitui matéria de facto da competência exclusiva das instâncias. VI - Porém, o Supremo Tribunal de Justiça pode exercer censura sobre o resultado interpretativo sempre que se trate das situações previstas nos artigos 236, n. 1 e 238 do Código Civil, pois que a interpretação das declarações negociais somente então integra matéria de direito. | ||
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Decisão Texto Integral: | Acordam no Supremo Tribunal de Justiça I 1. No Tribunal Marítimo de Lisboa, A demandou B, pedindo que esta seja condenada a pagar-lhe a quantia de 1392000 francos belgas ou o equivalente em escudos, ao câmbio na data do pagamento, acrescido de juros à taxa utilizada entre empresas comerciais, a contar da citação até ao efectivo reembolso. Alegou, em resumo, que ao abrigo de dois contratos de seguro, cobrindo os riscos inerentes ao transporte de chapas de vidro carregadas em dois contentores, contratado entre a vendedora e a Ré, pagou a quantia de 1392000 francos belgas à adquirente da mercadoria e beneficiária do seguro, em virtude de, em Lisboa, no terminal de contentores de Santa Apolónia onde a movimentação dos contentores cabe à APL - Administração do Porto de Lisboa - terem caído ao chão os dois contentores, partindo-se todas as chapas de vidro que, assim, ficaram destruídas. 2. A Ré contestou, impugnando os factos em que a Autora assenta a pretendida obrigação de indemnizar por os danos terem sido causados pela APL. 3. Procedeu-se a julgamento, tendo sido proferida sentença a absolver a Ré do pedido. 4. A Autora apelou. A Relação de Lisboa, por acórdão de 27 de Junho de 1996, confirmou a sentença recorrida. 5. A Autora pede revista - condenação da Ré no pedido - formulando conclusões que se sintetizam: 1) No momento em que ocorreu o sinistro a Ré não tinha ainda executado na integra o contrato de transporte, faltando cumprir algumas das obrigações a que estava vinculada. 2) Naquele momento, a Ré não tinha cumprido, nem veio a cumprir posteriormente, a obrigação da entrega da mercadoria ao destinatário, uma vez que se havia comprometido a entregar as mercadorias em Sacavém, nas instalações da "CACVEC". 3) Não dispondo a Ré de armazém portuário, viu-se forçada, tal como então acontecia a qualquer transportador em idênticas circunstâncias, a entregar a mercadoria em depósito portuário, a fim de, posteriormente, executar o segmento final do transporte, até à sede do destinatário, em Sacavém. 4) As mercadorias foram confiadas pela Ré à "ADMINISTRAÇÃO DO PORTO DE LISBOA", entidade que se obrigou a velar pela guarda e vigilância das mercadorias, nos termos do contrato de depósito e, bem ainda, a efectuar o seu transporte no interior do terminal e entre este e o entreposto de Xabregas. 5) A "APL" foi subcontratada pelo transportador, pelo que, a atitude processual da autora encontra-se plenamente justificada. A cláusula de garantia ou "Himalaia Clause" impede que a "APL" seja demandada directamente pelo lesado, respondendo a Ré, enquanto transportadora, pelos danos causados pela "APL" enquanto sua subcontratada. 6) A "APL", enquanto depositária da mercadoria, ou seja, no desempenho do papel de auxiliar do transportador, a Ré "B" danificou a mercadoria da segurada Autora e, assim, a lei civil portuguesa, impõe ao transportador que responda objectivamente pelos actos do auxiliar, como se tais actos fossem praticados pelo próprio. 6. A Recorrida B, apresentou contra-alegações, sustentando a manutenção do acórdão recorrido. Corridos os vistos, cumpre decidir. II Elementos a tomar em conta: 1) Em 23 de Junho de 1987 chegou ao porto de Lisboa, o navio Asd Hector, que atracou ao cais do terminal de contentores de Santa Apolónia. 2) Não podendo a mercadoria ser movimentada, de imediato, para o destinatário, em Sacavém, por força das normas legais alfandegárias, a Ré descarregou os contentores para o terminal de contentores de Santa Apolónia, aguardando o despacho da alfândega. 