Acórdãos STA

Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo
Processo:01312/23.0BEPRT
Data do Acordão:01/15/2025
Tribunal:2 SECÇÃO
Relator:DULCE NETO
Descritores:RECURSO DE REVISTA EXCEPCIONAL
NÃO ADMISSÃO DO RECURSO
Sumário:
Nº Convencional:JSTA000P33120
Nº do Documento:SA22025011501312/23
Recorrente:AA
Recorrido 1:AT – AUTORIDADE TRIBUTÁRIA E ADUANEIRA
Votação:UNANIMIDADE
Aditamento:
Texto Integral: Acordam na Secção de Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo

1. AA, com os demais sinais dos autos, recorre do acórdão do Tribunal Central Administrativo Norte de 09.05.2024, que negou provimento ao recurso da sentença do TAF do Porto que, por ilegitimidade do impugnante, indeferiu liminarmente a petição inicial de impugnação da liquidação adicional de IVA efetuada à sociedade A..., S.A. e relativa ao período 0502, no valor de 68.492,73 €.

1.1. Formulou alegações que rematou com o seguinte quadro conclusivo:

DA QUESTÃO PRÉVIA DA ADMISSIBILIDADE DO PRESENTE RECURSO

I. É consabido, que todas as decisões são passíveis de controlo por uma instância superior.

II. A Lei obriga e a constituição exige que seja sempre assegurado o acesso a um duplo grau de jurisdição.

III. Apesar da lei ordinária não raras vezes procurar delimitar a possibilidade de recurso, a Lei fundamental concede sempre uma via de recurso, assegurando assim o acesso a um duplo grau de jurisdição – sempre que em causa estejam situações que possam constituir uma limitação ao direito fundamental de acesso ao direito e à tutela jurisdicional efetiva.

IV. Pois, a Recorrente pretende sindicar perante um Tribunal superior a decisão proferida por um Tribunal inferior.

V. Só concedendo tal direito à Recorrente se poderá ter por assegurado o direito constitucionalmente consagrado ao duplo grau de jurisdição.

VI. O artigo 18.º da Constituição da República Portuguesa estabelece que:

1. Os preceitos constitucionais respeitantes aos direitos, liberdades e garantias são directamente aplicáveis e vinculam as entidades públicas e privadas.

2. A lei só pode restringir os direitos, liberdades e garantias nos casos expressamente previstos na Constituição, devendo as restrições limitar-se ao necessário para salvaguardar outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos.

3. As leis restritivas de direitos, liberdades e garantias têm de revestir carácter geral e abstracto e não podem ter efeito retroactivo, nem diminuir a extensão e o alcance do conteúdo essencial dos preceitos constitucionais.

VII. O artigo 20.º da Constituição da República Portuguesa determina que:

1. A todos é assegurado o acesso ao direito e aos tribunais para defesa dos seus direitos e interesses legalmente protegidos, não podendo a justiça ser denegada por insuficiência de meios económicos.

2. Todos têm direito, nos termos da lei, à informação e consulta jurídicas, ao patrocínio judiciário e a fazer-se acompanhar por advogado perante qualquer autoridade.

3. A lei define e assegura a adequada protecção do segredo de justiça.

4. Todos têm direito a que uma causa em que intervenham seja objecto de decisão em prazo razoável e mediante processo equitativo.

5. Para defesa dos direitos, liberdades e garantias pessoais, a lei assegura aos cidadãos procedimentos judiciais caracterizados pela celeridade e prioridade, de modo a obter tutela efectiva e em tempo útil contra ameaças ou violações desses direitos.

VIII. A não admissão do recurso interposto pela Recorrente consubstancia assim, na ótica da recorrente uma supressão do direito ao recurso e, por conseguinte, uma violação ao estabelecido no nº 2 do artigo 18.º da CRP e, bem assim, ao artigo 20.º da CRP.

IX. Daí que o recurso interposto da decisão do TCAN para o Colendo Supremo Tribunal Administrativo deve ser admitido e ulteriormente apreciado por esta instância superior.