3) Quando eram transportados no interior do terminal, pelo veículo n. 21 da "APL", os dois contentores caíram no chão. 4) A CACVEC - Cooperativa Abastecedora de Comerciantes de Vidro em Chapa, C.R.L., com sede em Sacavém, adquiriu CIF a GLAVERBEL, S.A., com sede na Bélgica, um carregamento de chapas de vidro, de origem belga. 5) A vendedora celebrou com a Autora dois contratos de seguro, cobrindo os riscos inerentes ao transporte de mercadoria, de armazém em armazém, incluindo o transporte marítimo a efectuar pelo navio Asd Hector. 6) O beneficiário dos seguros era CACVEC. 7) A fim de transportar os dois contentores do porto de Antuérpia até às instalações da CACVEC, em Sacavém, a vendedora, através do seu agente (S.A. FRANBELTI) celebrou com a Ré os dois contratos de transporte pelos conhecimentos de carga de folhas 14 e 15, onde se identificam as partes, a mercadoria, o porto de carga (ANTUÉRPIA) o navio carregador (ASD HEKTOR) o porto de descarga (LISBOA) e o local de entrega (SACAVÉM). 8) O Terminal de contentores de Santa Apolónia é explorado directamente pela Administração do Porto de Lisboa. 9) A queda dos dois contentores referida em 3) foi devida à suspensão de um dos lados do atrelado da "APL" não ter aguentado o esforço adicional provocado pelo peso dos dois contentores durante a curva que o motorista efectuou. 10) A queda dos contentores originou que se tivessem partido todas as chapas de vidro transportadas. 11) A Autora pagou à "CACVEC" a importância de 1392000 francos belgas, relativa aos prejuízos da mercadoria. 12) A Ré tem recusado pagar à Autora a quantia referida em 11). 13) Chegado o navio ao porto de Lisboa, a Ré, através do seu agente, a Aseco, encarregou o operador portuário SOCARPOR de efectuar as operações de descarga e movimentação dos contentores. 14) A estiva dos contentores foi feita na fábrica, tendo eles viajado por mar, sido descarregados em Lisboa, parqueados no terminal e novamente carregados no atrelado, sem se registar qualquer anomalia. 15) Os contentores não se destinavam a sair imediatamente do terminal de contentores de Santa Apolónia, porque deviam ser transferidos para o entreposto de Xabregas, afim de aí serem desconsolidados. 16) Para o efeito, a SOCARPOR apresentou a lista dos contentores a desembarcar, elaborada pelo agente do navio, no qual se indicava o destinatário dos dois contentores. 17) Em 26 de Junho de 1987 a "APL" procedia à transferência dos dois contentores do terminal de contentores de Santa Apolónia para o entreposto de Xabregas, que lhe é contíguo. 18) Foi durante o percurso referido em 17) que os dois contentores caíram, quando o veículo descrevia uma curva aberta. 1a) A cláusula quarta dos contratos de transportes referidos em 7), é do seguinte teor: (1) o transportador tem direito a subcontratar, em quaisquer condições, a totalidade ou parte do transporte. (2) O comerciante concorda que nenhuma reclamação ou pedido será deduzido contra qualquer empregado, agente ou subcontratante do transportador, imputando ou tentando imputar, a tais pessoas, ou navios a elas pertencentes, pelo acto negligente ou não, de tais pessoas e mesmo que tal reclamação ou pedido tenha por objecto a indemnização do transportador. Sem prejuízo do que acima se dispõe, as referidas pessoas gozam do benefício de todas as excepções, limitações, condições ou faculdades deste contrato e de todos os direitos, exonerações de responsabilidade, protecções e imunidades aplicáveis ao transportador, tal como se essas disposições fossem expressas em seu benefício e, ao celebrar o contrato, o transportador, no âmbito de tais disposições, actuasse não só em seu próprio interesse, mas também como agente ou mandatário de tais pessoas. III Questões a apreciar no presente recurso. A apreciação e a decisão do presente recurso, delimitado pelas conclusões das alegações, passa, fundamentalmente, pela análise da questão de saber se a Autora tem direito a ser indemnizada pela Ré pelos prejuízos havidos na mercadoria que se obrigou a transportar. Abordemos tal questão. IV Se a Autora tem direito a ser indemnizada pela Ré pelos prejuízos havidos na mercadoria que se obrigou a transportar. 1. Posição da Relação e das partes. 1a) A Relação de Lisboa decidiu que a Ré não era responsável pelos prejuízos na mercadoria que se obrigou a transportar com base nos fundamentos que a COLECTÂNEA DE JURISPEUDÊNCIA (ano XXI, 1996, Tomo III, página 127) correctamente sumariou e por corresponder ao mesmo se transcreve: a) o contrato de transporte marítimo inicia-se com a carga da mercadoria no porto de origem e termina com a descarga no porto de destino. b) tendo o sinistro ocorrido em área em que só a Administração do Porto de Lisboa pode operar, quando a mercadoria transitava num veículo desta entidade, devido a uma das suspensões do atrelado não ter aguentado o esforço adicional dos dois contentores transportados, numa curva, somente à APL é imputável a culpa do incumprimento. c) Nem pode aqui a APL considerar-se como representante legal auxiliar ou subcontratada da Ré transportadora marítima. 1b) A Autora/recorrente sustenta que a Ré/recorrida responde pelas faltas cometidas pelo seu auxiliar (APL), nos termos do artigo 800, Código Civil, porquanto: a) A Ré confiou as mercadorias à APL, entidade que se obrigou a velar pela guarda e vigilância das mercadorias, nos termos do contrato de depósito e, bem assim, de efectuar o seu transporte no interior do terminal e entre este e o entreposto de Xabregas. b) A APL agiu como subcontratada da CMB (Ré), desempenhando o papel de auxiliar do transportador. 1c) A Ré/recorrida sustenta que tendo o acidente ocorrido por culpa da APL está em causa a responsabilidade de um terceiro por cujos actos a CMB (Ré) não era responsável nos termos do artigo 800 do Código Civil, porquanto: - o acidente ocorrido com os contentores deu-se quando estes se encontravam a ser movimentados pela APL dentro do terminal de Santa Apolónia e num local explorado única e exclusivamente pela APL. - a intervenção da APL não se deu por força de qualquer sub-contrato celebrado entre esta e a CMB (Ré) ou a SOCARPOR. Pois neste Terminal (o de Santa Apolónia) só a "APL" tem competência para guardar e movimentar os contentores - artigo 66 do Regulamento de Tarifas do Porto de Lisboa, aprovado pelo Decreto n. 24831, de 31 de Dezembro de 1934. Que dizer? 2. De acordo com a orientação firmada por este Supremo Tribunal, a interpretação das declarações negociais constitui matéria de facto da competência exclusiva das instâncias, embora este Supremo Tribunal possa exercer censura sobre o resultado interpretativo sempre que, tratando-se do caso previsto no n. 1 do artigo 236 do Código Civil, esse resultado não coincida com o sentido que um declaratário normal, colocado na posição do real declaratário, pudesse deduzir do comportamento do declarante (salvo se este não pudesse razoavelmente contar com ele) ou tratando-se da situação prevista no n. 1 do artigo 238, não tenha um mínimo de correspondência no texto do documento, ainda que imperfeitamente expresso (Acórdão deste Supremo Tribunal de 29 de Abril de 1993 - Colectânea Jurisprudência - Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça, ano I, Tomo II, página 93). A interpretação das declarações negociais somente integra matéria de direito quando deve ser feita nos termos dos referidos artigos 236 n. 1 e 238, uma vez que então não se trata de fixar apenas factos, mas de aplicar um critério legal normativo e, portanto, uma disposição legal, devendo o Tribunal apreciar se esse critério foi correctamente entendido e aplicado pelas instâncias - VAZ SERRA, Revista Legislação e Jurisprudência, ano 109, página 95). 3. O artigo 1 do Decreto-Lei n. 352/86, de 21 de Outubro, define o contrato de transporte de mercadorias por mar dizendo que "é aquele em que uma das partes se obriga em relação à outra a transportar determinada mercadoria, de um porto para porto diverso, mediante uma retribuição pecuniária, denominação "frete". 