SEM PRESCINDIR,

X. Caso assim não se entenda, o que nem por mera hipótese se concede, deverá a interpretação normativa do artigo 285.º do CPPT no sentido da não admissibilidade de recurso interposto da decisão proferida pelo Tribunal Central Administrativo deve ser julgada inconstitucional por violação do artigo 18.º da CRP (Força jurídica) e 20.º da CRP (Acesso ao direito e tutela jurisdicional efectiva) – inconstitucionalidade que já aqui se deixa arguida nos termos e para os efeitos do artigo 70.º, nº 1, alínea b) da Lei nº 28/82, de 15 de Novembro.

DO RECURSO PROPRIAMENTE DITO

XI. Vem o presente recurso interposto da douta decisão proferida pelo Venerando Tribunal Central Administrativo Norte que negou provimento ao recurso interposto pela Recorrente.

XII. Para tanto, a decisão em mérito considerou inexistir qualquer nenhum dos vícios assacados à decisão proferida, mormente erro de julgamento (i) no que concerne à interpretação efetuada ao artigo 9.º do CPPT e (ii) ao não considerar violado o preceituado no artigo 20.º da CRP.

XIII. Por um lado, confirmou a decisão quanto à ilegitimidade do Recorrente e, por outro, julgou não verificada a limitação de acesso ao direito e à tutela jurisdicional efetiva decorrente da interpretação que vem sendo feita ao artigo 9.º do CPPT.

XIV. Porque não se conforma com o entendimento ali trilhado, vem, mais uma vez, recorrer do mui douto aresto ali proferido.

XV. Sem quebra do muito respeito devido, resulta claro que o TCAN, também ele, faz uma interpretação do artigo 9.º do CPPT de uma forma que nos parece não ser a mais consentânea com o espírito do legislador.

XVI. Pois, tal interpretação detém-se sobre o elemento literal, quando as circunstâncias nos apontam no sentido de ir mais longe, no sentido de abranger outras realidades – como aquelas em que existe um interesse legalmente protegido.

Mas vejamos,

XVII. No caso dos autos, o Recorrente assevera ter legitimidade para impugnar judicialmente os atos de liquidação sindicados, porquanto, à data dos factos, era o legal representante da devedora originária.

XVIII. Encontrando-se a devedora originária já extinta, tais atos de liquidação, só pelo legal representante poderiam ser sindicadas.

XIX. Na verdade, desde o momento em que o mesmo assume a posição de responsável subsidiário da devedora originária, nenhuma dúvida subsiste de que este tem um interesse legítimo sempre que matérias da devedora originária contendam com a sua posição.

XX. E, não nos referimos apenas às situações tributárias (como em casos de reversão da dívida tributária) visto que aí o legislador expressamente atribuí legitimidade ao revertido.

XXI. Ao invés do que sucede, por exemplo, no âmbito criminal, como é o caso dos presentes autos.

XXII. Ora, se o Recorrente é perseguido criminalmente por um facto praticado pela devedora originária e, que na sua génese está um ato de liquidação – parece-nos, ressalvado o respeito devido por diversa opinião, que ao Recorrente terá, forçosamente, de ser conferida legitimidade para sindicar o ato de liquidação.

XXIII. Pois, nenhuma dúvida subsiste no sentido de que o Recorrente, num caso como o dos presentes autos, é detentor de um interesse legalmente protegido – merecedor de tutela do direito e dos tribunais.

POR OUTRO LADO,

XXIV. Pelo simples facto do Recorrente ser o legal representante da devedora originária – o mesmo assume-se, ab initio (pelo simples facto de ser gerente/administrador) como responsável subsidiário.

XXV. E, como tal, a legitimidade para sindicar o ato de liquidação também se mostra assegurada por esta via.

XXVI. Ao decidir de modo diverso, a decisão em mérito violou os artigos 22.º, 23.º, 101.º, alínea a) da LGT e 97.º, nº 1, alínea a) e 102.º, nº 1, alínea c) do CPPT, conjugado com o artigo 9.º do CPPT e artigo 20.º da CRP.