4. A definição contida no artigo 1, desse diploma legal, apenas teve em vista a diferenciação entre contrato de fretamento e o de transporte marítimo: aquele diz respeito a um navio, este diz respeito a uma carga. Trata-se de uma metodização conceitual e outro sentido não deverá ser-lhe dado, conforme sublinha MÁRIO RAPOSO, citado por A. NETO, Código Comercial, Código das Sociedades, Legislação Complementar anotada, 12. edição, 1996, página 887). É que o contrato de transporte de mercadorias por mar só existe, para efeitos de aplicação do Decreto-Lei n. 352/86, quando for emitido um conhecimento de cargas pelo transportador marítimo (artigos 9, 10, 11 e 28). O conhecimento de embarque ou carga apresenta-se como o documento basilar do contrato de transporte marítimo, desempenhando uma função triplica: - Em primeiro lugar, trata-se de um documento que serve de recibo de entrega ao transportador de uma certa e determinada mercadoria nela descrita; - Em segundo lugar, o conhecimento de carga prova o contrato de transporte firmado entre carregador e transportador e as condições do mesmo. - Em terceiro lugar, o mesmo documento representa a mercadoria nele descrita, sendo negociável e transmissível, de acordo com o regime geral dos títulos de crédito. A função tridimensional do conhecimento de carga é reconhecida na nossa doutrina (CALVÃO DA SILVA, Crédito Documentário e Conhecimento de embarque, na Colectânea de Jurisprudência, acórdãos do S.T.J., ano II, 1994, tomo I, páginas 16 e seguintes) e na doutrina francesa (RENÉ RODIÈRE, TRAITÉ GÉNÉRAL DE DROIT MARITIME - afrètements et transports, Tomo II, página 98) e foi acolhida por este Supremo Tribunal - Açordão de 18 de Abril de 1996, Revista n. 88144 - 2. secção, não publicado, que se saiba. Das três funções atribuídas ao conhecimento de cargas é a segunda que se apresenta de importância decisiva para o contorno conceitual do contrato de transporte de mercadorias por mar, sujeito ao regime do Decreto-Lei n. 352/86, de 21 de Outubro. 5. Ao contrato de transporte de mercadorias sujeito ao regime do Decreto-Lei n. 352/86, de 21 de Outubro, aplica-se imperativamente a Convenção de Bruxelas de 25 de Agosto de 1924 no que respeita às operações de carga e descarga, por força do seu artigo 10 (quanto aos transportes internacionais - a tónica está na nacionalidade das partes, e não na localização dos portos) e, ainda, por força do Decreto-Lei n. 37748, de 1 de Fevereiro de 1950 quanto aos transportes internos. Segundo o artigo 2 desta convenção as operações de carga e descarga são da responsabilidade do transportador (e não do armador, já que o único texto oficial da convenção usa a expressão "transporteur" - MÁRIO RAPOSO, Direito Marítimo - Uma perspectiva em Rev. ordem dos Advogados, 43, Maio, 1983, página 354, nota 15). Segundo opina MÁRIO RAPOSO, parece de dar como assente que a responsabilidade pela execução de tais operações não pode ser transferida, em caso algum, para o carregador ou para o destinatário. Pelos seus riscos, o que são muitos, responde sempre o transportador" - Sobre o Contrato de Transporte de Mercadorias por Mar, no Boletim Ministério da Justiça n. 376, 38). 6. As operações de carga e descarga são, em regra, materialmente efectuadas por operadores portuários, na designação usada pelo Decreto-Lei n. 282 - B/84, de 20 de Agosto que, no seu artigo 1 - diz: "Para efeito do presente diploma, consideram-se operações portuárias as relativas à estiva, desestiva, conferência, carga, descarga, transbordo, movimentação e arrumação em cais, terraplanos ou armazéns, formação e decomposição de unidades de carga, armazenagem e entrega, operações complementares, em geral, todas as que requeiram as mercadorias desembarcadas ou destinadas a embarque, dentro da zona portuária". 6a) Nos portos nacionais, as operações de carga e descarga só podem ser levadas a efeito por operadores portuários (são as sociedades ou empresas públicas licenciadas exclusivamente para o exercício das operações portuárias referidas no n. 1 - cfr. artigo 1 n. 3 do Decreto-Lei n. 282-B/84), salvo nos casos exceptuados no artigo 3, ou quando, por razões de "interesse público" não for a autoridade portuária (é a administração ou Junta Autónoma do respectivo porto, cfr. n. 4 do artigo 1, do citado diploma legal) a incumbir-se delas, conforme flui do artigo 15 n. 3, do referido diploma legal que diz: "Quando o interesse público o imponha e o acordo entre a autoridade portuária e os operadores portuários se não mostre adequado para utilização de terminais ou, eventualmente, de outras instalações, a autoridade portuária fará a exploração em regime de gestão directa, realizando as correspondentes operações portuárias". 