SEM PRESCINDIR,

XXVII. Sempre se dirá que a interpretação do elenco normativo integrado pelas disposições dos artigos 22.º, 23.º, 101.º, alínea a) da LGT e 97.º, nº 1, alínea a) e 102.º, nº 1, alínea c) do CPPT, conjugado com o artigo 9.º do CPPT, no sentido de não conferir legitimidade àquele que é criminalmente perseguido por factos praticados pela devedora originária, enquanto titular de um direito legalmente protegido, deve ser declarada inconstitucional por impedir o acesso ao direito e tutela jurisdicional efectiva, ínsito no artigo 20.º da Constituição da República Portuguesa – inconstitucionalidade que desde já se deixa aqui invocada, nos termos e para os efeitos do artigo 70.º, nº 1, alínea b) da Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro.

TERMOS EM QUE Concedendo provimento ao recurso agora interposto e revogando a douta decisão recorrida, farão Vossas Excelências a acostumada, JUSTIÇA!

1.2. Não foram apresentadas contra-alegações.

1.3. O Exm.º Magistrado do Ministério Público pronunciou-se no sentido de que “não compete emitir parecer sobre a admissão do Recurso de Revista, mas apenas quanto ao seu mérito no caso de o Recurso ser admitido”.


1.4. Cumpre proceder à apreciação liminar sumária a que se refere o n.º 6 do artigo 285.º do CPPT.

2. O recorrente apresentou requerimento de interposição de recurso dizendo que “vem interpor recurso para o COLENDO SUPREMO TRIBUNAL ADMINISTRATIVO, nos termos das disposições conjugadas pelos artigos 279.º, 280.º, 282.º e 283.º do CPPT, recurso que será de apelação em processo civil (cfr. artigo 281.º do CPPT e artigo 644.º do CPC, código aqui aplicável ex vi artigo 2.º, alínea e) do CPPT), com subida imediata nos próprios autos (cfr. artigo 645.º, n.º 1, alínea a) do CPC) e efeito suspensivo uma vez que a retenção do mesmo o tornaria absolutamente inútil (cfr. artigo 286.º, n.º 2 do CPPT)”.
Embora o presente recurso tenha sido interposto como de apelação, há quase trinta anos, desde o Decreto-Lei n.º 229/96, de 29 de novembro, que foi extinto o 3.º grau de jurisdição, daí que o acórdão do TCA Norte sindicado nos presentes autos apenas como recurso de revista, interposto ao abrigo do artigo 285.º do CPPT, pode aceder ao STA.

Dispõe o artigo 285.º do CPPT, sob a epígrafe “Recurso de Revista”:

1 – Das decisões proferidas em segunda instância pelo Tribunal Central Administrativo pode haver, excecionalmente, revista para o Supremo Tribunal Administrativo, quando esteja em causa a apreciação de uma questão que, pela sua relevância jurídica ou social, se revista de importância fundamental ou quando a admissão do recurso seja claramente necessária para uma melhor aplicação do direito.

2 – A revista só pode ter como fundamento a violação de lei substantiva ou processual.

3 – Aos factos materiais fixados pelo tribunal recorrido, o tribunal de revista aplica definitivamente o regime jurídico que julgue adequado.

4 – O erro na apreciação das provas e na fixação dos factos materiais da causa não pode ser objeto de revista, salvo havendo ofensa de uma disposição expressa de lei que exija certa espécie de prova para a existência do facto ou que fixe a força de determinado meio de prova.

5 – Na revista de decisão de atribuição ou recusa de providência cautelar, o Supremo Tribunal Administrativo, quando não confirme a decisão recorrida, substitui-a por acórdão que decide a questão controvertida, aplicando os critérios de atribuição das providências cautelares por referência à matéria de facto fixada nas instâncias.

6 – A decisão quanto à questão de saber se, no caso concreto, se preenchem os pressupostos do n.º 1 compete ao Supremo Tribunal Administrativo, devendo ser objeto de apreciação preliminar sumária, a cargo de uma formação constituída por três juízes de entre os mais antigos da Secção de Contencioso Tributário.

Tal preceito prevê, assim, a possibilidade de recurso de revista excepcional para o Supremo Tribunal Administrativo (STA) quando esteja em causa a apreciação de uma questão que, pela sua relevância jurídica ou social, se revista de importância fundamental ou quando a admissão do recurso seja claramente necessária para uma melhor aplicação do direito.

Como tem sido repetidamente explicado nos inúmeros acórdãos proferidos sobre a matéria, o preenchimento do conceito indeterminado de relevância jurídica fundamental verificar-se-á quando a questão a apreciar seja de elevada complexidade ou, pelo menos, de complexidade jurídica superior à comum, seja por força da dificuldade das operações exegéticas a efectuar, de um enquadramento normativo especialmente intricado, da necessidade de concatenação de diversos regimes legais e institutos jurídicos, ou quando a matéria vem gerando polémica ou suscitando dúvidas a nível jurisprudencial ou doutrinal.

relevância social fundamental verificar-se-á quando esteja em causa uma questão com elevada capacidade de repetição, que importa que o STA aprecie e decida para que a solução encontrada venha a constituir uma orientação para os demais casos, ou quando esteja em causa uma questão que revele especial capacidade de repercussão social, em que a utilidade da decisão extravasa os limites do caso concreto e das partes envolvidas no litígio.

Por outro lado, a clara necessidade da admissão da revista para melhor aplicação do direito terá de resultar da possibilidade de repetição num número indeterminado de casos futuros e consequente necessidade de garantir a uniformização do direito em matérias importantes tratadas pelas instâncias de forma pouco consistente ou contraditória ou por as instâncias terem tratado a matéria de forma ostensivamente errada ou juridicamente insustentável, sendo objectivamente útil a intervenção do STA na qualidade de órgão de regulação do sistema.

Constitui jurisprudência pacífica deste STA que, atento o carácter extraordinário do recurso de revista excepcional não pode este recurso ser utilizado para arguir nulidades do acórdão, devendo as mesmas ser arguidas em reclamação para o tribunal recorrido, nos termos do artigo 615.º n.º 4 do Código de Processo Civil (cfr., entre muitos outros, os Acórdãos do STA de 08/01/2014, recurso n.º 01522/13 e de 29/04/2015, recurso n.º 01363/14). Também as questões de inconstitucionalidade não constituem objecto específico do recurso de revista, porquanto para estas existe recurso para o Tribunal Constitucional.

O presente recurso vem interposto como se de um recurso de apelação se tratasse, pois em lado algum das suas alegações o recorrente invoca que in casu se verifica algum dos pressupostos de que a lei faz depender a admissão do recurso, a saber: que esteja em causa a apreciação de uma questão que, pela sua relevância jurídica ou social, se revista de importância fundamental ou a admissão do recurso seja claramente necessária para uma melhor aplicação do direito.

Ora, constitui jurisprudência pacífica deste Supremo Tribunal que nada alegando o recorrente quanto à verificação no caso concreto de algum dos pressupostos legais do recurso e não sendo também evidente ou manifesta a importância jurídica ou social fundamental da questão decidenda ou a clara necessidade da revista “para melhor aplicação do direito”, o recurso não pode ser admitido.

Acresce que, como se disse já, as questões de inconstitucionalidade também não constituem objecto específico do recurso de revista, mercê da possibilidade de recurso para o Tribunal Constitucional.

Pelo exposto, e sem necessidade de maiores considerações, torna-se evidente que não se verificam os requisitos de admissão do recurso de revista expressos no artigo 285.º, n.º 1 do CPPT.

No mesmo sentido, os Acórdãos desta formação de 23.10.2024, recursos n.ºs 1012/23.1BEBRG, 1302/23.3BEPRT, 1001/23.6BEBRG e 1003/23.2BEBRG e de 06.11.2024, recurso n.º 1304/23.0BEPRT.

3. Termos em que acordam, em conferência, os juízes da Secção de Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo que integram a formação referida no n.º 6 do artigo 285.º do CPPT, em não admitir a revista.

Custas pelo Recorrente.

Lisboa, 15 de Janeiro de 2025. - Dulce Neto (relatora) - Francisco Rothes - Isabel Marques da Silva.