6b) No porto de Lisboa, o tráfego de mercadorias nos cais, entrepostos e terraplenos livres será feito pela forma que a ADMINISTRAÇÃO GERAL DO PORTO DE LISBOA julgar mais conveniente aos interesses do porto (artigo 65 do Decreto n. 24831 de 31 de Dezembro de 1934 - Novo Regulamento de Tarifas da Administração Geral do Porto de Lisboa), dizendo o artigo 66 que "Dentro dos entrepostos e seus cais o tráfego será feito pela A.G.P.L. ou pela entidade ou entidades a quem tenha sido dada a concessão, mediante concurso". 7. O operador portuário assumirá, nos termos da legislação em vigor, a integral responsabilidade pela operação a seu cargo e pelas perdas e danos provocados às mercadorias durante o período em que estas se encontram à sua guarda, conforme preceitua o artigo 12 n. 1 do Decreto-Lei n. 282-B/84, de 20 de Agosto. Preceitua, no entanto, o n. 2 deste artigo: "o disposto no n. 1 não prejudica a aplicação das normas legais imperativas referentes ao transporte marítimo, designadamente as que decorrem da Convenção de Bruxelas de 25 de Agosto de 1924 e o Decreto-Lei n. 37748, de 1 de Fevereiro de 1950 e de outras convenções internacionais ratificadas, enquanto vincularem internacionalmente o Estado Português". 7a) Tais normas tem de ser interpretadas no sentido de que sempre que aos transportes se aplicar a Convenção de 1924 (transportes internacionais) ou os seus artigos 1 a 8 (transportes internos) será o transportador que, no plano contratual, responderá perante os interessados na carga. E daí que o artigo 7 do Decreto-Lei n. 352/86, de 21 de Outubro, preceitua: "A intervenção do operador portuário ou de outro agente em qualquer operação relativa à mercadoria não afasta a responsabilidade do transportador, ficando, porém, este com o direito de agir contra os referidos operador ou agente". Tal norma vem a significar, por um lado, que o operador portuário ou qualquer outro agente (ex., a autoridade portuária no caso do artigo 15 n. 1 do Decreto-Lei n. 282-B/84, de 20 de Agosto) são terceiros em relação aos interessados na carga. Por outro lado, vem a significar que o operador de carga (operador portuário ou autoridade portuária) é um auxiliar do transportador, mesmo que por ele não escolhido (caso da autoridade portuária): é uma pessoa (em sentido jurídico) utilizada pelo transportador para a execução do transporte marítimo. No sentido de ser o transportador o responsável perante os interessados na carga, nos transportes a que se aplicar a Convenção de 1924, está MÁRIO RAPOSO quando escreve: "Afigura-se, de qualquer forma, que o sistema do Decreto-Lei n. 282-B/84 se deveria articular mais claramente com o Decreto-Lei n. 352/86. O legislador do Decreto-Lei n. 366/88 perdeu uma excelente oportunidade para o fazer." "Com efeito, não se compreende bem qual o sentido da expressão "o operador portuário assumirá (...) a integral responsabilidade pela operação a seu cargo", usada no n. 1 do artigo 12 do Decreto-Lei de 1984". "Claro que a invocação, logo a seguir, das "normas imperativas" da Convenção de 1924, só poderá ter o significado de reiterar que, no plano jurídico, as operações de carga e de descarga (bem como as de estiva e de desestiva) competem ao transportador, desenrolando-se a actividade de operador portuário (ou da autoridade portuária, na hipótese do n. 3 do artigo 15) num plano material ou técnico" - Estudo citado, no Boletim Ministério da Justiça n. 376, páginas 40 e 41). 8. As considerações expostas em 3) a 7a), permitem-nos traçar o perfil do contrato de transporte de mercadorias por mar, sujeito ao regime do Decreto-Lei n. 352/86, de 21 de Outubro. a) Trata-se de um contrato formal em que uma das partes (o transportador) se obriga perante a outra parte (o destinatário) às operações de carga e descarga de determinada mercadoria, transportada de um porto para outro e, ainda, a entregá-la no local que convencionarem. b) No contrato de transporte de mercadorias por mar, sujeito ao regime do Decreto-Lei n. 352/86, de 21 de Outubro, aplica-se imperativamente a convenção de Bruxelas de 25 de Agosto de 1924, quer se trate de transporte internacional quer de transporte interno. c) As operações de carga e descarga são da responsabilidade do transportador mercê da Convenção de Bruxelas de 25 de Agosto de 1924. d) As operações de carga e descarga são, em regra, materialmente efectuadas por operadores portuários. e) No porto de Lisboa, as operações de carga e descarga são efectuadas por operadores portuários e pela autoridade portuária (APL). f) Os operadores portuários e a autoridade portuária respondem perante o transportador (o único responsável, no plano contratual, pelas operações de carga e descarga) pelas perdas e danos provocados às mercadorias durante o período em que se estas se encontrem à sua guarda. 9. Perante o que se deixou exposto em 8) e, ainda, em 2), em conjugação com a matéria fáctica fixada, temos de precisar que, no caso "sub judice": a) se está perante um contrato de transporte de chapas de vidro com carga no porto de Antuérpia e descarga no porto de Lisboa e entrega em Sacavém, contrato este celebrado entre a Ré B (a transportadora) e CACVEC - Cooperativa Abastecedora de Comerciantes, C.R.L. (destinatário). b) A Ré, na execução desse contrato, descarregou as chapas de vidro, acondicionadas em contentores, no porto de Lisboa, numa zona em que o tráfego é feito pela autoridade portuária - A Administração Geral do Porto de Lisboa. c) A "APL", na sua qualidade de autoridade portuária, procedeu ao transporte dos contentores em causa para o terminal do entreposto de Santa Apolónia. d) No decurso do transporte em veículo da "APL" os contentores caíram determinando a destruição das chapas de vidro no valor de 1392000 francos belgas. e) Pela indemnização pela destruição das chapas de vidro é responsável a Ré, na sua qualidade de transportadora, perante o destinatário daquela mercadoria - a Cacvec que foi indemnizada da mesma, mediante contratos de seguros celebrados com a Autora que, por tal, subrogada ficou nos direitos da CACVEC. Conclui-se, assim, que a Autora tem direito a ser indemnizada pela Ré pelos prejuízos havidos na mercadoria que se obrigou a transportar. V Conclusão: Do exposto, poderá extrair-se que: 1) O contrato de transporte de mercadoria por mar é um contrato formalizado através do conhecimento de embarque ou carga em que uma das partes (o transportador) se obriga perante a outra parte (o destinatário) às operações de carga e descarga de determinada mercadoria, transportada de um porto para outro, e, ainda, a entregá-la no local que convencionarem. 2) As operações de carga e descarga são, no plano contratual, da responsabilidade do transportador, desenrolando-se a actividade do operador portuário (ou da autoridade portuária, na hipótese do artigo 15 n. 1 do Decreto-Lei n. 282-B/84, de 20 de Agosto), num plano material ou técnico. Face a tais conclusões, em conjugação com a matéria fáctica fixada, poderá precisar-se que: 1) A Ré responde perante a Autora (na qualidade de subrogada nos direitos da Cacvec, parte no contrato de transporte de chapas de vidro de Antuérpia, via Lisboa, para Sacavém) pela destruição dos contentores das chapas de vidro, aquando do transporte em entreposto do porto de Lisboa feito pela APL, na sua qualidade de autoridade portuária. 2) O acórdão recorrido não pode manter-se por ter inobservado o afirmado em 1). Termos em que se concede a revista, e, assim, revoga-se o acórdão recorrido e condena-se a Ré B a pagar à Autora A a quantia de 1392000 francos belgas ou o equivalente em escudos, acrescida de juros à taxa utilizada entre empresas comerciais, a contar da citação até ao efectivo reembolso. Custas pela recorrida nas instâncias e neste Supremo Tribunal de Justiça, fixando-se a taxa de Justiça nos termos do artigo 18 n. 2, Código de Custas Judiciais. Lisboa, 23 de Setembro de 1997 Miranda Gusmão, Sá Couto, Sousa Inês. |